introdução ao pensamento de galilei

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7/24/2019 Introdução Ao Pensamento de Galilei http://slidepdf.com/reader/full/introducao-ao-pensamento-de-galilei 1/4 1 Introdução ao Pensamento de Galileu Galilei Em “Il Pensiero di Galileo Galilei”. Classici della Filosofia, Loescher Editore, Torino, 1985. Tradução e adaptação de André Garcez Ghirardi  Para compreender a posição de Galileu na história da filosofia e da ciência, para entender o significado e a dimensão de sua obra, é necessário resgatar alguns aspectos fundamentais do milenário sistema de mundo que ele contribuiu de forma decisiva para superar. Universo Aristotélico É preciso retomar, inicialmente, a distinção aristotélica entre mundo celeste e mundo terrestre , entre movimentos naturais e movimentos violentos. Na filosofia de Aristóteles o mundo terrestre ou sublunar é produto da mistura de quatro elementos simples: a terra, a água, o ar, e o fogo. O peso ou a leveza de um corpo depende da proporção em que os quatro elementos está combinados nesse corpo, porque a terra e a água têm uma tendência natura de ir para baixo, o ar e o fogo uma tendência natural de ir para cima. É da agitação e das proporções da mistura desses quatro elementos que tem origem a mudança transformação contínua que está presente no mundo sublunar. Se os elementos não estivessem misturados, teríamos um universo em repouso: ao centro uma esfera de terra, envolvida numa esfera de água, por sua vez envolvida numa esfera de ar, e tudo seria contido numa esfera de fogo. O movimento natural de um corpo pesado é para baixo, e o de um corpo leve para cima: o movimento retilíneo para cima ou para baixo (concebido como movimento absoluto) depende portanto da tendência dos corpos a tomarem seu lugar natural . A experiência quotidiana da queda de um corpo no ar, ou da chama que se eleva, ou das bolhas de ar que vêm a tona na água, parecia confirmar essa teoria. A experiência nos expõe, além disso, a outros movimentos: uma pedra lançada para cima, uma flecha atirada do arco, uma chama desviada para baixo pela força do vento. Estes são os movimentos violentos devidos à ação de uma força externa que é contrária à natureza do objeto. Quando essa força cessa, o objeto retoma o lugar que lhe é natural. O mundo terrestre é o mundo da mudança, da transformação, do nascimento e da morte, da formação e da destruição. O céu por sua vez é inalterável e perene; seus movimentos são absolutamente regulares, e nele nada nasce e nada se corrompe; tudo é imutável, regular, e eterno. A matéria que constitui os corpos celestes não parece ter nada em comum com a que compõe os corpos terrestres. As estrelas, o sol, os planetas, que se movem sem cessar em torno à terra não são portanto feitos dos mesmos elementos que compõem os corpos do mundo sublunar, mas de um quinto elemento “divino” o éter  que é solido, cristalino, incorruptível, imponderável, e transparente. Dessa mesma matéria são feitas as esferas celestes e sobre o equador dessas esferas rodantes estão “fixados” os planetas, o sol, e a lua.

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Introdução ao Pensamento de Galileu Galilei

Em “Il Pensiero di Galileo Galilei”. Classici della Filosofia, Loescher Editore, Torino, 1985.Tradução e adaptação de André Garcez Ghirardi 

Para compreender a posição de Galileu na história da filosofia e da ciência, para

entender o significado e a dimensão de sua obra, é necessário resgatar alguns aspectosfundamentais do milenário sistema de mundo que ele contribuiu de forma decisiva parasuperar.

Universo Aristotélico

É preciso retomar, inicialmente, a distinção aristotélica entre mundo celeste  e mundo

terrestre, entre movimentos naturais e movimentos violentos. Na filosofia de Aristóteleso mundo terrestre ou sublunar é produto da mistura de quatro elementos simples: a terra,a água, o ar, e o fogo. O peso ou a leveza de um corpo depende da proporção em que osquatro elementos está combinados nesse corpo, porque a terra e a água têm uma

tendência natura de ir para baixo, o ar e o fogo uma tendência natural de ir para cima. Éda agitação e das proporções da mistura desses quatro elementos que tem origem amudança transformação contínua que está presente no mundo sublunar. Se os elementosnão estivessem misturados, teríamos um universo em repouso: ao centro uma esfera deterra, envolvida numa esfera de água, por sua vez envolvida numa esfera de ar, e tudoseria contido numa esfera de fogo.

O movimento natural de um corpo pesado é para baixo, e o de um corpo leve para cima:o movimento retilíneo para cima ou para baixo (concebido como movimento absoluto)depende portanto da tendência dos corpos a tomarem seu lugar natural. A experiênciaquotidiana da queda de um corpo no ar, ou da chama que se eleva, ou das bolhas de ar

que vêm a tona na água, parecia confirmar essa teoria.

