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ca2c7278-4e73-4a35-8482-9c1ee7ad694c Sexta-feira | 16 Maio 2014 | ipsilon.publico.pt William Onyeabor Nigéria, anos 1970: regresso ao futuro Black Keys Ascensão ou queda? olhar Por este vimos o mundo Retrospectiva de Henri Cartier-Bresson em Paris © GEORGE HOYNINGEN-HUENE/© 2013. DIGITAL IMAGE, THE MUSEUM OF MODERN ART, NOVA IORQUE/SCALA, FLORENÇA ESTE SUPLEMENTO FAZ PARTE INTEGRANTE DA EDIÇÃO Nº 8799 DO PÚBLICO, E NÃO PODE SER VENDIDO SEPARADAMENTE

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Suplemente Ipsilon do jornal Público - 16 de Maio de 2014

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Sexta-feira | 16 Maio 2014 | ipsilon.publico.pt

William OnyeaborNigéria, anos 1970: regresso ao futuroBlack KeysAscensão ou queda?

olharPor este

vimos o mundoRetrospectiva de Henri Cartier-Bresson em Paris ©

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22 + 23 Maioquinta, 21:00h — Grande Auditóriosexta, 19:00h — Grande Auditório

Orquestra GulbenkianGeorge Benjamin maestro

Elin Rombo soprano

Tim Mead contratenor

Victoria Simmonds meio-soprano

Rupert Charlesworth tenor

Christopher Purves baixo

Talvez a melhor ópera escrita nos últimos 20 anosle monde

ópera semi-encenada por Håkan Hagegård

Written on Skin

Mecenas Ciclo Piano

Mecenas Concertos de Domingo

Mecenas Ciclo Grandes Intérpretes

23 Maiosexta, 21:30h — Grande Auditório / Entrada livre

Solistas da Orquestra Gulbenkiandvorakrimsky-korsakov

george benjamin

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ípsilon | Sexta-feira 16 Maio 2014 | 3

concentra hoje às 19h30 numa

única sessão de 1h15 oferecem uma

visão panorâmica sobre dez anos

da produção videográfica deste

artista plástico, coincidindo com os

últimos dias de Botânica, a sua

primeira exposição individual no

Museu do Chiado, em Lisboa (até

domingo).

Abordam as temáticas que se têm

instituído como o grande pano de

fundo e fio condutor da obra de

Vasco Araújo: as questões de

género e identidade e as

problemáticas em torno do pós-

Um Josef Nadj em estreia mundial — presente do Festival de Almada

“Sim, vocês vão ser os primeiros a

ver o novo Josef Nadj”, confirma o

telefonista do Centre

Choréographique National

d’Orleáns quando ligamos a

perguntar se a estreia mundial do

novo espectáculo do coreógrafo

de origem sérvia, mas há muito

radicado em França, se fará

mesmo a 16 de Julho no Teatro

Nacional D. Maria II, em Lisboa. É

mais uma peça a encaixar-se no

puzzle da 31.ª edição do Festival

de Almada, cujo programa

integral será anunciado até ao

final de Junho — até agora,

conheciam-se apenas as

identidades de dois espectáculos,

Testamento — Preparações Tardias

para Uma Nova Geração, do

colectivo berlinense She She Pop

(Culturgest, 5 e 6 de Julho) e

L’Architecture de La Paix, do

Théâtre Pigeons International (São

Luiz Teatro Municipal, 10 a 13 de

Julho).

Paysage Inconnu, que terá uma

pré-apresentação ainda in progress

em França, começou por ser a

remontagem de uma peça de

2006, Paysage après l’Orage —

entretanto, Nadj desviou-se do

propósito inicial e acabou a

compor de raiz uma nova criação,

que ainda assim exibe (a começar

pelo título em mash-up) as marcas

desse espectáculo estreado no

Festival de Avignon e de um outro,

Journal d’un Inconnu (2002), que

foi encomenda da Bienal de

Veneza e do Théâtre de la Ville.

Como é habitual em Nadj, Paysage

Inconnu é um híbrido que não se

sabe muito bem de que terra é

(teatro, música, dança?), embora

tenha os pés bem assentes em

Kanjiza, a cidade da Voivodina

(então Hungria, actualmente

Sérvia) onde o coreógrafo nasceu

em 1957: “A ‘paisagem

desconhecida’ de Kanjiza e as

figuras tutelares das amizades

fecundas e misteriosas que a

compõem mantém-se uma

extraordinária fonte de inspiração

para Nadj”, lê-se no curto texto

sobre a peça que está no site da

companhia. Para recriar esse

mundo tão misterioso “num

quadro absoluto com o mínimo de

gestos e o máximo de força”, Nadj

quis que se lhe juntassem em

palco o saxofonista Akosh S.,

um dos seus mais imprescindíveis

cúmplices (vimo-lo por cá no

impressionante Les Corbeaux,

mas já tinha estado em vários

espectáculos anteriores),

o baterista Gildas Etevenard e o

bailarino Ivan Fatjo — são quatro

corpos para quatro personagens

entre a ficção e a realidade que

incluem um poeta, um pintor

vagabundo e um ex-lutador

tornado escultor.

Entretanto, e ainda antes da

estreia em Lisboa, o coreógrafo

que chegou a França em 1980 e 15

anos depois estava a dirigir o

Centre Choréographique National

d’Orleáns será objecto de uma

retrospectiva em Paris. De 16 a 28

de Junho, o programa Nadj à la

Villette levará ao Grande Halle de

La Villette as duas peças (Les

Philosophes, a partir da obra de

Bruno Schulz, e Ozoon, o filme-

concerto (Elegia, do mesmo Akosh

S.) e a exposição (desenhos,

fotogramas, filmes e instalações)

com que Josef Nadj respondeu à

carta branca da instituição.

Inês Nadais

Ficha TécnicaDirectora Bárbara Reis

Editores Vasco Câmara,

Inês Nadais

Design Mark Porter,

Simon Esterson

Directora de arte Sónia Matos

Designers Ana Carvalho,

Carla Noronha, Mariana Soares

E-mail: [email protected]

Sumário6: Henri Cartier-BressonUma testemunha decisiva de todo o século XX

12: Black KeysSurpreendentemente no topo do mundo

14: William OnyeaborUm génio relutante, da Nigéria para o mundo

17: Sir Richard BishopViajemos nesta guitarra hipnótica

19: Black BombaimDuas montanhas-russas

20: Joris LacosteTodos ao mesmo tempo, no arranque do Alkantara

Flas

hS á i

Editora convidada: Rita RedshoesAcabada de lançar o seu terceiro disco, Life Is A Second Love, Rita Redshoes é a editora convidada deste Ípsilon — para o qual escreveu a crónica da página 25 (e fez outras coisas que podem ser vistas na edição iPad). É dela também a playlist que está desde anteontem a rodar no nosso Spotify

Vasco Araújo — dez anos de filmes em revisão

Mulheres D’Apolo, de 2010, um dos filmes incluídos na sessão de hoje da Cinemateca

Paysage Inconnu, a nova criação do coreógrafo, estará no Teatro Nacional D. Maria II, em Lisboa, a 16 e 17 de Julho

colonialismo, todas

intrinsecamente ligadas a

narrativas de poder e de lutas de

poder. Entre The Girl From The

Golden West, de 2004, e Retrato,

estreado há duas semanas no

festival IndieLisboa, os oito filmes

que a Cinemateca Portuguesa

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4 | ípsilon | Sexta-feira 16 Maio 2014

anunciados os Hawkwind, a

histórica banda space-rock

britânica, que finalmente se

estreará em Portugal.

Constatámos que com eles

chegariam os Psychic TV, os

Electric Wizard, os Red Fang, os

Cosmic Dead ou os portugueses

Mão Morta e Black Bombaim,

Jibóia e Asimov. Concluímos então

que a vila ribatejana só poderá ser

alvo de romaria por parte dos

fascinados pelas maravilhas que o

rock’n’roll dado à boa distorção e

ao psicadelismo provocam na

mente e no corpo.

Se ainda subsistissem dúvidas,

começa a ser quase impossível

resistir. O cartaz começa a

assemelhar-se a uma antologia do

psicadelismo contemporâneo.

Atentemos: os já clássicos Bardo

Pond, ponte entre os Pink Floyd

planantes e ruído shoegaze, os

Cave, americanos devotos do

kraut germânico, Wooden Wand,

ou seja, a folk magnífica de James

Jackson Toth, o classicismo dos

Sleepy Sun, os franceses The

Feeling of Love, companheiros de

digressão de luminárias como Ty

Segall e Thee Oh Sees e os

inclassificáveis Daughters Of The

Sun (ree jazz In the court of the

Crimson King). Juntem-se o duo de

viajantes galáxia fora White Hills,

o psicadelismo de alpendre dos

Woods, os Moon Duo de Ripley

Johnson (dos Wooden Shjips), o

hard-rock dos Graveyard ou os

Ringo Deathstarr, com um nome

que, só por si, justifica a banda.

Como resistir?

O Reverence Festival realiza-se no

Parque das Merendas de Valada do

Ribatejo. O bilhete diário custa

38€. Os passes vendem-se a 55€ até

30 de Junho e, a partir daí, a 70€.

Podemos já não nos lembrar do

que fizemos no Verão passado,

mas começa a tornar-se evidente o

que faremos nos dias 12 e 13 de

Setembro deste ano. Há alguns

meses soubemos da chegada de

um novo festival, o Reverence, a

realizar em Valada, Cartaxo, nas

margens do Tejo. Vimos

“Durante dez dias queremos guiar

as pessoas por aquilo que de mais

fracturante, interessante e novo há

para mostrar. E estamos no

momento certo: no momento em

que os festivais de ficção e os

festivais de documentário se

interrogam até onde podem e

devem ir.” É este o mote de Dario

Oliveira, co-fundador e co-director

do Curtas Vila do Conde, para a

primeira edição do Porto/Post/

Doc, um novo festival de cinema

que não é só um festival de cinema.

Porque, antes da estreia de 4 a 13

de Dezembro próximos, o Porto/

Post/Doc vai gerir semanalmente

uma noite de filmes no cinema

Passos Manuel, e, no futuro, quer

também apostar na produção

regular de filmes que desvendem

as “muitas histórias para contar”

que existem na região do Grande

Porto.

O “alvo” da aposta de Oliveira,

agora “a solo” como rosto público

do Porto/Post/Doc, é o cinema

documental. Ou, com mais

propriedade, o “cinema do real”,

“área de fronteira entre o

Porto/Post/Doc, ou os cinemas do real viajam para o Porto

documentário e a ficção”, nas suas

palavras “o cinema mais criativo,

mais inovador e mais apaixonante

que aparece no circuito de

distribuição alternativa mundial”.

O novo festival quer mostrar uma

personalidade própria, mas sem

excluir forçosamente títulos

importantes que já tenham

passado pelos “colegas” lisboetas

IndieLisboa e DocLisboa. Trata-se

antes de procurar uma

complementaridade que leve

também em conta a existência no

Porto de um público “ávido” de um

cinema que dificilmente chega ao

circuito comercial tradicional fora

da capital. Mas “um festival tem de

fazer muito mais do que passar

filmes, tem de ser um encontro,

tem de ter uma perspectiva

crítica”, diz o director do Porto/

Post/Doc. A ideia é também

investir na renovação gradual do

tecido cultural do centro da cidade,

no seguimento da nova dinâmica

criada pela eleição de Rui Moreira

para a Câmara Municipal do Porto.

Primeiro, através de uma

programação regular, Há Filmes na

Real Combo Lisbonense meets Carmen MirandaA 21 de Junho, no Anfiteatro Ao

Ar Livre da Fundação Calouste

Gulbenkian, em Lisboa, haverá

um concerto de apresentação

integrado no festival Próximo

Futuro. Em Setembro será

lançado o álbum. E a partir do

Outono prosseguem os

espectáculos.

De que falamos? Do Real Combo Vítor BelancianoDisco em Setembro, concerto já a 21 de Junho, em Lisboa

Bardo Pond, Wooden Wand e Cave no Reverence Festival

Mário Lopes

Os Bardo Pond são um dos novos nomes anunciados para Valada do Ribatejo

Todos estes trabalhos foram já

antes apresentados, mas,

normalmente, em contexto

expositivo, quer museológico, quer

galerístico. Nunca no grande ecrã

de uma sala de cinema. “Porque é

que os filmes de um artista plástico

não têm cabimento num cinema,

ou, neste caso, mais exactamente,

num museu do cinema?”,

questiona Ana Isabel Strindberg,

programadora deste núcleo de

obras em que se incluem ainda

Augusta (2008), Eco (2008), O

Percurso (2009), Impero (2010),

Mulheres D’Apolo (2010) e Far

Donna (2005). “A mim interessava-

me saber como é que os filmes do

Vasco podem ser vistos no cinema,

até porque têm uma ideia de mise-

en-scène muito específica.”

Cruzando referências — e

estratégias — contemporâneas com

as grandes narrativas — e temáticas

— da cultura clássica, Vasco Araújo

levanta questões políticas pouco

trabalhadas em Portugal, tanto no

cinema como nas artes plásticas. É

o caso, nomeadamente, dos

dilemas de uma bagagem colonial

com que lidamos com dificuldade.

São, no entanto, questões que

extravasam quaisquer contextos

nacionais. Como em Impero,

parcialmente filmado entre os

edifícios da arquitectura dita

racionalista do EUR, o bairro

construído em Roma pelo regime

fascista italiano onde Mussolini

quis concentrar todo o poder

político do país, enredamo-nos em

tramas que atravessam o mundo e

os tempos, travestindo-se uma e

outra vez com novas roupagens.

Vanessa Rato

Baixa, a decorrer na sala do Passos

Manuel (a partir de Setembro, em

alternância com o pequeno

auditório do Rivoli). O Há Filmes na

Baixa começa já no dia 30 deste

mês com a exibição de A Mãe e o

Mar, de Gonçalo Tocha, em

simultâneo com a estreia comercial

em Lisboa (repete a 8 e 9 de

Junho); seguir-se-ão, a 15, o filme-

ensaio do galego Lois Patiño, Costa

da Morte, a 22 a ficção do chileno

Alejandro Fernández Almendras

Matar a un Hombre (vencedora do

IndieLisboa 2014), e a 29, em

simultâneo com Lisboa, o

aclamado E Agora? Lembra-me, de

Joaquim Pinto. Depois, no futuro,

através da aposta na produção,

usando as lições aprendidas no

projecto Estaleiro, do Curtas Vila

do Conde.

Para já, o “centro nevrálgico” fica

no site oficial www.portopostdoc.

pt, que serve também como ponto

de contacto da associação cultural

que o organiza, e que está aberta a

todos aqueles que estiverem

interessados em dela fazer parte.

Lisbonense e do seu novo álbum

(que é também um novo

espectáculo), à volta da vida e da

obra de Carmen Miranda, a

cantora nascida em Marco de

Canaveses que foi para o Rio de

Janeiro, cresceu brasileira e

nunca mais voltou à terra que a

viu nascer, apesar de nunca ter

desistido do passaporte

português. Quase 60 anos depois

da sua morte, o legado de

Carmen Miranda continua

ausente da música feita em

Portugal e é essa lacuna que o

projecto fundado pelos irmãos

João Paulo e Mário Feliciano para

recuperar o espírito das antigas

orquestras numa perspectiva

actual, pretende colmatar.

O álbum terá edição da Pataca

Discos e o espectáculo

atravessará quase três décadas da

história musical de Miranda,

através de um repertório de

sambas, marchinhas e outros

ritmos tropicais, na recriação dos

quais irão participar cantoras

como Ana Brandão, Joana e

Margarida Campelo e músicos

como Bruno Pernadas, David

Santos, Ian Mucznik, João

Pinheiro, Rui Alves, Sérgio Costa

e Tomás Pimentel, para além dos

irmãos Feliciano.

Jorge Mourinha

Costa da Morte, o filme-ensaio do galego Lois Patiño, passa a 15 de Junho no Passos Manuel, incluído no programa Há Filmes na Baixa — o festival chega depois, a partir de 4 de Dezembro

THE NATIONAL · PIXIES KENDRICK LAMAR · CAETANO VELOSO

NEUTRAL MILK HOTEL · MOGWAISLOWDIVE · GODSPEED YOU! BLACK EMPEROR

TELEVISION Marquee Moon · ST. VINCENT · SLINT · HAIM DARKSIDE · TRENTEMØLLER · JOHN GRANT · WARPAINT

LOOP · !!! · SKY FERREIRA · CHARLES BRADLEY · OS DA CIDADE TODD TERJE · STANDSTILL · SHELLAC · SPOON · MIDLAKE · JAGWAR MA

DUM DUM GIRLS · TY SEGALL · LEE RANALDO & THE DUST · PIONAL CLOUD NOTHINGS · BICEP · POND · RODRIGO AMARANTE

SPEEDY ORTIZ · YOU CAN’T WIN, CHARLIE BROWN · JOHN WIZARDS GLASSER · HEBRONIX · FÖLLAKZOID · JOANA SERRAT

COURTNEY BARNETT · REFREE · VISIONS FORTUNE · TORTO · EAUXMAS YSA · YAMANTAKA // SONIC TITAN · HHY & THE MACUMBAS

6 | ípsilon | Sexta-feira 16 Maio 2014

“Il ballerino!”, disse em voz

alta um italiano. E num

ecrã um homem parecia

bailar. Punha-se em bicos

de pés. Esticava-se, con-

torcia-se, levantava ligei-

ramente um pé, outro, até encontrar

uma zona de equilíbrio. Fazia mo-

vimentos repentinos (meio contor-

cionistas, meio apalhaçados), erguia

o pescoço, espreitava, talvez no en-

calço de um enquadramento capaz

de juntar na mesma linha “cabeça,

olhar, e coração”. E, caso esse mo-

mento se lhe oferecesse, dispara-

va.

O palco deste “bailarino”, deste

caçador — fato completo, alto, es-

guio —, é a rua em bulício, no meio

de muitas pessoas, carros a passar,

caixas de fruta empilhadas. E o no-

me é Henri Cartier-Bresson (1908-

2004), o fotógrafo superlativo, o

dono do olhar que nos deixou boa

parte da iconografia fotográfica mais

reconhecível (mais matricial e ino-

vadora também) do século XX.

Esta amostra da frenética coreo-

grafia que Cartier-Bresson punha em

prática no seu trabalho foi retirada

do documentário-entrevista

L’Aventure Moderne (1962), de Roger

Kahane, e é-nos mostrada já perto

do fim da grande retrospectiva que

o Centro Pompidou, em Paris, de-

dica ao fotógrafo francês (a primei-

ra na Europa depois da sua morte).

À frente do ecrã, juntam-se peque-

nos grupos, que, entre risos pela

forma desconcertante como este

homem se movimentava de Leica

na mão, descobrem um modo de

actuação afinal cheio de hesitações,

longe da imagem de “fotógrafo-ma-

tador” (implacável na caça) que se

foi construindo à volta de Henri

Cartier-Bresson, talvez o nome que

mais se confunde com o da arte a

que mais se dedicou: “Observar, ob-

servar, observar”. “É pelos olhos

que compreendo”, disse um dia o

fotógrafo que detestava ser fotogra-

fado (e de aparecer em público, de

ser reconhecido).

Até se chegar ao complexo (e di-

vertido) jogo de pernas cartierbres-

soniano da exposição (que fica em

Paris até 9 de Junho e depois se

aproxima de nós: estará na Funda-

ción Mapfre de Madrid de 28 de Ju-

nho até 8 de Setembro), é preciso

passar por centenas de fotografias

(a maior parte cópias de época),

muitas das quais imediatamente re-

conhecíveis por quem tenha o mí-

nimo de cultura visual (não neces-

sariamente ligada à fotografia). Esta

opção de manter um bom número

de imagens-cliché não é só inevitável

— é também consciente e serve para

sublinhar uma selecção mais secre-

ta (e politizada), verdadeiro contra-

Entre o antes

e o depois da fotografia, Henri Cartier-

Bresson

Uma retrospectiva entre Paris e Madrid põe um fotógrafo fundamental — a quem devemos boa parte da iconografi a mais reconhecível do século XX — em contexto. E acaba de vez com a conversa do “instante decisivo”.

Sérgio B. Gomes, em Paris

ípsilon | Sexta-feira 16 Maio 2014 | 7

Camagüey, Cuba, em 1963: Henri Cartier-Bresson haveria de confessar que não desejava tornar-se um globetrotter, mas foi-o, ainda que renitentemente

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forte na interpretação de uma obra

que pode não ser assim tão conhe-

cida como se pensa que é. Uma obra

conceptualmente muito diversifica-

da, também contrariamente ao que

se pensava, e isto muito por culpa

do autor, que sempre lutou por dar

a máxima unidade formal ao seu

trabalho, por si controlado meticu-

losamente (em reproduções, expo-

sições e livros) ao longo da vida.

Até à sua morte, Cartier-Bresson

fez questão de supervisionar todas

as mostras que incluíssem imagens

suas, garantindo que as tiragens

eram feitas apenas para essas ocasi-

ões, em um ou dois formatos e utili-

zando papéis fotográficos com a mes-

ma qualidade de grão, tonalidade e

superfície. Sempre dedicou um cui-

dado extremo às exposições e, mui-

tas vezes, foi enquanto as organizava

que tomou decisões cruciais acerca

do rumo do seu trabalho.

Além do instante decisivoA maneira como as imagens de Car-

tier-Bresson foram sendo circunscri-

tas ao mundo muito particular do seu

próprio criador é muito devedora da

famosa noção de “instante decisivo”,

que tem tanto de certeira como de

redutora. O fotógrafo utilizou parte

de um axioma de Jean-François Paul

de Gondi (1613-1679), cardeal de Retz,

segundo o qual “não há nada no mun-

do que não tenha o seu momento

decisivo”. Estas duas últimas palavras

acabaram por formar o título do pre-

fácio que assinou no seu primeiro

livro, Images à la Sauvette, publicado

em 1952, naquele que é o seu primei-

ro (e mais profundo) texto sobre fo-

tografia, a forma como concebe a sua

prática, a sua ética e a sua metodolo-

gia. Ao defender que os fotógrafos

deviam procurar captar o “instante

decisivo”, Cartier-Bresson acabou

por estampar um carimbo estilístico

em cima das suas imagens que com

o passar dos anos se foi tornando

mais um empecilho do que uma

Cartier-Bresson erguia o pescoço, espreitava, no encalço de um enquadramento capaz de juntar na mesma linha “cabeça, olhar, e coração”

8 | ípsilon | Sexta-feira 16 Maio 2014

marca distintiva ou um modelo a se-

guir. É um selo que acabou também

por se transformar numa sanguessu-

ga capaz de esvaziar as imagens de

alguma dinâmica perceptiva relacio-

nada, por exemplo, com imaginário

acerca do que pode estar antes ou

depois. Ou simplesmente de as esva-

ziar do acidental. Mas para além des-

ta muralha, o mestre francês foi ca-

paz de erguer outra, porventura ain-

da mais alta, quando, em 1979,

decidiu criar a master collection, uma

selecção de 385 fotografias que con-

siderava as melhores do seu arquivo

e que destinou a instituições interna-

cionais com o objectivo de fornecer

o derradeiro mosaico do seu traba-

lho. Foram impressos seis jogos de

provas, quatro dos quais estão em

museus de França, Japão, EUA e Rei-

no Unido. Mas, passado algum tem-

po, foi o próprio a autorizar que a

essa primeira escolha se acrescentas-

sem mais fotografias ou que, quando

mostradas em público, se fizessem

outras escolhas. E por aqui já se per-

cebe como as imagens fotográficas,

por mais extraordinárias que sejam,

convivem mal com demasiados es-

partilhos, nomeadamente com os

que tentam impor leituras (precon-

ceitos, chaves de leitura) antes de

chegarem à percepção de cada um.

