inventando moda

14
Ictus 08-2 Inventando moda: a construção da música brasileira Martha Tupinambá de Ulhôa Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO) [email protected] Resumo: Reflexão sobre a noção da modinha e do lundu como as raízes da música popular brasileira. Trata principalmente das formulações sobre o assunto feitas por Araújo Porto Alegre, em afirmações que seriam repetidas e cristalizadas por várias histórias da música posteriores. Porto Alegre foi um dos agentes importantes para a construção da idéia de cultura brasileira após 1822, juntamente com outros homens de letras, muitos deles ligados ao Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB). Veremos que a modinha e o lundu são raramente mencionados nas fontes ligadas ao IHGB e mesmo em periódicos do século XIX. Mas, além do caráter construído da história da música no Brasil podemos também observar nas entrelinhas dos discur- sos alguns dos dilemas estéticos e ideológicos pelos quais passaram os homens da geração de 1830-1870 e que, de certo modo, continuam repercutindo nos dias atuais. Introdução A questão da identidade cultural tem sido um fantasma a perturbar os homens de letras e intelectuais no Brasil. Muito antes do projeto do moder- nismo nacionalista do século XX, já havia um empenho na elaboração de uma cultura “brasileira” e principalmente dos princípios que deveriam reger a escrita da história do Brasil. Logo após a Independência em 1822, dentre as pessoas comprometidas com este plano para uma nação que se queria singular, aparece um grupo de homens letrados convictos do seu projeto ao mesmo tempo civilizador e construtor da nacionalidade em torno da figura de Gonçalves de Magalhães (1811- 1888). Entre eles também Manoel de Araújo Porto Alegre (1806-1879), assim que chega ao Rio de Janeiro, vindo do Rio Grande do Sul em 1827 e membro do primeiro grupo que freqüentou a Academia Imperial de Belas Artes, tornando-se discípulo de Jean Baptiste Debret (1768-1848). Tendo sido levado para Paris pelo mestre em 1831, se junta a Magalhães e Francisco de Salles Torres Homem (1812-1876) para fundar a revista Nitheroy: Revista Brasiliense. Sciencias, Lettras e Ar- tes, considerada o marco inicial do romantismo literário brasileiro e onde Porto Alegre publica um dos dois artigos, com a “intenção profunda de pro-

Upload: juca-lima

Post on 04-Oct-2015

58 views

Category:

Documents


5 download

DESCRIPTION

Martha Ulhôa

TRANSCRIPT

  • Ictus 08-2 7

    Inventando moda:a construo da msica brasileira

    Martha Tupinamb de UlhaUniversidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO)

    [email protected]

    Resumo: Reflexo sobre a noo da modinha e do lundu como as razes da msicapopular brasileira. Trata principalmente das formulaes sobre o assunto feitas porArajo Porto Alegre, em afirmaes que seriam repetidas e cristalizadas por vriashistrias da msica posteriores. Porto Alegre foi um dos agentes importantes para aconstruo da idia de cultura brasileira aps 1822, juntamente com outros homensde letras, muitos deles ligados ao Instituto Histrico e Geogrfico Brasileiro (IHGB).Veremos que a modinha e o lundu so raramente mencionados nas fontes ligadas aoIHGB e mesmo em peridicos do sculo XIX. Mas, alm do carter construdo dahistria da msica no Brasil podemos tambm observar nas entrelinhas dos discur-sos alguns dos dilemas estticos e ideolgicos pelos quais passaram os homens dagerao de 1830-1870 e que, de certo modo, continuam repercutindo nos dias atuais.

    IntroduoA questo da identidade cultural tem sido um fantasma a perturbar os

    homens de letras e intelectuais no Brasil. Muito antes do projeto do moder-nismo nacionalista do sculo XX, j havia um empenho na elaborao deuma cultura brasileira e principalmente dos princpios que deveriam regera escrita da histria do Brasil. Logo aps a Independncia em 1822, dentreas pessoas comprometidas com este plano para uma nao que se queriasingular, aparece um grupo de homens letrados convictos do seu projeto aomesmo tempo civilizador e construtor da nacionalidade em torno da figurade Gonalves de Magalhes (1811- 1888). Entre eles tambm Manoel deArajo Porto Alegre (1806-1879), assim que chega ao Rio de Janeiro, vindodo Rio Grande do Sul em 1827 e membro do primeiro grupo que freqentoua Academia Imperial de Belas Artes, tornando-se discpulo de Jean BaptisteDebret (1768-1848). Tendo sido levado para Paris pelo mestre em 1831, sejunta a Magalhes e Francisco de Salles Torres Homem (1812-1876) parafundar a revista Nitheroy: Revista Brasiliense. Sciencias, Lettras e Ar-tes, considerada o marco inicial do romantismo literrio brasileiro e ondePorto Alegre publica um dos dois artigos, com a inteno profunda de pro-

