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HISTÓRIA E ESTRUTURA: A QUESTÃO DA TOTALIDADE
Eduardo Holderle Peruzzo
Doutorando do PPG de História Econômica
HISTORIA ECONÔMICA E HISTÓRIA CULTURAL: TEORIA E HISTORIOGRAFIA (FLH5398-‐1)
USP | FFLCH | PPGHE | CÁTEDRA JAIME CORTESÃO | GRUPO DE ESTUDOS HISTORIOGRÁFICOS IBERO-‐AMERICANOS
PROBLEMÁTICA: TOTALIDADE, FRAGMENTAÇÃO E CONHECIMENTO HISTÓRICO
“Consequentemente, as novas perspectivas para a história também devem nos levar a essa meta essencial de quem estuda o passado, mesmo que nunca seja cabalmente realizável: "a história total". Não "a história de
tudo", mas a história como uma tela indivisível onde todas as atividades humanas estão interconectadas. Os marxistas não são os únicos que se propuseram esse objetivo —Fernand Braudel também fez isso— mas
foram eles que o perseguiram com mais tenacidade, como dizia um deles, Pierre Vilar.”
[HOBSBAWM, Eric. J. O desafio da razão: Manifesto para a renovação da história. (arCgo originalmente publicado no periódico britânico The Guardian, em 15/01/2005, sob o Qtulo In defense of history. Publicado em português pela agência de noQcias Carta Maior, em 11/04/2008]
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• Crise dos paradigmas • Linguis1c turn • Pós-‐modernismo/pós-‐estruturalismo (agenda pós-‐moderna) • Morte das metanarraCvas • Fim da história
• Especialização • Novo paradigma: informação/bit/gene (fragmento)
“A mudança do lugar social dos cienCstas e técnicos determinada pela economia (isto é, pela base material da sociedade) vem exprimir-‐se teoricamente (isto é, no plano das ideias) no novo paradigma das ciências duras (matemáCca, `sica, química), naturais (biologia) e humanas (ciências sociais), qual seja, o da informação, que suplanta tanto o paradigma clássico da organização quanto o paradigma do século XX, a estrutura (esses dois paradigmas lidam com totalidades; a informação lida com a fragmentação e dispersão de sinais).”
[CHAUI, Marilena. Nova classe trabalhadora: enigmas?, 08/08/2013, Fundação Perseu Abramo]
• Etc...
FRAGMENTAÇÃO
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PARES DE OPOSTOS CONCEITUAIS
Exemplo: debate historiográfico sobre Brasil Colonial:
Abordagem estrutural: estrutura, conjuntura, sistema,
processo, formação, dinâmica, senCdo, centro, periferia... x
“Léxico de tecelagem”: rede, trama, malha, franjas, nó…
* Não há movimento, interação entre as partes, todo descerebrado/ fragmentado, sem hierarquia ou determinação...
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“...En aquel Imperio, el Arte de la Cartografía logró tal Perfección que el mapa
de una sola Provincia ocupaba toda una Ciudad, y el mapa del Imperio, toda una Provincia. Con el tiempo, esos Mapas Desmesurados no satisficieron y los
Colegios de Cartógrafos levantaron un Mapa del Imperio y coincidía puntualmente con él. Menos Adictas al Estudio de la Cartografía, las
Generaciones Siguientes entendieron que ese dilatado Mapa era Inútil y no sin Impiedad lo entregaron a las Inclemencias del Sol y de los Inviernos. En los desiertos del Oeste perduran despedazadas Ruinas del Mapa, habitadas
por Animales y por Mendigos; en todo el País no hay otra reliquia de las Disciplinas Geográficas.
(Suárez Miranda: Viajes de Varones Prudentes, livro quarto, cap. XLV, Lérida, 1658.)”
Del rigor en la ciencia JORGE LUIS BORGES
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“...Naquele Império, a Arte da Cartografia alcançou tal Perfeição que o mapa de uma única Província ocupava toda uma Cidade, e o mapa do
império, toda uma Província. Com o tempo, esses Mapas Desmesurados não foram satisfatórios e os Colégios de Cartógrafos levantaram um
Mapa do Império, que tinha o tamanho do Império e coincidia pontualmente com ele. Menos Afeitas ao Estudo da Cartografia, as
Gerações Seguintes entenderam que esse dilatado Mapa era Inútil e não sem Impiedade o entregaram às Inclemências do Sol e dos Invernos. Nos
desertos do Oeste perduram despedaçadas Ruínas do Mapa, habitadas por Animais e por Mendigos; em todo o País não há outra relíquia das
Disciplinas Geográficas. (Suárez Miranda: Viajes de Varones Prudentes, livro quarto, cap. XLV, Lérida, 1658.)”
Do rigor na ciência JORGE LUIS BORGES
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O PARADIGMA CIENTÍFICO MODERNO
Ao contrário da ciência aristotélica, a ciência moderna desconfia sistemaCcamente das evidências de nossa experiência imediata. Tais evidências, que estão na base do conhecimento vulgar, são ilusórias”. Descartes insiste em que o método cienQfico se assenta na redução da
complexidade, uma das regras do seu Discurso Sobre o Método consiste precisamente em “dividir cada uma das dificuldades [...] em tantas parcelas quantas for possível e requerido para melhor as
resolver”. O mundo é complexo e a mente humana não pode o compreender integralmente, conhecer significa dividir e classificar para depois poder determinar relações sistemáCcas entre o que se
separou.
[SANTOS, Boaventura de Sousa: Um discurso sobre as ciências. São Paulo: Cortez, 2008.]
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Na conCnuidade desse racionalismo cartesiano, Isaac Newton concebeu que o mundo da matéria era uma máquina, cujas operações poderiam ser determinadas exatamente por meio de leis `sicas e matemáCcas e esta idéia de um “mundo-‐máquina” foi tão poderosa que se transformou na grande hipótese universal da época moderna: o mecanicismo. Afirmava ainda que, só a invesCgação experimental (empirismo) “era capaz de fornecer um conhecimento parcial do todo natural que, cumulaCva e progressivamente, poderia conduzir a um conhecimento maior desta totalidade objeCva”.
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Esta concepção mecanicista e de uma natureza regida por leis universais era também, no plano social, “o horizonte mais adequado aos interesses da burguesia ascendente, que via na sociedade em que começava a dominar o estágio final da evolução da humanidade (o estado posiCvo de Comte)” e portanto, “Tal como foi possível descobrir as leis da natureza, seria igualmente possível descobrir as leis da sociedade. Bacon, Vico e Montesquieu são os grandes precursores”.
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As ideias apresentadas por Sousa Santos e aqui simplificadas acerca do método cienQfico, permitem, idenCficar uma tendência que serão encontradas – ainda que de de forma heterogênea – em algumas linhas do conhecimento histórico do século XIX: a ideia de que as partes se relacionam e tem funções enquanto partes de um todo, que há uma causalidade interligando estas partes, o que expressa as regularidades do que podemos hoje chamar um sistema. Logo, esta noção de ciência já sugere a importância de uma visão global. Afinal, mesmo que um determinado objeto seja abordado de maneira parCcular, a concepção cienQfica predispõe uma noção sistêmica (mesmo que mecanicista) na qual este objeto se arCcula com os demais, visto como componente de um organismo maior. Dizendo de outra forma, o paradigma cartesiano-‐newtoniano oferece uma visão mecanicista na qual, para entender o funcionamento da “máquina”, é preciso desmontá-‐la ou dividi-‐la em suas partes e logo uni-‐las em um todo por meio de suas causalidades.
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HEGEL E A TOTALIDADE DIALÉTICA
Também em uma simplificação, pode-‐se dizer que a história da dialéCca remonta aos primórdios do pensamento especulaCvo ocidental, principalmente aos pensadores clássicos, que inauguram praCcamente todas as discussões desta natureza. Esta herança foi redescoberta por vários filósofos e pensadores modernos, mas se deve principalmente a G. F. Hegel a elaboração dos traços fundamentais da dialéCca idealista moderna, que foi a base para Marx elaborar a inversão materialista da dialéCca.
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A acepção moderna da dialéCca é “o modo de pensarmos as contradições da realidade, o modo de compreendermos a realidade como essencialmente contraditória e em permanente transformação”.
[KONDER, Leandro. O que e dialé1ca. São Paulo: Brasiliense, 1981. p.8] “A dialé1ca não pensa o todo negando as partes, nem pensa as partes abstraídas do todo. Ela pensa tanto as contradições entre as partes (a diferença entre elas: o que faz de uma obra de arte algo dis1nto de um panfleto polí1co), como a união entre elas (o que leva a arte e a polí1ca a se relacionarem no seio da sociedade enquanto totalidade)”.