Não é de estranhar que em todos

os textos assinados no catálogo da

exposição do Pompidou se refira a

parangona do “instante decisivo”.

Mas desta vez não é para a elevar

aos píncaros pela expressão que te-

rá conseguido impor nas fotografias

de Henri Cartier-Bresson, mas jus-

tamente para a relativizar e para

tentar distanciar esta retrospectiva

do anátema que o fotógrafo lançou

sobre as imagens que foi registando

ao longo de mais 70 anos. “A não ser

que se quisesse refazer sempre a

mesma exposição e o mesmo livro,

torna-se evidente que, apesar de

conter a maior parte dos seus maio-

res ícones, a master collection não

permite apresentar uma obra em

toda a sua diversidade criativa”, re-

fere o texto de introdução do mo-

numental catálogo organizado por

Clément Chéroux, comissário da

mostra e um dos maiores especia-

listas do trabalho de Henri Cartier-

Bresson. Ali o “instante decisivo” é

atribuído à necessidade que os exe-

getas têm de encontrar alguma coi-

sa que simbolize a “unidade da

obra” do fotógrafo, e que, numa ex-

pressão, resuma “o génio da com-

posição”, a “capacidade de movi-

mentação” ou sua “habilidade para

estar no sítio certo“.

A tentativa de libertar as imagens

de Cartier-Bresson da armadilha (e

da expectativa) do “momento do

tudo ou nada” é um dos desafios

assumidos nesta empreitada levada

a cabo pela equipa do Pompidou e

pela fundação com o nome do artis-

ta (foram precisos três anos para

concluir a estrutura da exposição).

Nas duas últimas retrospectivas, em

2003, na Biblioteca Nacional de

França, também em Paris, e em

2008, no Museu de Arte Moderna

(MoMA), em Nova Iorque, o espec-

tro desta chave estética (que muitos

consideram mais uma regra de con-

duta moral e social perante a sua

prática fotográfica) ainda esteve

muito presente. Na primeira, em

jeito de homenagem comissariada

pelo editor Robert Delpire (criador

da mítica colecção Photo Poche), a

presença em vida de Cartier-Bresson

(que inaugurou no mesmo ano a sua

fundação) terá necessariamente

condicionado as principais orienta-

ções, que privilegiaram as fotogra-

fias “clássicas”. Na segunda, da res-

ponsabilidade de Robert Galassi

(antigo conservador-chefe de foto-

grafia do MoMA), foram preferidos

critérios temáticos e geográficos ob-

jectivamente mais voltados para os

trabalhos que fossem “sinónimos

do instante decisivo”.

Agora, a partir de mais de meio mi-

lhar de fotografias, desenhos, pintu-

ras, filmes, livros e outros documen-

tos gráficos, a exposição de Paris (que

tem sido um enorme sucesso de bi-

lheteira, com tempos de espera para

entrar que podem chegar às duas ho-

ras) reclama o ceptro do “inédito”, se

é que tal classificação pode ser ambi-

cionada para um fotógrafo como

Cartier-Bresson, cujo trabalho tem

sido mostrado à exaustão. O ponto de

partida de Chéroux foi o coração da

sua obra: as mais de 30 mil reprodu-

ções de época que estão à guarda da

fundação. Para além destas, foram

consultados e estudados provas de

contacto, livros, escritos (notas, car-

tas…) e as poucas entrevistas de fun-

do que concedeu. Foram ainda ouvi-

dos testemunhos de quem com ele

privou. Esta abordagem (“decidida-

mente histórica”) teve por objectivo

“refazer” as leituras da obra “não de

um, mas dos vários Henri Cartier-

Bresson”, que se foram moldando às

circunstâncias de tempo e espaço. Hic

et nunc (latim para “aqui e agora”) era

uma expressão muito cara ao fotógra-

fo e é usada pelo comissariado para

indicar o princípio geral que se quis

aplicar a esta retrospectiva, como

quem tenta fazer regressar à terra

uma nave espacial que andou perdida

no cosmos. “O Henri Cartier-Bresson

que aqui se tratou não é utópico nem

anacrónico (…), é um Henri Cartier-

Bresson em contexto”.

Três Cartier-BressonAs grelhas de análise que tradicional-

mente se utilizam para situar a obra

de Cartier-Bresson dividem-se em du-

as tendências muito distintas. Uma,

assente sobretudo na historiografia

americana, atribui às fotografias o

estatuto de “obra” dentro do contex-

to das artes plásticas, essencialmente

as imagens produzidas durante os

anos 30. Outra, de raiz francesa, en-

quadra a produção de Cartier-Bresson

a partir das qualidades fundamentais

atribuídas à fotografia, a partir da re-

portagem e da edição e, apesar de

reconhecer valor plástico às suas ima-

gens, jamais descarta a sua qualidade

como documento, preferindo os tra-

balhos do pós-guerra, das décadas da

cooperativa Magnum, que ajudou a

fundar em 1947.

A retrospectiva do Pompidou ten-

ta fugir a uma abordagem manique-

ísta, descartando a tentação de “pôr

em oposição” ou de “reconciliar”

estas duas visões tão díspares da

obra do mestre francês. Sem rene-

gar uma e outra, propõe a sua pró-

pria visão assente em três pilares

fundamentais. O primeiro, que se

refere à produção feita entre 1926 e

1935, é profundamente marcado

pelo contacto com tertúlias de gru-

pos ligados ao surrealismo, inclui as

primeiras fotografias captadas com

uma Brownie Box, e as grandes via-

gens pela Europa, pelo México e

pelos EUA. O segundo, que se inicia

com o regresso dos EUA e termina

com uma nova viagem para Nova

Iorque, em 1946, é determinado pe-

la militância política, pelo trabalho

para a imprensa comunista, pelo

cinema e pela guerra. O terceiro co-

meça com a criação da agência Mag-

num e conclui-se no início dos anos

70, depois de ter decidido abando-

nar progressivamente a fotografia

de reportagem para se dedicar a al-

gumas das suas primeiras aspirações

artísticas, o desenho e a pintura.

Entre as dualidades típicas do pré

e do pós-guerra, a do artista e a do

repórter fotográfico, o período do

meio acabou por se tornar menos

conhecido. No entanto, é talvez

aquele que melhor ajuda a perceber

todas as escolhas de carreira e de

estilo que se seguiram e que torna-

ram Cartier-Bresson um nome fun-

Não é de estranhar que em todos os textos do catálogo se refira a parangona do “instante decisivo”. Desta vez não é para a elevar aos píncaros, mas justamente para a relativizar e para tentar distanciar esta retrospectiva do anátema que Henri Cartier-Bresson lançou sobre as imagens que foi registando ao longo de mais de 70 anos

Premier Congés Payés, 1936: na França da Frente Popular, os trabalhadores conquistam finalmente a semana de 40 horas e o direito a férias pagas, que Cartier-Bresson regista em todo o seu fulgor inicial

ípsilon | Sexta-feira 16 Maio 2014 | 9

damental da afirmação do fotográ-

fico como um suporte moderno,

poderoso e eficaz para comunicar,

testemunhar e denunciar. Numa

tentativa de revelar as principais

orientações do seu olhar e os assun-

tos em que decidiu investir mais

tempo, esta retrospectiva tem a vir-

tude de trazer um número conside-

rável de documentos originais e de

publicações de época. As reporta-

gens que realizou para a imprensa

comunista (Regards, Ce Soir…), por

exemplo, são mostradas com gran-

de destaque e começam a revelar

um gosto pelos “assuntos sociais”,

de pendor humanista, como a po-

breza, as crianças na rua, a joie de

vivre (um género muito parisiense)

ou as manifestações de rua.

Mas uma das primeiras coisas que

espantam nesta mostra é o talento

precoce de Cartier-Bresson no olhar

certeiro e, sobretudo, na eficácia da

composição da imagem fotográfica,

um olhar moldado pelo desenho e

pela pintura, que aprendeu, no final

dos anos 20, na academia de André

Lothe (1885-1862), pintor e escultor

fauvista e cubista, que incute no fo-

tógrafo a obsessão pela geometria

visual. É nessa altura que começa a

frequentar também os círculos sur-

realistas e a fazer colagens muito in-

fluenciadas pelo amigo Max Ernst

(que foi chamado para o momento

em que Cartier-Bresson disse ao pai

que seria fotógrafo, quando tinha 22

anos). A partir deste caldo de influ-

ências diversificadas forma-se uma

exigência cada vez maior, e um olhar

clínico que se revela essencialmente

a partir da primeira viagem a África,

entre 1930 e 1931, que tinha como

missão a procura de negócios para

as empresas da família, ligadas ao

algodão e aos tecidos. Um grupo de

amigos americanos ( Julien Levy, o

primeiro a expor o seu trabalho nos

EUA, Caresse e Harry Crosby, Gre-

tchen e Peter Powel, que tinham uma

cultura fotográfica muito actual e

apurada) dão-lhe a conhecer, entre

outros, Eugène Atget (1857-1927),

uma das principais influências das

primeiras fotografias de Cartier-Bres-

son (manequins, vitrines, fontes ti-

pográficas de velhas lojas, santos…),

bem como a corrente germano-sovi-

ética da Nova Visão (ângulos radicais,

composições geométricas, repetição

de motivos…).

“Um duro prazer”É um Henri Cartier-Bresson cheio de

informação, um tubo de ensaio ar-

tístico, aquele que decide dedicar o

seu talento e o seu saber “à arte”

(prefácio de Images à la Sauvette).

Sedento de aventura e depois de des-

pachar os negócios que o levaram ao

continente africano — Costa do Mar-

fim, Camarões, Togo e Sudão —, Car-

tier-Bresson entrega-se à fotografia.

Manda rolos para França e, numa

carta à mãe, mostra-se curioso com

o resultado da revelação. “Tenho ti-

rado muitas fotografias”, diz na mis-

siva de Janeiro de 1931.

O exotismo, a antropologia visual

e toda mística, muito em voga na

época, acerca do “continente negro”

não lhe interessaram. Preferiu o mo-

vimento das pessoas e o frenesim das

ruas, o quotidiano. A experiência

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10 | ípsilon | Sexta-feira 16 Maio 2014

O tempo que baliza o

nascimento, o auge e o

declínio da fotografia dita

humanista corresponde,

grosso modo, ao tempo

em que Henri Cartier-

Bresson se manteve publicamente

activo na fotografia, entre 1930 e

1970. A sua prática fotográfica é

citada de forma recorrente entre os

que se dedicaram a dar expressão a

um movimento que privilegiava a

pessoa, a sua dignidade e a sua

relação com o meio. Mas há

também quem duvide deste

alinhamento de Cartier-Bresson.

Apesar de se poder considerar que

a abordagem humanista é

intrínseca à fotografia e um dos

seus objectos permanentes, é

possível delimitá-la entre o

momento em que se sentiu

necessidade de regressar ao real e

o momento em que a fotografia-

documento deu lugar à fotografia-

expressão (André Rouillé).

No arranque dos anos 30,

depois de uma década em que se

manifestou todo o tipo de

vanguardas (surrealistas,

abstractas, construtivistas…), um

número crescente de fotógrafos

assume a vontade de voltar a olhar

para o que se passa nas ruas,

procurando a “precisão

fotográfica” para através dela

captar o espírito do tempo.

Abalada pela Grande Depressão

que estala nos EUA em 1929, a

classe operária sofre e os

fotógrafos usam as suas

ferramentas para dar visibilidade

a esse sofrimento. Para afirmar

esse desígnio, há um meio que

ganha cada vez mais importância:

a imprensa fotográfica (entre

muitas outras, a Vu, a Life e a

Paris-Match, fundada em 1949,

que tornou célebre o lema “le

poids des mots, le choc des photos”,

ou seja “o peso das palavras, o

choque das imagens”). E também

meios técnicos de fácil

manuseamento (Leica, Rolleiflex),

que fixam o quotidiano de uma

maneira inovadora e vívida.

A primeira década de produção

de Cartier-Bresson enquadra-se

nesta corrente que procura um

“realismo poético”,

nomeadamente com imagens que

mostram a descoberta do tempo

livre, as várias faces da pobreza ou

o quotidiano das cidades. Apesar

desta escolha de temas sociais, o

fotógrafo português Paulo

Nozolino, que conheceu Cartier-

Bresson em Paris, não identifica

na sua obra nenhum traço da

fotografia humanista. “Era um

esteta, um formal e um

dogmático. Encontro uma prática

humanista em W. Eugene Smith

(1918-1978) ou em Robert Capa

(1913-1954), mas em Henri Cartier-

Bresson não.” Para Nozolino,

Cartier-Bresson “não era um

fotógrafo da emoção”, e o facto de

fotografar com uma lente de 50

mm colocava-o “longe do sujeito,

sem contacto com ele”. “Há

algumas fotografias dos primeiros

tempos, sobretudo as que fez em

“Era um fotógrafo do rigor. Não me parece que tivesse a mínima empatia pelo proletário russo ou pelo operário chinês”Paulo Nozolino

Durante os dois anos em que estagiou na Magnum, António Pedro Ferreira concentrou-se na emigração portuguesa, uma comunidade fechada sobre si e triste

africana foi de tal maneira intensa

que, quando regressou a França, de-

cidiu fazer da fotografia o seu modo

de vida, a sua expressão plástica, a

ferramenta através da qual tentou

compreender e (apreender) o mun-

do. O empurrão definitivo foi dado

por uma fotografia do húngaro Mar-

tin Munkácsi (1896-1963), que Cartier-

Bresson viu na revista Arts et Métiers

Graphiques e em que três rapazes

correm rumo às vagas do lago Tan-

ganica. “Fez-me perceber imediata-

mente que a fotografia poderia atin-

gir a eternidade através do momento.

É a única fotografia que me influen-

ciou. Há nela tal intensidade, espon-

taneidade, alegria de viver e prodígio

que ainda hoje me sinto deslumbra-

do”, escreveu em 1977.

Com as fotografias de África e as

que tirou nos meios surrealistas, no

final dos anos 20, constrói o First

Album (disponível digitalmente nu-

ma das primeiras salas da retrospec-

tiva): não mais do que algumas de-

zenas de imagens coladas num ca-

derno de argolas, mas que revelam

claramente a intenção de fazer es-

colhas e delinear um estilo. A partir

de então, passa a pôr os pés ao ca-

minho não para viajar, mas para

fotografar. No final de 1931, parte

num velho Buick rumo a Berlim,

Budapeste e Varsóvia. Em 1932, vol-

ta a partir para Itália e depois para

Espanha (Alicante, Barcelona, Va-

lência, Toledo, Madrid, Sevilha),

altura em que, para muitos, terá re-

alizado as suas melhores fotografias,

aquelas em que se revelam alguns

dos traços de estilo e de conteúdo

que o acompanhariam. Há compo-

sições muito cuidadas, linhas fortes

e geometrizantes, picados e contra-

picados para mostrar o movimento

de pessoas, a rua, o trabalho, o lazer

e as condições de vida.

Seguindo os famosos “exercícios

de purificação” dados por Lothe para

chegar às composições perfeitas, atra-

vés das regras da “divina proporção”,

Cartier-Bresson movimenta-se à pro-

cura de “um ritmo da superfície”, das

“linhas” e dos “valores”, mas não es-

quece, no entanto, o papel da “sorte

objectiva”, que se consegue através

da “sensibilidade”, da “intuição” e de

uma “capacidade de antecipação”. E

se há coisa que não se pode negar a

esta retrospectiva é a forma como, na

diversidade, procura mostrar a capa-

cidade de Cartier-Bresson em unir

estes dois talentos numa prática foto-

gráfica sempre perseguida pela am-

bição da “síntese”. Mesmo quando o

cinema parecia ganhar mais espaço

na sua carreira (deixou vários docu-

mentários sobre a Guerra Civil de Es-

panha e participou em filmes de Jean

Renoir, como assistente e actor), o

olhar cirúrgico influenciado pela fo-

tografia manteve-se. E, enquanto se

dedicou mais às câmaras de filmar,

não deixou o ofício que paradoxal-

mente considerava um “duro prazer”,

fotografando intensamente para a

imprensa comunista.

Em 1943, depois de se ter evadido

de um cativeiro de três anos às mãos

dos nazis, regressa à imagem foto-

gráfica para abraçar a foto-reporta-

gem, decisão que o conduzirá à fun-

dação da agência Magnum (com

Robert Capa, George Rodger, David

Seymour e William Vandivert), no

mesmo ano em que o MoMA lhe de-

dicou a sua primeira retrospectiva,

quando já era um nome firmado in-

ternacionalmente. É o início de uma

etapa que o conduzirá aos quatro

cantos do mundo (Cartier-Bresson

não desejava tornar-se um globetrot-

ter) e em que será testemunha de

alguns dos acontecimentos mais

marcantes do século XX. A lista é

demasiado vasta para caber num

artigo de jornal, mas citemos apenas

dois: no dia 30 de Janeiro de 1948,

fotografou Gandhi em Nova Deli ho-

ras antes de ter sido assassinado (as

imagens que fez do funeral deram

a volta ao mundo); a 3 de Dezembro

do mesmo ano estava em Pequim

no momento em que o Exército Po-

pular de Libertação de Mao Tsé-tung

dava as últimas estocadas no regime

nacionalista de Chang Kai-chek (fi-

cou na China durante quase mais

um ano). Nesta época, a reportagem

ao serviço da cooperativa Magnum

dominou a sua produção visível,

mas sempre que possível ia cons-

truindo um universo fotográfico

mais pessoal, longe dos constrangi-

mentos e dos prazos da imprensa.

Essas fotografias foram resumidas

pelo próprio como “uma combina-

ção de reportagem, de filosofia, e

de análise social, psicológica”, uma

forma de “antropologia visual” num

tempo analógico em que o registo

gráfico jogava um papel fundamen-

tal. Esse corpo de trabalho, que na

retrospectiva assume pontualmen-

te a forma de núcleos temáticos (So-

nhadores Diurnos, O Homem e a Má-

quina…), é talvez o mais desconhe-

cido e o que revela um lado

(formalmente) mais livre da fotogra-

fia de Cartier-Bresson.

Quer seja para ver os macro-acon-

tecimentos, quer seja para ver os

fogachos de mundo que deslumbra-

ram Henri Cartier-Bresson, quem

quiser entrar nesta exposição deve

preparar-se para esperar — se quiser

ver, de facto, as provas de época,

que respeitam os formatos e as (pe-

quenas) dimensões por si impostas.

E isto quer dizer também que é pre-

ciso ficar com a cara a dois palmos

da superfície em que o mestre deci-

diu registar os seus momentos foto-

gráficos. Afinal, talvez não tão “de-

cisivos” assim.

Um humanista pouco dado ao contacto humano

Cartier-Bresson será testemunha de alguns dos acontecimentos mais marcantes do século XX: fotografou Gandhi em Nova Deli horas antes de ter sido assassinado

Três fotógrafos — Georges Dussaud,

Paulo Nozolino e António Pedro Ferreira

— revêem, entre a proximidade afectiva

e a distância ideológica, a prática

de Henri Cartier-Bresson.

ípsilon | Sexta-feira 16 Maio 2014 | 11

Espanha, que ainda podem ter

algum calor, mas o resto não.”

O fotojornalista do semanário

Expresso António Pedro Ferreira,

que estagiou entre 1982 e 1984 na

Magnum, onde se cruzou com o

fotógrafo francês, reconhece em

Cartier-Bresson um pendor

humanista, mas sublinha “a frieza,

às vezes desconcertante”, de

muitas das suas imagens mais

conhecidas. “Ele é um virtuoso.

Quem olha para as suas fotografias

dirá que tem o poder da máquina

do tempo, que consegue fazê-lo

parar no auge de um gesto

escolhendo com uma precisão

matemática a abertura certa, a

composição perfeita, tudo.”

Apesar desta destreza, António

Pedro Ferreira lembra um lado de

Cartier-Bresson pouco dado a

contactos pessoais: “Na Magnum,

só me davam orientações se eu as

pedisse. Como o meu trabalho era

sobre imigrantes, fui ver todas as

fotografias que tinham sobre

imigração. Foi numa dessas visitas

que me cruzei com ele. Era temido

por toda a gente. Tinha mau génio.

As pessoas tinham-lhe medo,

evitavam-no. Tinha um espírito

crítico implacável. Houve alguém

que um dia lhe foi mostrar um

portfólio e ele decidiu vê-lo de

pernas para o ar.” O fotojornalista

do Expresso, o único português a

estagiar na mítica cooperativa,

fala ainda de um homem “muito

nervoso, sempre a gesticular,

sempre aos pulinhos”. “Era muito

enérgico, mas era um estilo de

energia que parecia não dominar.”

Paulo Nozolino traça um retrato

semelhante: “A composição era a

única coisa que lhe interessava.

Era um fotógrafo do rigor. Não era

um homem muito preocupado

com as pessoas. Era um burguês.

Viajou pelo mundo e teve acesso a

coisas que mais ninguém teve.

Não me parece que tivesse a

mínima empatia pelo proletário

russo ou pelo operário chinês. Era

pedante e frio.” O fotógrafo

português afirma ainda que

quando Cartier-Bresson deixou de

fazer reportagem, no início dos

anos 70, “sabia perfeitamente que

os seus bons velhos tempos já

tinham acabado”. E a partir daí

“passou a ser um papa, mais do

que outra coisa qualquer”. “É o

papa de muita gente, mas meu

não é”, insiste.

Já o francês Georges Dussaud,

fotógrafo da extinta agência Rapho

(fundada em 1933 e viveiro de

muitos fotógrafos humanistas,

como Robert Doisneau, Édouard

Boubat, Bill Brandt, André Kertész,

Janine Niépce, Willy Ronis e Sabine

Weiss), ressalva que Cartier-

Bresson “comprometeu

completamente a sua vida para

testemunhar o estado do mundo, a

vida quotidiana das pessoas mais

comuns”. Para Dussaud, que

fotografou Portugal ao longo das

últimas três décadas, “é preciso

regressar à fotografia humanista,

porque ela é um testemunho

importante do mundo, de um

determinado tempo histórico, e

dificilmente será substituível”.

