intercom sociedade brasileira de estudos...
TRANSCRIPT
Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação XXXIX Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – São Paulo - SP – 05 a 09/09/2016
1
A (Des)eternização Do Momento: Experimentos Sobre A Impermanência Da Imagem1
Lucas Guimarães de OLIVEIRA2
Ícaro de ABREU3
Marcelo Arrozio CAPANEMA4
Renato GAION5
Universidade de São Paulo, São Paulo, SP
Resumo
O presente artigo discute a impermanência da imagem sobre tela a partir de um aplicativo
desenvolvido para uma disciplina da FAU-USP. Dentro de um contexto em que se produz e
se distribui um número cada vez maior de imagens fotográficas, foi criado o programa
Videboo, com o objetivo de discutir alguns aspectos da fotografia, sobretudo as ideias de
preservação de memória e eternização do instante. O artigo parte de reflexões de autores
como Arlindo Machado, Philippe Dubois, Susan Sontag, Gilles Deleuze e Félix Guattari e,
a partir desses conceitos, realiza testes com usuários selecionados com o objetivo de avaliar
as sensações e percepções dessas pessoas com o Videboo.
Palavras-chave: fotografia; memória; eternização; experimento; Videboo.
Introdução
O presente trabalho nasceu a partir de um experimento feito para uma disciplina da
Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo chamada “Processos
Experimentais e Linguagem em Design Visual”. O experimento em questão partiu do
pressuposto de que o volume de fotografias geradas diariamente, ao se associar com a
quantidade de imagens existentes e em circulação, atingiu um volume suficientemente alto
ao ponto de que as pessoas têm muito pouco tempo para olhá-las e assimilá-las. Dentro
desse cenário de saturação de imagens, foi desenvolvido um aplicativo chamado Videboo
cujo objetivo principal é questionar/problematizar a ação de olhar para as fotografias e que
1 Trabalho apresentado no GP Fotografia, do XVI Encontro dos Grupos de Pesquisa em Comunicação, evento componente
do XXXIX Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação.
2 Mestrando em Artes Visuais da ECA-USP, e-mail: [email protected].
3 Graduado em Comunicação Social pela Universidade Anhembi Morumbi. Aluno especial da disciplina Processos
Experimentais e Linguagem em Design Visual – FAU/USP, e-mail: [email protected].
4 Graduado em Design de Interface Digital, Design Digital e Multimídia pela Universidade Senac. Aluno especial da
disciplina Processos Experimentais e Linguagem em Design Visual – FAU/USP, e-mail:
5 Graduado em Design de Interface Digital, Design Digital e Multimídia pela Universidade Senac. Aluno especial da
disciplina Processos Experimentais e Linguagem em Design Visual – FAU/USP, e-mail: [email protected].
Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação XXXIX Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – São Paulo - SP – 05 a 09/09/2016
2
é compatível com os principais suportes eletrônicos utilizados atualmente para visualização
de fotografias, ou seja, os smartphones, os tablets e os computadores.
Pesquisas recentes permitem afirmar que a população brasileira está imersa numa sociedade
de múltiplas telas. De acordo com pesquisa da Fundação Getúlio Vargas6 divulgada em
abril de 2015, o país possui 154 milhões de smartphones e 24 milhões de tablets – números
que representam aproximadamente 75% e 12% da população brasileira, respectivamente. A
acessibilidade e a convergência digital deixou de ser um sonho para se tornar uma realidade
na rotina de milhões de brasileiros.
Como consequência dessas mudanças, a atenção do usuário/espectador passou a ser
disputada pelos diversos programas instalados, que através de “push messages” (como são
chamadas as notificações e avisos que aparecem na tela dos aparelhos sem que o usuário
faça qualquer coisa) buscam estimular sua utilização e acesso. Com o desvio do olhar, um
usuário consegue saber se o e-mail que aguardava chegou, se alguém enviou uma
mensagem de texto e até ler o título das principais notícias do dia. Isso sem contar as
múltiplas possibilidades de aparelhos que geralmente estão todos conectados entre si. Não
são raros os casos em que o usuário possui um smartphone, um tablet e uma possível
terceira tela, como TV ou computador, à sua frente.
Inexoravelmente, esse mundo de múltiplas telas molda o comportamento da grande maioria
das pessoas, influenciando seus hábitos, a forma como se relacionam com outras pessoas e
principalmente a atenção dada para diferentes assuntos. Além disso, a própria tecnologia
dos celulares, que permite a transmissão e recebimento de fotos e vídeos, também
influencia como as imagens são recebidas, percebidas e assimiladas.
