intercom sociedade brasileira de estudos ... · “construção social da realidade”, definida...
TRANSCRIPT
Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação XXXVII Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – Foz do Iguaçu, PR – 2 a 5/9/2014
1
As manifestações de junho de 2013: um acontecimento antimídia1
Renata Echeverria2
Universidade Federal de Pernambuco - UFPE
Resumo
O artigo faz uma análise de como os protestos realizados em várias capitais do País, em
junho de 2013, em favor da gratuidade nas passagens de ônibus para os estudantes, se
transformaram também num acontecimento antimídia. Durante a cobertura das
manifestações, as empresas de comunicação e jornalistas, principalmente os de televisão,
foram questionados e até agredidos. O que nos interessa neste trabalho é como a mídia, mas
especificamente a mídia televisiva, passou a ser questionada, transformando as
manifestações também num grito antimídia. Discutiremos aqui as estratégias de construção
da verdade na produção da notícia e do acontecimento pelo telejornalismo, num contexto
cada vez mais de disputa entre telespectadores e profissionais de comunicação.
Palavras-chave: acontecimento; produção da notícia; enquadramento; telejornalismo;
credibilidade da mídia.
A ideia deste artigo surgiu a partir da observação de como os protestos pela
revogação do aumento de 20 centavos da passagem de ônibus na cidade de São Paulo, em
junho de 2013, se transformaram também num acontecimento antimídia. Milhares de
estudantes foram às ruas protestar e exigir o “passe-livre”, gratuidade nas passagens de
ônibus, exprimindo descontentamento contra a política de governo empreendida na
organização da Copa das Confederações pela presidente do Brasil, Dilma Rousseff. O que
era para ser mais uma manifestação, como tantas outras já vistas no país, onde grupos
sociais de diferentes classes econômicas saem às ruas com cartazes reivindicando e
exigindo mudanças, se transformou num evento nacional e internacional: por melhoria na
qualidade de vida da população brasileira, por justiça, por um basta nos desmandos
políticos e na corrupção.
No entanto, tratava-se de uma demonstração excepcional, na medida em que nunca
antes tinha se reunido um número tão grande de pessoas e de categorias sociais tão
1 Trabalho apresentado no GP Telejornalismo, XIV Encontro dos Grupos de Pesquisas em Comunicação, evento
componente do XXXVII Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação. 2 Doutoranda do curso de Comunicação do Programa de Pé-Graduação em Comunicação da Universidade Federal de Pernambuco – PPGCOM – UFPE, email: [email protected]
Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação XXXVII Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – Foz do Iguaçu, PR – 2 a 5/9/2014
2
diferentes. Só nos anos de 1980, no movimento intitulado “Diretas Já”, as ruas tinham sido
ocupadas dessa forma. Nem os meios de comunicação esperavam tanta repercussão. Mas,
neste artigo, o que nos interessa é como a mídia passou a ser questionada pelo seu
posicionamento e como a manifestação se transformou também num grito antimídia, numa
demonstração de repúdio as empresas de comunicação. O posicionamento da imprensa,
diante dos fatos, nos principais meios de comunicação provocou e irritou a opinião pública.
Para o advogado e professor livre-docente de ética pela ECA/USP, Clóvis de Barros
Filho, a acusação de que a mídia é uma instituição conservadora deve ser entendida, na
essência, em relação à própria natureza do fazer jornalístico. “Essa verticalidade foi alvo de
desapreço no nível estatal, partidário, sindical, e não haveria por que ser diferente em
relação à mídia” (Revista Imprensa, agosto, 2013). A insatisfação com as instituições
nacionais, demostrada nos protestos, não deixou de fora o posicionamento das principais
empresas de comunicação do país. Jornalistas foram agredidos, empresas depredadas,
carros e equipamentos das equipes dos telejornais incendiados. A credibilidade do
jornalismo/telejornalismo estava em xeque.
Foi o caso do repórter da TV Globo, Caco Barcelos, encurralado no Largo do
Batata, em São Paulo, no dia 17 de junho, que reuniu milhares de pessoas na capital
paulista. Sob o grito de “O povo não é bobo, abaixo a Rede Globo”, um dos hinos mais
conhecidos dos protestos contra a emissora, o jornalista aguentou agressões com dedo na
cara e petelecos na orelha. Em Londres, três dias depois, o repórter correspondente da TV
Globo, Marcos Losekann, ouvia de um jovem brasileiro, que gritava num megafone: “a
Rede Globo não conseguirá trabalhar enquanto eu estiver aqui, porque eu não deixarei”.