  • Ictus 08-28

    clamar a especificidade do Imprio pelo delineamento de uma cultura defi-nida como brasileira (Squeff 2004, p. 67). Os artigos so: Ensaio sobre ahistria da literatura no Brasil, de Magalhes e Idias sobre a msica, dePorto Alegre. Adaptado do segmento musical aparece o seguinte trecho nofamoso Viagem pitoresca e histrica ao Brasil:

    A msica da Bahia o lundu, cuja melodia excessivamentevoluptuosa regula o ritmo de uma alamanda danada por umhomem e uma mulher. A msica de Minas a modinha, roman-ce sentimental cheia de pensamentos delicados e que canta-da com acompanhamento muito cromtico. Na Bahia tudo doce, a terra produz o acar e se o habitante se estimula a siprprio com alimentos apimentados unicamente para mantersua lasciva indolncia (Debret 1978, p. 107-108).

    A afirmao foi feita a partir do texto de Porto Alegre mencionadoacima, mas ao qual o autor de Viagem pitoresca acrescenta alguns deta-lhes que demonstram sua familiaridade com as prticas musicais menciona-das. Discutiremos a integral do texto abaixo, mas basta dizer que Debretacrescenta por conta prpria que o lundu uma dana parecida com aalemanda termo francs usado nos sculos XVIII e XIX para danas depar , enquanto a modinha teria um acompanhamento cromtico, ambas ascaractersticas no mencionadas no artigo da Nitheroy...

    O interesse pela canonizao da modinha e do lundu surgiu no mbitode um projeto de pesquisa sobre as matrizes culturais e musicais da msicabrasileira popular.1 Os trabalhos comearam pelo exame de partituras, li-vros e de pastas de pesquisa com recortes de jornal e anotaes do acervo-biblioteca de Mozart de Arajo (1904-1988). O musiclogo elege a modinhae o lundu como precursores da msica popular contempornea. Suas pastasde pesquisa sobre os dois gneros ainda esto por ser mais bem aproveita-das e seu clssico A modinha e o lundu no sculo XVIII (1963) antolgico,principalmente pelas reprodues de partituras que ocupam sua segundaparte. Mas era necessrio ir alm da literatura especializada e explorar emoutras fontes. Assim, iniciamos a pesquisa em peridicos do sculo XIX embusca de descries de gneros e prticas musicais feitas por pessoas co-muns. Os peridicos so fontes importantes que guardam muitas informa-es no s sobre a sociedade e a populao, como tambm sobre a ativida-

    1 Agradeo ao CNPq e UNIRIO pelo apoio pesquisa. A maioria dos dados prim-rios discutidos aqui foi coletada por Francisco Gouveia e Vanessa Weber de Castro,enquanto bolsistas de iniciao cientfica. Estes dados podem ser encontrados napgina do projeto no endereo www.unirio.br/mpb/matrizes.

  • Ictus 08-2 9

    de musical do sculo XIX. Como modelo para o trabalho com peridicosnos baseamos na metodologia utilizada por Schwarcz (1987) para estudarescravos e cidados em So Paulo do sculo XIX.

    Cada membro da equipe selecionou um estado para investigar de for-ma aleatria, com a ressalva de evitar o Rio de Janeiro, pelo fato de que jfoi muito pesquisado. Os dados discutidos aqui foram coletados por VanessaWeber de Castro, que escolheu o estado da Bahia e Francisco Gouva deSouza, que escolheu o estado de Minas Gerais. Outros alunos trabalharamcom Rio Grande do Sul, interior do Rio (Campos) e Paran.

    A leitura dos peridicos mineiros do sculo XIX, por exemplo, se mos-trou rica em relatos, especialmente de pera e o que era chamado de par-tidas de baile, que tinham sede nos clubes que estavam nascendo por todaprovncia. A pouca referncia msica popular em parte explicada pelainexistncia do prprio conceito de msica popular no perodo estudado. Ospraticantes dos gneros, que poderiam ser tidos como populares, no sepercebiam como praticantes de msica popular como entendemos atual-mente, assim como os autores dos peridicos tambm no percebiam estesgneros como manifestaes dignas de serem registradas (Souza 2005).