A experiência nos expõe, além disso, a outros movimentos: uma pedra lançada paracima, uma flecha atirada do arco, uma chama desviada para baixo pela força do vento.Estes são os movimentos violentos devidos à ação de uma força externa que é contrária ànatureza do objeto. Quando essa força cessa, o objeto retoma o lugar que lhe é natural.

O mundo terrestre é o mundo da mudança, da transformação, do nascimento e da morte,da formação e da destruição. O céu por sua vez é inalterável e perene; seus movimentossão absolutamente regulares, e nele nada nasce e nada se corrompe; tudo é imutável,regular, e eterno. A matéria que constitui os corpos celestes não parece ter nada em

comum com a que compõe os corpos terrestres. As estrelas, o sol, os planetas, que semovem sem cessar em torno à terra não são portanto feitos dos mesmos elementos quecompõem os corpos do mundo sublunar, mas de um quinto elemento “divino” o éter  que é solido, cristalino, incorruptível, imponderável, e transparente. Dessa mesmamatéria são feitas as esferas celestes e sobre o equador dessas esferas rodantes estão“fixados” os planetas, o sol, e a lua.

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Ao movimento retilíneo, disforme e sempre limitado no tempo, e que é próprio doscorpos que se movem no mundo terrestre, se contrapõe o movimento circular, uniformee perene, das esferas e dos corpos celestes. Ao contrário do movimento retilíneo, omovimento circular se apresenta perfeito e portanto adequado à natureza perfeita doscéus: não tem início nem fim, retorna sempre sobre si mesmo, e prossegue eternamente.

Afora o mundo terrestre, o éter preenche totalmente o universo. E o universo, limitado pela esfera das estrelas fixas, é concebido como finito. A esfera das estrelas fixas, ou primeiro movente, transporta as estrelas e produz o movimento que se transmite porcontato às outras esferas e chega à esfera lunar, que é o limite inferior do mundo celeste.A terra não cabe, por natureza, nenhum movimento circular: ela está situada imóvel nocentro do universo. A tese da centralidade e imobilidade da terra não é marginal: é umdos pilares de toda a física aristotélica, tanto terrestre quanto celeste.

Universo e Doutrina

A complicada concepção de universo que permaneceu forte na cultura europeia até a

época de Copérnico, era resultado de uma complexa mistura da física de Aristótelescom a astronomia de Ptolomeu [Alexandria, Egito, século II d.C.]. Essa mistura seinseria numa cosmologia influenciada tanto por um misticismo neoplatônico, quanto

 pelas concepções teológicas da patrística e da escolástica. Veja-se por exemplo ouniverso de Tomás de Aquino, no qual as esferas celestes correspondem às várias

 potências angelicais.

Esse universo fundado sobre uma escala de perfeições permitia certezas sólidas. Omundo se apresentava rigidamente ordenado segundo uma hierarquia imutável. Ohomem, que participa pela alma da realidade inteligível e incorpórea, se integra, pelo

corpo, na ordem da natureza terrestre. Concebido como obra mais importante dacriação, ele ocupa uma posição central no universo. E o universo em que vive éconcebido como finito. A sociedade deve espelhar esse cosmo bem ordenado, quereflete a luz da razão divina. Esse tema, muito antigo, encontra-se muito vivo nasegunda metade do século XVI [Galileu nasce em 1564].

Pressupostos a Superar

De modo muito esquemático, pode-se elencar os pressupostos vigentes que tinham queser superados para que se pudesse construir uma nova física e uma nova astronomia:

1. 

Distinção, por princípio, de uma física celeste e uma física terrestre; uma

 perfeita e imutável, e outra imperfeita e sujeita à transformação (devir).2.

 

A convicção do caráter necessariamente circular dos movimentos celestes.3.

 

A imobilidade da terra e sua centralidade no universo.4.

 

A crença na finitude do universo e num mundo fechado.5.

 

A convicção de que para explicar o estado estático de um corpo, não se deva buscar nenhuma causa enquanto que, ao contrário, cada movimento era

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explicado seja pela forma ou natureza do corpo, ou provocado por um motor(causa motora) que permanece ativo enquanto houver movimento.

6.  O conflito que se estava instalando entre as hipóteses da astronomia e a físicaou, dde outro modo, entre a matemática e a física, ou ainda entre teorias e osexperimentos ou, por último, entre as especulações e as ações.