[COUTINHO, Carlos Nelson apud KONDER Op cit. p. 46]
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Hegel criou um sistema no qual todo o universo, da Natureza, da História e do Espírito, era representado como um processo, quer dizer, como um todo envolvido num movimento, numa transformação e numa evolução constantes. Como filósofo idealista, subordinava os movimentos da realidade material à lógica de um principio que ele denominava “Ideia Absoluta”: “Para Hegel, o movimento do pensamento, que ele personifica sob o nome de Ideia, é o demiurgo da realidade, a qual não é mais do que a forma fenomênica da Ideia. A história é assim, o auto-‐desenvolvimento de um Espírito Absoluto, é a realização no tempo da Ideia Absoluta, a que os indivíduos humanos servem de suporte”.
[BROHM, Jean Marie. O que é a dialé1ca. Lisboa: AnQdoto, 1979. p. 12.]
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No caminho aberto por Hegel, seu discípulo Karl Marx a parCr de uma concepção materialista da história, vai inverter a dialéCca idealista e considerar que o movimento da história são os indivíduos, sua ação e suas condições materiais de vida, tanto aquelas que encontraram já existentes como as criadas por sua própria ação. Ou seja, criCca Hegel porque este percebe a realidade como um objeto, mas não como aCvidade humana concreta. Marx inverte a relação entre materialidade e pensamento concebida por Hegel, que colocava este úlCmo como produtor daquela, inversão que significou criCcar o viés idealista e apresentar a vida material como produtora das representações mentais.
[ALONSO, José A. Metodologia. México: Edicol, 1981. p. 104]
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MATERIALISMO DIALÉTICO E A CATEGORIA DE TOTALIDADE
“Ora, o problema colocado por Marx (e por todos aqueles que têm a preocupação, na esperança de domina-‐los um dia, de esclarecer os mecanismos das sociedades humanas) é o da construção de uma ciência dessas sociedades que seja ao mesmo tempo coerente graças a um esquema teórico sólido e comum, total, capaz de não deixar fora de suas jurisdição qualquer campo de análise úCl, dinâmica, pois na medida em que nenhuma estabilidade é eterna, nada é mais úCl de descobrir que o princípio das mudanças.”
[VILAR, Pierre. História marxista, história em construção. In: LE GOFF, J. & NORA, P. (org.). História – novos problemas. Rio de Janeiro : F. Alves, 1976. pp. 146-‐178.]
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“[...] Totalidade não significa todos os fatos. Totalidade significa: realidade como um todo estruturado, dialé1co, no qual ou do qual um fato qualquer pode ser racionalmente compreendido. Acumular todos os fatos não significa, ainda, a totalidade. Os fatos são conhecimento da realidade se são compreendidos como fatos de um todo dialé1co – isto é, se não são átomos mutáveis, indivisíveis e indemonstráveis, de cuja reunião a realidade sai recons1tuída – se são entendidos como partes estruturais do todo.” "[...] A totalidade concreta não é um método para captar e exaurir todos os aspectos, caracteres, propriedades, relações e processos da realidade; é uma teoria da realidade como totalidade concreta. Se a realidade é entendida como concre1cidade, como um todo que possui sua própria estrutura (e que, portanto, não é caó1co), que se desenvolve (e, portanto, não é imutável nem dado uma vez por todas), que se vai criando (e que, portanto, não é um todo perfeito e acabado no seu conjunto) [...]” “[...] de semelhante concepção da realidade decorrem certas conclusões metodológicas que se convertem em orientação heurís1ca e princípio epistemológico para estudo, descrição, compreensão, ilustração e avaliação de certas seções tema1zadas da realidade, quer se trate da bsica ou da ciência literária, da biologia ou da polí1ca econômica, de problemas teóricos da matemá1ca ou de questões prá1cas rela1vas à organização da vida humana e da situação social.”
[KOSIK, Karel. A dialé1ca do concreto. Rio de Janeiro: Paz e Terra. 2002, pp. 43-‐44.]
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“[...] nunca há pontos de par1da absolutamente certos, nem problemas defini1vamente resolvidos; afirma que o pensamento nunca avança em linha reta, pois toda verdade parcial só assume sua verdadeira significação por seu lugar no conjunto, da mesma forma que o conjunto só pode ser conhecido pelo progresso no conhecimento das verdades parciais. A marcha do conhecimento aparece assim como uma perpétua oscilação entre as partes e o todo, que se devem esclarecer mutuamente.”
[GOLDMANN, Lucien. Dialé1ca e Cultura. São Paulo: Melhoramentos. 1979. pp. 55-‐56.]
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“Quando consideramos um país dado do ponto de vista econômico políCco, começamos por sua população, a divisão desta em classes, a cidade, o campo, o mar, os diferentes ramos da produção [...] Parece que o correto é começar pelo real e pelo concreto, que são a pressuposição prévia e efeCva [...] A população é uma abstração se deixo de lado as classes que a compõem. Estas classes são, por sua vez, uma palavra vazia se ignoro os elementos sobre os quais repousam, por exemplo: o trabalho assalariado, o capital. [...] Chegado a este ponto, teria que fazer a viagem de retorno, até dar de novo com a população, porém desta vez não teria como uma representação caóCca de um conjunto, senão como uma rica totalidade com múlVplas determinações e relações. [...] O concreto é concreto, porque é a concentração de muitas determinações, portanto unidade do diverso. Aparece no pensamento como o processo de síntese, como resultado, não como ponto de parCda, ainda que seja o verdadeiro ponto de parCda, e, em conseqüência, o ponto de parCda também da intuição e da representação". [...] a totalidade concreta, como totalidade de pensamentos, como um concreto de pensamentos, é de fato um produto do pensar, do conceber; não é de modo nenhum o produto do conceito que pensa separado e acima da intuição e da representação, e que se engendra a si mesmo, mas da elaboração da intuição e da representação em conceitos. O todo, tal como aparece no cérebro, como um todo de pensamento, é um produto do cérebro pensante que se apropria do mundo do único modo que lhe é possível, modo que difere do modo ardsVco, religioso e práVco-‐mental de se apropriar dele. O sujeito real permanece subsisCndo, agora como antes, em sua autonomia fora do cérebro, isto é, na medida em que o cérebro não se comporta senão especulaCvamente, teoricamente. Por isso também, no método teórico é necessário que o sujeito, a sociedade, deve figurar sempre na representação como premissa.” [grifo meu
[MARX, Karl. Introducción general a la crí1ca de la economia polí1ca/ 1857. México: Siglo XXI, 1982.
pp. 50-‐52]. 18
MARX: concreto è abstração è concreto pensado
“O materialismo histórico propõe-‐se a estudar o processo social em sua totalidade: isto é, propõe-‐se a fazê-‐lo quando este surge não como mais uma história ‘setorial’ [...], mas como uma história total da sociedade, na qual todas as outras histórias setoriais estão reunidas. Propõe a mostrar de que modos determinados cada aCvidade se relacionou com a outra, qual a lógica desse processo e a racionalidade da causação.” “[...] disCngue-‐se de outros sistemas interpretaCvos pela sua obsCnação teimosa em elaborar essas categorias e em arCculá-‐las numa totalidade conceptual [sic]. Esta totalidade não é uma “verdade” teórica acabada; mas também não é um modelo ficQcio, é um conhecimento em desenvolvimento, muito embora provisório e aproximado com muitos silêncios e impurezas. O desenvolvimento desse conhecimento se dá tanto na teoria quanto na práCca: surge de um diálogo e seu discurso de demonstração é conduzido nos termos da lógica histórica.”
[THOMPSON, Edward P. A miséria da teoria, ou, um planetário de erros : uma crí1ca ao pensamento de
Althusser. Rio de Janeiro: Zahar, 1981. p.82; p. 61.] 19
“Não é a predominância dos moCvos econômicos na explicação da história que disCngue de modo terminante o marxismo da ciência burguesa; é o ponto de vista da totalidade. A categoria de totalidade, a predominância universal e determinante do todo sobre as partes consCtui a própria essência do método que Marx emprestou de Hegel e o transformou, de maneira a fazê-‐lo a fundamentação original de uma ciência inteiramente nova [...] a predominância da categoria da totalidade é o suporte do princípio revolucionário na ciência.”