    O fato que o que comeou na procura pelas matrizes da msicabrasileira popular foi aos poucos tomando outros rumos ao longo do pro-cesso. Procurar apenas a continuidade na histria da msica, ou seja, aquiloque se manteve ou que tem relao com uma prtica musical contempor-nea pode deixar de lado uma srie de questes relevantes sobre o perodoestudado, pois o que no permaneceu ao longo do tempo no avaliado.Primeiro, porque com o aprofundamento da pesquisa chegamos conclu-so de que o conceito de popular no Brasil, ainda mais do que na Europa,de formulao tardia.2 Espervamos, por exemplo, encontrar menes so-bre, pelo menos, a modinha e o lundu, supostos representantes da msicapopular da poca nos peridicos da segunda metade do sculo XIX (micro-filmados e mantidos pela Biblioteca Nacional). O que ocorreu foi justamen-te o oposto do esperado.

    No entanto eram freqentes os relatos de festas cvicas e religiosas eeventos culturais, noticias sobre euterpes e conjuntos de msica (a LiraCeciliana e a Orquestra Ribeiro Bastos em S. Joo del Rei, por exemplo nocaso de Minas Gerais ou a Euterpe Ceciliana e a Orphesina Cachoeira em

    2 O mesmo pode-se dizer do conceito de highbrow e lowbrow desenvolvidos nosEstados Unidos somente no final do sculo XIX.

  • Ictus 08-210

    Cachoeira, Bahia), msicos, e instrumentos, o que nos possibilitou ter umaidia do que musicalmente fazia parte do cotidiano das pessoas da poca.

    Ao trabalhar com este tipo de fonte documental, estamos em constantecontato com o que Peter Burke (1989) chama de mediao, que acontecequando estudamos a cultura de tradio oral atravs de documentos e textosdeixados por pessoas letradas, pois vemos e analisamos estas informaesatravs de um olhar duplo com os nossos olhos e com os de quem as escre-veu. bastante complicado saber como realmente aconteciam as festas, even-tos e demais acontecimentos descritos pelos autores dos textos dos jornaisoitocentistas, nos restando, ento, a tentativa de reconstruir as prticas atra-vs da comparao das informaes encontradas nestas fontes primriascontrapostas a outros estudos do mesmo contexto (Castro 2005).

    Em relao ao material dos jornais antigos da Biblioteca Nacional,inicialmente pretendamos lidar com jornais do final do sculo XIX at adcada de 1920. No entanto, dada a quantidade grande de jornais existen-tes, acrescida da lentido inerente leitura desse tipo de documento, almda constatao da existncia de peridicos bastante antigos em cada rolo demicrofilme pesquisado (alguns de vida bastante efmera, os mais antigos decerca de 1860), optamos por lidar com dados somente do sculo XIX, pelomenos num primeiro momento.

    No processo de anlise dos dados pesquisados, percebemos que umaidia que precisava ser revista era o prprio conceito de msica popular. Adiscusso acerca do conceito comeou pela constatao das noes de m-sica popular que orientavam a nossa busca nos peridicos. Ou seja, a equipese perguntou o que era msica popular para cada um, concluindo que elapoderia ser definida de vrias formas: msica popular como oposta msi-ca erudita; msica popular como MPB, um repertrio e estilo especfico; m-sica popular como sendo aquela que disseminada atravs dos meios decomunicao de massa; e finalmente, a contraposio entre msica popularautntica, brasileira e msica popular comercial, no autntica. O fato que nossas concepes sobre o popular devem muito ao legado que o moder-nismo nacionalista nos deixou (centrado na noo idealizada de uma culturapopular rural pura e verdadeira como fonte de identidade nacional), o que decerta maneira contamina o olhar que lanamos para o passado.

    Documentos histricos deixam traos de significados reprimidos nassuas entrelinhas. Muitas vezes, inclusive, o que se anota tem certo sentidoprescritivo, o que podemos observar em muitos relatos de viajantes estran-geiros em relao ao Brasil dos oitocentos, por exemplo. Debruar-se sobreo contedo semntico dessas inscries um esforo descritivo. Assim,

  • Ictus 08-2 11

    no vamos encontrar menes ao que entendemos hoje como Msica Po-pular nos peridicos analisados (ver em www.unirio.br/mpb/bib). A maioriados registros se refere msica de concerto e msica religiosa. Isto paraos jornais em Minas Gerais. J os jornais do interior do estado do Rio deJaneiro enfatizam o teatro e a presena de bandas de msica em vriasinstncias. Os da Bahia tratam de festas religiosas, bandas de msica, co-mdias-dramas, e muitas apresentaes com canonetas, duetos de opera,etc. Assim, percebemos a necessidade de observar todas menes a quais-quer prtica que tivesse alguma relao com algum aspecto musical, inse-rindo-as numa perspectiva mais ampla. O que hoje se denomina msica deconcerto, por exemplo, parecia ter outra conotao no sculo XIX. Os ann-cios de partitura se referem a um sem nmero de parfrases, fantasias eredues de rias de pera, bem como os anncios de espetculos parecemse referir mais ao que poderia ser no mximo msica ligeira (opereta,zarzuela) do que de msica sria.