Mas a TV Globo não foi o único alvo. No dia 18 de junho, também em São Paulo,
funcionários da TV Record fugiram antes do carro da emissora ser incendiado. No Rio,
incendiaram um veículo do SBT, e, em Natal, tocaram fogo num carro da Band. A
perseguição e rejeição da população aos profissionais da mídia, na cobertura das
manifestações, deixou um recado: a maior parte dos manifestantes não se sente
representados por aquelas emissoras e profissionais de comunicação.
Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação XXXVII Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – Foz do Iguaçu, PR – 2 a 5/9/2014
3
Fonte: http://edsonclaudia.blogspot.com.br/2013/06/uma-reflexao-sobre-os-protestos-no_1416.html
Fonte: http://chicosantannaeainfocom.blogspot.com.br/2013/07/a-midia-e-os-protestos-do-brasil-
e.html
Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação XXXVII Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – Foz do Iguaçu, PR – 2 a 5/9/2014
4
Fonte: http://spressosp.com.br/2013/06/democracia-na-midia-e-tema-de-assembleia-popular-na-
praca-roosevelt/
Fonte: http://saraiva13.blogspot.com.br/2013/07/voz-das-ruas-protestos-contra-globo.html
Neste artigo buscaremos discutir as estratégias de construção da verdade na
produção da notícia e do acontecimento pelo telejornalismo, num contexto cada vez mais de
disputa entre telespectadores e profissionais de comunicação. Em outro trabalho
pesquisaremos a crise de representação e credibilidade que o jornalismo/telejornalismo está
passando. Agora, o que nos interessa são os modos como são construídas as notícias,
exibidos os fatos, desenvolvidos e fabricados os acontecimentos. Iniciaremos analisando
conceitos de construção social da notícia e posteriormente o de acontecimento, para que
possamos dar o ponta pé inicial a investigação sobre como os acontecimentos são
experimentados, percebidos e sentidos pelos telespectadores e como eles podem refletir o
sentimento da “opinião pública”, nesse novo cenário do jogo político na
contemporaneidade.
Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação XXXVII Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – Foz do Iguaçu, PR – 2 a 5/9/2014
5
Construção social da notícia
A perspectiva construcionista nos estudos da notícia, apontada por Traquina (2005,
p. 168), deixa clara a ideia da notícia, não como espelho da realidade, mas como uma
posição tomada por cada perspectiva perante a ideologia jornalística. A pesquisa acadêmica
sobre o jornalismo, a partir da década de 1970, dá uma virada, fazendo surgir um novo
paradigma: as notícias como construção. Segundo Traquina (2005), a ideia que concebe as
notícias como construção rejeita que elas sejam um espelho da realidade por diversas
razões:
“Em primeiro lugar, argumenta que é impossível estabelecer uma distinção radical entre a realidade e os media noticiosos que devem
“refletir” essa realidade, porque as notícias ajudam a construir a própria
realidade. Em segundo lugar, defende a posição de que a própria
linguagem não pode funcionar como transmissora direta do significado inerente aos acontecimentos, porque a linguagem neutral é impossível. Em
terceiro lugar, é da opinião de que os media noticiosos estruturam
inevitavelmente a sua representação dos acontecimentos, devido a diversos fatores, incluindo os aspectos organizativos do trabalho
jornalístico (Altheide, 1976), as limitações orçamentais (Epstein, 1973), a
própria maneira como a rede noticiosa é colocada para responder à
imprevisibilidade dos acontecimentos (Tuchman, 1978)”. (Traquina, 2005, 168-169).
Segundo Eduardo Meditsch (2005), a aplicação do conceito de construção social
da realidade ao jornalismo teria sido feita inicialmente pela socióloga norte-americana Gaye
Tuchman, em seu livro intitulado Making News: a study in the construction of reality
(Tuchman, 1978). A autora, diz Meditsch, adota uma postura ambígua sobre a relação entre
a construção da notícia e a construção da realidade, sendo apenas um dado pressuposto a
partir do subtítulo. Conta Tuchman (1978, p. 9-10) que depois de 11 anos de estudos para
aprender sobre notícias, não pode provar sua suposição de que a mídia jornalística define o
contexto no qual os cidadãos discutem os assuntos públicos, mas continua acreditando
nisso.