[LUKÁCS, G. apud GOLDMANN, Lucien. Dialé1ca e Cultura. São Paulo:
Melhoramentos, 1979. p. 49]
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TOTALIDADE E CIÊNCIA HISTÓRICA
Discorreu-‐se até o momento acerca da concepção filosófica e dialéCca da totalidade, ainda que aplicada no universo cienCfico e trabalhada enquanto método pelo materialismo histórico. Atentaremos, a parCr de agora, para o desenvolvimento desta questão no âmbito da disciplina histórica, e no surgimento das ciências sociais. Trazendo citações de autores, entre os quais, representantes das três correntes de pensamento que mais influenciaram a produção historiográfica francesa no século XIX: o historicismo alemão, o posi1vismo com1ano e a escola metódica.
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“Agora, a história é uma enciclopédia; é preciso enfiar tudo nela, desde astronomia até química, desde a arte do financista até a do manufator, desde o conhecimento do pintor, do escultor e da arquitetura até o do economista, desde o estudo das leis eclesiásCcas, civis e criminais até o das leis políCcas.” [CHATEUBRIAND, François-‐R. de apud LE GOFF. A história nova. São Paulo: MarCns
Fontes. 2005. p.52]
“Apenas foi feita a história dos reis, mas não foi feita a da nação, parece que durante 1.400 anos houve nas Gálias somente reis, ministros e generais, mas nossos costumes, leis hábitos, vestuário e espírito não estão lá?”
[VOLTAIRE apud DOSSE. A história em migalhas, dos Annales à nova história. Bauru: Editora EDUSC. 2003. p. 200.]
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“A manifestação par1cular é compreendida como uma manifestação do interior, entendida como uma simples expressão da natureza interior; esse interior é evidenciado, no exemplo desta manifestação, como uma força central que se apresenta em si, declarando sua
natureza, como sendo um todo sem diferença, como também o é cada um de seus efeitos e manifestações periféricas. O par1cular é compreendido no todo e o todo é compreendido no par1cular.”
[DROYSEN, Johann G. Manual de teoria da história. Petrópolis: Vozes, 2009. p. 39]
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* historicismo alemão
Leopold von Ranke em seu manuscrito inCtulado O par1cular e o geral no estudo da História (1860) começa com a seguinte afirmação: “Reconhecemos que a história nunca poderá ter a unidade de um sistema filosófico, mas ela não carece de conexão interna. Vemos desfilar ante nós uma série de acontecimentos os quais se regem e condicionam mutuamente”. Em outro, chamado A ideia da História Universal (1830) também encontramos uma noção de causalidade “Os eventos se tocam e atuam simultaneamente uns sobre os outros: o que precede determina o que segue; existe uma interna conexão de causa e efeito” e ainda seu conceito de totalidade: "Pois bem, assim como existe o parCcular, o nexo de um com o outro, assim também possui finalmente existência a totalidade [...] Em se tratando de um povo, não podemos preocupar-‐nos somente dos momentos individuais de suas expressões vitais, e sim nos interessar-‐ pela totalidade de seu desenvolvimento, de seus fatos, de suas insCtuições, de sua literatura [...] Vê-‐se quanto infinitamente di`cil chega a ser a situação com a história universal. Que infinita massa de materiais quantos diversos esforços, quanta dificuldade para abarcar tão somente o parCcular! [...] Tenho para mim como coisa impossível resolver completamente este problema. Só Deus conhece a história universal.”
[RANKE, Leopold von apud MEDINA, Juan O. Teoria y cri1ca de la historiografia cien1fico-‐idealista alemana. Humbold–Ranke. México: UNAM, 1980. p.143.]
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* Escola metódica (alemã)
* PosiVvismo
“O traço principal da filosofia posi1vista”, escrevia o filósofo, “consiste em que considera que todos os fenômenos estão subme1dos a leis naturais e invariáveis e que o exato descobrimento destas leis e sua redução ao mínimo possível cons1tui o fim de todos os nossos esforços”.
[COMTE, Auguste. Cours de philosophie posi1ve. Paris: Société PosiCviste. v. 1. 1892, pp. 11-‐12.]
Comte ambicionava fundar a ciência da sociedade, capaz de explicar o passado da espécie humana e predizer seu futuro aplicando os mesmos métodos de invesCgação próprios do estudo da natureza, a saber, observação, experimentação e comparação, de onde surgiu a Sociologia inicialmente chamada “`sica social”: “Eu entendo por bsica social a ciência que tem por objeto próprio o estudo dos fenômenos sociais”.
Se refere ao posiCvismo como um sistema, com uma estrutura de ordenação, mas onde não subesCma sua evolução (a lei dos três estágios) e no seu Curso de Filosofia Posi1va propunha uma aula de “Considerações sobre a estrutura geral das sociedades humanas” e outra sobre a “Lei natural do desenvolvimento da espécie humana, considerada em seu conjunto” e ainda uma aula sobre “Leis fundamentais da dinâmica social, ou teoria geral do progresso natural da humanidade”. O próprio escruQnio “enciclopédico” das varias ciências que compõem o conhecimento humano e a hierarquia que Comte propôs entre elas quanto ao grau de cienCficidade, visava a construção de um sistema geral dos conhecimentos humanos, em que todas as concepções deviam apresentar-‐se como as diversas partes de um sistema único e completo.
[Cf. COMTE, A. apud ARNAUD, Pierre. Sociologia de Comte. Barcelona: Península, 1971. p. 20.]
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“A História não é uma arte. É uma ciência pura. Ela consiste, como toda a ciência, em constatar os fatos, analisá-‐los, juntá-‐los, estabelecer a ligação entre eles. Pode acontecer que uma certa filosofia se desprenda desta história cienQfica; mas é preciso que ela se desprenda naturalmente, por ela própria, quase sem intervenção da vontade do historiador. Ele não tem outra ambição senão ver bem os fatos e compreendê-‐los com exaCdão [...]. A sua única habilidade consiste em Crar dos documentos tudo o que eles contêm e não acrescentar nada. O melhor dos historiadores é aquele que fica mais perto dos textos, que os interpreta com mais fidelidade, que não escreve e mesmo não pensa senão de acordo com eles.”
[COULANGES, Fustel de. Histoire des instutu1ons poli1ques de l’ancienne France. Paris: Hache�e, 1931. (Tomo III, capítulo 1 -‐ La monarchie franque)]
{A respeito do “senCdo de unidade” de Michelet e Fustel de Coulanges, Bloch escreve: “Estes dois grandes historiadores eram grandes demais para ignorá-‐lo: [...] o conhecimento
dos fragmentos, sucessivamente estudados, cada um por si, jamais propiciará o do todo; não propiciará sequer o dos próprios fragmentos”.
(BLOCH, M. Apologia da história ou o obcio de historiador. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor. 2001. p. 134.)}
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* PosiVvismo
*Escola metódica (francesa)
Charles Langlois e Charles V. Seignobos desCnam a úlCma parte de seu Introdução aos estudos históricos ao que chamam de operações sinté1cas, que se divide em três momentos: agrupação dos fatos, racionalização constru1va e construção de fórmulas gerais. Ainda fortemente vinculado ao método cartesiano de classificação, o objeCvo inicial da síntese proposta por estes autores era separar, ordenar e classificar os fatos. Estes, por sua vez, os classificam em diversas categorias, como: condições materiais (dados quanCtaCvos), costumes econômicos, ins1tuições sociais, etc. O mais interessante é a expressão – entre parênteses –ao lado de hábitos intelectuais e de costumes materiais, dizendo: “(não obrigatórios)”, e ao lado de ins1tuições polí1cas: “(obrigatórios)”, já salientando importância destes, em detrimento da menor relevância daqueles, para os autores.
Se o objeCvo inicial desta proposta era primeiramente agrupar os fatos conforme sua natureza, tempo e lugar em que se produziram, posteriormente havia-‐se de cumprir uma “racionalização construCvoa” dos mesmos. É neste momento que fica ainda evidente a sobreposição da história políCca, sobre as demais áreas. Por mais que os autores salientem várias vezes que todos os fatos devam ser levados em consideração, e que portanto uma “história geral” deve prevalecer sobre “histórias específicas”, até mesmo afirmando que “Todos os ramos da história que estudam uma só espécie de fatos, isolada por completo (língua, artes, direito privado, religião), se vêem expostas ao mesmo perigo, porque não vêem mais do que pedaços da vida humana e não conjuntos”, na práCca, o destaque ainda se volta para o caráter políCco da sociedade, para os acontecimentos desta natureza e os documentos oficiais produzidos a parCr deles. "Como os fatos gerais são sobretudo de natureza polí1ca, e como é mais dibcil organizá-‐los em um ramo especial, a história geral tem permanecido de fato confundida com a história polí1ca (Staatengeschichte). Assim, os historiadores polí1cos se tornaram os campeões da história geral conservando em seus escritos todos os fatos gerais (imigração dos povos, reformas religiosas, invenções e descobertas) necessários para compreender a evolução.”