Dentro desse contexto, a produção diária de novas fotografias gera uma acumulação de
imagens que cada vez mais dificulta que as mesmas sejam observadas, admiradas,
apreciadas e até entendidas. Em artigo para o New Yorker7, Om Malik (2016) corrobora
com a afirmação de que o relacionamento com as imagens mudou nos últimos anos. O
jornalista estima que num mundo com aproximadamente 2 bilhões de smartphones sejam
produzidas diariamente, em média, 4 bilhões de novas fotografias, o que nos leva a uma
situação em que o tempo gasto para ver cada foto se torna cada vez menor. Em sua
argumentação, Om Malik cita a decisão da empresa Google de disponibilizar gratuitamente
ferramentas profissionais de edição e tratamento de fotografias (numa rede de plug-ins
6 Pesquisa publicada em http://exame.abril.com.br/tecnologia/noticias/numero-de-smartphones-supera-o-de-
computadores-no-brasil. 7 Reportagem publicada em http://www.newyorker.com/business/currency/in-the-future-we-will-photograph-everything-
and-look-at-nothing.
Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação XXXIX Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – São Paulo - SP – 05 a 09/09/2016
3
chamada Nik Collection) como um forte indício da mudança de status das fotografias, que
passam a ser mais um elemento de comunicação na web e menos um instrumento de resgate
de memória.
As reflexões feitas sobre o aplicativo se dividem em três partes. A primeira compreende o
referencial teórico dividido em duas linhas distintas: a partir do ato fotográfico (a ação de
fotografar) e da relação entre o homem e o dispositivo, e sob a ótica da relação entre as
pessoas e as fotografias (o produto acabado). Como referencial teórico parte-se dos
trabalhos de Arlindo Machado, Philippe Dubois, Susan Sontag, Gilles Deleuze e Félix
Guattari. A segunda parte apresenta o aplicativo e sua funcionalidade, e por fim são feitos
três experimentos. A conclusão apresenta algumas direções para experimentos e reflexões
futuros.
Homem e dispositivo: a era Kodak e a era digital
As primeiras câmeras fotográficas eram conhecidas como máquina-caixote ou máquina-
caixão: no seu interior havia dois compartimentos que funcionavam como tanques para
revelação e fixação das fotografias. Ao contrário das câmeras vendidas atualmente, aquelas
máquinas tinham como principal característica funcionar, no momento posterior à captura
da imagem, como um minilaboratório de revelação de negativos e cópias fotográficas
positivas. Aperfeiçoamentos e inovações tecnológicas permitiram a popularização da
fotografia analógica. Avanços como os da fábrica Kodak, que foram introduzidos no
mercado a partir de 1888, culminaram na criação de um novo tipo de câmera “caixão”. No
ano seguinte, a Kodak lançou uma campanha publicitária anunciando essas novas
máquinas.
Segundo Sarvas (2011), o período de dominação das câmeras Kodak dura pouco mais de
um século, até 1990, período que o autor chama de “Era Kodak”. Esse período foi
responsável pela popularização das câmeras fotográficas, até então dispositivos restritos às
pessoas ricas, inserindo o homem comum na cadeia de produção de imagens. O slogan
“Você aperta o botão e nós fazemos o resto” de 1888 demonstrava a posição da empresa
dentro da cadeia de produção: construir as máquinas fotográficas, cujo funcionamento
dependia de apenas um botão e da revelação de filmes.
No entanto, uma outra leitura possível do famoso slogan da Kodak contribui para defender
a ideia da submissão do homem à máquina. Através dessa ideia, a empresa defendia a
perfeição de sua caixa mágica, capaz de prevenir o erro, a inexperiência e até
incompetência do fotógrafo ao assegurar que no final a imagem gerada seria “perfeita”.
Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação XXXIX Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – São Paulo - SP – 05 a 09/09/2016
4
Uma consequência direta dessa abordagem foi corroborar e difundir a ideia, que
posteriormente seria questionada por vários escritores, fotógrafos e filósofos, da fotografia
como uma mera reprodução da realidade.
Embora o fotógrafo em sua atividade não necessitasse, a exemplo da pintura, principal rival
da fotografia em seus primeiros anos, das mãos para construir a imagem, seu olhar era
crucial na construção das fotografias artísticas. “Pela primeira vez no processo de
reproducao da imagem, a mao foi liberada das responsabilidades artisticas mais
importantes, que agora cabiam unicamente ao olho” (BENJAMIN, 1992, p. 71).