Mesmo assim, os estudos de Gaye Tuchman influenciaram outros autores.
Segundo Eliseo Verón (1981): “Em nossa sociedade, é a mídia quem gera a realidade
social”. O catalão Miguel Alsina diz:
“A mídia é quem cria a realidade social. Os acontecimentos chegam a nós
através da mídia e são construídos através de sua realidade discursiva. Portanto, o processo de construção da realidade social depende
completamente da prática produtiva do jornalismo” (Alsina, 2005, p. 46).
Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação XXXVII Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – Foz do Iguaçu, PR – 2 a 5/9/2014
6
Segundo Alsina (2005), não se pode vincular o conceito de “construção da
realidade”, como característica exclusiva da prática jornalística. Para ele a noção de
“construção social da realidade”, definida por Berger e Luckmann (1979), está relacionada
com a prática cotidiana, num processo de institucionalização das práticas dos homens e de
seus papeis na sociedade. Para Alsina, esse é um processo ao mesmo tempo, social e
intersubjetivamente construído, caracterizando assim a atividade jornalística como um
papel socialmente legitimado para gerar construções da realidade publicamente relevantes.
Podemos dizer que os jornalistas têm um papel socialmente legitimado e institucionalizado para construir a realidade social como realidade
pública e socialmente relevante. Essas competências são realizadas no
interior de aparatos de produção específicos: a mídia. Como nos diz
Altheide (1976:25), “a institucionalização dos noticiários informativos tornou-se uma realidade sancionada” (ALSINA, 2005, p.46-47).
Mas Alsina (2005) também aponta outro aspecto importante na influência da
mídia na “construção da realidade”, a interação da audiência. Diz Alsina que a construção
social da realidade por parte da mídia é “um processo de produção, circulação e
reconhecimento”. Segundo ele, a atividade jornalística é uma manifestação socialmente
reconhecida e compartilhada:
Portanto, essa relação entre o jornalista e seus destinatários estabelece-se por um contrato programático fiduciário social e historicamente
definido. Os jornalistas têm a incumbência de recopilar os
acontecimentos e os temas importantes e dar-lhes sentido. Esse
contrato baseia-se em atitudes epistêmicas coletivas, que foram se compondo através da implantação do uso social da mídia como
transmissores da realidade social de importância pública. (ALSINA,
2005, p. 47).
Quando o destinatário não aceita o contrato pragmático proposto pelo comunicador,
o discurso perde o seu sentido virtual, alerta Alsina (2005). A comunicação é interrompida.
Nos exemplos apontados durante as manifestações de junho de 2013, a teoria acima se
aplica. Quando os jornalistas, ao enquadrar o assunto, no momento da edição, deixam de
fora elementos importantes do fato, deixam de cumprir a que deveria ser a primeira função
da informação da mídia: o “fazer saber”. Conta Alsina:
Se eu não acredito nas notícias, então elas não servem para nada; para
que serve, a princípio, a informação jornalística senão para informar? O que acontece se o destinatário não acredita na informação?
Estaríamos diante de um saber questionado, isto é, a informação não
transmitiria o saber. [...] Devemos acreditar que isso que se diz é verdade, e que aconteceu de fato assim mesmo. [...] A informação da
Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação XXXVII Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – Foz do Iguaçu, PR – 2 a 5/9/2014
7
mídia precisa da confiança dos seus leitores, porque o discurso informativo deve gozar de credibilidade (ALSINA, 2005, p. 48).