[LANGLOIS & SEIGNOBOS. Introduccion a los estudios historicos. Buenos Aires : Pleyade, 1972. pp. 173-‐184] 27
OS ANNALES E A HISTÓRIA TOTAL “Há pois atualmente [1911] uma espécie de crise, onde se traduz o estado inorgânico dos estudos históricos. Estamos convencidos de que este mal-‐estar que não é peculiar à França, que é mais ou menos sensível em todos os países de forte cultura histórica – provém do fato de que um grande número de historiadores jamais refleCram sobre a natureza de sua ciência. Estabelecem os fatos, porque tal e gosto ou apCdão: não refleCram sobre esta história que os profanos pedem aos historiadores como distração. Pretende-‐se que assim acontece porque a História é demasiado cienQfica e sem contato com a vida: estamos convencidos de que, ao contrario, ela não é suficientemente cienQfica.”
[BERR, Henri. A síntese em história: ensaio crí1co e teórico. São Paulo: Renascença. 1946.pp. 6-‐7.]
{A Revue de synthèse historique combate o feCchismo do fato e o reducionismo da escola metódica. Henri Berr preconiza a história síntese, a história global que levaria em consideração todas as dimensões da realidade, dos
aspectos econômicos às mentalidades, em uma perspecCva cienQfica. Nesse caso retoma as ambições durkheimianas de pesquisa das leis e das casualidades. (DOSSE, François. A história em migalhas, dos Annales à nova história. Bauru:
Editora EDUSC. 2003, p.68)} 28
“É preciso que nossa sociedade retome a consciência de sua unidade orgânica [...]. Muito bem, senhores, creio que a sociologia está, mais do que qualquer outra ciência, em condição de restaurar tais ideias.”
[DURKHEIM, E apud DOSSE, François. A história em migalhas, dos Annales à nova história. Bauru: Editora EDUSC. 2003. p.43]
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“Nesses fenômenos sociais ‘totais’, como nos propomos chamá-‐los, exprimem-‐se, de uma só vez, as mais diversas insCtuições: religiosas, jurídicas e morais – estas sendo políCcas e familiares ao mesmo tempo –; econômicas – estas supondo formas parCculares da produção e do consumo, o melhor do fornecimento e da distribuição –; sem contar os fenômenos estéCcos em que resultam esses fatos e os fenômenos morfológicos que estas insCtuições manifestam.” [MAUSS, Marcel. Ensaio sobre a dádiva: forma e razão da troca nas sociedades arcaicas. In: Sociologia e antropologia. São Paulo: Cosac Naify, 2003. p. 187.]
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Em 1929 surgia em França os Annales d’Histoire Économique et Sociale, o primeiro nome do periódico da origem ao novo movimento historiográfico. Logo na apresentação do primeiro exemplar, os autores, jusCficam a finalidade da nova publicação. Após afirmarem que até agora “os historiadores só haviam reproduzido os mesmos métodos e portanto chegado aos mesmos resultados”, estes definem o objeCvo da revista; na realidade, um objeCvo triplo. Primeiramente, tencionavam acabar com o cisma entre historiadores e demais cienCstas sociais, proporcionando um fórum para debates, disseminação de novas metodologias e abordagens diferentes. Em segundo lugar, procuravam quebrar – ou ao menos atenuar – a comparCmentação da história em: anCga, medieval e moderna; além de obviar disCnções arCficiais, como a oposição entre sociedades “primiCvas” e “civilizadas”. E finalmente, embora respeitando a “especialização legíCma”, almejavam derrubar as barreiras entre as disciplinas e a criar uma comunidade das Ciências Humanas – em torno da História – que visasse o desenvolvimento interdisciplinar de uma história econômica, social, ou da “história simplesmente”. “Num tom que viria a ser caracterís1co dos primeiros dez anos de revista, os diretores concluíam: ‘O nosso empreendimento é um ato de fé na virtude exemplar do trabalho honesto, consciencioso e construído em bases sólidas’”.
[BLOCH, M. & FEBVRE, L.. À nos lecteurs. Annales d'histoire économique et sociale, 1e année, N. 1, 1929. pp. 1-‐2. e FINK, Carol. (1995). Marc Bloch – uma vida na história. Oeiras: Celta. 1995. p. 144]
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Annales d’Histoire Économique et Sociale
“Volto mais atrás: não há história econômica e social. Há história tout court, na sua Unidade. A história que é toda ela social, por definição. A história que considero o estudo, cienCficamente conduzido, das diversas aCvidades e das diversas criações dos homens de outrora, tomados na sua data, no quadro de sociedades extremamente variadas e contudo comparáveis umas com as outras (é postulado da sociologia), com as quais encheram a super`cie da terra e a sucessão das épocas.”
[FEBVRE, L. Combates pela História. Lisboa: Presença, 1989. p. 30]
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“Esse homem, numa palavra, é o lugar comum de todas as aCvidades que exerce – e podemos interessar-‐nos mais parCcularmente por uma delas, pelas suas aCvidades econômicas, por exemplo. Com condição, que é nunca esquecer que elas o põem em causa inteiro, sempre – e no âmbito das sociedades que criou. Mas aí está precisamente o que significa o epíteto social, que se junta ritualmente ao do econômico; essa condição lembra-‐nos que o objeto de nossos estudos não é um fragmento do real, um dos aspectos isolados da aCvidade humana – mas o próprio homem, entendido no seio dos grupos que faz parte.”
[FEBVRE, L. Combates pela História..., 1989. p. 31]
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Segundo o que escreve Jacques Le Goff, no prefácio de Apologia da história, ou o obcio de historiador (testamento intelectual de Bloch, publicado postumamente em 1949, por Lucien Febvre), existem duas palavras-‐chave para se compreender o temperamento de historiador de Marc Bloch: “‘Mu1lação’: Bloch se recusa uma história que mu1laria o homem (a verdadeira história interessa-‐se pelo homem integral, com seu corpo, sua sensibilidade, sua mentalidade, e não apenas suas idéias e atos) e que mu1laria a própria história, esforço total para apreender o homem na sociedade e no tempo. ‘Fome’: a palavra já evoca a célebre frase inscrita desde o primeiro capítulo do livro: “o bom historiador se parece com o ogro da lenda. Onde fareja carne humana, sabe que ali está sua caça”.
[LE GOFF, J. In: BLOCH, M. Apologia da História...2001. p. 20]
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“Ora, ‘homo religiosus’, ‘homo econômicus’, ‘homo poliCcus’, toda essa ladainha de homens em ‘us’, cuja lista poderíamos estender à vontade, evitemos tomá-‐los por outra coisa do que na verdade são: fantasmas cômodos, com a condição de não se tornarem um estorvo. O único ser de carne e osso é o homem, sem mais, que reúne ao mesmo tempo tudo isso.”
[BLOCH, M. . Apologia da História...2001. p. 133]
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TOTALIDADE E ESTRUTURA: HISTORIA E CIÊNCIAS SOCIAIS
O mundo é outro após a Segunda Guerra Mundial, a História, os Annales e sua própria relação com as ciências vizinhas também serão. Em 1946, Lucien Febvre, que permanece na direção da revista, resolve adotar um novo Qtulo para a publicação: Annales: économies, societés, civilisa1ons. Pode nos causar certa estranheza que o mesmo sujeito que outrora renegava os epítetos de “econômica e social”, afirmando só haver a História simplesmente, mantenha os anCgos epítetos e reCre justamente “História” do Qtulo da revista. Febvre não chega a tocar neste ponto, especificamente, mas jusCfica a troca de nome do periódico, que agora tornava-‐se ainda mais abrangente: “Os Annales modificam-‐se porque a sua volta tudo se modifica: os homens, as coisas, numa palavra o mundo. Ex1ngui-‐se o mundo de ontem . Ex1nguiu-‐se para todos [...]. Todos à água, e nadem com firmeza [...]. Expliquemos o mundo ao mundo [grifo meu]” .
[FEBVRE, L. Face ao vento, manifesto dos novos Annales. IN: Combates pela História...1989. pp. 42-‐50.]
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Eis o que afirma Braudel em sua aula inaugural no Collège de France, em 1/12/1950:
“Aliás, por que a frágil arte de escrever história escaparia à crise geral de nossa época? Abandonamos um mundo sem sempre termos Cdo tempo de conhecer ou mesmo de apreciar seus bene`cios, seus erros, suas certezas e seus sonhos – diremos o mundo do primeiro século XX? Nós o deixamos, ou antes, ele se subtrai inexoravelmente diante de nós. [...]. As grandes catástrofes não são forçosamente as produtoras, mas são seguramente as anunciadoras infalíveis das revoluções reais, e consCtuem sempre uma inCmação a ter que pensar ou melhor repensar o universo.”