Na Magnum, António Pedro

Ferreira, que durante dois anos se

concentrou apenas na emigração

portuguesa em França, lembra

que os conselhos dos fotógrafos

mais experientes iam sempre no

mesmo sentido — estar com as

pessoas. “James Fox disse-me para

escolher uma família e seguir cada

membro o mais tempo possível.

Dizia que era preciso sair de

manhã com cada um deles e voltar

à noite…” O resultado não foi

“uma visão optimista do homem”

(um dos mandamentos do

humanismo do pós-guerra que

teve a sua expressão máxima na

exposição The Family of Man,

organizada por Edward Steichen e

inaugurada em 1955, em Nova

Iorque, em que Cartier-Bresson

participou) mas o retrato de uma

comunidade fechada sobre si e

triste, sem esconder “a

especificidade histórica e social

das representações dos indivíduos

no mundo” — que foi o que Roland

Barthes pediu em Mythologies

(1957), quando criticou a

linearidade encenada do

humanismo de The Family of Man.

Com Sérgio C. Andrade

ANTÓNIO PEDRO FERREIRA

16 SEX · 23:00 MANÉ FERNANDES - BOUNCELAB PT

PAPANOSH FR

17 SÁB · 21:00 EDUARDO CARDINHO

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16–18 MAIO

12 | ípsilon | Sexta-feira 16 Maio 2014

A ascensão dos Black Keys a banda mais célebre do rock’n’roll é a história de uma improbabilidade. Ninguém imaginaria vê-los no topo do mundo — e eles muito menos. Turn Blue mostra que o novo estatuto nada lhes diz.

No topo do mundo

Mário Lopes

Blac

k Ke

ys

ípsilon | Sexta-feira 16 Maio 2014 | 13

“Começámos por baixo e as condições eram lastimáveis, portanto sentimos cada ano como um passo acima. Tem sido uma subida constante, constante”Dan Auerbach

O novo álbum dos Black Keys pode ser um grande álbum falhado — no imediato, porém, terá vida feliz

E então chegou aquela canção

e todos se ergueram das ca-

deiras e dançaram tentando

imitar os passos vistos no ví-

deo que se transformara me-

ses antes em fenómeno viral.

Pavilhão Atlântico, 29 de Novembro

de 2012. Os Black Keys e as primeiras

notas de Lonely boy. Tudo parecia

vagamente irreal: milhares de pes-

soas reunidas para verem os Black

Keys e Dan Auerbach e Patrick Car-

ney, cuja música pede salas onde se

veja o suor no rosto dos músicos,

tão à vontade naquele espaço gigan-

tesco. Provavelmente, o cenário se-

rá igualmente irreal quando a banda

actuar no Optimus Alive, a 11 de Ju-

lho. Irreal porque lembramo-nos de

como tudo começou, há 12 anos.

The Big Come Up (2002), o primei-

ro álbum, mostrou-os como banda

de um blues-rock descarnado, gara-

geiro, muito de acordo com a explo-

são mediática rock’n’roll espoletada

pelos White Stripes. Thickfreakness,

no ano seguinte, foi outra face da

mesma moeda. Os Black Keys sur-

giam no cenário, vindos de Akron,

no Ohio, e eram banda simpática,

mas, apesar de um excelente álbum

intitulado Rubber Factory, o tercei-

ro, editado em 2004, estávamos

longe de vislumbrar ali sinais de

grandeza. Imaginávamos que a sua

ética de trabalho e a paixão pela mú-

sica que criavam juntos asseguraria

que continuariam ano após ano a

gravar num estúdio caseiro e a mon-

tar digressões que dariam à justa

para pagar as contas. Não imaginá-

vamos mais do que isso — nem, de

resto, o imaginavam eles.

Porém, ao contrário de muitas

outras bandas da sua geração, como

algumas para quem os Black Keys

abriram concertos à época, como

os australianos The Datsuns ou os

americanos Von Bondies, aconteceu

aos Black Keys uma coisa extraordi-

nária. Continuaram. E, em vez de

desaparecerem do radar, não para-

ram de crescer. Até este ponto: da

sua geração, são provavelmente a

banda rock mais célebre do planeta,

com vendas de milhões, com o Ma-

dison Square Garden a esgotar em

15 minutos, com Jeniffer Lawrence,

a actriz, a guardá-los no coração co-

mo a sua banda preferida (“tudo

fica mais cool quando os ouvimos”,

elogia ela), com Lana del Rey a con-

vocar Auerbach para produzir o seu

novo álbum, Ultraviolence (edição

prevista para Junho), e com Mike

mmmmmBlack Keys

Turn BlueNonesuch;

distri.

Parlophone

mote para o álbum foi dado por Wei-

ght of love, que se tornaria a primei-

ra canção do alinhamento — um

épico de sete minutos em que a ban-

da se entrega ao rock cósmico como

os Pink Floyd de Meddle e em que

explora aquele psicadelismo de de-

signer que os Air nos apresentaram

em Moon Safari antes de Auerbach

se lançar, convicto, em solos de gui-

tar-hero de outros tempos. “Depois

daquilo, sentimos um ‘podemos fa-

zer o que quisermos — tudo estará

bem’”, confessava o guitarrista à

Rolling Stone.

Brothers fora o disco em que o

travo clássico rock’n’roll da banda

encontrava uma produção de calor

orgânico, criada meticulosamente.

A crueza desapareceu para surgirem

em seu lugar teclados vintage, baixo

bojudo e baterias de som saturado,

ou seja, Dan Auerbach e Patrick Car-

ney descobriam finalmente, com a

ajuda de Danger Mouse, considera-

do o terceiro membro da banda, e

depois da experiência em Blakroc,

álbum que reuniu os Black Keys a

rappers com Raekwon, Mos Def ou

RZA, como aplicar à sua música o

trabalho de cientista sonoro dos

produtores hip-hop — e, de cami-

nho, com piscadelas de olho aos T.

Rex ou a Sly Stone entre a agilidade

blues-rock habitual, alargavam as

suas fronteiras sonoras e chamavam

o povo à pista de dança. El Camino

chegou depois como versão destila-

da, mais directa (cada canção um

projecto de single) do caminho ini-

ciado anteriormente.

Turn Blue é o momento em que a

banda como que soçobra perante a

visão do novo mundo sónico desco-

berto em Brothers. O gesto não é

similar à deliciosa auto-sabotagem

das expectativas que os MGMT fize-

ram no seu segundo álbum, Congra-

tulations, e está muito distante da

transformação consciente dos Kings

Of Leon de óptima actualização do

boogie sulista em bafienta máquina

de singles com refrão oleoso.

O circunspecto Dan Auerbach, fi-

lho de músicos cujo sonho na infân-

cia era tocar bluegrass com o pai e

os tios, e o desengonçado Patrick

Carney, dono de um humor seco e

inseguro da sua valia enquanto mú-

sico (teve de recorrer à ajuda de um

psicoterapeuta para enfrentar os

concertos), não são gente dada ao

planeamento de carreira. Fizeram-no

uma vez, quando, após uma digres-

são europeia da qual regressaram

com um dívida de alguns milhares

de dólares, e perante o cenário de se

aproximarem dos 30 e não consegui-

rem com a banda mais do que o ren-

dimento equivalente ao salário mí-

nimo, decidiram que ceder algumas

canções para publicidade não equi-

valeria a prostituírem a sua música

(o que seria depois indissociável, co-

mo habitualmente, da massificação

da banda). Não, Turn Blue é simples-

mente resultado de uma banda que,

enquanto o seu vocalista lidava ob-

cecado com um divórcio (as letras

explicam), fez o que faz habitualmen-

te. Enfiou-se num estúdio e deixou

que o momento guiasse as opera-

ções. “Não temos quaisquer regras

e, por vezes, tomo [a música] por

garantida porque nos sai tão facil-

mente”, confessava Auerbach recen-

temente.

Antes, a gravação mais demorada

dos Black Keys arrastara-se por 17

dias. Turn Blue demorou meses a

gravar. E nota-se. A produção é ima-

culada, mas parece impor-se às can-

ções mais vezes do que o desejável

— o piano foleiro, muito 80s, a ma-

cular o refrão desse lamento soul

intitulado Turn blue; a linha de sin-

tetizador a comandar essa bizarria

no cânone Black Keys que é Fever

(precisamos de uns Franz Ferdinand

americanos no ano da graça de

2014?). Quando tudo se equilibra,

porém, como em Year in review, com

stomp em midtempo, cordas, apon-

tamento de castanholas, coros e pan-

deireta unidos em densa melancolia,

os Black Keys parecem dar um passo

em frente. Não chega, porém, para

fazer de Turn Blue o sucesso que de-

sejaria a ambição da banda. Bullet in

the brain, por exemplo, apresenta-se

como curioso encontro entre o psi-

cadelismo planante britânico e

rock’n’roll americano, mas fica a

meio caminho e quebra em refrão

anónimo, decididamente pouco ins-

pirado. Perante ela, preferimos a

fórmula já testada: It’s up to you now,

com bateria primitiva, guitarra in-

candescente e a chama blues e ilu-

minar os três minutos da canção.

Na já extensa discografia dos Bla-

ck Keys, Turn Blue figurará como o

grande álbum falhado, um disco em

que momentos surpreendentes e

justos para com a natureza da banda

(são conservadores progressistas,

digamos) convivem com marcas

clássicas e com, pelo menos, um par

de equívocos. Enquanto o eco de

Lonely boy ou de Tighten up conti-

nuar a ouvir-se, tal será insignifican-

te para o estatuto da banda enquan-

to nome mais célebre do rock’n’roll

da actualidade. Além disso, esse

mesmo estatuto assegurará a Turn

Blue, no imediato, uma vida feliz. O

que se seguirá é, claro, uma incóg-

nita. Certo é que os Black Keys, que

nunca esperaram chegar ao topo do

mundo e ter Mike Tyson a oferecer-

se para os ajudar no que for preciso,

continuarão como sempre.

Na entrevista à Mojo, Patrick Car-

ney conta que continua a contar os

tostões sempre que enche o depó-

sito do carro e que põe de lado me-

tade do dinheiro porque tudo isto

lhe parece demasiado irreal para se

manter por muito tempo. Há quatro

anos, imediatamente antes de a lou-

cura se instalar, dizia ao Ípsilon:

“Precisamos de trabalhar para pagar

as contas. Felizmente, tudo isto é

também um vício. É a indústria mais

fodida da cabeça que existe, mas

tudo nela à fascinante”. Um ano an-

tes, Dan Auerbach: “Isto é o que

continuarei a fazer, quer seja popu-

lar ou não, quer tenha ou não opor-

tunidade de pôr um álbum nas ru-

as.”

Não deixaram de ter essa oportu-

nidade desde então. O fascínio man-

tém-se. E eles, no topo do mundo,

fazem o que bem lhes apetece. Con-

sideremos ou não Turn Blue um glo-

rioso álbum falhado, só podemos

louvá-los por isso.

Tyson, a quem ofereceram uma can-

ção para incluir num documentário

do pugilista, a dar-lhes o número de

telefone (ele estará do outro lado

para tudo aquilo que eles necessita-

rem). Dan Auerbach passa tardes a

conversar com Robert Plant, Patrick

Carney mora bem perto do seu gran-

de amigo Harmony Korine, e os Bla-

ck Keys são convidados pelos Rolling

Stones para interpretarem juntos

em palco Who do you love?, o clássi-

co de Bo Diddley (aconteceu em

2012). E, entretanto, Dan Auerbach,

homem discreto e metido consigo

(“Não confio em pessoas felizes, são

uma maldição”, dizia ao Ípsilon

quando da edição, em 2009, do seu

magnífico álbum a solo, Keep It Hid),

vê a sua vida privada devassada pe-

la imprensa tablóide (o dinheiro

pago à ex-mulher, a custódia da fi-

lha, os pormenores pouco edifican-

tes que um divórcio implica, tudo

escarrapachado em papel e on-line).

Se tudo isto não é sinónimo de es-

trelato, o que será?

“Começámos por baixo e as con-

dições eram lastimáveis, portanto

sentimos cada ano como um passo

acima”, diz Dan Auerbach no artigo

de capa que a Mojo lhes dedicou.

“Quando tivemos o nosso primeiro

autocarro [de digressão], sentimos

‘uau, podemos fazer isto para sem-

pre’. Todos os anos desde que come-

çámos foram melhores do que o ano

anterior. Tem sido uma subida cons-

tante, constante.” É verdade. Tem-no

sido desde que editaram Brothers em

2010, o álbum em que a parceria com

Danger Mouse (Gnarls Barkley, Cee-

Lo Green, Broken Bells), iniciada no

álbum anterior, Attack & Release

(2008), frutificou, cristalizando o

som que lhes ouvimos hoje. Depois

de Brothers, chegou El Camino, com

El Camino chegou Lonely boy, e os

rapazes de Akron, hoje senhores na

primeira metade dos trintas, torna-

ram-se estrelas globais — nos EUA, a

indústria fez o habitual: depois de os

ignorar durante quase uma década,

começou a cobri-los de Grammys

(sete entre Brothers e El Camino) a

partir do momento em que as ven-

das, as partilhas on-line e as presen-

ças televisivas se tornaram prova

inequívoca de que ali havia talento

(mede-se pelo dinheiro gerado, se-

gundo os critérios daquela malta).

EquívocosUma subida constante, constante.

Sem dúvida. E agora? Agora há novo

álbum, Turn Blue, e a história pode

mudar. Atingido o topo, será altura

de começar a descida? Colocamos

a questão porque Turn Blue, mais

“psicadelicamente” lento, com sin-

tetizadores para pista de dança do

tamanho de um estádio a conduzi-

rem as operações e, aqui e ali, false-

te a arriscar a soul, não parece disco

para manter a loucura popular (ou

para recuperar o pedigree indie).

Gravado depois de dois anos inin-

terruptos em digressão (“o que foi

idiota e pouco saudável”, confessa-

va Auerbach à imprensa australia-

na), viu a banda dividir-se entre es-

túdios em Hollywood, no Michigan

e em Nashville, cidade em que vivem

actualmente Auerbach e Carney. O

14 | ípsilon | Sexta-feira 16 Maio 2014

David Byrne, Damon Albarn, uma compilação e um documentário revelaram a festa de sintetizadores que William Onyeabor fez antes de se dedicar a Cristo. Mas continua a haver muitas perguntas sobre este nigeriano que rejeita tocar ao vivo e falar da sua música.

Poucos músicos não ficariam

eufóricos se a Luaka Bop

lhes telefonasse a mostrar

interesse em fazer uma

compilação em torno da

sua obra. Mas William

Onyeabor não ficou. “Porque é que

queres falar sobre isso?”, perguntou

a Yale Evelev, presidente da editora

fundada pelo ex-Talking Heads Da-

vid Byrne. “Eu só quero falar sobre

Jesus.” E desligou o telefone.

Sobre Onyeabor, homem de Enu-

gu, cidade do Sudeste da Nigéria,

dizia-se todo o tipo de coisas: que

estudou cinema na União Soviética

(ou Direito?) e voltou a casa em me-

ados dos anos 70 para fundar estú-

dios de cinema e de música e a sua

editora; que os sintetizadores que

usava vinham da Rússia; que finan-

ciou o seu próprio filme; que foi ad-

vogado; que representou a marca

de sintetizadores Moog. O que se

sabia ao certo, porque os discos não

mentem, é que fazia funk como nin-

guém fazia na Nigéria, um funk com

espaço para sintetizadores e outra

maquinaria, a milhas do que se pro-

duzia no seu país nos anos 70 e 80

— e que ainda ia mais longe, já que

temas como Let’s fall in love parecem

mesmo antecipar a cadência infini-

ta da música house, que nasceria na

mesma altura, mas em Chicago. E

sabia-se também que, em 1985,

Onyeabor parou de fazer discos e

dedicou a vida a Cristo.

Sem outra colaboração do músico

além da assinatura no contrato, a

Luaka Bop demoraria meia década

a conseguir lançar a dita compila-

ção, Who Is William Onyeabor?, edi-

tada no final do ano passado. Mais

recentemente, o nigeriano, hoje na

casa dos 70, foi alvo de um docu-

mentário, Fantastic Man. Mas con-

tinua a rejeitar tocar ao vivo, escla-

recer a sua vida ou falar com jorna-

listas. O New York Times e a Mojo

tiveram a sorte de publicar algumas

palavras. “Eu era um pecador que

se arrependeu e se deu a 100% a

Cristo”, disse ao primeiro.

Nos últimos dias, Damon Albarn

(Blur), Alexis Taylor (Hot Chip), Ke-

le Okereke (Bloc Party), Pat Maho-

ney (LCD Soundsytem), David Byrne

e outros músicos participaram em

concertos em Londres, Los Angeles,

Nova Iorque e São Francisco — não

temos Onyeabor em palco, mas te-

mos gente que o adora a prestar-lhe

homenagem. Mais amor: a propósi-

to do Record Store Day, em Abril,

foi lançada uma compilação com

versões e remisturas das canções de

Onyeabor pela mão de gente tão di-

versa como Hot Chip e The Vaccines.

Músicos (os supracitados, mas tam-

bém Caribou, Devendra Banhart e

muitos outros) fazem-lhe vénias e

coleccionadores de todo o mundo

cobiçam os oito álbuns que fez entre

A incrível história de William Onyeabor ainda está por contarPedro Rios

ípsilon | Sexta-feira 16 Maio 2014 | 15

1977 e 1985 (chegam a ser vendidos

por valores com três zeros). Ouvidos

hoje, soam modernos e inclassificá-

veis: na Nigéria de Fela Kuti e de

bandas como The Funkees e Apos-

tles ( James Brown era referência

tutelar), havia um homem, recluso

e misterioso, a produzir música com

instrumentos electrónicos como os

Moog, estranhos e luxuosos.

Os jornais nigerianos da época

falavam em “sintetizadores sofisti-

cados” e “instrumentação disco so-

fisticada”. Mas já na altura se sabia

pouco acerca dele.

Detectives“No início foi difícil. Não sabes que

Damon Albarn é um fã, pensas que

ele é praticamente desconhecido,

as primeiras dez pessoas que con-

tactas não te respondem”, confessa

Eric Welles-Nystrom, manager da

Luaka Bop, a partir dos escritórios

da editora, em Nova Iorque.

Quando conversou com o Ípsilon,

Eric acabara de chegar de uma visi-

ta a Enugu. Who Is William Onyea-

bor? está cá fora, mas abundam as

questões ainda sem resposta. “Não

o ficamos a conhecer melhor de ca-

da vez que o visitamos. Podemos

passar uma semana com ele e ficar

só a ver televisão cristã e a ouvi-lo

falar sobre Deus. Mas depois há um

momento em que fala de outra coi-

sa e aprendes algo. Quando concor-

dou em fazer o disco mas disse que

não iria falar, ficámos numa situação

complicada”, conta. Como promo-

ver alguém que recusa tocar ao vivo,

dar entrevistas, alguém para quem

ceder um velho VHS com um tele-

disco difícil de obter é um problema

quase intransponível?

A Luaka Bop empreendeu um ver-

dadeiro trabalho de detective, que

envolveu conversas com músicos

contemporâneos de Onyeabor e vi-

sitas a Enugu, onde o músico tem

uma grande propriedade e uma rua

com o seu nome. Nos encontros

com Onyeabor, Eric mede as pala-

vras e procura as melhores formas

de saber algo mais sobre a persona-

gem: “O facto de não conseguires

encontrar nada on-line — uma bio-

grafia ou uma presença — intrigou-

nos e obcecou-nos. Hoje consegui-

mos encontrar quase tudo na Inter-

net, até a foto da casa de alguém. E

eis este tipo sobre o qual não se con-

segue encontrar quase nada.”

“Acho que ele agora começa a per-

ceber que as pessoas no Ocidente

gostam dele. E aprecia, mas preferia

saber que tu lês a Bíblia à noite do

que falar sobre isso. Repete cons-

tantemente coisas como não querer

mais publicidade, querer apenas

estar em paz. Quando estou lá, diz-

me muitas vezes que não quer que

eu fale com mais ninguém, liga-me

para ver se estou no hotel e não a

andar pela cidade. Só quer fazer as

suas orações”, continua Eric.

“Quando as coisas não são pes-

quisáveis na internet provavelmen-

te confundem toda a gente”, acres-

centa Jake Sumner, realizador de

Fantastic Man. “O facto de ele não

aparecer está relacionado com o

fascínio das pessoas. E Onyeabor

está provavelmente muito ciente

disto — é um tipo muito esperto.”

“Leiam as vossas bíblias”Nas estadias em Enugu, Eric e com-

panhia mostram a William Onyea-

bor recortes de imprensa que lhe

dêem a noção do burburinho que

causa em todo o mundo. Parece va-

lorizar mais que uma revista desco-

nhecida publique a sua foto do que

saber que a Time pôs Who Is William

Onyeabor? entre os dez melhores

discos de 2013.

Onyeabor demorou muito tempo

a aceitar o convite da Luaka Bop.

Foi o nigeriano Uchenna Ikonne

que, em 2009, teve a ideia de fazer

uma compilação em torno de Onye-

abor. Percebeu que a Luaka Bop

faria um melhor serviço do que a

sua pequena editora, propôs-lhe o

projecto e assumiu as negociações

em nome da editora norte-america-

na. As conversas foram tensas. “Ele

estava relutante em assinar um con-

trato porque sentia que tinha sido

enganado no passado quando licen-

ciou a sua música a uma editora es-

trangeira”, conta Ikonne. Onyeabor

recebeu o dinheiro de avanço, mas

demorou três anos a assinar o con-

trato. Numa das conversas, acusou

Ikonne de ser um agente do Diabo.

Uchenna Ikonne ouviu a música

de Onyeabor quando era criança,

nos anos 70. “Os miúdos de hoje”

da Nigéria, diz-nos, “não sabem na-

da sobre ele, a não ser que tenham

ouvido que a obra dele está a ser

reeditada no estrangeiro”.

A viver em Boston, nos EUA, Ikon-

ne, que tinha um blogue dedicado

à música africana, compreende a

fixação actual do Ocidente neste fi-

lão. “As pessoas ficam surpreendi-

das porque conhece-se pouco de

África e a maioria dos media retra-

tam um local escuro, miserável e

violento”, teoriza. Num local desses

não haveria lugar para música alegre

como a de Onyeabor.

Em Fantastic Man, Laolu Akins,

músico de Lagos, diz que Onyeabor

era, nos anos em que durou a sua

carreira, o único artista a ter o seu

próprio estúdio e a sua própria fá-

brica de prensagem de discos. E nas

suas estadias em Enugu Eric encon-

trou, mais do que um músico, um

homem de negócios orgulhoso. “An-

tes de falarmos sobre a música dele,

falávamos sobre o facto de ele fabri-

car os seus próprios discos.”

O que Onyeabor fazia no início da

década de 70 e como chegou aos

instrumentos electrónicos é ainda

um “mistério”, afirma Eric, que che-

gou a contactar a Moog para saber

se tinha enviado sintetizadores para

a Nigéria naqueles anos. A resposta

foi negativa, o que indica que tê-los-

á conseguido no estrangeiro.