 Num período de cerca de cem anos (1610 a 1710) cada um desses pressupostosfoi refutado. Daí surgiu uma nova imagem do universo físico, destinada aencontrar sua completa realização na obra de Newton (1642-1727), e que passoua ser conhecida, após Einstein, pelo nome de física clássica.

Contribuição de Galileu

A obra de Galileu deu uma contribuição decisiva para a superação de alguns dos pressupostos listados acima. Dos seis pontos listados acima, o quinto diz respeitomais diretamente à Física, e merece uma menção detalhada.

Vimos que, na física aristotélica, todo movimento pressupõe um motor. E omotor deve estar presente no que se move, ou estar em contato direto com ele.Todo tipo de ação à distância é excluída como inconcebível. É fácil ver que o

 problema se torna particularmente complicado no caso do movimento dos projéteis (movimento violento). Uma flecha deveria cair assim que deixa o arco.A continuação do movimento dos projéteis era explicada afirmando que essa erafruto do movimento no ar. Dado que na física aristotélica não existe qualquertipo de vazio [Parmênides], o ar comprimido na frente do projétil ocupavaimediatamente o vazio que se tendia a formar atrás dele.

 Na teoria medieval do ímpeto o ar se transforma num elemento de resistência ao

movimento. No momento do lançamento, é transmitido um ímpeto que se exaure progressivamente. O ímpeto é concebido como um atributo interno ao corpo,uma qualidade sua (semelhante ao calor). Os teóricos do ímpeto contribuíram

 para colocar em crise alguns elementos tradicionais da filosofia aristotélica, masficaram ainda distantes do princípio de inércia, ao qual Galileu se aproxima eque encontra em Descartes sua formulação precisa. Para chegar a tal princípio,era necessário: imaginar que fosse eliminada a ação do ar, e que o movimentoocorresse no vácuo; decompor o movimento do projétil em suas partescomponentes (vertical e horizontal) como fez Galileu; chegar à ideia demovimento inercial de um corpo, isto é, entender que para parar um corpo em

movimento é necessária uma força, e que a força não produz movimento, produzaceleração. Ou seja, não se trata apenas da construção de uma nova ciência

 particular. Trata-se de uma grande conquista, e de uma grande revoluçãointelectual que marca o fim de um modo tradicional de considerar o movimento,a natureza, e a realidade.

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Copérnico: a raiz de uma revolução

Toda essa revolução na mecânica e na astronomia teve origem na crise provocada na ciência europeia pela aparição da obra do astrônomo polonês Nicolau Copérnico (Sobre a Revolução dos Corpos Celestes), publicada no anoda morte de seu autor, 1543.

O texto de Copérnico desencadeou uma crise profunda, expôs as contradições eas dificuldades da visão tradicional do mundo. A tese copernicana dacentralidade do Sol no universo, e a redução da Terra à condição de mais um

 planeta, não era apenas fruto de uma divergência com a física aristotélica oucom a astronomia ptolemaica. Era uma tese que também revelava o platonismo eo pitagorismo de Copérnico, e sua convicção da “maior dignidade” do sol. Osistema de Copérnico buscava maior simplicidade e harmonia. Ao atribuirmovimento à Terra, Copérnico conseguia eliminar explicações contorcidas parao movimento de alguns planetas. Mais do que o aperfeiçoamento de um método,

a revolução copernicana consiste na construção de uma nova cosmologia.A admissão do movimento terrestre e a aceitação do novo sistema implicavamnão só uma subversão da astronomia e da física, mas também uma mudança nasideias correntes sobre o mundo, uma nova avaliação do lugar e do significado doser humano no universo. Giordano Bruno na Itália vai mais além, refuta a ideiade um limite superior, e propõe a ideia de um mundo infinito, e a existência deinumeráveis outros mundos. A Terra, na qual nasceu o Filho de Deus, e que foi

 palco do drama da crucifixão e da redenção, perde sua posição excepcional: éapenas um dentre tantos mundos particulares.

O “perigo” da doutrina de Copérnico também foi denunciado por Lutero e outros pensadores da Reforma. Calvino contrapôs a autoridade do Espírito Santo àautoridade de Copérnico. Curiosamente, os ambientes católicos pareciam ignoraro problema, até o final do século XVI. O chamado “terceiro sistema” de TychoBrae foi muito bem aceito porque veio oferecer uma solução de compromisso: asestrelas fixas, a lua, e o sol, giram em torno da terra fixa, e os planetas giram emtorno do sol. Ao mesmo tempo em que destruía as teorias aristotélicas de esferascristalinas, confirmava o copernicanismo, ao qual era matematicamenteequivalente.

Houve, de todo modo, um sentimento de final de uma era, do desmoronar das

visões tradicionais sobre a estrutura do cosmo.