[BRAUDEL, Escritos sobre História. São Paulo: PerspecCva...2009. p.18]
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Mais do que compreender o passado, os homens de então preocuparam-‐
se em explicar o presente e de alguma forma saber o que esperar do
futuro. O mundo do pós-‐guerra senCa-‐se traído pela história, pela velha
noção racional de progresso. Se por um lado isto desestabiliza num
primeiro momento a disciplina histórica como um todo, ele vai
certamente representar o fim derradeiro de boa parte da historiografia
tradicional, narraCva e teleológica, privilegiando uma História analíCca e
abrangente, que atendesse as questões mais urgentes do tempo
presente. É em meio a esta conjuntura que tem início a chamada “era
Braudel” e o apogeu dos Annales, que se encaminhava para assumir na
Europa o lugar de influência antes ocupado pela escola histórica alemã. E
que na realidade veio a expandir-‐se por praCcamente todo o ocidente,
sobretudo a América LaCna.
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Todavia, por maior que fosse a hegemonia dos Annales, a História, que durante a primeira geração havia se tornado uma das grandes disciplinas dentro das ciências sociais, começava a perder sua hegemonia no campo acadêmico. A Sociologia ganhava cada vez mais espaço, e mais propriamente e Etnologia (e Antropologia) vivera seu momento de maior expansão. Em um mundo em que as fronteiras geográficas – e morais – haviam sido completamente rompidas, não havia mais senCdo imediato em se estudar a Nação, os franceses, etc. A questão que surgia era compreender “o outro”, que ia desde o potencial inimigo (e vizinho) europeu, até as sociedades que outrora eram colocados a margem da história. Afinal numa Europa que se julgava a vanguarda da civilização, após as barbáries das Grandes Guerras, teria de rever alguns conceitos e revistar os seus “selvagens”.
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Coube portanto a História, frente ao colapso da utopia moderna, retomar no passado de uma Europa beligerante a gênese de estados totalitários, das fronteiras movediças e das crises de idenCdades nacionais latentes nas estruturas das sociedades contemporâneas. O inconsciente, o permanente, a estrutura, tornam-‐se o objeto de disputa nas ciências do homem.
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“Explicar o mundo ao mundo!”
ESTRUTURA (O TODO ARTICULADO): OBJETO DA HISTÓRIA
A invesCgação histórica deve ser a invesCgação dos mecanismos que vinculam a sucessão dos acontecimentos à dinâmica das estruturas dos fatos sociais. ParCndo de uma proposta cienQfica do conhecimento histórico, deve-‐se reconhecer que o “espírito” humano não pode efeCvamente interagir com as coisas mais do que na medida em que é capaz de reconstruir e de expressar em uma linguagem lógica, como se organizam de fato estas coisas, atribuindo ordem, conexões e senCdo ao suposto “caos” em que os elementos se encontram naturalmente. Daí a necessidade de se incorporar ao vocabulário das ciências humanas a categoria de “estrutura”
[VILAR, Pierre. Iniciación al vocabulario del análisis histórico. Barcelona: CríCca. 1999, p.51]
41
Seria fácil transpor o mecanismo social para um plano de entendimento se tomássemos sua trajetória (história) de forma estanque no tempo, estacionária – ou “fria” como prefere referir-‐se Lévi-‐Strauss –. Este Cpo de interpretação estruturalista rejeita a História, ou de certa forma atribui-‐lhe um papel menor, já que independente do contexto concreto em que se desenvolva um processo histórico, as estruturas elementares de uma certa “natureza humana” é que desencadeiam efeCvamente a
ação dos sujeitos.
42
É consenso que a História se ocupa do estudo das
sociedades e para que este complexo objeto seja
cognoscível a uma ciência é necessário poder
expressar suas relações internas através de uma
síntese, um esquema. Todavia a História se ocupa
de sociedades em movimento.
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Assim, é legíCmo que muitos historiadores venham a quesConar este Cpo de explicação estruturalista, o que não deve jamais
estender-‐se a produção de uma desconfiança quanto a necessária incorporação da perspecCva estrutural no fazer históriográfico. É fundamental que, também estas, as estruturas,
por mais que descorCnem-‐se numa duração muito longa (quase imóvel), representando essencialmente a permanência e não a
mudança, sejam também consideradas históricas. Não apenas ganham vida e manutenção na ação dos sujeitos mas como se
modificam e transformam através dela, numa tenção dialéCca.
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“A Poeira da história que ao se repetir se
sedimenta, tornando-se estrutura. O
acontecimento quer-se, crê-se único, a
ocorrência repete-se e, ao repetir-se, torna- se
generalidade, ou melhor, estrutura”.
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O CONCEITO DE ESTRUTURA A própria concepção de estrutura, enquanto categoria do conhecimento social, recebe interpretações disCntas conforme a corrente de pensamento que procura manejá-‐la. Entretanto, ela basicamente designa a “organização das diferentes partes de uma forma, padrão ou sistema”. Ou seja, a relação das partes que compõe um todo arCculado (estruturado).
Originalmente, o uso do termo estrutura, em si, remonta ao século XVII, quando ainda estava ligado ao contexto arquitetônico. Depois a biologia apossou-‐se dele para definir estrutura orgânica ou óssea. O termo se amplia por analogia aos seres vivos e assume então o senCdo da descrição da forma como as partes integrantes de um ser concreto organizam-‐se
numa totalidade. 46
Uma certa concepção mais estrutural se estendeu ao campo das ciências humanas desde o início do século XIX, mas sua real inserção se dá efeCvamente com o sociólogo Émile Durkheim. Pensadores anteriores, tal como Comte, Spencer, Morgan, Marx, entre outros, já haviam se valido de análises estruturais da sociedade, entretanto Durkheim toma esta, efeCvamente, como um “organismo social”, vai procurar analisar empiricamente sua estrutura deixando de lado concepções teleológicas de estágios ou evolução rumo a um progresso.
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ESTRUTURA E SISTEMA “Sistema é o nome que se dá para um todo que consta de elementos que formam uma conexão e se encontram em uma relação recíproca tal que a mudança de um deles provoca mudança na posição dos demais. A forma como estes elementos estão unidos entre si no marco de um sistema dado, isto é, o conjunto das relações entre estes elementos, designamos como estrutura do sistema. Assim, pois, estes dois conceitos estão unidos inseparavelmente entre si e, concretamente, de uma maneira determinada: não existe, com efeito, estrutura alguma sem sistema ao que esta se refira, mas também não existe sistema algum sem estrutura correspondente, o que resulta já da definição mesma de sistema. Entretanto, essa conexão orgânica não é de modo nenhum uma idenCdade, senão que se tratam inequivocamente de conceitos disCntos, isto é, de significados disCntos, de modo que não podem ser equiparados nem confundidos.”
[SCHAFF, Adam. Estructuralismo y marxismo. México: Grijalbo, 1976. p. 19.] 48
ESTRUTURALISMO OU ESTRUTURALISMOS?
Como escreve Christopher Lloyd, o estruturalismo é um termo mulCfacetado e de certa forma vulgarizado. Em comum designa um certo Cpo de abordagem que se opõe ao individualismo, ao empirismo e a hermenêuCca. “Os estruturalistas procuram desvendar a natureza, os efeitos e a história das estruturas sociais como en1dades independentes.” Contudo se desdobra em várias correntes de pensamento, surgindo como teoria fundamental, ou talvez,
método de abordagem de variadas propostas de interpretação da realidade social. Desta forma, seria talvez mais correto falarmos de estruturalismos (no plural)?
[Cf. LLOYD, Christopher. As estruturas da história. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor.
1995. p. 99.] 49
Segundo Peter Burke, é oportuno diferenciarmos no mínimo três Cpos de abordagem estrutural: A primeira delas, a marxista, na qual a metáfora arquitetônica de “base” e “superestrutura” ainda permanecem de maneira forte para designar o campo de atuação de fenômenos econômicos, culturais, políCcos, em níveis disCntos de hierarquia na manutenção das estruturas sociais.