“Ele viajava muito. Sei que, no

início dos anos 80, ele visitou os

EUA, a Inglaterra, a Dinamarca, a

Suécia, a Itália... Importava equipa-

mento para a sua fábrica. A sua ci-

dade parece ser hoje muito remota,

nos anos 70 nem consigo imaginar:

Enugu foi um dos principais palcos

da guerra do Biafra [a guerra civil

nigeriana, entre 1967 e 1970].”

No final de Fantastic Man, há um

plano da enorme casa de Onyeabor

com um letreiro a dizer “Palácio

Deus é Rei” e um Mercedes à porta.

O músico rejeitou ser entrevistado,

mas pediu que filmassem a escada-

ria dentro do “palácio”. Estão lá um

Moog e fotos das vidas que levou (na

música e na fé), num altar improvi-

sado. No exterior, Onyeabor acena-

nos. Ouvimos uma gravação, as pa-

lavras que disse à Mojo: “Vivam uma

boa vida. Cumpram a palavra de

Deus. Leiam as vossas bíblias.”

“Ele agora começa a perceber que as pessoas no Ocidente gostam dele. E aprecia, mas preferia saber que tu lês a Bíblia à noite do que falar sobre isso” Eric Welles-Nystrom, Luaka Bop

Onyeabor rejeita tocar ao vivo ou falar com jornalistas, mas o New York Times teve a sorte de publicar algumas palavras: “Eu era um pecador que se arrependeu e se deu a 100% a Cristo”

16 | ípsilon | Sexta-feira 16 Maio 2014

“É uma ligação de sangue

e consegues senti-la.

É imbatível.” Citamos

de cabeça palavras de

Iggy Pop, comentan-

do o desempenho da

secção rítmica dos Stooges em Raw

Power. Falava de Scott Asheton, ba-

terista, e de Ron Asheton, o guitar-

rista tornado baixista naquele ál-

bum histórico de 1973. Uma ligação

de sangue, dizia então Iggy Pop. O

que diria ele dos Pontiak, homens

do rock’n’roll que decerto têm a

discografia dos Stooges em desta-

que na discoteca caseira? Criadores

hiperactivos (dez edições desde a

estreia em 2005) que passam me-

tade da vida num estúdio rural no

estado da Virgínia (a outra metade

passam-na em concertos), são for-

mados por Van, Jennings e Lain

Carney. Três irmãos. Aqui chegados

devíamos escrever “e nota-se”.

Mas, na verdade, não sabemos se

aquilo que são os Pontiak, ontem

rock’n’rollers dados à subversão

noise, stoner, dos cânones, hoje

uma banda que concentra esse sa-

ber adquirido em canções directas

e concisas em que continua a so-

bressair o nervo que a distinguia,

deve muito ao facto de terem nas-

cido quando três irmãos, descon-

tentes com as bandas em que se

haviam metido, decidiram que me-

lhor seria experimentar ver o que

conseguiriam fazer juntos. Van Car-

ney, o vocalista e guitarrista que

fala ao Ípsilon algures do campo

francês, pouco depois de pôr em

movimento uma carrinha que que-

brara a meio da viagem para novo

concerto, não dá relevo à questão

familiar. O mais importante é isto:

“Tocamos todos os dias. E fazemos

os nossos próprios vídeos, tratamos

da arte gráfica dos álbuns, temos

outros projectos a acontecer. Não

penso nisto como um trabalho. É

simplesmente o que faço. É, para

mim, como que um grande projec-

to de arte. Enlouqueceria se não o

fizesse. Nunca me canso.” Soube

que era isto que queria, assegura,

desde que viu o pai e o tio a toca-

rem canções de Chuck Berry, tinha

ele quatro anos. Pois, deve ser uma

coisa de sangue…

Esta noite, os Pontiak, nome de

culto que nunca deixará de o ser e

assim é que está correcto (fica-lhes

bem essa existência algo subterrâ-

nea, marginal), estarão no Sabotage,

em Lisboa (22h30), como convida-

dos da primeira noite Floresta En-

cantada, programa da rádio Radar

dedicado ao psicadelismo. Amanhã,

serão protagonistas das noites Flow

de Mayo no Centro para os Assuntos

da Arte e da Arquitectura, em Gui-

marães, partilhando palco com os

Kilimanjaro e Solar Corona

(21h30).

“Será uma mistura entre a setlist

que trouxemos preparada para a

digressão e o improviso do alinha-

mento. Decidimos noite a noite. Um

concerto é feito com o público e,

por isso, é sempre diferente. Não

concebemos que possa ser de outra

forma”, explica Van Carney antes

de contar que há dez anos não vem

a Portugal (esteve no país de passa-

gem enquanto estudava em Valên-

cia) e que está ansioso pela comida

e pelo bom vinho cá da terra. Van,

de resto, fala muito de vinho e de

comida. Ouçamo-lo a descrever In-

nocence, o álbum editado em Janei-

ro que vêm promover a Portugal.

Innocence alterna entre os riffs

mastodônticos, companheiros de

viagem dos Queens Of The Stone

Age iniciais e dos Black Sabbath de

sempre (os dois misturados em Sur-

rounded by diamonds), e os momen-

tos em que Neil Young bate à porta

do estúdio na Virgínia para serenar

as coisas (a clássica Americana de

Wildfires, que é novidade na banda

mas que, por demasiado canónica,

representa o lado menos interes-

sante do álbum). Diz então Van: “O

álbum é como que uma refeição

equilibrada. Podes sentar-te a uma

mesa e comer simplesmente um

pedaço de carne, mas uma refeição

torna-se muito melhor quando tens

mais do que isso, quando acompa-

nhas com vinho, quando tens café

no fim, quando misturas o doce e

o amargo. No álbum, tens tudo isso

ao mesmo tempo”. Acto contínuo,

defende o lado baladeiro de Inno-

cence: “Muita gente gosta da dinâ-

mica do disco, outros parece-me

que ficaram com medo dela. Que-

rem só uma coisa e ficaram confu-

sas. Tudo bem, há espaço no mun-

do para quem quer sempre a mes-

ma coisa.” Dito isto, regressamos

ao vinho: “Acontece que eu adoro

vinho tinto, mas também vinho

branco e champanhe.”

HonestidadeAo contrário de álbuns anteriores,

como o tão agreste quanto mag-

nífico Living, de 2010, Innocence

nasceu de um processo diferente

do habitual nos Pontiak. Aquilo

que ouvimos em “95%” da disco-

grafia da banda nasceu ao primei-

ro take — compõem, gravam uma

maqueta e, depois, preservam a

forma como a canção será imor-

talizada em disco de uma vez. “A

nossa ideia é captar a imediatez.

Sem merdas. Pôr a canção em ce-

na e bang!”. Innocence encontra o

trio entregue à nobre tarefa de,

como escrevemos e como diz Van,

“compor canções concisas e di-

rectas”. Obrigou-os a “tocar as

canções vezes sem conta e rear-

ranjá-las constantemente”. À an-

tiga: “Nenhum computador foi

utilizado. Gravámos tudo numa

mesa de oito pistas e, devido a es-

sa limitada quantidade de espaço,

tínhamos de ter a certeza de que

tudo o que fazíamos era exacta-

mente o que queríamos e que não

havia ali nenhuma merda dispen-

sável. Exigiu que tivéssemos um

grande nível de honestidade con-

nosco.”

Os Pontiak chegam a Portugal

com um álbum que, apesar de me-

nos consistente do que lançamen-

tos anteriores, se distingue na sua

discografia. Chegam, ainda assim,

a banda de sempre. Algo insular,

habitando o seu universo peculiar.

“Temos muitos amigos em muitas

bandas, mas não sinto necessidade

de me alinhar com nenhuma. Não

temos qualquer preocupação em

ser parte do que quer que seja. Tu-

do o que nos interessa é fazer.”

Não está a fazer cenário. Ouvi-los

é percebê-lo.

O feedback a anunciar-se em

crescendo, as guitarras a preen-

cherem o espaço sónico, cheias,

ameaçadoras. A voz que grita:

“Wasted! Corrupted!”. A canção

tem o título do álbum. Innocence.

Estão apresentados. Pontiak é o

nome.

Três irmãos, um estúdio rural na Virgínia, os Black Sabbath e os Stooges no subconsciente: os Pontiak, banda hiperactiva, estão hoje em Lisboa e amanhã em Guimarães.

Mário Lopes

Pôr a canção em cena e bang!

mmmmm Pontiak

InnocenceThrill Jockey;

distri. Flur

ípsilon | Sexta-feira 16 Maio 2014 | 17

Sir Richard Bishop anda pelo mundo a recolher música para adulterar numa guitarra hipnótica. Hoje e amanhã, está cá para mostrar que há caminhos infi nitos nas suas seis cordas.

Quando Richard Bishop foi

convidado para editar o seu

primeiro álbum a solo pela

Revenant, a editora do míti-

co John Fahey que sucedeu

à Takoma Records, temeu

que fosse um engano e apressou-se

a aceitar antes que alguém desse

conta do equívoco. Não era engano.

A surpresa de Bishop prendia-se, em

parte, por se prostrar naturalmente

aos joelhos de Fahey se este assim o

quisesse, mas ao mesmo tempo não

se considerar sequer próximo da

linguagem musical do mestre. Só

que, contando com o aval de Fahey

e deslumbrado por poder engrossar

uma editora que lançava não apenas

o bluesman Charlie Patton mas tam-

bém figuras do jazz experimental

como Cecil Taylor ou Derek Bailey,

não perdeu tempo e avançou para a

edição de Salvador Kali, em 1998. O

título construía à bruta duas pontes

evidentes na geografia da obra de

Bishop daí em diante: a música es-

panhola e a tradição indiana.

Sabendo que Fahey assentira à

publicação do álbum por sugestão

do seu sócio Dean Blackwood — fã

dos Sun City Girls —, Bishop aprovei-

tou uma passagem do guitarrista por

Seattle, na primeira parte dos No-

Neck Blues Band, e pensou agrade-

cer-lhe pessoalmente. “E foi exacta-

mente o que aconteceu”, relata ao

Ípsilon. “Primeiro, o Fahey apare-

ceu, subiu ao palco e perguntou ao

público se alguém tinha uma guitar-

ra em que ele pudesse tocar. Achei

aquilo genial.” Em seguida, enquan-

to os No-Neck se preparavam no pal-

co, Bishop identificou Fahey no bar.

Apresentou-se. “Não houve qualquer

resposta. Ele não sabia quem eu

era”, recorda. Voltou a apresentar-

se, desta vez dizendo não apenas o

nome mas fazendo igualmente um

pequeno resumo da sua ligação à

Revenant. Conseguindo agarrar um

fragmento da atenção de Fahey, es-

te respondeu-lhe: “Ah, ok, és o Sir

Richard Bishop. Tocas como o dia-

bo.” Até à morte de Fahey, passados

dois anos, Bishop não voltou a ouvir-

lhe a voz. Retirou-se agradecido por

um elogio que, se pudesse, carrega-

ria escrito no peito ou apresentaria

como currículo para o resto da vida.

“Ele era muito intimidante. Era um

tipo muito grande e tinha uma ener-

gia à volta dele que tinha de se pe-

netrar só para conseguir dizer olá.”

A bênção, no entanto, estava dada.

Sir Richard Bishop, que não deve

o seu “Sir” a nenhuma condecora-

ção atribuída pela Rainha de Ingla-

terra, encontrava finalmente nas

palavras de Fahey uma razão oficial

para o estatuto de nobreza. Mas as

razões para o título nobiliárquico

são fatalmente plebeias. Era brinca-

deira entre velhos amigos que o gui-

tarrista adoptou “um pouco por

piada” quando começou a apresen-

tar-se a solo, a fim de cavar, na sua

própria cabeça, um fosso que o se-

parasse da identidade musical cons-

truída na folk-punk dos Sun City

Girls. Tanto assim que quando toca

com o irmão Alan Bishop (também

ex-Sun City Girls) ou com os Rangda

(trio que partilha com Ben Chasny

e Chris Corsano) Richard é apenas

Richard — “o Sir é para não me sen-

tir tão só, para me sentir especial e

da realeza”, ri-se.

Django (mal) imitadoNos tempos dos Sun City Girls, a mú-

sica em que Bishop se via metido par-

tilhava o desvairamento psicadélico

com uma ambição xamânica e ritua-

lista, como se oficiosamente a música

do trio servisse de banda sonora a

cerimónias de sociedades secretas.

A solo, Sir Richard — que sobreviveu

uns bons anos a negociar livros do

oculto — colocaria um açaime nessas

emanações para-religiosas, embora

não prescindisse de um lado medita-

tivo e transcendente. Menos rude do

que aquilo que praticava nos Sun Ci-

ty Girls, a música de Sir Richard

Bishop distancia-se também pela re-

lação que mantém com a exploração

de mundos musicais longínquos do

seu Arizona natal. E isto porque, no

início dos Sun City Girls, Richard e

Alan foram surpreendidos pelos ecos

que carregavam de uma infância na

natural convivência com alguns dos

grandes clássicos da música árabe

(Oum Kalthoum, Fairuz ou Farid al-

Atrache), cortesia dos avós libaneses

com quem cresceram. “Na altura não

significava grande coisa para mim

porque era muito novo”, diz Richard,

“mas estava exposto àquela música

e a partir do momento em que come-

cei a tocar guitarra lembrei-me de ir

ouvi-la novamente e explorá-la. Esta-

va-me no sangue, de uma forma ou

de outra.”

Com o investimento progressivo

na carreira a solo, Bishop foi-se em-

brenhando cada vez mais noutras

tradições musicais, quer fosse o Be-

atle George Harrison a sugerir-lhe a

música indiana, quer fosse a sua

curiosidade constante a fazê-lo che-

gar até às guitarras do egípcio Omar

Khorshid — ao qual dedicou o exce-

lente álbum The Freak of Araby — e

do romani belga Django Reinhart —

que ouve obsessivamente desde

criança —, ou à guitarra portuguesa

de Carlos Paredes. Em todos os ca-

sos, de forma mais ou menos explí-

cita, Sir Richard Bishop viaja pela

guitarra embalado por musicalida-

des alheias, mas sem se propor in-

terpretar estes repertórios em evo-

cações copistas. “São músicas que

parecem viver dentro de mim e que

tento tirar cá para fora, recriando

ambientes”, explica. “A música de

Django Reinhardt, por exemplo,

causou-me uma impressão tão du-

radoura que tento tocá-la de tempos

a tempos, mas falhei sempre. O que

me mostrou que essa inspiração po-

de servir para fazer algo diferente,

no contexto da minha música. É ape-

nas uma questão de viver no meio

desses sons para ver o que produz

em mim.”

Até em relação aos ragas indianos,

o trabalho de investigação que Sir

Richard Bishop diz ter levado a cabo

nas várias viagens à Índia ao longo

dos anos resume-se a aparecer, sen-

tar-se e ouvir o mais possível, ele-

vando-se a uma espécie de receptá-

culo vivo e ambulante. “Não me

interessa o academismo porque há

regras rígidas para fazer isto ou aqui-

lo correctamente”, reconhece. “E

já há muitas pessoas que estudam

anos e anos para tocar exactamente

como deve ser tocado.” Por isso, tal

como fez no tema âncora do recen-

te The Road to Siam, a sua interven-

ção limita-se a responder livremen-

te aos estímulos absorvidos. Na Tai-

lândia, em Novembro passado, tal

como hoje no Passos Manuel (Porto)

e amanhã na Zé dos Bois (Lisboa),

onde se apresenta depois do con-

certo de ontem em Ourém, Sir Ri-

chard Bishop começa a tocar sem

pensar no quê. Os dedos ditam o

caminho e a partir do instante em

que reconhece o território para on-

de foi levado, o cérebro tenta inter-

vir e sugerir desvios. Mas, na verda-

de, são mesmo os dedos que man-

dam. Quando a noite corre bem,

Bishop não lhes perde o rasto.

Gonçalo Frota

Umas mãos do diabo

18 | ípsilon | Sexta-feira 16 Maio 2014

A ideia era antiga. Queria

criar um álbum a partir de

20 discos escolhidos por

alguém a partir da sua co-

lecção particular, recorren-

do a técnicas de sampling

e colagem. Quem nos conta a histó-

ria é D-Mars, luso-croata que viveu

muitos anos em Portugal — deixou

a sua marca na alvorada do hip-hop

com os Zona Dread e depois com os

Micro, ao lado de Sagas e Nel’ Assas-

sin, antes de se projectar em nome

próprio, ou com as identidades de

Rocky Marsiano ou Double D Force,

na editora Loop Recordings que co-

fundou — e que há seis anos vive em

Amesterdão.

“No ano passado andava à procu-

ra de novos desafios como Rocky

Marsiano e lembrei-me de voltar a

essa ideia”, diz-nos. Para a concre-

tizar contactou um velho amigo, o

jornalista e crítico de música Rui

Miguel Abreu, também conhecido

pela faceta de coleccionador, desa-

fiando-o a escolher duas dezenas de

discos. Ele trataria de criar um ál-

bum a partir daí.

“Quando fui a casa dele buscar os

discos não fazia a mínima ideia do

que ele tinha seleccionado e foi uma

surpresa completa quando percebi

que havia escolhido discos dos países

africanos de expressão portuguesa.

Não estava à espera. Mas assim que

ele me mostrou os discos, de imedia-

to, na minha mente, o disco e o con-

ceito começaram a tomar forma.”

Na sua maioria eram discos da dé-

cada de 1970 — de Angola, Cabo Ver-

de ou Moçambique, alguns pré e

outro pós-independência —, que fo-

ram trabalhados de formas diferen-

ciadas. “O disco foi feito em três épo-

cas diferentes do ano passado e com

abordagens distintas”, recorda, alu-

dindo ao facto de haver recriações,

temas feitos à base de colagens e da

introdução de elementos de percus-

são, e ainda outros criados a partir

de dinâmicas rítmicas estabilizadas

por ele. “O Rui [Miguel Abreu] deu-

me os discos em Julho do ano passa-

do e depois fui logo para uma ilha na

Croácia, de férias, e foi fabuloso, por-

que ali a sonoridade tropical fazia

todo o sentido. Mais tarde, em Outu-

bro, trabalhei a partir do meu estúdio

em Amesterdão.”

O resultado final é excitante. Sur-

preendente pela simplicidade, pela

leveza e pela eficácia, com ritmos,

harmonias ou vozes resgatadas a

mornas, coladeras ou funanás, re-

criadas por entre técnicas do hip-

hop, elementos rítmicos dancehall,

propriedades jazzisticas ou compo-

nentes disco ou afro-beat. Apesar

de já ter havido outras experiências

de filosofia algo semelhante (como

os Batida), o enquadramento final é

singular e refrescante.

Alguns temas parecem mais anco-

rados no balanço do hip-hop, como

Meu kamba, Irri birri ou Suave. Ou-

tros — como Psycho baio, Esse mam-

bo, Tuta ou Dançante — constituem

um irresistível convite à dança e à

insinuação física, enquanto Bernie,

nha mano, mantém um pouco do seu

travo melancólico original, numa re-

lação intuitiva, democrática e des-

complexada entre músicas africanas

e batimentos cardíacos urbanos.

Festa em palco“Quando comecei a utilizar técnicas

de sampling, recorri aos discos bra-

sileiros da minha mãe, porque ela

havia crescido no Brasil”, recorda

D-Mars, tentando explicitar os seus

motivos de inspiração ao longo dos

anos, que passaram pelo jazz, pela

soul, pelo disco ou pelo funk, sem-

pre com o hip-hop no foco. Agora é

a música angolana ou de Cabo Verde

dos anos 1970. “Lembro-me de ouvir

alguns destes discos há dez anos”,

diz, “mas desta vez ouvi-os com ou-

tra sensibilidade, porque entretanto

também cresci como compositor e

estou mais aberto a outros sons, e

não apenas soul ou funk.”

Até agora, na pele de Rocky Mar-

siano, havia lançado quatro álbuns

(The Pyramid Sessions, de 2005, Out-

side The Pyramid, de 2008, Back To

The Pyramid, de 2010, e Music For

All Seasons, de 2013), sendo que os

dois primeiros eram muito marca-

dos pela relação fusionista com o

jazz, o terceiro com a soul e o funk

e o quarto com a música brasileira.

Agora que a música africana se atra-

vessa no seu caminho, isso provo-

cará diferenças na forma como se

revela em palco: “No dia 23 vou to-

car no OutJazz, em Lisboa, ainda

com a formação habitual, com o An-

dré Fernandes e o João Moreira, mú-

sicos de jazz. Mas estou já a preparar

este álbum para ser tocado ao vivo

e aí vou colaborar com outros mú-

sicos, noutro formato. Vou querer

introduzir uma dimensão de festa

em palco. Não será apenas uma ses-

são de improviso. Seria um erro não

tentar isto ao vivo.”

O último álbum de Rocky Marsia-

no, do ano passado, ou a compilação

Lisbon Bass, lançada na sua mais re-

cente editora, a Adam and Liza, qua-

se não tiveram divulgação em Por-

tugal, acabando por obter visibili-

dade no Japão ou na Holanda, mas

desta feita vai ser diferente. Meu

Kemba será editado no próximo dia

26 e o músico até já está a pensar

num novo álbum.

Enquanto isso não sucede, desdo-

bra-se por várias actividades. Duran-

te o dia, trabalha numa empresa

especializada em licenciamentos de

música. À noite, principalmente aos

fins-de-semana, desdobra-se como

DJ — seja como Marko Roca, numa

linha mais tecno, em cidades como

Berlim, ou como Rocky Marsiano,

numa veia mais soul e funk.

O tronco comum de todas estas in-

fluências parece continuar a ser o

hip-hop que abraçou no final dos

anos 1980. Inspirou-se nas suas téc-

nicas e formas de operar. E o olhar

transversal que mantém sobre a mú-

sica actual também foi marcado por

uma estrutura hip-hop, a partir da

qual todas as ramificações parecem

possíveis. Próxima paragem: África.

Dêem-me 20 discos e dar-vos-ei um universo de sons. É Meu Kamba, novo álbum de Rocky Marsiano, criado a partir da colecção de Rui Miguel Abreu.

Vítor Belanciano

Deixar África entrar nesse corpo

mmmmm

Rocky Marsiano

Meu Kamba

Adam and Liza

ípsilon | Sexta-feira 16 Maio 2014 | 19

Os Black Bombaim uniram-se aos La La La Ressonance e criaram um disco alucinante que deu brado lá fora; depois, gravaram Far Out, onde Africa II brilha num caos prog.

Copos e jantares: eis “o melhor

método para fazer música”, segun-

do TóJó. É uma abordagem à com-

posição mais relaxada e que está de

acordo com o mote do projecto. “O

facto de o disco ser uma colabora-

ção retira-nos a todos muita pressão.