    O fato que h a necessidade de uma reviso sobre a maneira depercebermos o sculo XIX. Algo j tem sido feito neste sentido, destacan-do-se o livro de Cristina Magaldi (2004) sobre a msica europia no Rio deJaneiro oitocentista. Nele a autora deixa bastante clara a distino que erafeita acerca do que se entendia por nacional no sculo XIX (ser equiparados naes civilizadas, ou seja, usar uma linguagem musical europia) e opapel do local (considerado como extico) naquele cenrio.

    Voltando s atividades desenvolvidas na pesquisa, por sugesto daProfessora Martha Abreu historiadora da UFF, atualmente desenvolven-do uma investigao sobre Eduardo das Neves, palhao ator e cancionistado final do sculo XIX - passamos a fazer um levantamento de referncias msica em revistas do Instituto Histrico e Geogrfico Brasileiro. Vistoque o conceito de msica popular do final do sculo XIX e incio do sculoXX no como o concebemos hoje, no incio do sculo XXI, buscamosento, informaes sobre a msica em geral. Nas revistas pesquisadas (ain-da estamos no processo de coletar os dados da Revista do IHGB 1839-1910), so encontrados com freqncia relatos de viajantes sobre a fauna,flora, geografia e habitantes do Brasil, muitas transcries de documentos(vrios de missionrios do sculo XVI), principalmente sobre as populaesindgenas e naturalmente sua msica; descries de festas patriticas; da-dos biogrficos e notas de falecimento de msicos; alguns poucos progra-mas completos de concerto e alguns artigos mais gerais onde aparecemdescries de danas e festas populares.

  • Ictus 08-212

    A ausncia de referncias a gneros consagrados como as matrizesda msica brasileira notria. Neste ponto comeamos a amadurecer apercepo da natureza construda da Histria (ref. Hobsbawn e Ranger1984) e do papel que os homens letrados ligados ao IHGB tiveram nesteprocesso (ver Veloso e Madeira 1999). A fora do pensamento escrito eregistrado desses homens enorme, sendo reproduzida em escritos posteri-ores e incorporada ao senso comum. Entre os mitos o destaque para amodinha e o lundu, atribuvel a Arajo Porto Alegre, ao qual contesta ManoelQuerino, na sua Contribuio para a Historia das Artes na Bahia publicadana Revista do Instituto Geogrfico e Histrico da Bahia (IGHB), VolumeXVII, N. 36, 1910, p. 63:

    Uma retificao historica - No raro o Brasileiro, adventicio naEuropa, adquire o habito de pretender ridiculisar, com exage-ros deprimentes, tudo quanto diz respeito sua nacionalida-de. Desta pecha no se eximiu o illustre artista e diplomataManoel d Araujo Porto Alegre, depois baro de Santo Ange-lo, que, editando um artigo na Rvue Brsliene, e depois trans-crito por J. B. Debret, [...] na sua importante obra VoyagePittoresque au Brsil, [...] onde vem narrando os fatos maisimportantes ocorridos de 1816 a 1831, revelou desconhecer,por completo, o movimento artstico da Bahia, sentenciando:La musique de Bahia est le lundum, dont l excessive voluptde la mlodie regle le pas dune allemande danse par unhomme et une femme. Quant celle de Minas, cest lamodinha, romance sentimentale pleine de penses dlicates,et qui se chante avec un acompagnement trs chromatique.A Bahia, tout est doux, le sol y produit le sucre; et si l habitantse stimule par des aliments piments, ce nest qui pour yentretenir sa lascive indolence. (...) Apresentando, como ofao, documentos que invalidam a opinio do ilustre diploma-ta baro de Santo Angelo, com relao msica na Bahia, -me grato deparar ensejo de rebater uma depreciao injusta,que por longo tempo perdurou, sem protesto. Fica, pois, en-tendido que nas trs primeiras dcadas do sculo passado, amusica, em nossa terra, no se limitava ao lundu. Havia msi-cos distintos, havia orquestra, havia musica religiosa e mes-tres de bandas marciais. (transcrio completa em http://www.unirio.br/mpb/ihgb/ palavra chave lundu).3

    3 Como mencionado acima o texto de Porto-Alegre, transcrito por Giron (2004, p.233-243), apareceu originalmente em Paris, 1836, na Nitheroy, Revista Brasiliense,sendo republicado em 1978, pela Academia Paulista de Letras (em edio esgotada).Recentemente, em 2006 a editora Minerva Coimbra publicou em fac-smile os doisnicos nmeros da revista (ISBN 972-798-183-6).