A segunda seria a abordagem estrutural-‐funcionalista, ligada a Escola Britânica de antropologia desenvolvida por Radcliffe-‐Brown; esta empregava o conceito de estrutura de modo mais genérico, para fazer referência a um complexo de insCtuições (a família, o Estado, etc). E por fim, aqueles que poderiam então serem efeCvamente chamados de estruturalistas, que iam de Claude Lévi-‐Strauss a Roland Barthes, que dedicavam-‐se primordialmente as estruturas como sistemas de pensamento, e cujo modelo – ou metáfora fundamental – era a questão da cultura como linguagem. BURKE, Peter. História e teoria social. São Paulo: UNESP, 200 [Cf. BURKE, P. A Escola dos Annales 1929-‐1989: a revolução francesa da historiografia. São Paulo:
UNESP, 2001. p. 153] 50
Marshall Sahlins prefere tratar de “dois estruturalismos”: um modelo francês, que é justamente este liderado por Lévi-‐Strauss, e um britânico, que resume-‐se praCcamente ao estrutural-‐funcionalista. Por fim, escreve acerca da postura que toma o marxismo perante ambos, pois apesar de anteceder as duas correntes, o pensamento materialista-‐dialéCco, só entrará no campo de discussão acadêmica, por volta de 1960.
[Cf. SAHLINS, Marshall D. O Marxismo e os dois estruturalismos. In: Cultura e razão práCca. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 3003. pp. 11-‐60.]
E mesmo circunscrevendo-‐se ao caso francês, retomando Lloyd, não exisCria um só estruturalismo e sim uma série de estruturalistas francófonos. Alguns autores ligados à tendência lingüísCca e outros voltados para uma concepção mais propriamente histórica das estruturas, que por sua vez se subdividem em várias outras correntes.
51
Embora d i scuta-‐se a ex i s tênc ia de vár ios estruturalismos, o que mais comumente se associa a este termo, é justamente aquele ligado a antropologia estrutural de Claude Lévi-‐Strauss. Se fosse necessário atribuir uma data de nascimento ao estruturalismo seria o ano de 1916 quando os discípulos de Ferdinand de Saussure publicaram seu Curso de lingüís1ca geral, encontrando seu ápice na década de 50 com as publicações de Estruturas elementares do parentesco e posteriormente da coletânea Antropologia Estrutural. [POMIAN, Krzysztof. A história das estruturas. In: LE GOFF, Jacques. A história
nova. São Paulo: MarCns Fontes. 2005. pp. 130-‐165.]
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estruturalismo, portanto, é uma teoria que procura apreender as qualidades gerais de sistemas significaCvos, ou como aparece na própria obra de Lévi-‐Strauss, de “sistemas de parentescos” e de mitos. Estes sistemas, por sua vez, são os próprios objetos da análise
estrutural, porém não como elementos isolados, mas como relações sociais. Para antropologia estrutural: “A vantagem de reduzir sistemas significaCvos a estruturas de contrastes é que o fluxo do tempo no interior do sistema está congelado. A língua viva é reduzida a uma gramáCca estáCca. A expressão confusa do parentesco na práCca é reduzida a uma estrutura lúcida, formal. De modo aproximado, a análise estruturalista consiste, primeiro, em trazer essa estrutura à super`cie; segundo , em deduzir seus princípios subjacentes – sua “lógica”; e, finalmente, em chegar a uma “lógica das lógicas” universal da comunicação humana.” [ERIKSEN, & NIELSEN. História da Antropologia. Petrópolis: Vozes. 2007. pp.
128-‐129.] 53
Ocorre que, no estruturalismo a pesquisa orienta-‐se para a descoberta do invisível, do impessoal, das estruturas. Os homens são subsCtuídos por relações estruturais intemporais, ou quase imóveis. Neste caso optou-‐se pela análise das manifestações recorrentes dos fenômenos sociais, afinal se o objeto em questão é a permanência, esta pode ser averiguada de forma sincrônica, no presente. Ou então decomposta em uma equação matemáCca que represente todo seu funcionamento. Embora esta explicação não retomasse exatamente a tendência de se postularem “leis gerais” como havia feito a `sica-‐social de Comte, ela procurava predizer em algumas fórmulas abstratas ou simplificações lingüísCcas o mecanismo básico dos fenômenos sociais, criando muitas vezes modelos universalizantes e estanques no tempo. E é neste momento que se distancia da História.
54
A proposta estruturalista de Lévi-‐Strauss vai se afastar a concepção estrutural de Durkheim e Mauss, que havia sido bastante assimilada pelos historiadores das primeiras gerações dos Annales, por exemplo. É neste momento que a parceria que havia sido firmada desde a década de 30, entre História e Sociologia (dentre outras ciências sociais provenientes desta como a etnologia e antropologia) acaba se enfraquecendo, levando a uma disputa pelo campo de estudo das estruturas (permanências) entre ambas disc ipl inas, protagonizado pelas por Lévi-‐Strauss e Fernand Braudel durante a década de 1960.
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HISTÓRIA ESTRUTURAL
Apesar de situá-‐la como um dos tantos estruturalismos francófonos, Lloyd procura classificar a abordagem sistêmica e holísCca originada com Marc Bloch e Lucien Febvre como “história estrutural”. É bem verdade que este será o caráter predominante na segunda fase, com o desenvolvimento de
métodos importados da economia e demografia (análise serial, quanCtaCva, etc) entre outras áreas. Foi o grupo de historiadores liderado por Braudel que pretendeu abarcar a totalidade da sociedade em estudos
que contemplassem verdadeiramente a análise das estruturas considerando-‐as numa perspecCva temporal de longa-‐duração, que acabou por influenciar trabalhos substanciais dentro e fora da França.
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Ainda que de forma silenciosa, reverbera o pioneirismo de Marc Bloch, que é mais evidente em sua obra A Sociedade Feudal: "Por outras palavras, o que nos propomos tentar aqui é a análise e a explicação de uma estrutura social, com suas conexões. Tal método, a afirmar-‐se fecundo pela experiência, poderá ser empregado noutros campos de estudos, limitados por fronteiras diferentes, e espero que a novidade desse empreendimento fará perdoar os seus erros de execução.
[BLOCH, Marc. A sociedade feudal. Coimbra: Edições 70. 2009.]
{“Sob a influência da sociologia durkheimiana, Bloch tenderá a apagar da sua obra a presença do evento e a pensar estruturalmente o tempo vivido. Ao contrário de Febvre, ele não vai do grande evento intelectual à sua estrutura, mas analisa estruturas onde os eventos são tratados como meros sinais reveladores e em posição secundária.” (REIS, José Carlos. Nouvelle histoire e tempo histórico : a contribuição de Febvre, Bloch e Braudel. São Paulo: ÁCca. 1994. p. 46)}
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É entretanto sob desígnio e determinação de Braudel que o estruturalismo se incorpora a agenda historiográfica de toda uma geração. Como ele mesmo afirma na conclusão da terceira edição de O Mediterrâneo (1967):
“Por temperamento, sou «estruturalista», pouco solicitado pelo acontecimento, e apenas em parte pela conjuntura, esse agrupamento se acontecimentos com o mesmo sinal. Mas o «estruturalismo» de um historiador nada tem a ver com a problemáCca que atormenta, sob o mesmo nome, as outras ciências do homem. Não o dirige para a abstração matemáCca das relações que se exprimem em funções. Mas para as próprias fontes da vida, naquilo que ela tem de mais concreto, de mais quoCdiano, de mais indestruQvel, de mais anominamente humano.” [BRAUDEL. O Mediterrâneo e o mundo mediterrânico na época de Filipe II. São Paulo:
MarCns Fontes, 1983. Tomo II. p. 625.]
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BRAUDEL X LÉVI-‐STRAUSS: A DISPUTA PELA ESTRUTURA
Publicado em 1958, a coletânea Antropologia Estrutural, de Claude Lévi-‐Strauss, abre seu manifesto com o arCgo História e etnologia. Publicado originalmente a uma década mas sem grande reverberação até aquele momento. Nele, o autor discerne a respeito da importância de uma Etnologia que preserva uma visão também diacrônica – histórica – dos fatos e das sociedades que estuda, criCcando inclusive o “agnos1cismo histórico” de seus antecessores.