De certa forma é uma brincadeira,

embora uma brincadeira que levá-

mos a sério. Agora nós lançámos Far

Out, eles estão a compor o novo de-

les, podemos até dar uns concertos,

mas o projecto acaba aqui e da me-

lhor maneira.”

Tal e qual o nome das canções in-

dica, e à excepção de Kraut, é um

álbum em que pequenas figuras me-

lódicas de guitarra ou de saxofone ou

de sintetizador se vão unindo, primei-

ro aos círculos e depois aos encon-

trões, até a bateria explodir e cada

tema entrar em combustão. A síntese,

como mencionado, chega à perfeição

em Kin, que é um medley entre um

tema dos La La La e outro dos Black

Bombaim: um filho perfeito.

Far Out surgiu imediatamente a

seguir, e seguiu um registo diferen-

te, embora influenciado pelo ante-

rior. “Black Bombaim, por norma,

é escrito em ensaio: vamos tocando

e quando paramos decidimos qual

a parte melhor que fizemos e a par-

tir daí começamos a trabalhar. É por

isso que as nossas músicas são lon-

gas [África II tem 16 minutos, a faixa

sem título tem 18]: precisamos que

um tema assente e a malta se habi-

tue e só depois dessa duração, que

nos põe naquele estado de nos dei-

xarmos levar pela música, quase

hipnotizado, é que surge uma mu-

dança de que não estás à espera e

perguntas ‘Uou, que foi isto?’”, es-

clarece TóJó.

Talvez por influência da convivên-

cia com os La La La, Far Out afasta-se

um pouco do que os Black Bombaim

fizeram antes. “Demos por nós a sen-

tir falta de mais qualquer coisa — e

por isso convidámos pessoas para

tocarem connosco. Não é que nos

sentíssemos limitados os três, mas

tivemos vontade de acrescentar coi-

sas. Estar com nove foi inspirador.”

Os Black Bombaim chamam ao

que fazem heavy-psy. Estão cons-

cientes de que agora o psicadelismo

está na moda. “A ideia de viagem,

esse termo que agora é usado todos

os dias a torto e a direito, é impor-

tante. A ideia é conseguires moshar

e viajar mentalmente ao mesmo

tempo.” Trata-se, explicam, de “pe-

gar numa música do Jimi Hendrix,

escolher um solo e fazer do solo to-

da a música”: “Ao ver os Earthless

há uns anos, percebemos que era

isso que andávamos a fazer nos en-

saios mas tínhamos medo de levar

para o palco. Éramos mesmo miú-

dos quando fizemos o primeiro dis-

co. E depois de ver os Earthless per-

demos o medo.” Basta atentar no

delírio caótico de Africa II para per-

ceber que hoje dominam essa lin-

guagem em que “há rock mas não

há canções e se estica o mais que se

pode a ver no que dá, mas sem pre-

tensiosismo”.

Resumindo: “Não somos espe-

ciais, estamos só a curtir”. A segun-

da parte é verdadeira, a primeira é

falsa.

João Bonifácio

Duas viagens na montanha-russa

Alguma vez andaram numa

montanha-russa? O carro

desce os carris a uma ve-

locidade que parece in-

controlável e quando che-

ga ao chão os carris ini-

ciam uma curva perfeita na direcção

dos céus, que, no seu ponto mais

alto, dá aos passeantes uma sensa-

ção de queda livre usualmente re-

cebida com um misto de pavor e

euforia.

Agora acreditem se quiserem: Kin,

a terceira faixa de Black Bombaim &

La La La Ressonance, resultado da

colaboração entre os Black Bombaim

e os La La La Ressonance, é uma ex-

periência ainda mais extremada. É

que na montanha-russa tudo é cal-

culado de acordo com a lei da con-

servação da energia e sabe-se que

para o carro não cair antes de chegar

ao topo da montanha é preciso que

o quadrado da velocidade do carro

no momento em que chega ao chão

seja igual a cinco vezes a gravidade

vezes o raio da curva. Em Kin não se

cai — sai-se disparado: é o equivalen-

te à experiência de estar na Arca de

Noé durante o dilúvio, condensada

em 13 minutos. Ora atentem nos no-

mes das canções que compõem o

álbum: Bruce Lee, Kraut, Kin e Tsu-

nami. Claramente estão a avisar-nos

que o conteúdo é explosivo. E não

acaba aqui: os Black Bombaim edi-

tam em simultâneo mais um LP, Far

Out, composto por duas faixas, uma

nomeada Africa II e outra sem título

— que vai por caminhos aproximados

aos do que gravaram com os La La

La, embora mais no osso e com

maior profusão de riffs de guitarra.

Que raio passou pela cabeça des-

tes moços? Que raio andam a pôr na

água em Barcelos, cidade de onde

são originárias as duas bandas?

Quando TóJó, baixista dos Black

Bombaim, nos atende o telefone,

diz-nos a rir que este acontecimen-

to simultâneo é “estúpido”: “Em

termos de marketing não se pode

fazer uma coisa destas. E ainda por

cima o nosso primeiro LP foi agora

reeditado nos EUA, pelo que são três

discos ao mesmo tempo. Mas que

se dane: não vamos ficar com discos

na gaveta.” Não só não ficam com

discos na gaveta como ainda por ci-

ma eles vão para outras prateleiras:

Terceiro vai ser editado nos EUA.

Entretanto, lá fora, o disco a meias

com os La La La é laudado: a The

Quietus, por exemplo, adorou.

Far Out foi o segundo dos dois a

ser feito. A ideia para o primeiro par-

tiu dos organizadores do Milhões de

Festa e consistia em pôr as duas ban-

das a darem um concerto conjunto

no festival. “Em Janeiro do ano pas-

sado começámos a ensaiar e logo

nessa altura achámos que era tonto

deixar isto só para o concerto.”

Sem medoBlack Bombaim e La La La Resso-

nance pertencem a duas gerações

diferentes de músicos de Barcelos,

e por isso não eram “amigos” no

sentido convencional do termo (pré-

Facebook): “Nós éramos os putos,

havia uma diferença geracional. Mas

tinha tudo para dar certo, porque o

teor psicadélico está presente em

ambas as bandas.”

Como é comum nestas circuns-

tâncias, “o primeiro ensaio foi com

todos a fazerem barulho e cada um

à procura do seu lugar”. Os La La La

“entraram numa onda mais pesa-

da”, enquanto os Black Bombaim

estavam numa “mais espacial”. De-

pois, “com tanta gente a tocar” (no-

ve elementos, ao todo), chegaram à

conclusão de que tinham de fazer

“um som mais simples, com mais

dinâmica, mas mais calmo”. Na prá-

tica isto implicou que os Black Bom-

baim, que disparam riffs por tudo e

por nada, os pusessem “muito de

parte, para haver espaço”.

O disco acabou por ser escrito

“nuns oito ensaios” e em “montes de

jantares e copos” em que se decidiam

coisas como “amanhã vamos fazer

uma música mais kraut, com baterias

simples e riffs espaciais”. Assim sur-

giu o segundo tema, Kraut.

mmmmm

Black

Bombaim

Far OutLovers &

Lollypops

JOA

NA

CA

STEL

O

20 | ípsilon | Sexta-feira 16 Maio 2014

Há uma diferença substan-

cial que distingue Suite nº1:

ABC, de Joris Lacoste, da

miríade de espectáculos

que nos últimos anos têm

enxameado os palcos com

statements sobre o poder político da

palavra. É que a política, aqui, não

tem lugar. Ou, pelo menos não no

sentido reivindicativo, de marcar

uma posição, de querer agitar cons-

ciências, de pretender fazer-se a um

desejo de participação que nunca

abandona a passividade.

Aqui, com estas vozes e estes cor-

pos, o discurso é outro. Diz Joris

Lacoste, prolífico defensor da pa-

lavra como matéria viva, que Suite

nº1: ABC, o espectáculo de abertu-

ra do Alkantara Festival (4ª, dia 21,

e 5ª, dia 22, no São Luiz Teatro Mu-

nicipal, em Lisboa) nos ensina a

ouvir, como se antes da acção — ou

em preparação para a acção — a es-

cuta fosse o gesto mais importante.

Em palco, uma massa de actores,

organizada em inventivas disposi-

ções que rejeitam a normalização

dos diferentes discursos através de

um empenho na interpretação que

tem mais a ver com ética do que

dramaturgia. Lacoste explica que

o texto surgiu do encontro de um

conjunto de fontes diversas, retira-

das da Internet ou registadas nas

ruas e em outros locais públicos,

apanhadas em filmes e programas

de televisão — juntas, todas essas

palavras funcionam como uma es-

pécie de cápsula dos tempos mo-

dernos. “Há muitas texturas e co-

loraturas que funcionam como

ganchos, prendendo a atenção de

quem ouve”, argumenta. Mas o que

se ouve é menos do que aquilo que

se vê porque, aqui, ver implica uma

concentração no som e um enfoque

num dispositivo sonoro que é, so-

bretudo, intuído.

“Desde o início, com a escrita,

houve um desejo de identificar, e

depois compreender, quais os ele-

mentos que melhor poderiam servir

a partitura. O que as coisas signifi-

cam depende não só do modo como

são ditas mas também do modo co-

mo são ouvidas”, continua o ence-

nador. Condicionando a palavra a

um uso, Suite nº1: ABC, que é parte

do projecto mais vasto Encyclopédie

de la Parole, tenta perceber que sen-

tido damos ao que escutamos. Na

altura da estreia do espectáculo em

Paris, em Novembro passado, Joris

Lacoste explicava que “um dos efei-

tos mais perturbadores” surgia da

“deslocação das palavras para um

contexto teatral, onde se produz

uma dissociação entre o contexto e

o conteúdo”. E acrescentava, em

entrevista incluída no programa,

que, automaticamente, “somos le-

vados a escutar de modo mais aten-

to formas de discussão, de sedução,

de explicação, de afirmação até en-

tão escondidas pelo nosso insaciável

desejo de perceber o sentido do que

é dito”.

Ouvir antes de falarPorque em Suite nº1: ABC “as pala-

vras são tratadas como se fossem

uma partitura exacta, revestem-se

de uma estranheza que nos permi-

te ouvi-las de outra forma”. Joris

Lacoste procurou não a heteroge-

neidade dos discursos, ou mesmo

das vozes, mas antes colocar-se no

ponto imediatamente posterior à

emissão de um discurso, o momen-

to da escuta: “O modo como cada

um fala e ouve está ligado ao modo

como cada um interpreta o que ou-

ve”, insiste. Se daqui se puder infe-

rir um sentido político para a pala-

vra, porque se relaciona com a pos-

s ib i l idade de intervenç ão

individual que nos está reservada

enquanto seres pensantes, então

Lacoste pede que esse sentido seja

mais intuitivo do que reactivo. É por

isso que a escrita, criada sob prin-

cípios semelhantes aos de uma par-

titura musical (um processo coor-

denado por Nicolas Rollet), consis-

te no equilíbrio entre interpretação

e repetição, através da “reprodução

de um conjunto de palavras grava-

das sem que isso signifique imitar

pessoas ou representar situações,

e menos ainda criar personagens”.

Foi o que quis fazer experimentan-

do diferentes modos de interpretar

a célebre frase de Taxi Driver, “Are

you talking to me?” — como um con-

vite à atenção, através de uma co-

Na próxima quarta-feira, Joris Lacoste abre o Alkantara Festival com Suite nº1: ABC — e muitas pessoas em palco a falarem ao mesmo tempo.

A palavra ao

Tiago Bartolomeu Costa

poder

“Somos levados a escutar de modo mais atento formas de sedução, de explicação, de afirmação até então escondidas pelo nosso insaciável desejo de perceber o sentido do que é dito”Joris Lacoste

ípsilon | Sexta-feira 16 Maio 2014 | 21

reografia cénica que explora as to-

nalidades da voz, os seus efeitos no

corpo, e a experiência de partilha,

primeiro entre os intérpretes e, de-

pois, com o público.

É aqui que entram os convidados

especiais que, em todas as passa-

gens, de Seul a Roterdão, de Nova

Iorque a Nyon (exemplos contras-

tantes apenas para dar noção da

escala e do impacto de um projecto

sobre a palavra em contextos lin-

guísticos muito diferentes), são cha-

mados a interpretar o espectáculo

não para lhe darem uma moldura

regional mas para ampliarem a di-

mensão da palavra enquanto ele-

mento unificador. A lengalenga tra-

dicional que dizem, juntamente com

os intérpretes — todos de diferentes

nacionalidades —, brinca com as pa-

lavras, do mesmo modo que o se-

gundo excerto usado, uma gravação

de um noticiário, explora a dimen-

são pretensamente histórica (e por

isso tendencialmente ficcional) que

um texto ganha quando lido a pos-

teriori.

Joris Lacoste reforça que estes

participantes, diferentes em cada

país, possibilitam não que o espec-

táculo pisque o olho à comunidade

que se senta na plateia, mas que fi-

que sujeito ao risco do improviso,

da reacção e do desconforto. “Não

somos conscientes da forma das pa-

lavras”, diz Lacoste, que dá o exem-

plo da respiração como um modo

primário de comunicação: “Há qual-

quer coisa que se joga quando duas

pessoas respiram em simultâneo.”

O trabalho combinado entre o silên-

cio, a palavra, o corpo e o olhar po-

tencia o surgimento intuitivo de um

espectáculo onde “se expõe o voca-

bulário de base”: “Brincamos às

traduções ou ao canto, na alternân-

cia de línguas e de registos; falamos

não para falar mas pelo prazer de

dizer, pelo gosto pela língua.” E, no

meio de tudo isto, “as rupturas, as

pistas falsas, que não são se não des-

vios que suspendem ou perturbam

[o que ouvimos]”. É esse desejo de

não-normatividade que distingue

Suite nº1: ABC dos espectáculos que

levam as massas para o palco mas

não deixam que as ouçamos.

TIBO

R BA

CH

RATY

Missão de Antoine

Defoort e Halory

Goerger neste espectáculo:

criar uma nova história do

mundo

É costume dizer-se que há os

que têm graça e os que são

engraçados. Mas depois de

os termos visto a fazer

música com plantas, a

dinamitar o mundo a partir

de acordes de guitarra, a exlorar a

diversidade narrativa e discursiva

no encontro entre as artes

plásticas, a ciência e o teatro,

ainda não sabemos em que

categoria colocar Antoine Defoort

e Halory Goerger, os

multifacetados performers e

encenadores franceses que

parecem a resposta “belga” ao

britânico humor deadpan. Desde a

primeira vez que nos cruzámos

com eles, em 2005, numa salinha

do Théâtre de la Balsamine, em

Bruxelas — numa versão ainda

primária de La La Ré, onde se

divertiam a brincar com O

Desprezo, de Jean-Luc Godard —

até Germinal, o blockbuster que os

levou a tudo quanto é lado e agora

chega a Lisboa, vai um percurso

que procura construir outros

modos de comunicar.

Germinal, que veremos no

Alkantara na próxima semana

(dias 23 e 24 às 21h30; dia 25 às

19h, no Maria Matos) talvez seja o

momento em que a dupla

conseguiu finalmente chegar à

utopia desse novo mundo que já

havia demonstrado, por exemplo,

em Cheval (2007) e &&&&& & &&&

(2008), com passagens pelas

edições 2010 e 2012 do festival.

Começar de novoAntoine Defoort

e Halory Goerger

regressam a Lisboa

com Germinal.

Parece ser o acertar

do passo com um

outro mundo — mais

teatral, logo mais

real.

Agora tudo parece ser um

bocadinho diferente. Os rapazes

não se dirigem directamente ao

público, não o convocam como se

dele fizessem depender o sucesso

(íamos escrever o truque, a ilusão,

mas eles não parecem rir de si

mesmos da mesma forma) deste

espectáculo com que ambicionam

criar uma nova história do mundo.

Entre a perplexidade e o

entusiasmo, diziam no Verão

passado, quando o espectáculo se

apresentou no Festival de

Avignon, em França, onde o

Ípsilon o viu: “O que nos

interessava não era pôr em causa a

história do mundo, mas modelar

alternativas que partissem,

realmente, do zero, fazendo

alusão a uma série de momentos-

chave.” O projecto ambicioso de

contar a história do mundo surge

assim condicionado,

reconhecendo os seus limites. É

como se a ficção tomasse conta da

realidade para tentar perceber de

que forma a realidade é, também

ela, uma construção. São os

próprios Defoort e Goerger a

assumir que Germinal é um

espectáculo de teatro feito por

artistas plásticos — o que, não

sendo uma novidade, não é um

detalhe de somenos importância.

“Em boa verdade, não inventamos

nada. A luz que descobrimos, por

exemplo, é a luz teatral. A matéria

que inventamos é o pensamento.

As primeiras interacções nascem

de uma necessidade de

comunicação entre indivíduos.” E

por aí fora, até o teatro acreditar

de tal forma que é a realidade que

o público, antes meramente

espectador, se transforma, pelo

medo com que reage ao que se vai

descobrindo em palco. “O que

inventámos neste espaço

tipicamente teatral é determinado

por um conjunto de

comportamentos e, assim, torna-

se uma linguagem comunicante e

um sistema de jogo: rapidamente

o que era um espectáculo sobre a

criação do mundo torna-se,

paralelamente, um projecto sobre

a história do teatro.”

Se Germinal existe para lá da

margem de improvisação que

caracterizava os espectáculos

anteriores, em que se fingia

inusitada mas rapidamente era

integrada, tal parece dever-se à

responsabilidade de determinar o

que é da ordem da ficção e o que é

da ordem da realidade. Há um

lado anárquico que, se legitima a

destruição do cenário, é

compensado por um desejo de

clareza e de comunicação que

antes não existia. “Pela primeira

vez temos um texto escrito”,

confessam. Esse catálogo de

situações exploráveis deu origem

aos fragmentos que testam em

palco. O que daqui resulta não é

tanto um teatro reivindicativo

quanto um espaço de observação

e de aprendizagem. É como se

quisessem voltar ao início — mas

agora pondo de lado o cinismo e

ouvindo o que está à sua volta.

T.B.C.

BEA BORGERS

22 | ípsilon | Sexta-feira 16 Maio 2014

É preciso passar para lá do es-

panto e da surpresa para en-

contrar a metáfora que Amit

Drori quis criar com Savanna:

A Possible Landscape, espec-

táculo de 2010 que o Festival

Internacional de Marionetas e For-

mas Animadas traz ao Teatro Nacio-

nal D. Maria II amanhã, sábado e

domingo. Em palco, os autómatos

com a forma de elefantes, tartarugas,

pássaros e cabras ocupam, e for-

mam, a paisagem que este encena-

dor e marionetista israelita quer

transformar em parábola sobre a ori-

gem da vida. Mas, para lá do espanto,

o que vemos é a intimidade de uma

relação filial — um rapaz que quis re-

cuperar a memória da mãe através

de um piano que aprendeu a odiar.

E que depois reconstruiu, sob a for-

ma de apaixonantes animais que ex-

pressam emoções a partir de auto-

matismos mecânicos. Parece estra-

nho — mas é uma experiência feita à

escala da expectativa.

Drori, filho de um arquitecto e de

uma especialista em cultura medie-

val, é um dos nomes mais em voga

no circuito do teatro de marionetas:

os seus espectáculos têm sido cria-

dos, em residência ou em co-produ-

ção, nos mais importantes festivais

e teatros da Europa, como o Barbi-

can, em Londres, ou o Festival de

Charleville-Meziéres, em França, a

meca das marionetas. No perfil que

lhe é traçado pelo programador do

Barbican, explica-se que a influência

dos pais justificou a inclusão de ele-

mentos autobiográficos nos seus

espectáculos, descritos como pro-

cessos intermináveis. “Cada criação

amadurece lentamente fazendo com

que este jovem encenador israelita

um homem poder preparar a sua

chávena de chá”, explicava num dos

vídeos do espectáculo para falar da

possibilidade de extensão da iden-

tidade proporcionada pelos autó-

matos. Em Savanna: A Possible Lan-

dscape, os animais existem num

diálogo estreito com os cinco mani-

puladores, e a história de fundo de

Amit Drori com o piano da sua mãe

é transferida para a relação de afec-

to entre os animais-robô e os mani-

puladores, mas também entre os

próprios autómatos.

O que Amit Drori propõe é que

possamos integrar como identidade

de um autómato as nossas expecta-

tivas sobre o potencial narrativo do

objecto, alimentando assim aquilo

que define como “uma alegoria so-

bre a natureza humana” a partir de

objectos que foram sempre vistos

como reais. A equipa do encenador

demorou quase dois anos até con-

seguir dar forma emocional a estes

animais, explica num documentário

sobre o processo, disponível no site

da companhia. “Ensaiámos manei-

ras de encontrar as emoções ade-

quadas para cada uma das criaturas.

Foram dois anos de trabalho diário

que quase se tornou uma obsessão.

Queríamos que as pessoas as vissem

como algo pessoal.” O maior desa-

fio, explica, foi transformar os seus

autómatos em máquinas afáveis ao

longo do espectáculo. “Estamos ro-

deados de máquinas, são produzi-

das em massa nas fábricas, e são

frias e impessoais. Cada uma das

nossas máquinas é única, feita com

cuidado e atenção. Nunca quisemos

criar uma ilusão: estas máquinas

não são realistas”. E, no entanto, a

emoção que provocam é.

Os autómatos também sentem, supõe Amit Drori. Para fechar a boca de espanto, ei-lo fi nalmente por cá com Savanna: A Possible Landscape.

Tiago Bartolomeu Costa

Autómatos com sentimentos

demore anos até completar um es-

pectáculo. Foi através de um envol-

vimento cada vez mais intenso com

a mecânica que conseguiu transfor-

mar os seus animais em objectos

robóticos autónomos.”

Amit Drori diz que as suas mario-

netas são caseiras — chama-lhes “es-

culturas ciganas” pelo modo como

parecem inventar soluções a partir

das suas próprias necessidades.

“Criamos robôs por razões poéti-

cas”, explica sobre as razões que o

levam, desde há anos, a perseguir

modos de composição narrativos

que querem ir mais longe do que o

espanto e a surpresa. “Temos como

garantido que o homem é capaz de

fazer, com um simples gesto, coisas

que são óbvias. Mas quando são os

objectos que se movem não é pos-

sível prever o que podemos esperar

deles, porque não é evidente que

uma máquina possa sentir ou sequer

ter sentimentos.”

As emoções adequadasPorque os robôs estão muitíssimo

expostos e a sua mecânica é visível

durante o espectáculo, Amit Drori

distingue o efeito da técnica: “Nun-

ca quisemos criar uma metáfora.