Pesquisando nos artigos publicados em sites e blogs, sobre os protestos de junho de
2013, mais especificamente em relação às demonstrações de repúdio aos meios de
comunicação, encontramos inúmeros depoimentos que confirmam os questionamentos com
o “fazer saber” de que fala Alsina:
Então, o que falar sobre a cobertura da mídia nos protestos por todo
Brasil? Manipuladora, tendenciosa e vergonhosa. A depredação e a
destruição do patrimônio público, a violência do atentado contra direitos alheios, os saques, foram totalmente relevados, obra de uma
'pequena minoria' ou de uns 'poucos radicais', afagavam os
apresentadores de noticiários, abrindo espaço para mais abuso com
suavidade criminosa. A globo só mostra os atos de vandalismo dos protestos, na tentativa conseguir colocar manifestante contra
manifestante, uma vez que as manifestações estão gerando mais ibope
do que a Copa das Confederações (27 de junho de 2013, Blog Edson Cláudia).
Em outro exemplo a credibilidade da mídia também é questionada:
[...] o “Jornalismo em Debate” coloca em pauta a reflexão sobre como
os protestos foram informados e tratados nos meios de comunicação
nacionais. A mídia conseguiu informar o público com responsabilidade, pluralidade e respeitando os princípios das liberdades
de imprensa e expressão? Por que a imprensa foi hostilizada nas ruas,
tanto pelas forças policiais quanto pelos manifestantes? As agressões tinham como alvo mesmo os jornalistas ou as empresas de
comunicação? Que lições o Jornalismo, seus profissionais e as mídias
devem tirar do “junho de 2013”? (Brasília, 15 de julho de 2013, Chico
Sant’Anna e a Info Com).
Então, a estratégia da mídia estaria em saber construir um discurso no qual se possa
acreditar? Acreditamos que na construção e fabricação dos acontecimentos pela mídia, os
ângulos abordados passam por escolhas “subjetivas” de valores e direcionamentos. O que é
enquadrado ou o que deixa de ser enquadrado, quase sempre gera expectativas e
frustrações. Os movimentos de protestos aqui analisados suscitam, de forma evidente,
muitas outras questões como: quem tem autoridade para ser o porta-voz do acontecimento?
Quem são os seus representantes? Qual papel deve exercer essa mídia?
Diz Alsina que o discurso da mídia não deve ser apenas informativo, pois a ideia,
segundo o autor, não é só transmitir o saber, mas também pretender “fazer sentir”. O autor
alerta que a crise de credibilidade e a falta de confiança na mídia podem ser produzidas não
Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação XXXVII Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – Foz do Iguaçu, PR – 2 a 5/9/2014
8
só por causa das grandes estratégias manipuladoras dos governos, mas também por casos
isolados, que deixam janelas abertas para as dúvidas e desconfianças.
França e Correa (2012) entendem que a presença e o alcance da mídia na sociedade
contemporânea atuam em diferentes meios, reconfigurando as práticas, os comportamentos
e os processos de percepção dos indivíduos e grupos sociais.
[...] A mídia não é externa a uma dada sociedade e cultura, mas,
justamente, é um dos seus eixos articuladores. [...] Os meios de comunicação “falam” de (refletem) uma sociedade, assim como sua
contínua produção discursiva e a circulação e renovação de
representações proporcionadas pela mídia repercutem e atuam na
conformação da vida social (FRANÇA; CORRÊA, 2012, p. 8).
É consenso que a mídia constitui-se hoje como a principal fonte de informação e
referência para os indivíduos das mais diversas classes sociais, econômicas e culturais.
Processo que leva os veículos noticiosos a ocuparem lugar central na constituição das
realidades cotidianas. Então, investigar como a mídia enquadrou e fez a cobertura das
manifestações de junho de 2013 poderá ser uma tentativa de se aproximar das formas de
como o seu discurso foi disseminado. Segundo Muniz Sodré (1996), as mídias não podem
ser vistas como espaços neutros ou meramente técnicos. A mídia, como produtora de
notícias, que são produtos que implicam em técnicas e racionalidades, está intimamente
ligada a estratégias que supõem enquadramentos e critérios de noticiabilidade. No entanto,
nesse agendamento do que deve e do que não deve ser noticiado, participam jornalistas e
sociedade, a partir das demandas para que a mídia dê visibilidade a temas que os interessam
mutuamente. De acordo com os autores do livro “Jornalismo e Acontecimento:
mapeamentos críticos”, organizado por Márcia Beneti e Virgínia Pradelina da Silveira
Fonseca (2010), nesse agendamento entram elementos típicos do fazer jornalístico, como
enquadramento e noticiabilidade, incluídos também outras articulações, outras maneiras de
pensar de que modo o texto jornalístico ou discurso jornalístico “reponde” ao
acontecimento.