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Ocorre que, ao aproximar a Etnologia da História, o antropólogo acaba por deflagrar alguns riscos que esta apresenta e que antes só eram atribuídas a aquela. Comparando a alteridade e distanciamento do etnólogo e seu objeto de pesquisa – situado em outra parte do mundo –, com o objeto do historiador – situado em tempos já transcorridos. Mas o que teria realmente perturbado os historiadores fora a seguinte passagem:
60
“Portanto, é nas relações entre história e etnologia no senCdo estrito que reside o debate. Propomo-‐nos a mostrar que a diferença fundamental entre elas não é nem objeto, nem objeCvo, nem de método e que, tendo o mesmo objeto que é a vida social, o mesmo objeCvo, que é a melhor compreensão do homem, e um método em que varia apenas a dosagem dos procedimentos de pesquisa, elas se disCnguem sobretudo pela escolha de perspecCvas complementares. A história organiza seus dados em relação ás expressões conscientes, e a etnologia em relação às condições inconscientes da vida social.[grifo meu]”
[LÉVI-‐STRAUSS. Antropologia estrutural. São Paulo: Cosac Naify. 2008. p. 32] 61
Tal afirmação poderia ser interpretada como restringindo o historiador a ficar no empírico, o que teria enfurecido os herdeiros de Clio. Não creio que tenha sido a real intenção de Lévi-‐Strauss – naquele momento – mas vale lembrarmos que esta mesma “sugestão” já havia sido proposta por P. Simiand e outros sociólogos no passado, onde caberia aos historiadores, meramente, a captação empírica dos fatos deixando a interpretação para eles.
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A réplica foi imediata. No mesmo ano Fernand Braudel escreve seu famoso arCgo História e ciências sociais: a longa duração. Na disputa pelo estudo das estruturas – as “condições inconscientes” –, Braudel criCca a postura da demais ciências sociais alegando a legiCmidade da abordagem histórica como única aproximação que poderia contemplar o estudo das estruturas em sua realidade concreta: integradas em uma totalidade de espaço e tempo. Por isto, ele disCngue a própria noção de estrutura do historiador perante as demais ciências sociais:
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“Por estrutura, os observadores do social entendem uma organização, uma coerência, relações bastante fixas entre realidades e massas sociais. Para nós, historiadores, uma estrutura é sem dúvida, ar1culação, arquitetura, porém mais ainda, uma realidade que o tempo u1liza mal e veicula mui longamente. Certas estruturas, por viverem muito tempo, tornam-‐se elementos estáveis de uma infinidade de gerações: atravancam a história, incomodam-‐na, portanto, comandam-‐lhe o escoamento. Outras estão mais prontas a se esfacelar. Mas todas são, ao mesmo tempo, sustentáculos e obstáculos. Obstáculos, assinalam-‐se como limites (envolventes, no sen1do matemá1co) dos quais o homem e suas experiências não podem libertar-‐se. Pensai na dificuldade em quebrar certos quadros geográficos, certas realidades biológicas, certos limites da produ1vidade, até mesmo, estas ou aquelas coerções espirituais: os quadros mentais também são prisões de longa duração.”
[BRAUDEL, Fernand. Escritos sobre a história. São Paulo: PerspecCva, 2009.pp 41-‐78.]
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A disputa segue, quando dois anos mais tarde Braudel publica História e Sociologia , intensificando a críCca a falta de uma perspecCva de longa duração de sues colegas sociólogos. O tom ameno dos textos de 1958 dará lugar a provocações reais, que serão rebaCdas a altura pelo antropólogo, nos anos seguintes. 65
Numa abordagem inicial, muito semelhante a do primeiro arCgo de Lévi-‐Strauss (até os nomes são semelhantes), Braudel compara História e Sociologia, aproximando-‐as pelo busca comum dr ambas em se tornarem “ciencias globais”. Todavia o historiador irá concentrar sua críCca ao aspecto que as separa: ou seja a compreensão das estruturas na longa duração.
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“Tudo é história, diz-‐se para depois sorrir disso. Claude Lévi-‐Strauss escrevia ainda ulCmamente: “Porque tudo é história, o que foi dito ontem é história, o que foi dito há um minuto é história”. Acrescentarei o que foi dito, ou pensado, ou agido, ou somente vivido. Mas se a história, onipresente, põe em jogo o social em sua totalidade, é sempre a parCr desse mesmo movimento do tempo que, sem cessar, arrasta a vida, mas a subtrai a si mesma, apaga e reacende suas chamas. A história é uma dialéCca da duração; por ela, graças a ela, é estudo do social, de todo o social, e portanto do passado, e portanto também do presente, um e outro inseparáveis.” Ele ainda acrescenta logo depois que, como bom herdeiro de Febvre e Bloch, se dispõe a encontrar “‘de sabre na mão’, o sociólogo que o censuraria ou de não pensar como ele, ou de pensar demasiado como ele”.
[BRAUDEL, F. Escritos sobre a história... p. 98.] 67
Fiel a proposta explicaCva-‐estrutural e global da sociedade, Braudel não rejeita a uClização de modelos. Pelo contrário, em várias passagens ele assevera que somente por este método é que se pode efeCvamente compreender e explicar o objeto histórico. Inclusive elogia Marx como sendo “o primeiro a fabricar verdadeiros modelos sociais, e a par1r da longa duração”. De acordo com Braudel: “modelo é assim, alternadamente, ensaio de explicação da estrutura, instrumento de controle, de comparação, verificação da solidez e da própria vida de uma estrutura dada. Se eu fabricasse um modelo a parCr do qual, gostaria de recolocá-‐lo imediatamente na realidade, depois fazê-‐lo remontar no tempo, se possível, até seu nascimento. Após o que, calcularia sua vida provável, até a próxima ruptura, segundo o movimento concomitante de outras realidades sociais.”
[BRAUDEL, F. Escritos sobre a história... p. 68.]
68
Ou seja, os modelos são abstrações que só são válidos se forem verificáveis no plano concreto. E mais, ele afirma “que toda a nova pesquisa de Claude Lévi-‐Strauss – comunicação e matemá1cas sociais misturadas – só é coroada de êxito quando seus modelos navegam nas águas da longa duração” e “Se os bsicos podem tomar um corpo subtraído à sua gravidade, os historiadores não podem 1rar as estruturas da longa duração” (p. 107). Braudel deflagra a interpretação sincrônica dos sociólogos, de segregarem os diversos tempos que compõe a realidade histórica e que ao rejeitarem a dimensão da longa duração, abandonam não somente o tempo histórico mas a totalidade das estruturas e a compreensão do processo que origina o contexto presente na sua totalidade.
“um modelo, isto é, uma espécie de navio construído em terra e depois lançado ao mar. Ele flutua? Navega? Então a explicação que ele sustenta pode ser válida.”
[BRAUDEL, F. Civilização material e capitalismo: economia e capitalismo , séculos XV-‐
XVIII. São Paulo: MarCns Fontes. 1995. Tomo III, p. 575]
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A tréplica de Lévi-‐Strauss aparece em 1961, no capítulo final de O Pensamento Selvagem: História e Dialé1ca. Fechando, com igual acidez, o quadro de discussões. Nesse arCgo Lévi-‐Strauss rebate as acusações e desdenha a perspecCva totalizante do diretor dos Annales. “Pode ser que para alguns historiadores , sociólogos e psicólogos, a exigência de totalização seja uma grande novidade. Para os etnólogos, ela é corriqueira, desde que Malinowski a ensinou a eles.” e que “a totalização se observa na estrutura lingüís1ca” não necessitando de uma apreensão propriamente diacrônica. Acusa ainda a suposta aporia de se propor uma “história total” e afirma que “a suposta con1nuidade histórica só é assegurada por meio de traçados fraudulentos” (p. 289) e que a cronologia que encadeia uma série de fatos e datas, não passa de uma arbitrariedade, um código sem o qual não existe o o`cio de historiador.
[LÉVI-‐STRAUSS, Claude. História e dialéCca. In: O pensamento selvagem. Campinas: Papirus,1989 pp. 273-‐298.]
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“Ora, o que é verdadeiro para a consCtuição do fato histórico, não o é menos para sua seleção. Também desse ponto de vista, o historiador e o agente histórico escolhem, destacam e recorram, pois uma história verdadeiramente total os poria perante o caos[...] Mesmo uma história que se diz universal ainda não é mais que uma justaposição de algumas histórias locais, dentro das quais (e entre as quais) os vazios são muito mais numerosos que os espaços cheios. E seria vão acreditar que mulCplicando os colaboradores e intensificando as pesquisas obter-‐se-‐ia um resultado melhor: pelo fato de a história aspirar à significação, ela está condenada a escolher regiões, épocas, grupos de homens e indivíduos dentro desses grupos e a fazê-‐los surgir, como figuras desconQnuas, num conQnuo suficientemente bom para servir de pano de fundo. Uma história verdadeiramente total neutralizar-‐se-‐ia a si própria; seu produto seria igual a zero.”
[LÉVI-‐STRAUSS, C. O Pensamento Selvagem... p. 285].