Aquilo que o espectador vê não é a

ilusão de um elefante na savana,

mas sim um elefante-robô na sava-

na. É outra coisa.” Mas nem por isso

menos emocional. O objectivo é ou-

tro e tem a ver com identidade, co-

mo já havia acontecido antes com

Terminal (2010), um ensaio biográ-

fico acerca do célebre físico britâni-

co Stephen Hawking que devolvia a

liberdade a essa inteligência confi-

nada a uma cadeira de rodas. “A li-

berdade existe na possibilidade de

MA

RIO

DEL

CU

RTO

MA

RIO

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CU

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M/12�������������� �����

Tradução� ��� ������ ��������� Encenação e Adaptação� ����� ������� ������� Cenário e ��������������������������� �� ����������������������������������������������������Interpretação������������������ �!���������� ��"��������� ������#�������$������������������������������#������%&

15 DE MAIO A 1 DE JUNHO

TEATRO DO BAIRRO ALTO De 4ª a Sábado às 21.00h Domingo às 16.00h�&�(������������������)*&� )+,-.+03�������� (��4�+)560),),����477888&������.���������&��� �����4��9�:������.���������&��$������������"��;�<� �4�FNAC, Worten, El Corte Inglês, Abreu, www.ticketline.pt

Co-produção (������ �������=�������!�����%�(��������������

*����

ípsilon | Sexta-feira 16 Maio 2014 | 23

Cine

ma Estreiam

A guerra dos monstrosUm blockbuster com mais

cabeça do que a maioria, fiel

à dimensão metafórica da

crianção original — mas que

não sabe o que fazer com as

suas personagens.

Jorge Mourinha

Godzilla

De Gareth EdwardsCom Aaron Taylor-Johnson,

Ken Watanabe, Elizabeth Olsen

mmmmm

Faz agora 60 anos, um pequeno

filme de monstros japonês dava

o pontapé de saída para uma das

personagens de maior

longevidade do cinema

fantástico — e desde o princípio

que Gojira, aliás Godzilla, aliás O

Monstro do Oceano Pacífico (para

lhe dar o título que esse primeiro

filme teve em Portugal), tem

resistido a quaisquer tentativas

de “ocidentalização” (foi, de

resto, por aí que a esquecível

Godzilla, de Roland Emmerich,

em 1998, criou tanto anti-corpo.

A primeira prova de inteligência

desta nova tentativa é a de se

instalar na sequência directa do

original de 1954, regressando à

origem oriental do monstro

(tudo começa no Japão e nas

Filipinas) e ao seu simbolismo

caucionário.

Entregue ao inglês Gareth

Edwards, cuja estreia notada com

Monsters/Zona Interdita (2010)

situava a reverência pelos filmes

de monstros clássicos num

mundo reconhecivelmente

quotidiano, Godzilla ejecta por

completo o humor piadético que

parece ser de rigor no moderno

blockbuster para perseguir a

seriedade da dimensão

metafórica deste monstro de uma

outra era, originalmente

acordado pelo poder nuclear

desencadeado pelo homem.

Quem esperar de Godzilla a

proverbial porrada de matar

bicho entre monstros gigantes

não sairá desiludido, mas será

certamente surpreendido pelo

subtexto apocalíptico de uma

civilização tecnológica

confrontada com poderes

telúricos contra os quais não tem

defesa — estamos longe da série B

popular da Batalha do Pacífico de

Guillermo del Toro, por exemplo.

O Godzilla de Edwards responde

às instabilidades

contemporâneas, evoca ao

mesmo tempo Fukushima e o

tsunami de 2004 no Oceano

Índico, as alterações climatéricas

e os acidentes industriais com

uma naturalidade quase

ostensiva. No momento em que o

Cosmos de Neil de Grasse Tyson

nos fala do nosso lugar no

universo, o filme questiona como

pode a natureza reagir à

arrogância do ser humano, e fá-lo

de modo muito menos

descartável do que é costume nos

“filmes pipoca”.

Nos seus melhores momentos,

Godzilla recria o terror

existencial, quase

incompreensível, que Spielberg

aperfeiçoou na primeira meia-

hora da sua Guerra dos Mundos.

Fá-lo, sempre, do ponto de vista

das personagens humanas — que,

infelizmente, têm uma total

ausência de espessura. O “herói”

Aaron Taylor-Johnson é

perfeitamente letárgico, é

criminoso ter Elizabeth Olsen,

Sally Hawkins e Juliette Binoche

sem lhes dar nada para fazer. É

por aí que esta Godzilla

resolutamente “à moda antiga”

(mais Spielberg via Abrams do

que Joss Whedon) perde pontos

— por aí e por um 3D

desnecessário. Mas a força e a

grandiosidade das imagens que

Gareth Edwards cria e a

inteligente gestão do ritmo do

filme (recusando a mera

demonstração tecnológica a torto

e a direito) chegam para

confirmar que há mais cabeça em

Godzilla do que na actual linha de

montagem de super-heróis que

parece ter sufocado o cinema

mainstream americano.

nome de Philippe Garrel, que há

décadas se tem insistentemente

autobiografado, encontrando

nesse mês de Maio um ponto

nevrálgico da autobiografia. Vindo

relativamente pouco tempo

depois de um filme de Garrel que

a este respeito é crucial (Os

Amantes Regulares, filme de 2005,

que para mais “revelou” Garrel a

muita gente e se tornou uma das

suas obras mais populares), há

que ter um certo respeito pela

coragem de Olivier Assayas em

trilhar um caminho semelhante:

Depois de Maio é a sua

autobiografia com Maio de 68 ao

fundo. “Ao fundo” porque, na

verdade, já passou: a acção situa-

se em 1971 (quando Assayas tinha

16 anos) e o espírito de Maio, tal

como o filme o mostra, vive

A leveza com que Assayas trata a violência é um dos aspectos que mais limitam este Depois de Maio

Nos seus melhores momentos, Godzilla recria o terror existencial da Guerra dos Mundos de Spielberg

O museu da adolescênciaÉ uma pena que o que mais

tenha interessado Olivier

Assayas seja a fotogenia —

idealizada — do Maio de 68.

Luís Miguel Oliveira

Depois de Maio

Après MaiDe Olivier AssayasCom Clément Métayer,

André Marcon, Lola Créton

mmmmm

Quando se articulam as

expressões “autobiografia” e

“Maio de 68”, costuma-se ir dar ao

fundação carmona e costaEdifício Soeiro Pereira Gomes (antigo edifício da Bolsa Nova de Lisboa)Rua Soeiro Pereira Gomes, Lte 1- 6.ºA/C, 1600-196 Lisboa (Bairro do Rego / Bairro Santos) | Tel. + 351 217 803 003 / 4www.fundacaocarmonaecosta.pt

Parque de estacionamento mais próximo: Hotel SanaMetro: Sete Rios / Praça de Espanha / Cidade Universitária | Autocarro: 31

Exposição: até dia 24 de Maio de 2014Horário: de quarta-feira a sábado, das 15h00 às 20h00 (excepto feriados)

gabinete > panero

Pedro Saraiva

Curadoria: Maria João Gamito

24 | ípsilon | Sexta-feira 16 Maio 2014

Um actor “excessivo”, Nicolas Cage, corporiza a impotência desta América rural e fantasmagórica que Joe dá em apoteose gótica

Jonathan Glazer não tem ferocidade, nem excentricidade, para o corpo de Scarlett Johansson

Jesse Eisenberg, em excelente forma, é um dos trunfos de O Duplo

Veja os trailers das estreias na edição do ípsilon para tablets

agora num grupo de adolescentes

porventura demasiado novos para

terem tido real participação na

agitação de três anos antes.

Esta espécie de teimosia, mais

ou menos irracional e já um

pouco “desligada”, é um dos

temas evocados pelo filme,

sobretudo quando um acto de

“protesto” descamba

acidentalmente em violência e

obriga os miúdos protagonistas à

errância para se furtarem à

Justiça. Ao mesmo tempo, a

leveza com que Assayas a trata é

um dos aspectos que mais limitam

Depois de Maio. É um filme

demasiado embevecido consigo

mesmo para ser capaz de olhar as

coisas com alguma frieza. A

reconstituição da época é credível

e, num certo sentido,

irrepreensível, mas até por isso —

o glamour dos decores, do

guarda-roupa, dos penteados —

vê-se Depois de Maio com a

sensação de que o que lhe

interessa primeiramente é a

fotogenia, idealizada, do Maio de

68 ou, mais genericamente, da

rebeldia juvenil. Uma forma de

superficialidade, portanto, que

não anda longe de se encerrar,

sem qualquer distância crítica,

numa espécie de folclore cultural,

de que são exemplo ainda as

elegantíssimas escolhas musicais

do filme e dos seus protagonistas

(Syd Barrett, Soft Machine…). Não

questionaremos a sinceridade da

memória de Assayas, assim

organizada no seu “museu”

pessoal do Maio de 68, mas este

tratamento, tão auto-

condescendente, articula-se mal

com as contradições e as

complexidades da época, e por

certo com as contradições e as

complexidades da época tal como

outros filmes (e aqui outra vez

Garrel mas não só) a articularam.

Depois de Maio é só um passeio,

pontualmente agradável, bem

feito (demasiado bem feito), mas

onde a suave nostalgia da

adolescência corta toda a

gravidade. No fim, uma metáfora

mostra que o “duplo” de Assayas

foi “escolhido” pelo cinema, e que

essa escolha representa uma

“saída”, ou uma passagem à

frente. Sugerindo, portanto, que

as coisas não se sobrepõem, antes

se vão substituindo umas às

outras. É a derradeira, e capital,

diferença entre Assayas e Garrel,

cineasta que (em Os Amantes

Regulares e em muito mais filmes)

leva uma obra inteira a mostrar

que nada substitui nada, tudo se

sobrepõe, e que o espírito do

Maio de 68 foi, justamente, todas

as coisas (o cinema, o amor, a

política e etc.) integradas,

sobrepostas, no mesmo

movimento.

Angústia existencial

O Duplo

The DoubleDe Richard AyoadeCom Jesse Eisenberg, Mia

Wasikowska, Wallace Shawn

mmmmm

O humorista britânico Richard

Ayoade estreou-se na realização

com Submarino (2010), uma

irreverente história de

adolescentes à procura do seu

lugar no mundo; se O Duplo é

também a história de alguém que

procura o seu lugar no mundo,

é-o numa direcção

diametralmente oposta. Trata-se

de uma adaptação livre,

claustrofóbica e desconfortável,

da novela de Dostoiévski sobre

um zé-ninguém que vê a sua vida

banal ser metodicamente

desfeita pelo seu sósia perfeito.

Ayoade constrói habilmente a

sua teia sufocante, ajudado por

um Jesse Eisenberg em excelente

forma no duplo papel, e pela

cenografia evocativamente

nocturna e sombria de David

Crank, a meio caminho entre o

Brazil de Terry Gilliam e a Cidade

Misteriosa de Alex Proyas, mas

substituindo o surrealismo

escarninho daqueles por uma

angústia existencial asfixiante

que termina num final

opacamente lynchiano. Mas,

algures nesse cadinho de ideias e

referências, Ayoade ensimesma-

se num exercício de estilo,

interessante mas estéril, fugidio

mas derivativo, mesmo que com

qualidades indesmentíveis. J.M.

Continuam

Vida Activa

De Susana Nobre

mmmmm

Susana Nobre passou vários anos

a trabalhar no programa de

“reabilitação” profissional Novas

Oportunidades na zona de Vila

Franca de Xira; durante todo esse

tempo, foi filmando as histórias

pessoais daqueles com quem

lidava, montando-as neste

documentário seco e enxuto que

chega, merecidamente, à estreia

comercial. As múltiplas histórias

que a realizadora vai agrupando

desenham, com atenção e sem

demagogia, um retrato resignado

e triste, um olhar sobre vidas

suspensas que reflecte ao mesmo

tempo a realidade do desemprego

e a atitude economicista dos

empregadores, que desvaloriza a

experiência pessoal e o próprio

orgulho pessoal, que não hesita

em descartar aqueles que ainda

têm muito a dar em nome de um

qualquer resultado (político ou

financeiro) que nada diz a

ninguém — e que, nos seus

momentos finais, revela como

mesmo a “reabilitação” pode

estar condenada. Vida Activa não

se vê com prazer, mas deve ser

visto. J.M.

Joe

De David Gordon GreenCom Nicolas Cage, Tye Sheridan,

Gary Poulter

mmmmm

Um dos temas mais caros ao actual

“cinema independente” americano:

a América rural dada em apoteose

“gótica” (ou apenas grotesca), uma

espécie de comboio-fantasma (ou

comboio de fantasmas) habitado

pela maior violência, real e

simbólica, num percurso aberto

pela combinação, exacerbada e

explosiva, de alusões bíblicas,

álcool, e ressentimentos tão

profundos que se diria virem

directamente de debaixo da terra.

Por natureza, e especialmente no

caso de um filme como Joe, a

subtileza é, neste contexto, uma

noção estranha: tudo “reverbera” e

tudo grita. Mas apesar de tudo o

que o filme de Green tem de

incomodativo, há alguma coisa de

tocante nesse grito (e, de resto,

muito bem corporizada por um

actor tão “excessivo” como Nicolas

Cage, aquilo de mais parecido a

América tem hoje com um

Depardieu), porque o que se grita é

a impotência, e mais do que isso, a

impossibilidade de se voltar a ter

um olhar sobre América

“profunda” com a crença,

humanista em primeiro lugar, que

animou os clássicos e as mais

sublimes visões clássicas da

América rural. É que já não há

estrelas na coroa de ninguém.

L.M.O.

Debaixo da Pele

Under the SkinDe Jonathan GlazerCom Scarlett Johansson

mmmmm

A experiência de Jonathan Glazer

em redor do corpo de Scarlett

Johansson é uma afectação. Pode-

se imaginar que para a actriz deve

haver qualquer coisa de desafiante

em passar um filme a tentar ser

não uma personagem, mas um “it”

— e, na verdade, falhar

completamente. Bowie também foi

uma “it girl” em O Homem que Veio

do Espaço, de Nicolas Roeg (1976), e

esse cineasta e essa tradição do

cinema britânico (e ainda Ken

Russell) são para aqui chamados

para filiar o trabalho do

publicitário e do realizador de

(notáveis) videoclips (Massive

Attack, Radiohead…) que adaptou

o romance de Michael Faber sobre

uma alienígena que anda à caça,

através dos corpos dos outros, da

sua humanidade. Glazer tornava

intrigantemente atmosféricos

pedaços de Birth (2004), a sua

anterior longa-metragem. Em

Debaixo da Pele quer estender a

experiência sensorial por todo um

filme — anulando, como explicou,

os picos e rugosidades de plot do

livro. O resultado é um videoclip

clínico sem música. Até o

voyeurismo pelo corpo de Scarlett

(poderia ser uma forma perversa

de reforçar a condição de “it girl”

de quem ambiciona ser actriz) é

bastante domesticado e serôdio.

Glazer não tem ferocidade para

esse corpo. Nem a visceral

excentricidade, para o bem e para

o mal, de Roeg ou Russell. V.C.

AS ESTRELAS DO PÚBLICO

JorgeMourinha

Luís M. Oliveira

Vasco Câmara

Debaixo da Pele mmmmm – mmmmm

Depois de Maio mmmmm mmmmm mmmmm

O Duplo mmmmm mmmmm –Joe – mmmmm mmmmm

Godzilla mmmmm a –A Lancheira mmmmm mmmmm –As Ondas de Abril – mmmmm mmmmm

Prince Avalanche mmmmm – mmmmm

Sacro GRA mmmmm mmmmm mmmmm

Vida Activa mmmmm mmmmm –

a Mau mmmmm Medíocre mmmmm Razoável mmmmm Bom mmmmm Muito Bom mmmmm Excelente

ípsilon | Sexta-feira 16 Maio 2014 | 25

Disc

osClássica

A hora de GraçaPortentosa gravação de

música de Lopes-Graça pelo

pianista Artur Pizarro.

Rui Pereira

Fernando Lopes-Graça

Música para piano

Artur Pizarro (piano)Capricio 5156

mmmmm

Justiça feita à

obra de Lopes-

Graça num CD

monográfico

gravado pelo

virtuoso Artur

Pizarro. Esta música de cunho

intensamente português ganha

agora uma dimensão épica e

granjeia um lugar no repertório

internacional. Há muito sabor a

folclore e o que Pizarro consegue

do ponto de vista da interpretação

e da execução é verdadeiramente

notável: sentido cerimonial

grandioso, ambientes de festa,

ritmos precisos com um domínio

do rubato avassalador, a polifonia

das procissões e dos andores, mas

sobretudo um domínio técnico que

permite transmitir um sentido de

facilidade e a naturalidade das

coisas simples. E diga-se que esta

música não tem nada de fácil, mas

para soar gloriosa não pode

parecer difícil.

As Nove Danças Breves (1938-48),

dedicadas ao grande pianista

húngaro Andor Foldes, abrem o

disco num registo grandioso, quase

orquestral, e situam o ouvinte no

universo do folclore português. O

tempo lento do Tema popular

português (1927), o opus 1 de Graça

dedicado a Florinda Santos, é alvo

de uma condução das harmonias

irrepreensível. A Sonata nº 2

(1939), obra revista nas décadas de

40 e 60 e dedicada ao

incontornável nome da música

antiga portuguesa Santiago

Kastner, deixa transparecer um

rigor na escrita pianística mais

elaborado e de grande

consistência. O disco encerra com

as 16 peças para piano intituladas

Ao fio dos anos e das horas (1979),

conjunto de grande diversidade em

que a imaginação e sensibilidade

de Pizarro encontram o melhor

terreno para florir.

Um conjunto bem diversificado

dentro do espectro estético de

Lopes-Graça, percorrendo mais de

50 anos de composições para

piano, o instrumento do

compositor, ilustrado ao melhor

nível artístico por Artur Pizarro.

A ópera a ouvir

George Benjamin

Written on Skin, ópera

Duet, para piano e orquestra

Barbara Hannigan, Bejun Mehta,

Christopher Purves, Rebecca Jo

Loeb, Allan Clayton (voz)

Pierre Laurent-Aimard (piano)

George Benjamin (direcção)

Mahler Chamber OrchestraNimbus 5885/6

mmmmm

Written on Skin, a

mais recente

ópera do

compositor e

maestro britânico

George Benjamin

(n.1960), sobe ao palco do

renovado Grande Auditório da

Fundação Gulbenkian nos

próximos dias 22 e 23 de Maio.

Desde a sua estreia no Festival de

Aix-em-Provence, em Julho de

2012, a ópera tem reunido a

unanimidade da crítica

internacional e corrido alguns dos

mais prestigiados teatros líricos e

festivais da Europa. A estreia, que

decorreu sob a direcção do próprio

George Benjamin à frente da

Mahler Chamber Orchestra,

contando com um elenco de luxo,

foi gravada e está disponível no

mercado em CD. A produção

apresentada na Royal Opera House

de Londres, com o mesmo elenco

de cantores, também já se

encontra disponível. A opção pela

versão em CD justifica-se para os

melómanos que se querem centrar

na questão musical da obra, na sua

audição repetida.

Disc

osArtur Pizarro consegue uma interpretação e uma execução notáveis, exibindo a naturalidade das coisas simples

Dizem que é longo e velado o caminho até ao

inconsciente. No meu caso são precisas

umas escassas horas de sono. Muitas das

canções que já escrevi apareceram-me em

sonhos e para mim é estreita a ligação entre

a música que faço e o mundo onírico. Soará

estranho mas vou partilhar convosco a noite em que

soube que tinha de gravar um disco novo.

Estava perdida no meio de um deserto onde a areia

escaldada me batia nos tornozelos ao ritmo do vento.

Deixei-me ficar quieta, com uma sensação de solidão,

mas não de desamparo, que pacientemente aceitava

sem me afligir. Ouvi chamar o meu nome. Olhei em

volta à procura daquela voz mas no horizonte havia

somente areia. A repetição do meu nome. E mais

uma vez. E outra — Rita! Ouve!

O meu coração batia agora a uma velocidade que

doía e o meu corpo pesava o triplo. Olhei para cima e

o céu pareceu-me muito perto, demasiado perto, e

tinha a sensação de que poderia tocar-lhe. Estiquei o

braço e fui sugada de imediato. Apareci numa sala

onde o meu avô se encontrava no palco e eu na

plateia. Ele gesticulava como se estivesse a dar uma

palestra. Apercebi-me de que falava de bandas

sonoras. Alguém no público resolveu perguntar-lhe:

— Qual foi a que mais gostou de compor? Não fazia

ideia de que o meu avô tinha sido compositor — Six

Cars — respondeu ele. — Foi a música mais bonita que

já escrevi, desde o tema principal às passagens

nocturnas… foi um sopro ao meu ouvido e de

repente estava tudo escrito na partitura.

Abri os olhos incrédula! Senti de repente um

enorme embaraço por nunca ter visto o tal Six Cars.

A palestra terminou pouco depois com uma ovação

de pé! Deixei a sala esvaziar e fui até à boca do palco.

— Avô! — lancei eu baixinho. — Avô!

Olhou para mim, sorriu e disse: — Olha a minha

queridinha!

Subi as escadas laterais e fui ter com ele

emocionada.

— Avô, como é que eu nunca soube disto? Nunca

me contaste!

— Não podes saber tudo sobre mim. Levas-me a

casa?

E lá fomos no meu carro por uma estrada que me

era estranha pondo a conversa em dia. À medida que

o tempo passava o céu ia-se tornando cada vez mais

escuro, carregado e outra vez mais próximo.

— Vem aí tempestade! Estas nuvens são de trovoada

— disse ele.

A paisagem tornou-se novamente inóspita, com a

estrada transformada em areia, o mar cada vez mais

próximo e uns montes que faziam lembrar o formato

de gengibre. A chuva começou a cair, deixando-me a

visão muito condicionada. Num segundo, apercebi-

me que o mar estava a invadir a estrada por onde

íamos passar e nesse momento uma onda gigante

passou por cima de nós. — Pronto, queridinha, isto é

semelhante ao fim do mundo. É assim. Repara nas

algas, nos peixes, naquelas sereias e nos calhaus

marítimos! São de uma beleza incomparável!

— Avô, acho que vamos morrer!

— É bem provável mas ao menos desvendámos o

mistério das sereias. Existem!

— Avô, estou com medo.

— Não tenhas medo, minha queridinha, um dia

voltaremos tal qual como os dinossauros e tudo

começará outra vez, mas antes canta-me as tuas

novas canções.

Editora convidada

No meu deserto há canções

Rita Redshoes

26 | ípsilon | Sexta-feira 16 Maio 2014

compositor, mas desta feita à frente

da Orquestra Gulbenkian e

contando com dois dos cantores do

elenco original.

Quem optar pela versão em CD

(a opção DVD surge mais apelativa,

é certo) tem como bónus a peça

Duet, para piano e orquestra

(2008), com Pierre-Laurent Aimard

ao piano. Obra fabulosamente bem

escrita, com um sentido

encantatório nas sonoridades que

produz, coloca o piano a par da

orquestra, criando um verdadeiro

dueto entre estes dois

instrumentos. R.P.

Pop

Estado de graçaO hiato dos The Oh Sees foi

um não-hiato: estão de volta

com a sua marca de sempre,

o som feito excesso.