  • Ictus 08-2 13

    O comentrio de Manoel Querino tem muitos desdobramentos, sendoque mereceria um estudo mais aprofundado. Entre eles, como mencionadono texto o exagero de considerar o lundu como a msica caracterstica daBahia, sem levar em considerao os msicos distintos, a msica de orques-tra e de banda marcial. No cremos ser possvel Porto Alegre ter tido co-nhecimento to amplo. Neste momento, basta destacar que o Baro deSanto ngelo, apesar de embarcado num projeto comprometido com apossibilidade de ultrapassar a herana colonial e atualizar o Imprio, compa-rando-o s naes civilizadas europias (cujo modelo Paris), separa bemas coisas, mencionando ser a msica cultivada na marimba do escravo, naviola do capadcio e no piano do senhor. Ou seja, civilizado, mas mantendomuito bem seus nichos sociais. E interessantemente, no menciona nada dedana de par na sua descrio do carter dos habitantes dos diversos luga-res na mesma Nao, que se salientam na msica, a Bahia e Minas. Paraele o lundu meldico, enquanto a modinha mais grave (apud Giron,2004, p. 242).

    De qualquer maneira, a lio maior que os resultados da pesquisa nosmostram at agora a necessidade de um esforo de natureza etnogrfica tentar estabelecer o contato e a empatia com documentos escritos, levan-do em conta de que foram mediados pela viso de mundo (e os valoresligados ao romantismo e positivismo no caso do sculo XIX) e competnciamusical de seus autores.

    Mas avancemos um pouco mais na discusso dos dados...

    Dados de peridicos mineiros e baianosPrimeiro, interessante que nos peridicos haja pouqussimas men-

    es modinha (9 ocorrncias em 410 registros inseridos no banco de da-dos at o momento) e NENHUMA ao lundu... Nos jornais mineiros nemmesmo a modinha aparece. Peculiar que num jornal de Cachoeira, BA (ter-ra suposta do lundu...) aparea uma transcrio de um jornal mineiro (terrasuposta da modinha) falando da mesma de forma depreciativa... Todas asoutras instncias louvam o gnero.

    O Guarany 07/4/1885 (Cachoeira, Ba)[transcrio de Arauto de Minas] menciona conflito em S. Joo Del

    Rei entre estudantes da escola Polytechnica que cantavam modinhas deum realismo mais ou menos cru e recitando trechos de canontas, mais oumenos escabrosos.

  • Ictus 08-214

    O Guarany, jornal noticioso, litterario e commercial 07/5/1878 (Ca-choeira, Ba)

    Num folhetim intitulado Os voluntrios da ptria, mencionada umafesta ao Bom Jesus, de cuja turba de tempos em tempos se destacavaalgum grupo, ora cantando modinhas acompanhadas ao violo, ora forman-do o que vulgarmente se denomina um samba. [uma de duas menes asamba em todo o material...].

    Almanach Litterario e de Indicaes 1888-1889 (Salvador).Na seo literria um poema intitulado Serenata, menciona uma ge-

    nuna modinha.

    Almanach Litterario e de Indicaes 1888-1889 (Salvador)Biografia do Dr. Tobias Barreto comenta que na noite do dia em que

    entrou para o seminrio canta uma modinha, uma modinha profana!

    O Alcar: Revista Semanal Litteraria, chistosa e Illustrada 1/1/1871 (Salvador)

    Crnica relembra com nostalgia as modinhas cantadas ao violosendo colocadas de lado pelas novidades da moda [operetas e zarzuelas?].

    O Acadmico: periodico dedicado medicina e a Litteratura 01/8/1872 (Salvador)

    Seo literria menciona tropeiros que choro as modinhas da serra.

    A Lei 01/01/1877 (Salvador)Notcia de modinha para canto e piano intitulada O Pobre Asylado

    (...) cujo produto reverter em favor do Asylo de Mendicidade.

    A Lei 28/11/1875 (Salvador)Notcia de modinha intitulada Saudades de Olinda, recomendada s

    nossas dignas pianistas cantoras.