Joan Fontcuberta (2012, p. 188) corrobora com essa afirmação ao dizer que “o ato
fotográfico submete o fotógrafo a uma sequência de decisões que mobiliza todas as esferas
da subjetividade”. O escritor e fotógrafo espanhol defende a ideia de que, mesmo que o
fotógrafo possua o mero desejo de fotocopiar o real, o ato fotográfico sempre implica no ato
de escolher. Ao lado de Fontcuberta, Susan Sontag (2004, p. 16-17) afirma que “mesmo
quando os fotógrafos estão muito mais preocupados em espelhar a realidade, ainda são
assediados por imperativos de gosto e de consciência”.
Porém, após um século de discussões sobre a fotografia e sua importância e singularidade
como meio representativo e linguagem artística, acontece um outro ponto de inflexão na
história das câmeras fotográficas, o surgimento das câmeras digitais. Sarvas (2011) cita o
ano de 1990 como o início da chamada “Era Digital” da fotografia. Esse marco é
fundamental por remodelar a cadeia de produção de fotografias de forma definitiva ao
permitir o acesso ao produto final sem a necessidade de revelação. Embora já existissem
outras câmeras que revelavam as fotografias instantaneamente, como a câmera Polaroid, é
com a popularização das câmeras digitais que esse fato ganha popularidade. Além do
acesso imediato à foto tirada, a tecnologia digital permitia a reprodução, cópia e divulgação
das fotografias de acordo com as vontades, desejos e interesses do fotógrafo. Se o
surgimento das máquinas fotográficas provocou um grande impacto nas artes plásticas,
como uma nova forma de representação, e levando a repensar o papel do homem na criação,
no momento em que surgem as imagens digitais esses pontos são novamente colocados em
xeque. Machado afirma que:
(...) a imagem digital aparece como uma verdadeira hipertrofia dos postulados
estéticos do século XV, na medida em que ela realiza hoje o sonho renascentista de
uma imaginação puramente conceitual, em que a imagem seria encarada e praticada
como uma instância de materialização do conceito” (...) De um lado, portanto,
temos a total destruição, a negação como energia propulsora da obra, desagregação,
anamorfose, implosão do visível. De outro, a utopia de um total domínio do visível,
Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação XXXIX Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – São Paulo - SP – 05 a 09/09/2016
5
de um controle absoluto do processo gerador da imagem e até mesmo nos seus
detalhes mais microscópicos (MACHADO, 1997, p. 139).
A “implosão do visível” a que o autor se refere é uma menção ao caráter numérico da
imagem, gerado a partir de matrizes matemáticas e códigos numéricos. A noção da imagem
gerada pela luz sobre uma superfície fotossensível desaparece ao mesmo tempo em que a
fotografia digital deixa de ser um fim para se tornar um meio. No mesmo trabalho, o autor
sustenta essa ideia ao afirmar que “a tendência atual é encarar o registro fotográfico
efetuado pela câmera como a mera obtenção de uma matéria-prima que deverá ser
posteriormente trabalhada e transformada por algoritmos de tratamento de imagem”.
(MACHADO, 1997, p. 234)
Essa mudança atinge seu auge no momento em que as câmeras são incorporadas nos
aparelhos celulares e tornam o ato de fotografar simples, rápido e banal como o ato de fazer
uma ligação. A possibilidade de transmitir essas fotografias pelo próprio aparelho ou postá-
las em redes sociais contribui também fortemente para essa banalização. Miguel García
(2014), em seu trabalho de análise da internet e de novos meios tecnológicos, aborda a
mudança de paradigma que se instalou com os novos aparatos tecnológicos ao afirmar que:
nuevos medios y nuevas tecnologías acaban por transformar el significado de lo
que es comunicarnos, reorganizando y ampliando los límites posibles de la
comunicación interpersonal colectiva; lo que supone, en la práctica, la
reorganización de la realidad misma (GARCÍA, 2014, p. 166).
Pensado dentro do contexto do experimento Videboo, as ideias dos autores mencionados
associadas com os fenômenos recentes de popularização e do aumento das fotografias em
circulação surgem como reflexões na busca de se questionar o papel do dispositivo como
mediador da relação entre a fotografia e os fotógrafos. Durante os experimentos, colocamos
como pilares para serem questionados duas mudanças popularizadas pelas novas
tecnologias digitais: as possibilidades de salvar e armazenar as fotografias e de compartilhá-
las com outras pessoas através de e-mails ou redes sociais. Durante o desenvolvimento,
estes questionamentos foram decisivos para a determinação de que o usuário não poderia
salvar para si as imagens geradas, questionando o sentimento de posse, e tampouco
compartilhar os temas que gerasse com outras pessoas, permitindo que a experiência de
usar o aplicativo seja um momento único, pessoal e irreproduzível.