Mário Lopes

The Oh Sees

DropCastle Face

mmmmm

O momento de

pânico foi breve.

Os Thee Oh Sees,

provavelmente a

mais excitante

banda rock’n’roll

A integridade de Michael Jackson nunca é posta em causa, graças aos produtores

Veja os videoclips na edição do ípsilon para tablets

O libreto de Martin Crimp (já

havia escrito o texto da primeira

ópera de Benjamin) é brilhante e

cria um enredo intemporal em

torno de um triângulo amoroso no

contexto histórico da Idade Média,

questionando o papel da mulher na

sociedade. Amor, sedução, poder,

ciúme, medo e crime seriam

palavras a explorar num tabloide

ou num cartaz, mas a ópera de

Benjamin é muito mais do que isso

e permite uma reflexão sobre a

tradição judaico-cristã e sobre

questões éticas e religiosas que se

perpetuam. O título, esse, prende-

se com a técnica de iluminura nos

pergaminhos medievais.

Se as reações à estreia poderão ter

suscitado comentários mediáticos

do tipo “o melhor que se escreveu

desde Ravel”, certo é que a ópera

resiste ao passar do tempo e se

vislumbra como obra de repertório.

A escrita de George Benjamin é

assertiva, tem carácter e encontra

constantemente soluções eficazes,

como as sempre difíceis alusões

musicais a períodos históricos,

neste caso o mundo medieval, ou a

expressão de um leque de emoções

muito variado. As partes vocais são

expressivas e claras, a história é bem

contada e toda a música serve o

drama na perfeição. Na gravação ao

vivo, que captou todo o sentido de

teatralidade, nota-se o bom

desempenho do elenco original e da

Mahler Chamber Orchestra. Cabe

informar que em Lisboa a ópera

será dirigida pelo próprio

a pisar o planeta neste momento,

anunciaram em Dezembro pela

voz do seu criador, John Dwyer,

que iriam entrar num hiato por

tempo indeterminado. Que

faríamos nós com esta ausência,

sem aquele habitual álbum

incrível por ano, ainda para mais

quando nos nossos ouvidos ainda

zumbia essa obra-prima intitulada

Floating Coffin, disco de 2013 da

banda de São Francisco? Não

tivemos de aprender

dolorosamente a lidar com a

ausência.

O hiato dos Thee Oh Sees foi um

não-hiato. Tão rápido quanto este

foi anunciado, chegou o aviso de

que não só as notícias do fim eram

manifestamente exageradas como

não havia sequer lugar a uma

pausa. Entre um álbum a solo de

John Dwyer enquanto Damaged

Bug e o regresso de uma banda

sua do passado, os Coachwhips,

havia, isso sim, um novo disco a

caminho, Drop. Nove canções, 32

minutos. Os Thee Oh Sees, ou seja,

John Dwyer, a convocar um amigo

de São Francisco, o

recomendadíssimo Mikal Cronin,

para compor uma canção e tocar

um par de instrumentos, Brigid

Dawson, a teclista de voz sacarina

desta vez de fora, e, tudo reunido,

mais uma peça a juntar a uma

discografia que, nos últimos

tempos, tem sido nada menos do

que imaculada — com canções de

corpo inteiro a acolherem aquela

torrente de electricidade em roda

livre que é assinatura sónica da

banda.

Drop anuncia-se com uma linha

de sintetizador que poderíamos

encontrar nos cósmicos alemães da

década de 1970, mas a ilusão não

perdura: 20 segundos depois, cai-

nos um riff distorcido ao colo, a voz

alucina sobre o fuzz das guitarras e

o theremin silva em fundo. São os

Thee Oh Sees tratando o rock’n’roll

como matéria incandescente e a

tocá-lo com uma urgência a que é

impossível ficar indiferente. A

sensação mantém-se depois dessa

Penetrating eye: Encrypted bounce,

composta com Mikal Cronin, cruza

o lado sinistro dos Pere Ubu com o

desejo de fuga espaço fora de Syd

Barrett e é um portento, com as

guitarras que chocam e se

entrecruzam, incapazes de serenar,

duas baterias a trabalharem o ritmo

infatigavelmente e a voz a pairar

com descontracção sobre todo o

som.

Ao longo da meia hora de

duração, há espaço para

novidades no catálogo Thee Oh

Sees, como essa Put some reverb

on my brother que chama sopros e

guitarras acústicas para arriscar

um pedaço de pop barroca para

salão de chá inglês, ou essa

Transparent world, guiada por voz

robótica e secção rítmica que

ondula com precisão mecânica,

levitando até às altitudes de uns

Broadcast. Entre elas, o mellotron

de King’s nose, psicadelismo pop

de som saturado, como se não

procurasse o conforto de um novo

mundo sonhado, antes corroer

essa ideia de sonho, e, em Drop, a

imagem de uns Kinks que

aterravam em plena época punk,

zangados, certamente, mas

sempre em busca da melodia

perfeita. Em tudo, a marca Thee

Oh Sees no som feito excesso (de

volume, de agressividade no

ataque às cordas, na recusa de

limar arestas para que tudo soe

mais confortável).

Despedem-se com The lens,

canção admirável de uma

majestosidade pop comovente (a

doçura das vozes, o sopro do

clarinete no final). “You looked

through the lens/ all is cracked and

hazy”, canta John Dwyer. À

despedida, os The Oh Sees em

auto-descrição. Olhamos

novamente. Está tudo

escaqueirado e nublado. Está tudo

absolutamente correcto.

Um disco justo

Michael Jackson

Xscape Epic; distri. Sony

mmmmm

Já se sabe,

cantores como

Michael Jackson

não morrem. E

nem sequer é

preciso ter o seu

estatuto para que isso aconteça.

Qualquer músico que, na

actualidade, tenha gravado dois

ou três discos deixa atrás de si

uma fatia considerável de material

que não foi finalizado, que não foi

produzido, ou que não foi

aprovado na hora de escolher o

que se dá a conhecer.

Já depois da sua morte, havia

sido lançado um álbum póstumo.

E agora aí está o segundo,

especulando-se já com um

terceiro. Naturalmente que

ninguém espera nada de

surpreendente destes

lançamentos. Quando muito

aguarda-se que sejam edições que

mantenham a chama da memória

acesa, ao mesmo tempo que

alimentem a curiosidade dos

admiradores mais empenhados. O

que não se deseja, como é

evidente, é que este tipo de

lançamentos ponha em causa a

recordação do cantor.

Nesse campo em particular,

Xscape cumpre com as

expectativas mais positivas. Isto é,

não deslustra em relação a

anteriores lançamentos de

Michael Jackson, sendo muito

melhor do que o anterior disco

póstumo. Para isso acontecer, em

muito contribui a selecção dos

temas (as oito canções reportam-

se ao intervalo compreendido

entre 1983 e 1999) e o trabalho do

produtor-executivo Timbaland, e

respectivos cúmplices (Rodney

‘Darkchild’ Jerkins, Jerome

Harmon, Stargate e John

McClane). Foram eles que

compreenderam o que estava em

jogo, tentando um equilíbrio entre

manter as características

nucleares do som do cantor,

introduzindo-lhe ao mesmo

tempo ligeiras nuances

contemporâneas. Nunca

saberemos o que pensaria o

próprio Michael Jackson do

trabalho aqui encetado, mas a sua

integridade nunca é posta em

causa, num disco que acaba por

resultar justo, preciso e até

homogéneo, apesar de haver

canções que apontam direcções

diferentes, entre o movimento

dançante assente em dinâmicas

rítmicas disco de Love never felt so

good e a balada digitalizada na

linha do R&B que constituiu o

tema final, Xscape.

Numa altura em que Justin

Timberlake ou Pharrell Williams

são muitas vezes apontados como

os sucessores naturais de Michael

Jackson, apesar de já não

habitarmos na mesma época das

celebridades duráveis e globais, o

melhor louvor que se pode

atribuir a este álbum é dizer que

não fica nada atrás dos mais

recentes discos daqueles dois

cantores americanos.

Vítor Belanciano

Liderados por John Dwyer, os Thee Os Sees continuam admiráveis

DAVID MCNEW/ AFP

ípsilon | Sexta-feira 16 Maio 2014 | 27

Expo

siçõ

esOportunidade perdidaA grande antológica

de Rui Chafes falha na

montagem — e prejudica a

excelente obra do escultor.

Luísa Soares de Oliveira

O Peso do Paraíso

De Rui Chafes.

Lisboa. Fundação Calouste Gulbenkian —

Centro de Arte Moderna. R. Dr. Nicolau de

Bettencourt. Tel.: 217823474/83. 3ª a Dom.,

das 10h às 17h45. Até 18/05.

Escultura, Instalação.

mmmmm

É verdade que é difícil dar conta

deste espaço. A grande nave do

Centro de Arte Moderna (CAM)

possui informação mais do que

suficiente para tornar qualquer

montagem difícil. As janelas para o

jardim, a abertura para as galerias

superior e inferior, os elevadores,

varandins e outras infraestruturas

necessárias numa sala de museu —

foi para essa finalidade que o

espaço foi pensado — interferem

com a apreciação de uma

exposição. Desde que o CAM

apostou, há alguns anos, nas

grandes exposições individuais, em

detrimento da apresentação da sua

riquíssima colecção de arte

moderna e contemporânea

portuguesa, contam-se pelos dedos

de uma mão as montagens bem

feitas que temos podido aí ver.

Recordamos alguns momentos

gratos, como a Plegaria Muda de

Doris Salcedo, em 2012. E outros,

menos gratos, de que falámos em

seu devido tempo.

À partida, a grande antológica

de Rui Chafes, O Peso do Paraíso,

tinha tudo para se tornar numa

das melhores exposições dos

últimos anos. O artista, que aqui

celebra também 25 anos de

carreira, possui uma obra

consistente, original e,

globalmente, de grande

qualidade. Na escultura e no

desenho, mas também na

tradução e na escrita, a sua

actividade desdobra-se por várias

disciplinas sem se deixar nunca

definir exactamente. Admira, e

não o esconde, o Romantismo

alemão, o que enforma o seu

pensamento plástico: há sempre,

na sua obra e no seu discurso,

uma renitência à explicação, ao

conteúdo, à racionalidade, ao

classicismo.

Todas as suas esculturas, e isto

desde as peças mais antigas,

convocam um vazio que preenche

formas em ferro pintadas de

negro. Chame-se-lhes o que se

quiser: armaduras, instrumentos

de tortura, casacos, sapatos,

pássaros sem cabeça, bolas

apoiadas em finas tiras moles, Rui

Chafes sorrirá sempre e

responderá com um dos seus

aforismos. No fundo, toda a sua

escultura é uma imensa

anamorfose em torno do vazio, da

fleuma, da alma das coisas — uma

nostalgia do sublime e do génio,

conceitos que, como sabemos,

estão hoje inelutavelmente ligados

ao Romantismo que os criou e

que, também, os destruiu. Já não

há génios. Toda a sua obra, por

fim, é uma viagem sem chegada ao

sol negro da melancolia, da morte.

E como é que o público vê isto

no CAM? É muito simples, não vê.

Rui Chafes domina totalmente as

montagens em espaços que

convocam essa ideia romântica de

sublime: lembre-se a magnífica

exposição individual na Galeria

Filomena Soares, Tranquila ferida

do sim, faca do não, em que o

visitante tinha de adaptar o olhar à

escuridão quase total do espaço,

ou a montagem já antiga no Jardim

da Sereia, em Coimbra, ou ainda a

peça Aproxima-te, ouve-me, no

Palácio da Inquisição da mesma

cidade, em 2002. Aqui, num

espaço de características

modernas que se prolonga num

jardim que nada deve à herança

romântica, as suas esculturas

perdem-se na imensidão da nave,

convivem umas com as outras sem

suscitar qualquer interrogação no

espectador e até, num dos casos,

parecem prolongar-se

pateticamente em direcção a um

tanque com patos. Não houve,

excepto no hall e na grande

escultura de formas orgânicas

junto à entrada, domínio do lugar

ou diálogo possível com o cubo

branco asséptico que o CAM não é,

mas ao qual todo o museu aspira.

E se, no jardim, as coisas se

passam melhor — afinal, é um

jardim de esculturas —, isto que

aqui dizemos tem uma

consequência imediata: é que toda

a obra de Rui Chafes, mais do que

escultura ou desenho, é

instalação. Esse diálogo necessário

com o lugar que aqui se logrou,

essa contribuição do público que

avançava com receio na galeria de

Lisboa, ou que ficava estupefacto

em Coimbra, não funcionou aqui.

É pena, porque a obra de Chafes

possui uma qualidade ímpar. E

também porque, queira-se ou não,

“a” exposição individual na

Gulbenkian é sempre a marca do

reconhecimento no nosso país.

Apesar de tudo, é no jardim do Centro de Arte Moderna que a obra de Rui Chafes melhor acontece

DANIEL ROCHA

COLECÇÃO CHARLIE CHAPLIN

Hoje, 16 de Maio, Livro Inédito+DVDHoje, 16 de Maio, Livro Inédito+DVD

Charlie Chaplinpor: Alice Vieira

LLembra-se do primeiro fi lme do Charlot que viu?embra-se do primeiro fi lme do Charlot que viu?

Não me lembro, eu era muito pequena, era criada por tios velhos que me levavam

para tudo onde iam: cinema no Capitólio, teatro no Nacional, revista no Parque Mayer...

Essas coisas confundem-se todas na minha cabeça. Mas as primeiras imagens que

recordo dos fi lmes do Charlot trazem sempre com elas o Jackie Coogan.

Por isso “O Garoto” pode ter sido o primeiro.

Chaplin era um perfeccionista. Acha que ele desenvolvia um humor mais profundo nas Chaplin era um perfeccionista. Acha que ele desenvolvia um humor mais profundo nas

suas histórias?suas histórias?

Para mim o Charlot tem uma carga demasiado afectiva e emocional que me torna

incapaz de abordagens técnicas dos fi lmes. Mas claro que o seu humor era profundo,

e ia muito para lá do simples esgar, ou trejeito, ou escada em que se tropeça, ou o

grandalhão de que se foge. E sei que era um perfeccionista, que repetia as cenas

vezes sem conta. Lembro-me sempre de um dos tios um dia me ter contado, em

relação às cenas em que o Garoto chorava desalmadamente , “sabes por que é que

ele chora assim? É porque o Charlot lhe disse que, se ele não fi zesse tudo o que ele

mandava neste fi lme, ia direitinho para o orfanato”. Acho que aí fui eu que desatei a

berrar...

Chaplin era uma pessoa de extremos, nas opiniões, na crítica à sociedade americana, Chaplin era uma pessoa de extremos, nas opiniões, na crítica à sociedade americana,

até num certo papel político. Conhecia essa faceta do artista?até num certo papel político. Conhecia essa faceta do artista?

Para lá de me levarem ao cinema, ao teatro e à revista, os meus tios (velhos

republicanos que tinham lutado pela República no Rossio) sempre fi zeram questão de

me politizar muito cedo... Chaplin não fugiu à regra. Mas aí eu já era um pouco mais

velha, andaria pelos meus 9 ou 10 anos. Lembro-me de me terem contado que ele

tinha sido expulso da América pelas suas ideias, e acusado de ser comunista, e aí eu

percebi que não era só o Salazar que fazia essas coisas. Depois vi o “Grande Ditador” e

ainda percebi melhor.

O cinema seria diferente sem Chaplin?O cinema seria diferente sem Chaplin?

Claro. A grande maioria dos grandes cómicos é nos seus fi lmes que vai beber.

Como autora (e espectadora de cinema) como se percebe, em seu entender, a Como autora (e espectadora de cinema) como se percebe, em seu entender, a

intemporalidade das criações de Chaplin e a sua personagem Charlot?intemporalidade das criações de Chaplin e a sua personagem Charlot?

Os fi lmes do Chaplin e a sua personagem lidam muito mais com o interior de cada

um de nós do que com o exterior. Digamos que os adereços têm pouca importância

comparados com os sentimentos e as emoções. O amor, a bondade, a tristeza, a

alegria, a injustiça são intemporais. Só muda o que está por fora.

Alice Vieira

Alice Vieira é uma das mais respeitadas

jornalistas e notável escritora com vasta obra

publicada e traduzida em várias línguas. É uma

das mais importantes autoras da literatura

infanto-juvenil.

Licenciou-se em Filologia Germânica na

Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa,

mas cedo se dedicou ao jornalismo deixando

marca em jornais como Diário de Lisboa, Diário

Popular e Diário de Notícias.

Trabalhou ainda como autora em vários

programas infantis para a televisão.

Colecção de 10 volumes. Preço unitário 6,95. Preço total da colecção 69,50. Todas as sextas, de 2 de Maio a 4 de Julho de 2014.

Limitado ao stock existente. A compra do produto implica a aquisição do jornal.

DR

28 | ípsilon | Sexta-feira 16 Maio 2014

Livr

osPoesia

Nada do outro mundoOs livrinhos que Rui

Caeiro vem discretamente

publicando encontram o

seu lugar como escrita, para

lá dos moldes. Hugo Pinto

Santos

Travessa dos

Remolares

Rui CaeiroParalelo W

mmmmm

No Martim

Moniz com

o Meu Pai

Rui CaeiroEdições 100

Cabeças/

Landscapes

d’Antanho

mmmmm

Um Gato

no Inferno

Rui CaeiroEdição do Autor

mmmmm

Acabamentos

de Primeira

Rui CaeiroEclusa

mmmmm

Falar de topografias poéticas a

propósito de alguns dos livrinhos

que Rui Caeiro vem publicando,

sempre com uma discrição que

parece pedir licença para se afirmar

— pela elegância de um cuidado e

de um respeito raros, nunca por

pose estudada —, seria errar

clamorosamente. Não se trata, em

qualquer dos casos, da obediente

platitude de um mapa, nem do

entendimento da poesia como beco

estreito para a forma. Porque é

sobretudo como escrita, para lá de

moldes, que as publicações de

Caeiro encontram o seu lugar.

Aquilo que o autor tem divulgado,

quase sempre em plaquetes de

circulação restrita, não poetiza os

lugares, nem congela o poema

numa cartografia estreita. Os

espaços têm, pelo contrário, o dom

da necessidade, como se

emanassem de qualquer destino

que os implicasse, como uma

artéria no corpo, na constituição da

própria escrita. E ambos os símiles

são roubados a Caeiro —

nomeadamente a Travessa dos

Remolares, onde os fados se

convocam e se desmentem com a

mesma hipótese de verdade, e onde

o vocábulo “artéria” circula num

pêndulo entre a acepção biológica e

a geográfica. Assim, o espaço não

contribui como paisagem mas como

nutriente da própria escrita.

Lendo plaquetes como No

Martim Moniz com o Meu Pai ou

Travessa dos Remolares, talvez se

duvide destas tentativas de

entendimento. Uma desconfiança

bem-vinda, por exemplo, depois da

leitura da brevíssima brochura Um

Momento na Noite (Edição do Autor,

2011) — “Esse momento podia

também acontecer ao ar livre da

noite da cidade, pelas suas ruas,

becos, praças e esquinas mais

esquinadas, da Almirante Reis ao

Bairro Alto, sem esquecer o Cais de

Sodré, Intendente, Alfama,

Mouraria, Alto do Pina e Poço do

Borratém”. Mas já em Poesia em

Verso (Livraria Letra Livre, 2007,

com Afonso Cautela e Vítor Silva

Tavares), Rui Caeiro metia pela

Travessa dos Remolares — “No parco

mostruário da Travessa esqueci-me

de alguma coisa?/ Sim e por sinal do

mais importante: a montra com

frangos torturados no espeto,/

possível antevisão do inferno (como

se a própria rua já não bastasse)/ ou

então resquício dos tempos da

Santa Inquisição” —, sem que a

concentração naquele poiso

impedisse uma leitura tudo menos

literal. Seja como for, a importância

dos lugares parece assegurar-se

menos como deriva da divagação

do que por acção da já parafraseada

“simples necessidade ou, ao fim e

ao cabo, uma fatalidade” —

“acabamos sempre por ter que

escolher um mal menor”, responde

No Martim Moniz com o Meu Pai (p.

20); sendo que, em Travessa dos

Remolares, a rua se agarra “à sola

dos sapatos, à laia de algo que se

pisou sem querer” (p. 18).

A simples atenção a tais passos

autorizaria a ver nestes opúsculos

nada como um guia turístico para

uso poético. O que estas páginas

dizem é totalmente alheio a esse

descaminho. E note-se que o verbo

“dizer” se usa deliberadamente.

Porque estes textos, antes de mais,

dizem. Daí que os vestígios de uma

fraseologia franca e recta, sem

marca de afectação, não sejam

estratagema mas (de novo)

inevitabilidade. Não que o fatalismo

embale esta escrita. Podia dizer-se

do seu sujeito aquilo que as suas

palavras estendem: qualquer um se

mostra “atento à regularidade

enganosa do piso” (Travessa dos

Remolares, p. 21). O que permite

uma visão tão limpa de lágrimas de

lirismo serôdio como de ramelas de

uma secura descritiva — “Na

Travessa dos Remolares bebe-se

para esquecer que a Travessa dos

Remolares é o que é” (Travessa dos

Remolares, p. 15); “O Largo do

Martim Moniz não é, pois, sítio

onde eu goste de estar, ou por onde

goste de passar, nunca foi.” (No

Martim Moniz com o Meu Pai, p. 9). É

nesse sentido que a frase é

idiomática e padronizada: sem

elevações deslocadas, nem

paternalismos detestáveis. Ou não

terminassem No Martim Moniz com

o Meu Pai com um peremptório mas

conciso “Mete-te na tua vida!”

(p.25), e Travessa dos Remolares com

um trocadilho que comprova essa

trabalhosa acessibilidade das

palavras — “e eu com a Travessa dos

Remolares à perna, não querem lá

ver? Não querem lá ir ver?” (p. 22)

Como sucedera antes — “É no

inferno que penso, mas devo/

reconhecer, em abono da verdade,

que não era/ no inferno que nós

estávamos, era a dois passos/dele e

se queres mesmo saber era

agradável” (Do Inferno — Cinco

Aproximações, do número 12 da

revista Telhados de vidro) —, é ao

Inferno que ruma certo felídeo

ciclicamente recuperado por Caeiro.

O Gato no Inferno recupera essa

figura — “Gostar muito de um gato.