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PARA ALÉM DO TEMPO: A ESTRUTURA GEO-‐ECONÔMICA
Se as disputas com a Sociologia (Etnologia) marcaram boa parte da segunda geração, o mesmo não acontecerá com outras áreas vizinhas com as quais as relações serão tão amigáveis que tratam de situar a terceira e úlCma dimensão da totalidade braudeliana, a geo-‐econômica. Para além do tempo – da duração – Braudel julga que a competência pela apreensão da estrutura não pode fugir de suas determinações espaciais e econômicas, e nesse aspecto serão também os historiadores aqueles com maior sucesso neste empreendimento de uma ciência total/global
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Este senCdo geográfico (espacial) é um dos mais originais da visão global braudeliana, está presente desde sua primeira edição de O Mediterrâneo..., antes mesmo da questão temporal. Neste caso o “global” realmente pretende romper as fronteiras políCcas da história nacional e até mesmo o recorte pouco ambicioso das monografias regionais. Se recordarmos da tese de Lucien Febvre, que tratava da região do Franco-‐condato, durante a época de Felipe II, Braudel supera seu mestre ao trabalhar com a mesma época, levando em consideração todo o espaço que compreende o Mediterrâneo.
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“O espaço, fonte de explicação, põe em causa ao mesmo tempo todas as realidades da história, todas as partes envolvidas da extensão: os Estados, as sociedades, as culturas, as economias... E, conforme escolhamos um ou outro destes conjuntos, modificar-‐se-‐ão o significado e o papel do espaço. Mas não inteiramente.”
[BRAUDEL, O Mediterrâneo… 1989. Tomo I. p. 12]
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Todavia a maior expressão desta globalidade, será encontrada no seu Civilização material, economia e capitalismo (1979). Mantendo seu gosto por uma estrutura triparCte – assim como fizera em O Mediterrâneo... – Braudel divide a obra em três partes, a primeira tratando da história quase imóvel; a segunda de mudanças conjunturais, nos sistemas insCtucionais e mais lentos; e a terceira de mudanças mais rápidas, eventos e “tendências”. Desta vez, no entanto, já se apresenta em três tomos, que segundo ele complementam-‐se a si próprios sem comprometer a totalidade abordada em cada um deles. Se o cenário – e protagonista – de seu primeiro livro era “o mar interior”, agora será o AtlânCco, os demais oceanos, e o mundo como um todo, entre os séculos XV e o XVIII.
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É então que entramos no segundo aspecto desta terceira dimensão da globalidade, que é o viés econômico de sua interpretação. Braudel pretende explicar o sistema capitalista mas afirma que este “O pior dos erros é afirmar que o capitalismo é ‘um sistema econômico’, sem mais, ao passo que ele vive da ordem social” e que portanto é adversário ou cúmplice, das insCtuições políCcas, da ordem social e da cultura de um povo e que “dessas diversas hierarquias sociais – as do dinheiro, as do Estado, as da cultura –, que entretanto se defrontam e se apoiam, qual delas desempenham o papel principal? pode-‐se responder como já respondemos: ora uma, ora outra”
[BRAUDEL, Civilização Material... t. III, pp. 578-‐579]
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O autor pretende compreender o capitalismo em sua totalidade, enquanto um sistema-‐mundo. Segundo Braudel a estrutura capitalista parte muito mais da circulação das mercadorias dentro de um sistema de economia-‐mundo – conceito posteriormente desenvolvido por Immanuel Wallerstein – do que na sua produção, contrariando Marx. Neste momento ganham grande destaque as “matemáCcas sociais” que defendia Braudel, em seus Escritos Sobre a
História, Aponta-‐se à importância da história quanCtaCva, serial e demográfica, enquanto apreensão de dados relevantes, sobretudo das recorrências, acerca da presença e das diversas aCvidades do homem ao longo do tempo, seja o tempo conjuntural dos ciclos econômicos ou a longa
duração das estruturas. Quanto às diversas críCcas que recebe acerca de seu economicismo, se jusCfica:
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“A história econômica do mundo é, portanto, toda história do mundo, mas vista de um certo observatório, o da economia. Ora, escolher esse observatório e não outro é privilegiar de antemão uma forma de explicação unilateral (e também por isso mesmo, perigosa), da qual sei de antemão que não me libertarei inteiramente. Não se privilegia impunemente a série dos fatos chamados econômicos. Por mais que nos empenhemos em dominá-‐los, reordená-‐los e, sobretudo, superá-‐los, poderemos evitar um “economismo” insinuante e o problema do materialismo histórico? É o mesmo que atravessar areias movediças.”
[BRAUDEL, Civilização Material... 1995. Tomo III, p. 9]
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Braudel está ciente das dificuldades de uma abordagem mais holísCca de seu objeto, sobretudo nesta ampliação do quadro espaço-‐temporal que ganha esta úlCma obra e por isso escreve: “Eis o que dá um primeiro sen1do à minha empresa: quando não ver tudo, ao menos situar tudo e à escala necessária do mundo” [t. I, p. 512]. E desconfia de qualquer proposta de uma síntese meramente simplificaCva dado à complexidade das relações que compõe o universo histórico. Reconhece que: “[...] talvez seja outra pretensão querer apresentar um esquema válido da história do mundo a par1r de dados muito incompletos e, no entanto, demasiado numerosos para se deixarem abarcar completamente” [t. III, p.7], mas ao contrário de Febvre e concordando com Bloch, acredita na especialização como possibilidade de abordagem histórica: “O homem nunca se reduz a um personagem que se possa apreender numa simplificação aceitável. É o falso sonho de muita gente. Mal o agarramos no seu aspecto mais simples logo o homem se reafirma na sua complexidade habitual”.
[BRAUDEL, Civilização Material... 1995. t. I, p. 514]
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Por estas dificuldades que braudel salienta a importância dos modelos explicaCvos, desde que estes não acabem se tornando modelos determinantes. Braudel em um de seus raros elogios a Marx, vai dizer que: “O gênio de Marx, o segredo de seu poder prolongado, deve-‐se ao fato de que foi o primeiro a fabricar verdadeiros modelos sociais, e a par1r da longa duração” acrescentando que não há perigo maior do que o do marxismo atual e de toda ciência que postula um modelo no seu estado puro, “presa o modelo, pelo modelo”. “O modelo é assim , alternadamente, ensaio de explicação da estrutura, instrumento de controle, de comparação, verificação da solidez e da própria vida de uma estrutura dada. Se eu fabricasse um modelo a parCr do qual, gostaria de recolocá-‐lo imediatamente na realidade, depois fazê-‐lo remontar no tempo, se possível, até seu nascimento. Após o que, calcularia sua vida provável, até a próxima ruptura, segundo o movimento concomitante de outras realidades sociais.”
[BRAUDEL, Escritos sobre História...2009. p.68]
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CONSIDERAÇÕES FINAIS Concui-‐se portanto, que a história estrutural de Braudel consiste na tomada de três dimensões – ao menos: Primeiramente a visão holísVca que procura abarcar o conjunto das aCvidades humanas, suas relações com o meio geográfico e as demais estruturas sociais. Herdada dos fundadores, esta perspecCva de que “tudo é história” concreCza-‐se, de certa forma, na intenção interdisciplinar de se agregar os métodos das ciências vizinhas e do trabalho conjunto. A diferença da concepção braudeliana é que mesmo uma visão plural arCculada não garante por si só uma apreensão da totalidade, sendo somente seu ponto de parCda.
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A segunda dimensão é a temporal, que busca perceber a totalidade, na dialéCca entre conCnuidade e ruptura dos processos históricos. A arbitrariedade da periodização da história, também já havia sido denunciada pela primeira geração e esta dimensão estrutural-‐diacrônica já era insinuada por Bloch, como a longa duração das estruturas econômicas, mentais, etc, em oposição ao tempo curto dos eventos. Todavia foi Braudel quem vai legar, não somente a longa duração, mas ao entrecruzamento destes diversos tempos, o caráter fundamental do fazer historiográfico que almeje se aproximar de um sistema explicaCvo globalizante.
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A terceira e úlCma, que procurei chamar de geo-‐econômica, é a que permiCu, através de modelos e da história comparada, uma explicação sistêmica do capitalismo, por exemplo, em um nível mundial. Do capitalismo porque este é um dos raros fenômenos históricos que de alguma forma (as vezes com maior, as vezes com menos intensidade) expandiu-‐se em proporções globais, mas mesmo outros fenômenos de proporção menor devem ser tomados em nas extensões reais que ocupam, que geralmente excedem as fronteiras convencionais do espaço poliCcamente determinado: “Ora, estou persuadido de que a história tem todas as vantagens em raciocinar por comparações, em escala do mundo – a única com validade” .
[BRAUDEL, Civilização Material... 1995. t. III, p. 9]
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