Fotografia e memória: a preservação da imagem como metáfora do eterno
O filme Solaris, de 1973, dirigido pelo cineasta russo Andrei Tarkvosky e baseado em um
livro homônimo do escritor polaco Stanislaw Lem, traz algumas reflexões sobre a relação
entre as pessoas e a memória. Na história, o psicólogo Kris Kelvin viaja até uma estação
Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação XXXIX Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – São Paulo - SP – 05 a 09/09/2016
6
espacial localizada na órbita do planeta Solaris para descobrir as razões que levaram a
tripulação a enlouquecer. Ao chegar no local, Kris reencontra sua ex-mulher Hari, que
havia se matado alguns anos antes. Ao longo do filme Kris descobre que a mulher não é
uma alucinação, mas uma projeção, em carne e osso, das lembranças e sentimentos que o
psicólogo nutria por ela. O protagonista aos poucos se sente invadido pela presença
constante da mulher, até que o incômodo faz com que ele comece a demonstrar sinais de
desgastes físicos e emocionais e enlouqueça.
A ideia de que a nossa memória se modifica ao longo do tempo não é necessariamente
nova, mas o que intriga e torna Solaris interessante é o fato de que, ao tornar essas
memórias seres de carne e osso e constantemente presentes, as lembranças e os registros
armazenados em nossos cérebros passam a ser afetados pela sua própria presença. À
medida em que Kris se incomoda com a presença de Hari, a mulher se torna cada vez mais
insegura, chegando em determinado momento do filme a tentar se matar. Essa relação
criada entre a memória e como ela é afetada pela imagem levanta várias perguntas. Dentro
do objetivo do experimento, talvez a maior delas seja: se a memória é viva, ou seja, está em
constante mudança, e se as fotografias preservam e perpetuam a memória, que memória as
fotografias preservam? Teriam essas imagens o poder de afetar as pessoas, como Hari afeta
Kris, ou é possível lidar com distanciamento das imagens que contam as nossas histórias?
Retomaremos a essa pergunta ao fim desta seção, mas antes iremos trazer alguns autores
que analisaram a relação entre fotografia e memória.
Em seu trabalho a “Ontologia da imagem fotográfica”, Bazin (1983) cita o processo de
mumificação, tradicional da religião egípcia, como um fato de extrema importância para o
entendimento da gênese das artes plásticas. A luta do homem contra o tempo e a ideia de
salvar um ser pela preservação da aparência seriam, segundo o autor, obsessões antigas da
humanidade e que, de certa forma, foram atendidas no momento em que surgiu a fotografia.
Em suas palavras, “não se acredita mais na identidade ontológica de modelo e retrato,
porém se admite que este nos ajuda a recordar aquele e, portanto, a salvá-lo de uma segunda
morte espiritual” (BAZIN, 1983, p.121). Para Bazin (1983), a fotografia retoma os valores
artísticos renascentistas ao valorizar a reprodução mimética, ao mesmo tempo em que
transforma o homem em ser ausente no processo. Ao contrário da pintura, que dependia da
habilidade manual do artista, a foto para existir precisa apenas de um clique.
Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação XXXIX Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – São Paulo - SP – 05 a 09/09/2016
7
A ideia da preservação da imagem no tempo é retomada por Dubois (1993), que reforça a
ideia de Bazin ao atribuir à foto a característica de operar um corte na duração, eternizando
o instante.
O corte temporal que o ato fotográfico implica não é, portanto, somente redução de
uma temporalidade decorrida num simples ponto (o instantâneo), é também
passagem (até superação) desse ponto rumo a uma nova inscrição na duração:
tempo de parada, decerto, mas também, e por aí mesmo, tempo de perpetuação (no
outro mundo) do que só ocorreu uma vez (DUBOIS, 1993, p. 174).
Uma vez assumido o seu papel de “mumificadora”, ou seja, de libertar o objeto fotografado
da ação do tempo, a fotografia se torna dependente de sua função de reproduzir o real da
forma mais objetiva possível.