Com tanta força quanto a do seu

desdém.” (49 Espinhas para Um

gato, Edição de Autor, 1997). O gato

volta a não ser motivo literário,

como não o é a paisagem

rudemente urbana dos livrinhos

antes mencionados. Nem

Baudelaire, nem Poe nem outros

cultores do gato aqui figuram:

embora Pessoa, em registo quase

displicente, compareça,

involuntário, ao chamado —

“Brincam na rua e na cama/ e

também com o Fernando Pessoa/ e

mais o resto”. O mesmo poeta que

surgia em No Martim Moniz com o

Meu Pai: ora explícito (“se o Pessoa

descobriu mundo da Rua dos

Douradores, também havia de o

desencantar aqui”), ora espécie de

ruído de fundo do texto (“Há para

mim mais metafísica, isto é, mais

fonte de perplexidade, nestas três

perguntinhas”) ou de eco estilístico

fixado num paradoxo de matriz

inevitavelmente pessoana (“não

sabes o que perdes — para além, é

claro, de não perderes coisa

alguma”). Ao contrário do gato

epónimo, esta poesia “cura/ de

minudências”. No sentido em que

concentra as suas energias nas mais

pequenas incidências, nas mais

delicadas e crepitantes. Estas

podem revelar-se numa primeira

pessoa que poderia parecer

inesperada (tanto mais que se

esquiva sempre que pode:

“Cabriolando à porta do inferno/ em

vez de mim/ o gato”), não fosse ela a

consequência da sua implicação

numa escrita que nunca perde a sua

natural sobriedade mais contida do

que derramada (“quando me vê mia

ao de leve/ como se eu fosse ainda

eu/ e a casa a casa antiga”). Neste

conjunto, as repetições e as

analogias (de palavras e sons, como

de estruturas) criam um casulo

coerente para uma relação de

aproximação e afastamento, de

afirmação e questionação, de um eu

que afirma no fugidio gato o próprio

fugitivo do seu ser. Talvez não muito

distante do cão de O’Neill, este gato

é um animal-condição, uma

afirmação, por interposto animal,

da ondulante condição humana.

O espaço comparece na poesia de Rui Caeiro como uma necessidade da própria escrita — como uma artéria no corpo

INÊS DIAS

ípsilon | Sexta-feira 16 Maio 2014 | 29

Condição, essa, que estará

igualmente em questão em

Acabamentos de Primeira. Como

sucedia em títulos como Mamas

(Tea For One, 2011), ou Baba de

caracol (Língua Morta, 2012), o

derrisório é apenas um dos

caminhos da escrita, porque Caeiro

se posiciona entre os sentidos mais

comezinhos e os mais promissores

— “os meus desfechos — os meus

acabamentos” (p. 8). Tal como em

Travessa dos Remolares e No Martim

Moniz com o Meu Pai, não era de

mapas que se tratava, em

Acabamentos de Primeiranão

estamos perante o apagado registo

de uma cronologia. Neste opúsculo,

o passado, o presente, ou os

circuitos entre ambos os pólos, são

apenas o pretexto gentilmente

tomado à biografia — e à simulação

recriada dela — para revelar o corpo

e o espírito aos acabamentos das

construções erguidas pelo afecto e

pelo erotismo. Porque estes

“acabamentos” são o rematar de

enredos que se transformam e

interrompem sem verdadeiramente

se concluírem — “as histórias

acabam e não acabam” (p. 21) —, por

serem resgatadas pela memória e

preservadas pela escrita — “Amores

para um mesmo final, um mesmo

discreto acabamento. De primeira

qualidade (admitamos resignados).”

(p. 23)

(Entretanto, Rui Caeiro

reeditou Sobre a Nossa Morte bem

muito Obrigado, Alambique [1.ª

ed. &etc, 1989])

Viagens

Álbum pessoalNuma prosa admirável, o

argentino Ernesto Schoo

tece uma cartografia

sentimental da cidade que

foi descobrindo ao longo de

décadas. José Riço Direitinho

Mi Buenos Aires Querido

Ernesto Schoo

(Trad. Carlos Vaz Marques)Tinta-da-China

mmmmm

À maneira

meticulosa de um

arqueólogo que

vai desvendando

diferentes níveis

de uma cidade

antiga, o jornalista

e escritor

argentino Ernesto

Schoo (1925-2013) leva-nos por uma

Buenos Aires de histórias, de

memórias de décadas e de sombras,

uma cidade em que o passado

parece ocultar-se a cada esquina na

sumptuosidade arquitectónica de

muitos edifícios do centro e dos

bairros burgueses. O descrito neste

livro de Schoo, agora publicado na

colecção de literatura de viagens

dirigida por Carlos Vaz Marques

para a editora Tinta-da-China, está

bem longe daquela Buenos Aires

A palavra mais forte, mais verdadeira, que toca

no seu próprio fim, na sua matéria mais

densa e profunda, pode não ser a palavra dita

“literária” (muito embora, paradoxalmente,

consiga fazer-nos acreditar na existência da

literatura), não ter a assinatura de um

escritor, nem realizar o esforço de se apresentar sob a

forma de poema, de romance, de texto em prosa, de

livro. Aliás, os livros, cujo regime de apresentação na

cena da literatura é, em geral, o da idade do

narcisismo, da regressão a uma infantilidade que leva

as pessoas a quererem “exprimir-se” e a introduzir o

odioso “eu” por todas as frestas e em todos os salões

de festa a que acedem (a estupidez, diz algures

Deleuze, nunca é muda nem cega), raramente têm um

lugar diferencial, uma função de negatividade, no

meio do ruído. Palavras fortes, capazes de nos fazer

perceber que fomos expropriados sem remorso e

estamos imersos na pobreza das palavras que

escandem a nossa jornada, são as que podemos ouvir

em Vidros Partidos, o filme com que Víctor Erice

respondeu a uma encomenda de Guimarães 2012 —

Capital Europeia da Cultura. Nesse filme/

documentário, ouvimos o testemunho de homens e

mulheres que trabalharam na Fábrica de Fiação e

Tecidos do Rio Vizela, na região do Vale do Ave,

fundada em 1845 e encerrada em 2002. Eles contam a

sua experiência na fábrica e comentam uma foto

antiga, que parece ter sido feita numa ocasião festiva,

onde aparecem, reunidos ao longo de mesas de

cantina, os operários de então. A foto é inquietante,

pelo modo como todos aqueles homens e mulheres,

sujeitos de uma história que chegou há muito ao seu

fim e que nós já só conhecemos da historiografia,

olham para nós e nos interpelam. Víctor Erice pôs

alguns ex-trabalhadores da fábrica encerrada a recitar,

de cor, diante da câmara, o texto com que prestaram o

seu testemunho. Isto é: a versão inicial do texto foi

arranjada, montada, cortada (mas não reescrita com

outras palavras), e depois dita pelos seus autores, que

passaram assim a ser também actores da sua própria

história. Uma mulher, velha e debilitada, aproveita a

ocasião para ler um poema que leva consigo, de uma

prima que “escrevia muito bem, desde muito nova”. E

esse poema, que não interrompe nada e apenas

prolonga o fluxo das palavras daquela mulher como

um fluxo poético (como aliás, o de todos os outros ex-

trabalhadores da fábrica que testemunham no filme

de Erice), soa-nos como algo capaz de dar a ver a

vacuidade da literatura e os seus abjectos artifícios —

aquela que chega até nós mediada pelos protocolos

canónicos da instituição literária. Tal poema é um

antídoto contra a saturação intrínseca à indústria

literária, essa coisa ignóbil que dissimula a nossa

própria morte. O que as palavras daquela mulher nos

fazem perceber (assim como as de todos os outros

trabalhadores que comparecem no filme, sem poemas

para ler, mas com palavras próprias para dizer), muito

especialmente quando recita o poema da sua prima, é

que nós chegámos demasiado tarde à literatura,

quando ela já chegou ao seu fim. Nós, leitores, vós,

escritores, jamais conseguiremos atingir, perante a

palavra literária, aquele estado de encantamento, que

não se confunde com nenhuma espécie de

ingenuidade. Para aquela trabalhadora, a tragédia da

história redime-se através de um poema que nunca

tinha encontrado o seu público; para nós, tudo o resto

é literatura. Aquele poema resplandece sem

assinatura; nós só raramente conhecemos um escritor

que não seja ao mesmo tempo jornalista, escritor-

jornalista com uma missão de reportagem de si

próprio e da sua obra.

Estação Meteorológica

E tudo o resto é literatura

António Guerreiro

QUER VERO SEU CONTOPUBLICADO?

CONSULTE O REGULAMENTO E PARTICIPE EMwww.culturafnac.pt

NOVOS TALENTOS FNACLITERATURA 2014

30 | ípsilon | Sexta-feira 16 Maio 2014

Opin

ião

No início da década de 1970, o

escritor italiano Umberto Eco fez

uma longa viagem pelos EUA de

que resultou um conjunto de

artigos que depois seriam

publicados sob o título genérico

Viagem da Irrealidade Quotidiana

(a edição portuguesa da Difel é de

1986).

Nessa análise, Eco — europeu de

sólida formação clássica,

medievalista e autor de vários

ensaios sobre estética — afirma

estar a América na vanguarda da

tecnologia. Refere os grandes

avanços feitos pela NASA na

holografia, refere a “pátria dos

arranha-céus de vidro e aço e do

expressionismo abstracto” e

considera a baixa de Manhattan

“uma obra prima de arquitectura

viva onde o gótico e o neo-clássico

não aparecem (...) como efeito de

um raciocínio frio, mas realizam a

consciência revivalista da época

em que foram construídos”.

Atento ao hiper-realismo, Eco fala

de uma “América da hiper-

realidade desvairada” que não é

Hollywood nem a América pop

mas a da real thing, do more, onde

as fronteiras entre o jogo e a ilusão

se confundem, tal como o museu

de arte se confunde com a tenda

das maravilhas.

Essa América é a expressão do

falso absoluto, “filho da

consciência infeliz do presente

sem espessura”, que tem na

opulência e no kitsch a sua

expressão mais eficaz: os castelos

barrocos na Florida, o museu de

cera com imitações da Vénus de

Milo, a espectacularidade das

casas, das festas, do Dallas e dos

aviões privados dos milionários.

Entretanto, a América, mantendo-

se um país de enormes

desigualdades, elegeu um

Presidente negro e democrata, e

revela alguma transparência

política. Esta América actual vai

ocupando o espaço que, na

descrição de Eco, estava

inteiramente tomado pelo show-off

dos milionários.

Agora, estamos no Dubai, em

2014, à sombra de uma bomba de

gasolina. É Março, mas o sol

queima nesta cidade construída

no meio do deserto e que é um

dos sete Emirados Árabes Unidos

(EAU) — o país com a sexta maior

reserva de petróleo do mundo e,

portanto, um dos países mais ricos

do mundo, com um PIB nominal

per capita acima dos 54 mil

dólares. Em frente à bomba de

gasolina, um grande armazém, tão

grande que impressiona pelo

Política cultural António Pinto Ribeiro

Do Dubai a Abu Dhabi, a opulência domina

— uma opulência que se serve do passado

cultural do Ocidente, comprado a peso

de ouro e transplantado para o deserto.

Viagem na irrealidade quotidiana

A Feira de Arte do Dubai é organizada por empresas inglesas e norte-americanas especializadas no negócio

KARIM SAHIB/ AFP

Leia excertos dos livros na edição do ípsilon para tablets

mitificada em muitos guias

turísticos, que dela destacam o

tango e Carlos Gardel, Jorge Luís

Borges e o café Tortoni, o colorido

bairro La Boca ou a modernidade de

Porto Madero, diante do Rio da

Prata (esse “braço de mar disfarçado

de rio”), onde todos “os armazéns

foram convertidos em lojas

caríssimas, em restaurantes de

luxo”. Ernesto Schoo assume este

livro como uma espécie de álbum

pessoal, de crónica da cidade que

conheceu ao longo de décadas de

caminhadas, longe do trânsito e dos

turistas, em que a memória e as

histórias ouvidas se confundem. É,

escreve, uma cartografia culta das

suas “andanças portenhas”: “O

bairro Norte, a Recoleta, Palermo,

um pouco do centro, um pouco dos

bairros de prestígio, como Belgrano

ou Flores. Pouco mais: há zonas

inteiras da cidade que me são

estranhas, e lamento-o. Mas quero

ser fiel aos cenários que conheço em

vez de fingir uma cidade ecuménica,

essa espécie de condição absoluta

de portenho a que aspiram

imaginariamente alguns vates

antiquados.”

Desde o primeiro capítulo,

dedicado a toda a zona costeira do

Rio da Prata até ao Delta do Tigre,

Schoo dá o mote para uma cidade

de mudanças vertiginosas e

frequentemente contraditórias,

aberta a muitas influências,

sobretudo europeias. Os exemplos

começam com o edifício do antigo

restaurante Munique (nome que se

tornou genérico para restaurantes

de comida alemã) no passeio

costeiro, uma “obra-prima datada

de 1929”, uma mistura de “art

déco” e de fantasia orientalista,

para quase de seguida recordar

uma conversa com Walter Gropius

(o lendário fundador da Bauhaus,

“a escola de desenho que mudou a

vida ocidental na era moderna”).

Mas os exemplos de influências

urbanísticas e arquitectónicas não

se ficam por aqui: “Nos seus

bairros mais senhoriais, Buenos

Aires quer fazer-nos crer que é

Paris, até que a copa de uma

palmeira ou a floração dos

jacarandás nos devolve à

realidade.” E quase no fim do livro

— no capítulo intitulado

Romantismo Alemão —, Schoo

conta-nos a história de como numa

noite de lua cheia descobriu um

dos prédios mais singulares “de

uma cidade cheia deles”, o

imponente Otto Wulf, melancólica

estampa romântica a que a Lua

emprestava um efeito teatral,

assemelhando-o a um castelo nas

margens do Reno.

Por entre as descrições do Verão

portenho, “pegajoso e insuportável”

— Ortega y Gasset dizia que no Verão

é impossível pensar em Buenos

Aires —, Ernesto Schoo vai

caminhando pelas avenidas da

cidade, falando das árvores (aquelas

cujos ramos no Inverno se curvam

“numa caligrafia trágica”), da

ornitologia fantástica, dos jardins,

das estátuas mais ou menos

escondidas na paisagem urbana,

dos pintores, da herança britânica,

das opiniões de visitantes famosos,

do jardim botânico, do zoológico

(essa “apoteose do simulacro”),

desfazendo mitos (como o da cidade

plana), e sobretudo contando

histórias como a que evoca a

propósito do célebre cemitério da

Recoleta: “Um casal de apelido

sonante deu-se mal em vida,

sobretudo — dizem — pela avareza

do marido. Quando ele morreu, a

viúva não só se dedicou a gastar sem

freio, mas também determinou que,

erguendo-se o jazigo entre duas ruas

paralelas, os bustos de ambos

estivessem de costas voltadas,

olhando um para cada lado.”

Quer o leitor conheça ou não

Buenos Aires, uma das maiores

virtudes do livro é sem dúvida a

prosa admirável de Ernesto Schoo,

simples e límpida como deve ser a

dos grandes cronistas, sem

pretensões estilísticas porque são

desnecessárias. Mi Buenos Aires

Querido (o nome de um tango de

Gardel) é um daqueles livros que

nos fazem perceber que para

conhecer uma cidade é preciso a

vida toda.

Ernesto Schoo faz-nos perceber que para conhecer verdadeiramente uma cidade é preciso a vida toda

ípsilon | Sexta-feira 16 Maio 2014 | 31

bem como de associação e de

religião. Os EUA não assinaram

tratados internacionais de direitos

humanos e de direitos dos

trabalhadores e têm sido acusados

de violação de direitos humanos.

Do Dubai a Abu Dhabi, a capital,

distam 100 quilómetros e a

opulência continua. A Grande

Mesquita Xeque Zayed é toda em

mármore branco importado da

Macedónia e tem capacidade para

40 mil pessoas. No interior,

resplandece o painel onde estão

os 99 nomes de Alá, resplandece o

lustre central que pesa 12

toneladas, coberto de ouro e

cristais Svarowski, resplandece o

tapete, o maior, em peça única, do

mundo, que consumiu um ano de

trabalho intenso de 1.200 artesãs

iranianas. Todo este luxo terá

custado 1.500 milhões de dólares.

Mesdar, o centro tecnológico

desenhado pelo arquitecto

A linha do horizonte é

impressionante, com tantos

reflexos de vidro e alumínio, e

com a inscrição dos nomes de

tantos notáveis da arquitectura

nas placas dos arranha-céus. A

arquitectura, aqui, quer-se

espectacular: cada vez maior, cada

vez mais alto, cada vez mais caro,

cada vez mais e mais.

Mais de 50% dos habitantes são

imigrantes filipinos, indianos,

paquistaneses, iranianos,

tailandeses. O taxista indiano que

faz a viagem para o aeroporto

trabalha todos os dias da semana

das 5h às 17h e... “no day off!” A

riqueza e o luxo esmagam-nos. Nos

hotéis há um evidente excesso de

comida, um consumo imparável.

As ruas estão limpas e ali existe a

crença no futuro que é a auto-

confiança presente nas orações do

muezzin. Originalmente, estes

eram povos que que viviam no

deserto, seguindo camelos e

ocupando rotas do comércio (e

sim, há um talento para o comércio

em cada um deles…), sem cultura

escrita, sem monumentos, sem

teatros, tendo apenas de seu o

Corão, a poesia e os contos da

tradição oral.

Em 1971, os sete emirados

ergueram-se como um país e

construíram-se. Tinham

descoberto que eram ricos. Havia

um mar infinito de petróleo

debaixo daquelas areias. Mas o

Dubai, o mais populoso dos sete,

quase não tem petróleo, as suas

receitas são provenientes

tamanho. É a lavandaria Areias

Douradas. Por uma das portas

laterais, um camião-cisterna

transfere água lá para dentro.

Os EAU são um dos maiores

consumidores de água do mundo.

Para tanto, tiveram de construir

engenhos de captação,

dessalinização e transporte de

água do mar. O desperdício, ainda

assim, abunda, pois há muitos

jardins e campos de golfe,

formando como um arquipélago

de pequenos oásis falsos. E é por

aqui que começam a aparecer os

sinais da opulência que mais são

relativizados. Para lá do armazém

e da auto-estrada, há palmeiras,

repuxos, areia, calor, construção,

construção, construção, vias

rápidas e pontes, marinas e hotéis

— dos quais o mais icónico será o

luxuoso Burj Al Arab (Torre das

Arábias), construído sobre uma

ilha artificial e exibindo

decorações a ouro dentro e fora

dos quartos. Projectado por Tom

Wright, este que é considerado o

maior hotel do mundo custou 650

milhões de dólares — “o cliente

queria um edifício que se tornasse

um ícone ou símbolo declarado do

Dubai, que fosse espantosamente

lindo e semelhante à Ópera de

Sydney ou à parisiense Torre

Eiffel”, declarou o arquitecto.

Existem no Dubai outros hotéis

com canais por onde gondoleiros

passeiam os hóspedes que querem

experimentar a Veneza do Médio

Oriente, ou seja, que querem

experimentar o simulacro.

essencialmente do turismo e dos

serviços — espera 20 milhões de

turistas em 2020. O país é

controlado por apenas 10% da

população e os hotéis estão cheios

de russos obesos, enfeitados com

correntes de ouro ao pescoço, e

de chineses ricos que ali chegam

em excursões.

Na Feira de Arte do Dubai, a

organização — comprada a

empresas inglesas e norte-

americanas especializadas no

negócio — é muito profissional,

eficiente e acolhedora. Faz-se, por

exemplo, uma pré-inauguração só

para as mulheres, e em seguida

outra para profissionais, e outra,

privada, para os grandes

coleccionadores dos EAU.

As mulheres que enchem a feira

são lindas e muito elegantes, com

gestos finos e delicados, trajando

negros tecidos finos. Nenhuma usa

burqa, mas todas usam véu — e o

modo como o arranjam, como

abrem as carteiras, revela uma

educação para seduzir sem

nenhum dispêndio de gestos.

Sendo o rosto a única parte visível

do seu corpo, ele é uma montra da

alma, dir-se-ia, e apresenta-se

muito cuidado, expressivo sem ser

teatral. Tudo está nos olhos delas.

Os vestidos de sedas negras

bordados a negro arrastam pelo

chão, muito sofisticados. As

mulheres caminham como para

serem vistas a caminhar. Os seus

direitos são restringidos, bem

como a sua liberdade: liberdade de

expressão e liberdade de imprensa,

Norman Foster — que reclamou

ser esta a cidade perfeita — alberga

523 estudantes e 100 professores

internacionais que fazem

investigação sobre as energias do

futuro (antes que o petróleo

acabe). Sendo na prática um

deserto, os EAU são dos países que

mais água e energia gastam.

Porém, apesar da sua

envergadura, houve em Mesdar

erros de planeamento, como a

construção de caleiras numa

região em que nunca chove. Mas a

cidade não pode ser ideal quando

para servirem os investigadores há

centenas de imigrantes de

baixíssimos salários. Carros sem

condutor transportam os viajantes

e a Siemens já construíu aqui o seu

centro de investigação mais

vanguardista.

Pensada para um turismo de

massas, a ilha de Saadiyat (“Ilha da

Felicidade”), além de áreas

residenciais, disponibiliza

também hotéis de luxo, campos

de golfe, uma marina e um

“parque cultural”. Na verdade,

trata-se já não de uma cópia, da

assumpção do falso, mas sim de

um franchising cultural onde tudo

é verdadeiro embora radicalmente

deslocalizado. Primeiro, a

globalização e o esplendor dos

grandes negócios dos escritórios

dos arquitectos: Norman Foster,

Jean Nouvel, Zaha Hadid, Tadao

Ando, Frank Gehry e tantos outros

fazendo o que o cliente exige,

desenhando segundo o seu gosto

rígido. Depois, o fenómeno a que

poderemos chamar “o rapto do

Ocidente”: o Louvre de Abu

Dhabi, a Universidade de Nova

Iorque, a Biblioteca de França, o

Guggenheim de Abu Dhabi e em

breve também o British Museum.

Um museu nacional de História

conta as proezas destes povos

nómadas, agora monarquias

hereditárias, organizadas em

castas, em que a mais sofisticada

tecnologia convive com laivos de

servilismo. A pergunta impõe-se:

o que os leva a comprarem a peso

de ouro o passado cultural de

outros povos? O que os leva a

quererem ter os museus da

Europa, os arquitectos do

Ocidente, a tecnologia de Silicon

Valley, as universidades

americanas?

Aqui se organizam feiras de arte

e de ciência, aqui se estudam os

modernismos dos outros, se

compram os clássicos dos outros,

se fazem exposições universais. Os

governantes formaram-se em

Cambridge e Harvard, dominam o

inglês. Porquê? Para quê? Será

motivada pela orfandade de uma

cultura ancestral material esta

tentativa de compensação que a

fluidez do capital aparentemente

proporciona? Ou esta aceleração

estará movida pelo próprio

consumo? Trata-se de uma

vocação imperial sofisticada ou

apenas da arrogância dos

milionários? É, de certeza, uma

irrealidade quotidiana do século

XXI que confunde todos os

cânones da Estética europeia.

A compensação proporcionada pela fluidez do capital revela uma vocação imperial sofisticada ou a arrogância dos milionários?

A arquitectura, no Dubai, quer-se espectacular: cada vez maior, cada vez mais alto, cada vez mais caro, cada vez mais e mais, num horizonte devorado pelas silhuetas e pelos reflexos das torres de vidro e de alumínio

STEVE CRISP/ REUTERS

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