    Cenculo 1/8/1896 (Curitiba, PR)Seo Lenda Sertaneja menciona melodia tristssima do canto de um

    pequeno aleijado que, no rancho, soluava as modinhas acompanhadas dotrinado harmonioso de uma viola velha

  • Ictus 08-2 15

    Dados das Revistas dos Institutos HistricosNas revistas dos institutos histricos, entre 163 registros (inseridos at

    janeiro de 2007) a modinha mencionada 22 vezes e o lundu 12, os doisgneros aparecendo juntos em alguns dos registros.4 Entre eles gostaria dedestacar um da Revista do Instituto Geogrfico e Histrico Baiano de 1899,de autoria do Dr. A. da Cunha Barbosa, intitulado A Litteratura BrazileiraColonial (Revista Trimensal do IGHB Tomo/Volume: VI, n 20, 1899, p.162):

    [Sec XVI e XVII] (...) As antigas serranilhas gallezianas que,como quer o Sr. Theophilo Braga, constituram as nossasmodinhas e lundus, deram os aborgines, s primeiras pelomenos, pois ressentem-se as segundas da vantagem de influ-ncia africana, uma boa parte do lascivo encanto e seduoirresistvel que encerram essas rias, verificando-se semelhanteao pelo cruzamento das raas no produto nacional muitomais do que por influncia direta.

    Ou seja, rejeitada a herana africana e agora emerge um dado bas-tante interessante: o ndio traz ao cruzamento das raas o elemento delascivo encanto e seduo irresistvel da modinha, sendo bem vindo comoelemento formador do produto nacional. O elemento local idealizado;quem contribui para a distino da msica nossa o ndio, atravs doscruzamentos raciais do passado; o negro que est to presente no dia a dia discriminado...

    Assim, estamos de volta a um aspecto importante para a compreen-so das matrizes culturais da msica brasileira popular. Se aprendemos comos modernistas que o nacional est no local, este no o caso no sculo XIXe principalmente no faz parte do programa traado pelos homens letradosque, sob os auspcios do Estado imperial, estabeleceram o conhecimentodemogrfico, cartogrfico e histrico do pas, edificando assim um conceitode nao. No sculo XIX, como demonstrado por Magaldi, a idia de naci-onal emerge de uma necessidade de insero do Brasil no cenrio da civili-zao europia.

    Sobre a msica no BrasilPara a compreenso desse contexto a criao do IHGB em 1838

    certamente central. Um de seus membros mais ilustres, Joaquim NorbertoSilva (1820-1891), quem vai compilar um dos cancioneiros mais importantes

    4 Ver em www.unirio.br/mpb/ihgb.

  • Ictus 08-216

    do sculo XIX, A cantora brazileira.5 Os trs volumes do A cantora soprecedidos de transcries de textos de Idias sobre a msica no Brasil. NoTomo I, dedicado s modinhas trechos de texto de Ferdinand Denis de 1826(Du gout des brasiliens pour la musique). Denis comenta como o povosofrido at se esquece dos cuidados de penoso trabalho sempre que escutaos simples acordes de uma guitarra ou violo das modinhas sentimentais,com seus acordes repetidos de maneira montona. Nos sales onde se mul-tiplicam os pianos, a msica de Rossini. Nas solenidades importantes missascom orquestra. Para nascerem grandes msicos bastar algum alento dogoverno para dar ao novo mundo um Mozart, um Paesiello, um Cimarosa.

    Ferdinand Denis, que viajou pelo Brasil entre 1816 e 1819 figuraimportante para a formao do cnone literrio do romantismo no Brasil,uma literatura onde a temtica americana conseguida pela descrio danatureza ou do indgena, modelo muito mais adequado, segundo Denis doque as imagens gregas que povoavam a literatura local. No livro Scnes dela Nature sur les Tropiques et de leur Influence sur la Posie, publicadoem 1824, Denis procura retomar o romantismo de Chateaubriand, onde aAmrica e o Oriente so rigorosamente intercambiveis como comentaEsteves (1997) no seu artigo sobre exotismo e identidade nacional no Brasiloitocentista.

    O Tomo II, dedicado aos recitativos de A cantora traz trechos deTheophilo Braga e da famosa carta de Lord Beckford descrevendo amodinha (lnguidos e interrompidos compassos), textos j comentados naliteratura com destaque para Veiga (1988).

    O terceiro volume com canes e hinos traria o texto Idias sobre amsica de Porto Alegre. No entanto, a edio que consultamos de A Canto-ra s tem uma nota dizendo que no foi possvel sua publicao. Nos co-mentrios que se seguem nos referimos transcrio de Giron (2004) dantegra do artigo. Nele vamos encontrar a referncia modinha e lundu,como mencionado acima, e muito mais: o amor como inventor da msica, asreferncias natureza (toda a natureza uma orquestra), o papel deagente de socializao da msica (A msica para a sociedade o que a

    5 Na pesquisa com os cancioneiros conto com o auxlio dos bolsistas MaurcioTeixeira e Vincius Preu. S como curiosidade, Joaquim Norberto era to envolvidocom o projeto nacionalista que colocou nos seus filhos nomes em homenagem alugares nacionais, entre eles Oscar Guanabarino (1851 1937), que viria tambminterferir no cenrio artstico como crtico de arte, especialmente polmico comocrtico musical.