Assim como em Solaris, em que a presença viva de Hari servia como uma metáfora da
memória viva do psicólogo Kris Kelvin, o autor Kossoy (2005) defende o potencial que as
fotografias possuem de ultrapassar o visível, de tornar, ainda que por apenas alguns
instantes, o objeto de recordação algo vivo:
Os homens colecionam esses inúmeros pedaços congelados do passado em forma de
imagens para que possam recordar, a qualquer momento, trechos de sua trajetória ao
longo da vida. Apreciando essas imagens, “descongelam” momentaneamente seus
conteúdos e contam a si mesmos e aos mais próximos suas histórias de vida
(KOSSOY, 2005, p. 43).
Os ensaios de Susan Sontag em Sobre fotografia (2004) questionam a necessidade de se
tirar fotografias de momentos que consideramos importantes, com o risco de banalização e
perda da sensibilidade e experiência que vivemos. Para a autora, a fotografia é antecedida
pela busca pelo aspecto fotogênico, das pessoas, lugares ou objetos, busca responsável por
limitar a experiência real entre fotógrafo e ser fotografado. Além disso, a fotografia cria
alguns códigos e padrões como, por exemplo, banalizar o sublime (o grande número de
fotografias de pôr do sol existentes) e influenciar comportamentos diante da possibilidade
de ser fotografado (todos querem parecer melhores nas fotografias). Sontag (2004, p. 34)
afirma que “a necessidade de confirmar a realidade e de realçar a experiência por meio de
fotografias é um consumismo estético em que todos, hoje, estão viciados. As sociedades
industriais transformam seus cidadãos em dependentes de imagens”. E posteriormente a
autora ainda afirma que “ter uma experiência se torna idêntico a tirar dela uma foto”
(SONTAG, 2004, p. 35).
Para Sontag, a fotografia também perdia sua força como objeto de apreciação do espectador
ao se tornar objeto de consumo associado a um desejo de posse.
Fotos são um meio de aprisionar a realidade, entendida como recalcitrante,
inacessível; de fazê-la parar. Ou ampliam a realidade, tida por encurtada, esvaziada,
perecível, remota. Não se pode possuir a realidade, mas pode-se possuir imagens (e
Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação XXXIX Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – São Paulo - SP – 05 a 09/09/2016
8
ser possuído por elas) – assim como, segundo Proust, o mais ambicioso dos
prisioneiros voluntários, não se pode possuir o presente, mas pode-se possuir o
passado (SONTAG, 2004, p. 180).
A partir das reflexões desses autores, o grupo definiu que o aplicativo Videboo deveria
possuir alguns conceitos como pré-requisitos: desconsiderar a qualidade e o meio de
captura da fotografia, consentir a inclusão de imagens geradas ou coletadas por qualquer
meio digital (ser flexível), permitir a participação de várias pessoas na criação dos temas e
na inclusão de imagens em temas previamente criados (ser colaborativo), associar
diferentes ideias de forma inesperada (ser integrador), minimizar a manipulação do usuário
(ser aleatório e não permitir exclusões de fotografias do sistema).
A imagem em devir: o aplicativo Videboo
Fechei o livro, e senti esta estranha mistura de
melancolia e esperança, e fiquei pensando se a
memória é algo que a gente tem ou algo que a
gente perdeu. Pela primeira vez em muito
tempo, me senti em paz.
(Trecho do filme A outra)8
Como experimento, foi criado um programa chamado Videboo (do latim, Videbo significa
ver. A segunda letra “o” foi acrescentada por uma opção estética do grupo) disponível para
navegação no site: www.videboo.com (Figura 1). O site permite que qualquer usuário crie o
tema o que quiser, carregando diferentes fotos no aplicativo.
Figura 1 – Tela inicial do site Videboo.
Fonte: http://videboo.com/ - Acesso em: 10 julho de 2016.
8 A outra - Direção: Woody Allen. Estados Unidos: Nova York, 1988.
Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação XXXIX Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – São Paulo - SP – 05 a 09/09/2016
9
As regras definidas foram:
1) É necessário uma quantidade mínima de 7 fotos para que o experimento funcione;
2) Os temas são abertos, qualquer usuário pode carregar fotos em temas de outras
pessoas;
3) Não é possível excluir fotos e;
4) Não é possível salvar ou compartilhar pela internet (por e-mail ou redes sociais) as
combinações que surgem na tela.
Após a criação do tema, o usuário é levado para uma nova tela em que as fotos carregadas
irão se comportar aleatoriamente, mudando os níveis de sobreposição e opacidade.