De acordo (Ponte, 2005; França, 1998), os eventos do mundo e a produção da
notícia não são tomados como dimensões dissociadas, numa relação de externalidade. Os
autores apontam três princípios que configuram a abordagem da relação
comunicação/sociedade, que permitem articular jornalismo e acontecimento: 1) diz que as
práticas da mídia são, ao mesmo tempo, constituidoras e constituídas pela vida social; 2)
que a relação entre os sujeitos interlocutores se dá de forma complexa e com diferentes
Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação XXXVII Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – Foz do Iguaçu, PR – 2 a 5/9/2014
9
configurações; e, por fim, 3) que a análise da significação discursiva compreende uma
articulação entre a dimensão proposicional e a dimensão relacional da linguagem.
Nessa perspectiva, o que se pretende, segundo articulação exposta acima, é
relacionar a informação jornalística como um dado da experiência, pois o evento relatado se
constitui como um acontecimento diferente para todos os envolvidos: jornalistas, fontes,
audiência etc. Todos implicados em sua produção, circulação e apropriação. Experiência
que não se reduz à sua natureza empirista, como conta Quéré e Ogien (2005) apud (Ponte,
2005; França, 1998):
[...] a experiência designa uma travessia que modifica aquele que a
realiza. Esta travessia é uma prova e pode ser ocasionada pela
confrontação com um texto, uma obra de arte, um acontecimento ou situação. Implicando a exploração e explicação dos efeitos de interação
que funda, ela é fonte de descobertas sobre o mundo e sobre si e revela
novas possibilidades de compreensão e de interpretação. Ela é produtora não somente de verdade, seja sob a forma de conhecimento
ou compreensão, mas também de individualidade (aquela do
acontecimento, da situação, do texto ou da obra implicada) e de identidade.
Construindo uma relação possível do discurso jornalístico como uma modalidade de
experiência, citamos Corrêa (2012):
[...] é ao mesmo tempo uma atividade prática, intelectual e emocional; é um ato de percepção e, portanto envolve interpretação, repertório,
padrões; existe sempre em função de um “objeto”, cuja materialidade,
condições de aparição e de circunscrição histórica e social não são
diferentes.
O acontecimento
Para a professora da Universidade Lusófona do Porto e da Universidade Lusófona
de Humanidades e Tecnologias em Lisboa, Isabel Babo-Lança (2012), o acontecimento é
aquilo que não é esperado e que nos apanha de surpresa. Por isso, explica ela, no mundo
social, do nosso cotidiano, nem tudo o que acontece constitui um acontecimento, só sendo
acontecimento apenas aquilo que é improvável e inesperado. Conta Babo-Lança:
É uma ocorrência empírica particular, que, sendo imprevisível e não reprodutível, releva do domínio da contingência. Faz parte da própria
noção de acontecimento a ideia de que se trata de algo que se produziu
e teria podido não se produzir, ou ter acontecido de outro modo dada a
sua natureza contingente (2012, p.15).
Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação XXXVII Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – Foz do Iguaçu, PR – 2 a 5/9/2014
10
Para o filósofo Paul Ricoeur (1991), tudo o que ocorre não é acontecimento, mas
somente o que surpreende a nossa expectativa, o que é interessante, o que é importante. O
acontecimento é a novidade por relação à ordem instituída, diz ele. Para Babo-Lança
(2012), o acontecimento é uma ocorrência empírica particular, fazendo parte de sua própria
essência a ideia de que se trata de algo que se produziu, mas que teria podido também não
se produzir, ou ter acontecido de outro modo. O acontecimento como sendo irrupção e
transição. “Isto porque, em termos temporais, o acontecimento não é um simples começo,
embora detenha um caráter inaugural, do mesmo modo que também não decorre
inteiramente daquilo que o provocou” (2012, p. 15).