  • Ictus 08-2 17

    boa distribuio da luz para um quadro, ambas do vida e alma s coisas aque se aplicam).

    A msica no desceu do cu somente para dar-nos sons melo-diosos, ou ferir-nos os sentidos com a riqueza da harmonia,no; a Msica uma mola, que desperta no corao a inocn-cia, a lembrana do amigo ausente, a saudade da Ptria; umanova fora que faz girar em nossa alma a potncia do herosmo,os encantos da Religio, e as douras do amor, e da melancolia(apud Giron, 2004, p. 235).

    Depois aparecem menes ao Egito (Isis, Moiss), Grcia (lira, Tebas,Orfeu, Mercrio, Plato, Pitgoras, Licurgo), Idade Mdia (Trovadores) etambm a Napoleo (!), que segundo ele tocava a violeta logo queembainhava a espada, havendo de temer os reis e naes quando aconte-cia o contrrio, quando o Homem com H maisculo largava o arco paratocar no punho da espada!.

    O trecho termina por realar o poder da msica de ser um blsamopara aqueles saudosos da ptria; permitindo imaginao colocar nas Ter-mas de Nero (...) ou nas fauces do Vesvio, a torrente do Carioca, o blsa-mo da mangueira, e o coqueiro do Guaba.

    Finalmente, a segunda parte do texto intitulado Sobre a Msica noBrasil que comea com a diferenciao do carter dos povos pela msica(O primeiro sentimento que se declara em uma gerao infante a melo-dia; civilizada ela, aparece a harmonia), continua com as referncias modinha e ao lundu j mencionadas e termina louvando o que chama deescola de Jos Maurcio, que teria um carter peculiar por no sucumbir tentao do teatro, compondo msica religiosa, apesar da concorrncia daproduo italiana e germnica no Rio de Janeiro.

    Porto-Alegre, semelhana do que fizeram outros homens letrados,seus contemporneos, estabelece as diretrizes para certa concepo de m-sica brasileira, concepo ao mesmo tempo civilizadora e distintamente bra-sileira. Nos vrios trechos transcritos ou parafraseados abaixo algumasdas concepes naturalizadas pela repetio em vrios dos textos mediadospelos quais nos familiarizamos com a msica no Brasil do sculo XIX. Inici-almente um trecho, ecoado em tantos estudos:

    Os proscritos e aventureiros de Portugal deram princpio Nao Brasileira. Privados de qualquer elemento que dessepasto prosperidade, circunscritos nos limites da agriculturae do trfico, cansados e alimentados pelo sol do equador,lanavam-se nos braos do amor, e o amor os inspirava; e nostransportes dalma choravam sua sorte. O amor produziu asartes da imaginao, e o entusiasmo as elevou ao sublime; e

  • Ictus 08-218

    os filhos da floresta envoltos da mais rica louania [elegncia]da natureza cantavam, e sua Msica semelhante ao balanoda rede, que oscilando no ar forma um zfiro [brisa, aragem]artificial, que tempera a calidez (sic), apresenta o cunho mel-dico: uma nnia [elegia, canto fnebre] amorosa onde respi-ra o blsamo misterioso da voluptuosidade, a prolao dogemido do infeliz, uma Msica do corao (apud Giron, 2004,p. 241-242).

    Ou seja, natureza [ndios] msica de cunho meldico [j que a melodia o primeiro sinal de civilizao] e no sei por que cargas dgua voluptuosa[uma concesso exuberncia tropical?].

    E para terminar um mote que vai ser retomado com o nacionalismomodernista, de uma forma modificada, colocando no lugar da natureza acultura tradicional rural:

    Os climas e o solo, que tanto concorrem para o carter nacio-nal, so os fornecedores das inspiraes, e logo que hsimilitude entre o carter das naes, e grau de civilizao, oresultado musical o mesmo. A linguagem do homem no mais do que uma combinao de sons mais ou menos modifi-cados, e que representam as idias; (...) as idias so a nature-za, e a linguagem o artista; do maior ou menor talento destedepende o primor ou a mediocridade da obra (apud Giron,2004, p. 240).