Todos os experimentos criados ficam disponíveis para visualização e novas inclusões de
imagens para todos os usuários do Videboo, de forma anônima, tanto na criação dos temas
como na inclusão de novas imagens em temas já existentes.
A mudança constante remete ao conceito de devir, que embora tenha sido explorado por
vários autores, para o escopo deste projeto será focado na ideia dos estudos sobre devir dos
filósofos Gilles Deleuze e Félix Guattari (1997). Para os autores, devir é um processo, uma
visão do ser não como estado único e permanente, mas de mudança constante, ou seja, em
um fluxo de intensidades e multiplicidades, que a cada instante se torna outro.
Um devir não é uma correspondência de relações. Mas tampouco é ele uma
semelhança, uma imitação e, em última instância, uma identificação. (...) Devir não
é progredir nem regredir segundo uma série. E sobretudo devir não se faz na
imaginação, mesmo quando a imaginação atinge o cósmico ou dinâmica mais
elevada. (...) O devir não produz outra coisa senão ele próprio (...) devir não é
evolução, ao menos uma evolução por dependência e filiação. O devir nada produz
por filiação (...) Ele é da ordem da aliança (DELEUZE; GUATTARI, 1997, p. 19).
A ideia de Deleuze e Guattari de devir pode ser associada ao conceito do aplicativo
Videboo em seu caráter contínuo de mudanças de imagens fotografadas, que faz do seu
devir uma “antimemória”, uma vez que o espectador jamais consegue fixar seus olhos em
qualquer imagem. O desejo de lembrar-se de algo muda continuamente e jamais se fixa.
Após sua criação, para identificarmos se o experimento Videboo permitiria que se
atingissem os objetos e questionamentos levantados, sugerimos utilizar pessoas de fora do
grupo, com diferentes vivências e faixas etárias, que não tiveram nenhum contato anterior
com o aplicativo. Pedimos aos participantes para criarem um tema e incluírem imagens que
representassem sua memória do mesmo. O nome do tema e as imagens escolhidas foram
livres, sem nenhum direcionamento do grupo. Durante e após os experimentos foram
coletados os depoimentos e questionamentos dos participantes sobre a memória, o olhar e a
experiência com o aplicativo.
Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação XXXIX Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – São Paulo - SP – 05 a 09/09/2016
10
Experimento I: A memória infantil
O primeiro experimento foi realizado com três crianças mineiras, Francisco, Caio e Thiago,
cujas idades são respectivamente de 8, 6 e 4 anos. As crianças escolheram algumas fotos
próprias, tiradas em diferentes momentos e com formatos e resoluções diferentes para
alimentar o aplicativo Videboo.
Após alimentar o aplicativo com as fotografias, as mudanças de transparência e
sobreposição criaram diferentes combinações (Figura 2).
Figura 2 – Exemplo de 4 imagens geradas no Videboo, tema “Sobrinhos”.
Disponível em: http://videboo.com/photo.msp?mTEMA2=2016071044576
Acesso em: 10 jul. 2016.
Acostumadas a serem constantemente fotografadas pelos seus pais, as três crianças
normalmente apresentam pouco interesse em ver as próprias fotos. Porém ao navegarem no
Videboo, elas não só se mostraram curiosas, como também reagiram com surpresa e
alegria. As crianças, além de mostrarem dificuldades em identificar as fotografias vistas,
também tiveram dúvidas quanto ao momento e o local em que as fotos foram tiradas. Para
Le Goff (1994, p. 466), “as imagens do passado dispostas em ordem cronológica, ‘ordem
das estações’ da memória social, evocam e transmitem a recordação dos acontecimentos
que merecem ser conservados”. Em outras palavras, a própria disposição das fotografias,
como em um álbum de família ou em redes sociais como o Facebook, facilita a preservação
e a organização da memória. Ao se verem desterritorializadas da rede social para o
aplicativo, as crianças perderam a referência de tempo e continuidade. Ao mesmo tempo, o
aplicativo mostrou nesse experimento seu potencial lúdico, já que foi capaz de entreter as
crianças e despertar nelas a vontade de continuar navegando.
Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação XXXIX Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – São Paulo - SP – 05 a 09/09/2016
11
Experimento II: A memória adolescente
A segundo experimento foi realizado com Arthur, um adolescente paulistano, de 18 anos,
do sexo masculino. O jovem utilizou o aplicativo Videboo para criar um tema que
representasse para ele o significado e os sentimentos associados à palavra “memória”. As
imagens, todas fotografadas pelo jovem com seu celular, incluíam diferentes calendários na
parede, livros na estante, um cartão de memória, um relógio antigo, uma agenda (disponível
em: http://videboo.com/photo.msp?mTEMA2=2016071060932. Acesso em: 05 de julho de
2016). Durante a navegação, a falta de controle nos efeitos do aplicativo causou
estranhamento e incômodo no jovem, que tentou algumas vezes sem sucesso, através do
toque na tela, manipular as imagens (Figura 3).
Se no experimento I o interesse dos usuários se concentrou exclusivamente na utilização do
aplicativo, a vontade de Arthur de alimentar o aplicativo com objetos fotografados para o
experimento demonstra uma postura diferente do usuário, uma tentativa de se construir um
sentido para o termo memória a partir do próprio gesto de fotografar.
Por outro lado, a associação de um objeto imediatamente fotografado à ideia de memória
retoma a visão de Sontag, que afirma que pelo olhar da lente tudo se torna passado: “As
câmeras estabelecem uma relação inferencial com o presente (a realidade é conhecida por
seus vestígios), proporcionam uma visão imediatamente retroativa da experiência. Fotos
fornecem formas simuladas de posse: do passado, do presente e até do futuro” (SONTAG,
2004, p. 183).
Figura 3 – Arthur navega no aplicativo Videboo no tema “Memória”.
Fonte: Acervo pessoal do autor Marcelo Capanema.
Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação XXXIX Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – São Paulo - SP – 05 a 09/09/2016
12
Experimento III: A memória na terceira idade
O terceiro e último experimento foi realizado com Maria, uma mulher paulistana de 66 anos
de idade. A participante não teve nenhum contanto anterior com o aplicativo, mas possuía
familiaridade com o uso de aparelhos tecnológicos como celular, tablet e computador, e
ferramentas de navegação na internet, redes sociais e chat de mensagens.
Antes da apresentação do aplicativo, foi solicitada à participante a criação de um tema que
representasse sua memória. Maria preferiu utilizar imagens da internet ao invés de imagens
pessoais, mas que de alguma forma a fizessem lembrar de sua infância. As fotos escolhidas
por ela incluem imagens que a fazem lembrar da infância como: fotos de brincadeiras
infantis, escolas, reuniões familiares e amigos (o tema “Saudades dos tempos de infância”
está disponível em: http://videboo.com/photo.msp?mTEMA2=2016071055728. Acesso em:
05 de julho de 2016).
A participante relaciona fotografia a lembrança, memória, saudades, momentos
vivenciados. Afirma, inclusive, que a fotografia sempre tem relação com momento em que
foi realizada, seja pelas pessoas fotografadas, seja por quem fotografou. Relatou também
que a sobreposição das imagens gerou uma curiosidade de visualizar separadamente as
fotos que criaram a composição, para um olhar mais apurado e melhor observação. Além
disso, Maria sugeriu que o aplicativo oferecesse a possibilidade de criar temas privados
para compartilhar com parentes para inclusão e visualização das imagens.
Figura 4 – Maria navega no aplicativo Videboo.
Fonte: Acervo pessoal do autor Renato Gaion.
Algumas diferenças entre os três experimentos valem ser ressaltadas. Jean Baudrillard
(1997, p. 51) afirma que “a Internet e o computador estao dando origem a uma nova
linguagem, uma nova maneira de funcionar, regida por novas normas. O computador faz as
Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação XXXIX Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – São Paulo - SP – 05 a 09/09/2016
13
pessoas pensarem de maneira diferente”. Dentro do contexto do trabalho, as opções das
crianças em usarem fotos próprias, de Arthur em fotografar objetos na sua casa e de Maria
em buscar fotos no Google mostram diferentes interpretações para a memória e sugerem
uma preferência por diferentes etapas da cadeia de imagens (crianças/visualização,
adolescente/ato fotográfico, terceira idade/compartilhamento).
Considerações finais
A partir da questão, presente na rotina de milhões de brasileiros, do alto volume de
fotografias geradas, que faz com que as pessoas prestem menos atenção para as imagens,
foi desenvolvido um aplicativo com o objetivo de chamar a atenção das pessoas novamente
para a fotografia.