Aplicando os conceitos de Babo-Lança, de que o acontecimento é da ordem do
inesperado ou do inédito e que introduz uma descontinuidade, comportando uma parte de
indeterminação, sendo por isso muitas vezes incompreensível, utilizamos o exemplo das
manifestações do Movimento Passe-Livre, em junho de 2013. Os protestos introduziram
uma descontinuidade, muito pouco previsível naquele momento, apesar das insatisfações
latentes com os bilhões gastos na Copa das Confederações, o que acabou eclodindo numa
manifestação de tamanha proporção, levando mais de um milhão de pessoas às ruas em
aproximadamente 350 cidades brasileiras.
Numa interessante classificação dos “tipos de acontecimentos” na prática
jornalística, conceituados por diversos autores citados por Babo-Lança, em seu artigo
“Reprodutibilidade do acontecimento na ordem institucional” (2012), podemos encontrar
algumas pistas para a nossa análise. De acordo com a classificação exposta por Babo-Lança
são tipos de acontecimento: os “acontecimentos noticiosos”, tais como acidentes,
desordens, tumultos; o “acontecimento midiático” ou “cerimonial”, exemplificado pelo
funeral de Kennedy; os “pseudoacontecimentos” (Boorstin, 1961), “embora partilhem com
os acontecimentos midiáticos o fato de serem organizados em função dos media, dependem
da cobertura midiática, sendo planejados para constituírem notícia (manifestações,
entrevistas, comícios, etc.)”; os “acontecimentos de rotina”, por exemplo, uma conferência
de imprensa e os “acontecimentos cênicos e dramatúrgicos” (determinados desaparecimento
de crianças, assassinatos ou tumultos num estádio de futebol, etc.).
De acordo com os tipos classificados acima, as manifestações de junho de 2013
poderiam, então, em nossa perspectiva serem encaixados em dois tipos: os “acontecimentos
midiáticos” e os “pseudoacontecimentos”, mas, ao tornarem-se também um protesto
antimídia, o seu conceito torna-se ambíguo.
Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação XXXVII Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – Foz do Iguaçu, PR – 2 a 5/9/2014
11
Os “pseudoacontecimentos” têm características próprias (BOORSTIN, 1991, p.11):
• Não são espontâneos, e sim planejados, plantados ou incitados.
• São plantados para serem rapidamente reportados e reproduzidos, e essa reprodução
é organizada de forma conveniente para ser reportada pela mídia.
• Sua relação com o conceito de realidade é ambígua e o interesse pelo assunto cresce
à medida que ele é de fato ambíguo.
• Geralmente se autorrealiza.
Boorstin (2011) enumera também alguns fatores presentes nos
“pseudoacontecimentos” ou “pseudo-evento” criados que podem nos ajudar: eles são mais
dramáticos que os eventos casuais; preparados para a divulgação são mais fáceis de
disseminar; podem ser repetidos; custam dinheiro para serem criados e quase sempre seu
objetivo é gerar mais dinheiro ou poder; são planejados; são mais sociais, mais
manipuláveis e mais convenientes para serem testemunhados; geram novos pseudo-eventos
em uma ordem geometricamente progressiva.
Já os acontecimentos midiáticos (BABO-LANÇA, 2012, p. 19): são interrupções da
rotina, operam um fenômeno de integração social obtida pela via da comunicação de massa,
podendo criar as próprias comunidades às quais eles se dirigem, havendo uma experiência
da cerimônia de natureza comunitária e dependendo do sucesso da aprovação por parte do
público. Pela persuasão visam a obter a adesão da opinião pública.
A questão que coloco é saber se, diante da perspectiva construtivista, segundo o qual
os media constroem a realidade social, onde a construção dos acontecimentos nos meios de
comunicação é condicionada pelas exigências da produção, como defendem vários autores
apresentados aqui, como explicar os “acontecimentos midiáticos” e os
“pseudoacontecimentos” dentro dessa lógica? Traçando um diálogo possível entre a teoria
de Alsina (2009) e a que defende Babo-Lança (2012), poderíamos afirmar que os
“pseudoacontecimentos” e os “acontecimentos midiáticos”, não tornam a notícia menos
legítima, pois para o autor a noção de “verdade” não pode ser aplicada no que diz respeito
apenas ao processo de produção da notícia.
O que significa um fato verdadeiro? Em primeiro lugar, a notícia não é
um fato, e sim mais propriamente uma narração de um fato. Em segundo lugar, a veracidade da notícia é um tema absolutamente
questionável. Há notícias falsas, e não por isso deixa de serem notícias
(ALSINA, 2009).
Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação XXXVII Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – Foz do Iguaçu, PR – 2 a 5/9/2014
12
Para Babo-Lança (2012) os acontecimentos públicos não são puras construções
narrativas ou jornalísticas, nem realidades marcadamente discursivas. A autora defende que
não há acontecimento sem descrição ou sem narrativa, e por isso, não adota a posição
realista (contrária ao construtivismo), segundo o qual o acontecimento é uma ocorrência
em si que o discurso descreve e ao qual se relaciona como um referente exterior. “A
linguagem tem uma dimensão expressiva e constitutiva, a par de uma função
representativa, que a torna parte integrante da realidade que descreve” (2012, p. 21). Os
fenômenos sociais (ações, situações, acontecimentos, instituições) afirma Babo-Lança,
estão, em parte, determinados pela linguagem utilizada, o que pode explicar as reações aqui
apresentadas contra as emissoras de comunicação e os profissionais da mídia no Brasil,
existindo uma operatividade das descrições, das categorizações e das narrativas na
construção pública daquilo que será reportado.
Nessa perspectiva, a autora defende que há um entrelaçamento entre o
discurso e a ação, e que muitas vezes as ações não são “entidades” possíveis de serem
descritas pela linguagem como se esta lhes fosse exterior. Daí, a tendência de que os
acontecimentos públicos ou midiáticos entrem muitas vezes, em desacordo com as práticas
instituídas e com as expectativas morais, além, de, como diz Babo-Lança (2012, p.21):
“provocarem rupturas dos quadros da experiência, dando lugar a situações que constituem
problema ou ligando-se a problemas já constituídos”.
Então, em nosso entendimento, as manifestações de junho de 2013 e os protestos
antimídia, analisados aqui, ao contrário das explosões, dos terremotos, das inundações, são
provocados por ações que fazem uso de regras, de convenções, de normas sociais e,
portanto de significações. Esses acontecimentos, quando ocorrem, conta Babo-Lança
inscrevem-se num contexto ou numa ordem de sentido que eles próprios ajudam a instaurar.
“A significação do acontecimento social deve-se à sua relação com outros acontecimentos,
à sua inscrição social e cultural no mundo institucional e às significações sociais
instituídas” (2012, p.17).
Concluímos que a nossa investigação levanta questões pertinentes a credibilidade de
nossas instituições, da mídia como instituição formadora de regras, conceitos e
significações. Em nosso entender, uma mídia conservadora, desatenta aos avanços e
possibilidades de uma sociedade contemporânea interconectada, articulada e engajada às
novas formas de pertencimento e “identidades”.
Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação XXXVII Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – Foz do Iguaçu, PR – 2 a 5/9/2014
13
REFERÊNCIAS
ALSINA, Miguel Rodrigo. A construção da notícia. Petrópolis, RJ: Vozes, 2009.
BABO-LANÇA, Isabel. Reprodutibilidade do acontecimento na ordem institucional. Autêntica,
p. 13-28, 2012.
BENETTI, Márcia; FONSECA, Virginia (orgs.). Jornalismo e acontecimento: mapeamentos
críticos. Florianopolis: Insular, 2010.
BOORSTIN, Daniel. The Image: a guide of pseudo-events in America. New York: Vintage
Books, 1992.
CHAMPAGNE, Patrick. Formar a opinião: o novo jogo político. Petrópolis, RJ: Vozes, 1996.
CORRÊA, Laura Guimarães; FRANÇA, Vera (orgs.). Mídia, instituições e valores. Belo Horizonte: Autêntica, 2012.
MEDITSCH, Eduardo. Jornalismo e conhecimento: epistemologia, cognição, imaginário,
produção de sentido e construção da realidade. Florianópolis: Insular, 2005.
QUÉRÉ, Louis; OGIEN, Albert. Le vocabulaire de la sociologie de L’action. Paris: Ellips, 2005.
TRAQUINA, Nelson. Teorias do Jornalismo: porque as notícias são como são. Florianópolis:
Insular, 2005.
TUCHMAN, Gaye. La producción de la noticia: estudio sobre la construcción de la realidad.
Barcelona: Gilli, 1983.