    Ou seja, papel do artista traduzir a natureza em sons combinados deforma civilizada. Assim, Porto Alegre em 1836 lana as bases para a futuramusicologia brasileira. Enquanto msica caracterstica a modinha e o lundu,cultivadas em Minas Gerais e na Bahia, segundo ele. Enquanto msica cul-ta, a escola de Jos Maurcio.6

    Temos muito a pesquisar e, principalmente tentar compreender sobrea msica no sculo XIX. Na pequena amostra em que nos debruamos, noso a modinha e o lundu os gneros mais citados. Pode ser que modinha elundu seriam algo menor ou, no caso do lundu at extico, como propostopor Cristina Magaldi. O certo que em nenhum momento temos qualquermeno ao ritmo ou dana, exceto pela meno alemanda feita por Debretcriticada por Manuel Querino. Por outro lado, tambm temos muito pouca

    6 Arajo Porto-Alegre era um admirador de Jos Maurcio Nunes Garcia (1767-1830),sendo que em 1856 publica na Revista do IHGB apontamentos sobre a vida e obrado padre compositor. Creio que o admirava principalmente pela tenacidade emconservar um estilo religioso e sbrio e ser, como ele prprio, sempre pobre, mas umluminar da cultura brasileira (Squeff, 2004).

  • Ictus 08-2 19

    informao do tipo de msica louvado tanto por Porto Alegre quanto porQuirino principalmente nos jornais e com pouca freqncia nas revistas dosinstitutos histricos que pesquisamos at o momento os msicos distintos(quem seriam os seguidores de Jos Maurcio?), as orquestras e, principal-mente a msica religiosa. A considerar os gneros mais citados nos jornaispera (48 menes), valsa (citada 16 vezes) e polca (13 vezes) estavam frente da modinha (11 citaes) no gosto dos escritores/leitores de jornais,enquanto que nas revistas do IHGB o contexto outro: polca mencionadaapenas 3 vezes, a valsa 4 e a pera 8, enquanto a modinha lidera o nmerode citaes (20) seguida pelo lundu (11).

    Finalmente, mesmo considerando as menes modinha e ao lundudiscutidas aqui, temos que levar em conta o contexto das afirmaes. Aidia de brasilidade de Debret e Arajo Porto Alegre em torno da dcadade 1830 completamente diferente daquela posio defendida por ManoelQuerino, em 1910. Mas isto assunto para outro artigo...

    Bibliografia utilizada

    ARAJO, Mozart de. A Modinha e o Lundu no Sculo XVIII. So Paulo:Ricordi Brasileira, 1963.

    BURKE, Peter. Cultura popular na idade moderna. So Paulo: Cia dasLetras, 1989.

    CASTRO, Vanessa Weber de. A msica e o tempo em um peridico baianodo sculo XIX. ANAIS ANPPOM Dcimo Quinto Congresso/2005,p. 492 498.

    DEBRET, Jean Baptiste. (1768-1848). Viagem pitoresca e histrica aoBrasil. Traduo de Sergio Milliet. Belo Horizonte: Itatiaia, 1978.

    ESTEVES, Paulo Luiz Moreaux Lavigne. Paisagens em Runas: Exotismoe Identidade Nacional no Brasil Oitocentista. Dados, vol. 41 n. 4,1998. Disponvel em: . Acesso em: 11 Mar. 2007.Pr-publicao. doi: 10.1590/S0011-52581998000400005.

  • Ictus 08-220

    GIRON, Lus Antnio. Minoridade Crtica. So Paulo: Edusp/Ediouro, 2004.

    HOBSBAWN, Eric e RANGER, Terence (Orgs.). A inveno das tradi-es. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1984.

    MAGALDI, Cristina. Music in Imperial Rio de Janeiro: European Culturein a Tropical Milieu. United States: Scarecrow Press, 2004.

    SCHWARCZ, Lilia Moritz. Retrato em branco e negro Jornais, escra-vos e cidados em So Paulo do sculo XIX. 1 reimpresso. SoPaulo: Cia. das Letras, 1987.

    SOUSA, Francisco Gouva de. O conceito de msica popular e as prti-cas musicais mineiras do sculo XIX. ANAIS ANPPOM DcimoQuinto Congresso/2005, p. 1408 1414.

    SOUZA E SILVA, Joaquim Norberto (Org.). A cantora brazileira. 3 v.Rio de Janeiro: Garnier, 1878.

    SQUEFF, Letcia. O Brasil nas letras de um pintor: Manuel de ArajoPorto Alegre (1806-1879). Campinas: Editora da UNICAMP, 2004.

    VELOSO, Mariza e MADEIRA, Maria Anglica. Leituras Brasileiras:Itinerrios no Pensamento Social e na Literatura. Prefcio deSrgio Rouanet. So Paulo: Paz e Terra, 1999.

    VEIGA, Manuel. O estudo da modinha brasileira. Revista de Msica Lati-no Americana 19/1 (1988): 47-91.