O aplicativo Videboo foi testado com um grupo pequeno de pessoas de idades diferentes
com o objetivo de produzir reflexões sobre o trabalho do grupo e ao mesmo tempo verificar
se as perguntas iniciais do trabalho foram respondidas. Com as observações coletadas nesse
experimento especifico, verificou-se que alguns dos objetivos propostos foram atendidos,
entre eles, gerar a inquietação e o desconforto de não controlar a visualização das imagens
inseridas, questionar a autoridade e autoria sobre os temas criados e as imagens inseridas,
não eternizar o momento ou memória, tornar a experiência individualizada ao não se
permitir seu compartilhamento.
Além dos objetivos, as conversas com os usuários mostraram visões para o futuro e
melhorias a serem implementadas. As possibilidades de investigação e pesquisa futuras que
as primeiras reações que o aplicativo provocou parecem promissoras. Nas palavras de
Santaella:
(...) linguagens tidas como espaciais – imagens, diagramas, fotos – fluidificam-se
nas enxurradas e circunvoluções dos fluxos (...). Textos, imagem e som já não são o
que costumavam ser. Deslizam uns para os outros, sobrepõem-se, complementam-
se, confraternizam-se, unem-se, separam-se e entrecruzam-se. Tornaram-se leves,
perambulantes. Perderam a estabilidade que a força de gravidade dos suportes fixos
lhes emprestava (SANTAELLA, 2007, p. 24).
A continuidade do trabalho prevê que o aplicativo seja apresentado para novos grupos e
para novos públicos, para que novas ideias surjam e contribuam com um processo cuja
própria natureza, segundo as ideias de Deleuze e Guattari (1997), não para de devir outro.
Referências
A OUTRA. Direção: Woody Allen. Produção: Robert Greenhunt. Nova York: Orion Pictures, 1988.
1 DVD (84 min.), son., cor.
Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação XXXIX Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – São Paulo - SP – 05 a 09/09/2016
14
BAUDRILLARD, Jean. Simulacros e simulacao. Ed. Relogio D’Agua, 1991. Tela Total – Mito-
Ironias da Era do Virtual e da Imagem. Porto Alegre, 1997.
BAZIN, Andre. Ontologia da imagem fotográfica. In: XAVIER, Ismail (org.). A experiência do
cinema. Rio de Janeiro: Edições Graal: Embrafilmes, 1983.
BENJAMIN, Walter. A obra de arte na era da sua reprodutibilidade tecnica. In: Sobre arte, tecnica,
linguagem e politica. Lisboa: Relogio D’Agua Editores, 1992, 1 vol., p. 71-113.
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia, v. 2. Trad. Ana
Lúcia de Oliveira e Lúcia Claudia Leão. São Paulo: Ed. 34, 1997.
DUBOIS, Philippe. O ato fotográfico e outros ensaios. Campinas, São Paulo: Papirus, 1993.
FONTCUBERTA, Joan. A Câmera de Pandora, a fotografia depois da fotografia. São Paulo:
Editora G. Gili, 2012.
GARCÍA, Miguel. Analisis de redes sociales y medios sociales de Internet. Usando uma visión para
pensar: la estrutura de las relaciones em red em Twitter. in FRESNO, Miguel, MARQUES, Pilar,
PAUNERO, David (orgs). Conectados por redes sociales. Introducción al análisis de redes
sociales y casos prácticos. Barcelona: Editorial UOC, 2014.
KOSSOY, Boris. Fotografia e memória: reconstrução por meio da fotografia. In: SAMAIN, Etienne
(org). O fotográfico. 2 ed. São Paulo: Senac, 2005.
LE GOFF, Jacques. História e memória. Campinas: Ed. Unicamp, 1994.
MACHADO, Arlindo. Pré-cinemas e pós-cinemas. Campinas: Papirus, 1997.
MALIK, Om. In the future, we will photograph everything and look at nothing. Nova York, 04 abr.
2016. Disponível em: <http://www.newyorker.com/business/currency/in-the-future-we-will-
photograph-everything-and-look-at-nothing>. Acesso em: 04 abr. 2016.
SANTAELLA, Lucia. Linguagens líquidas na era da mobilidade. São Paulo: Paulus, 2007.
SARVAS, Rito; FROHLICH, David. From snapshots to social media. The changing picture of
domestic photography. Londres: Springer, 2011.
SMART Insights Homepage. Disponível em: <http://www.smartinsights.com>. Acesso em: 16 jul.
2015.
Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação XXXIX Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – São Paulo - SP – 05 a 09/09/2016
15
SOLARIS. Direção: Andrey Tarkovsky. Produção: Viacheslav Tarasov. São Paulo: Criterion
Collection, 1973. 1 DVD (166 min.), son., cor.
SONTAG, Susan. Sobre fotografia. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.