interaÇÃo discursiva: os discursos nacional e estrangeiro … · interação discursiva 2....

18
Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação XXII Encontro Anual da Compós, Universidade Federal da Bahia, 04 a 07 de junho de 2013 www.compos.org.br 1 INTERAÇÃO DISCURSIVA: os discursos nacional e estrangeiro em auto-anúncios de agências de propaganda nos anos 1950 1 DISCURSIVE INTERACTION: national and foreign discourses in self- referential advertisements of advertising agencies in the 1950s João Anzanello Carrascoza 2 Tânia Márcia Cezar Hoff 3 Resumo: Neste artigo, analisamos os modos de interação entre os discursos nacional e estrangeiro presentes em anúncios auto-referenciais de agências de propaganda veiculados nos anos 1950 na Revista Publicidade e Negócios. Tecemos considerações sobre a fertilidade da Análise de discurso de linha francesa para se investigar a construção dos sentidos de consumo no discurso publicitário, uma vez que o discurso pressupõe interação no contexto linguístico e social. A partir de um corpus no qual observamos elementos locais e estrangeiros, buscamos identificar como se desenvolve a interdiscursividade entre os referidos discursos no âmbito da mensagem publicitária da época. A Análise de Discurso, articulada aos estudos de linguagem e de comunicação, é a principal fundamentação teórico-metodológica de nossa abordagem do discurso publicitário como um dos sistemas de divulgação da cultura do consumo no Brasil. Palavras-chave:1. Interação discursiva 2. Discursos nacional e estrangeiro 3. Publicidade Abstract: This article presents an analysis of the ways of interaction between national and foreign discourses present in self-referential advertisements of advertising agencies vehiculated in the 1950 decade in the magazine Publicidade e Negócios. We make some considerations about the fertility of the French line of Discourse Analysis in order to investigate the construction of the meanings of consumption in advertising discourse, since discourse presupposes interaction in the linguistic and social context. Basing our considerations upon a corpus in which local and foreign elements were observed, we seek to identify in which way interdiscursivity is being developed. The Discourse Analysis and the language and communication studies are our main theoretical and methodological basis that allows us to approach 1 Trabalho apresentado ao Grupo de Trabalho “Práticas interacionais e linguagens na comunicação”, do XXII Encontro Anual da Compós, na Universidade Federal da Bahia, Salvador, de 04 a 07 de junho de 2013. 2 Doutor e docente do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Práticas de Consumo, da ESPM/SP. E- mail: [email protected] . 3 Doutora e docente do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Práticas de Consumo, da ESPM/SP. E- mail: [email protected] .

Upload: others

Post on 25-Oct-2020

18 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: INTERAÇÃO DISCURSIVA: os discursos nacional e estrangeiro … · Interação discursiva 2. Discursos nacional e estrangeiro 3. Publicidade Abstract: This article presents an analysis

Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação

XXII Encontro Anual da Compós, Universidade Federal da Bahia, 04 a 07 de junho de 2013

www.compos.org.br 1

INTERAÇÃO DISCURSIVA: os discursos nacional e estrangeiro em auto-anúncios de

agências de propaganda nos anos 19501

DISCURSIVE INTERACTION: national and foreign discourses in self- referential advertisements of

advertising agencies in the 1950s

João Anzanello Carrascoza2

Tânia Márcia Cezar Hoff3

Resumo:

Neste artigo, analisamos os modos de interação entre os discursos nacional e

estrangeiro presentes em anúncios auto-referenciais de agências de propaganda

veiculados nos anos 1950 na Revista Publicidade e Negócios. Tecemos

considerações sobre a fertilidade da Análise de discurso de linha francesa para se

investigar a construção dos sentidos de consumo no discurso publicitário, uma vez

que o discurso pressupõe interação no contexto linguístico e social. A partir de um

corpus no qual observamos elementos locais e estrangeiros, buscamos identificar

como se desenvolve a interdiscursividade entre os referidos discursos no âmbito da

mensagem publicitária da época. A Análise de Discurso, articulada aos estudos de

linguagem e de comunicação, é a principal fundamentação teórico-metodológica de

nossa abordagem do discurso publicitário como um dos sistemas de divulgação da

cultura do consumo no Brasil.

Palavras-chave:1. Interação discursiva 2. Discursos nacional e estrangeiro 3.

Publicidade

Abstract:

This article presents an analysis of the ways of interaction between national and

foreign discourses present in self-referential advertisements of advertising agencies

vehiculated in the 1950 decade in the magazine Publicidade e Negócios. We make

some considerations about the fertility of the French line of Discourse Analysis in

order to investigate the construction of the meanings of consumption in advertising

discourse, since discourse presupposes interaction in the linguistic and social

context. Basing our considerations upon a corpus in which local and foreign

elements were observed, we seek to identify in which way interdiscursivity is being

developed. The Discourse Analysis and the language and communication studies

are our main theoretical and methodological basis that allows us to approach

1 Trabalho apresentado ao Grupo de Trabalho “Práticas interacionais e linguagens na comunicação”, do XXII

Encontro Anual da Compós, na Universidade Federal da Bahia, Salvador, de 04 a 07 de junho de 2013. 2 Doutor e docente do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Práticas de Consumo, da ESPM/SP. E-

mail: [email protected] . 3 Doutora e docente do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Práticas de Consumo, da ESPM/SP. E-

mail: [email protected] .

Page 2: INTERAÇÃO DISCURSIVA: os discursos nacional e estrangeiro … · Interação discursiva 2. Discursos nacional e estrangeiro 3. Publicidade Abstract: This article presents an analysis

Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação

XXII Encontro Anual da Compós, Universidade Federal da Bahia, 04 a 07 de junho de 2013

www.compos.org.br 2

advertising discourse as one of the systems of the propagation of Brazilian

consumption culture.

Keywords: 1. Discursive interaction 2. National and foreign discourses

3.Advertising

1. Análise de discurso: um percurso teórico-metodológico para investigar

processos de interação

Tendo como perspectiva as lógicas de produção de discursos, abordamos, neste texto,

os processos e as estratégias de construção discursiva na comunicação publicitária dos anos

19504. Delimitamos nossa análise a dois discursos, o nacional e o estrangeiro, que engendram

o discurso publicitário do referido período, a partir de processos interdiscursivos. O diálogo

entre memória e inovação discursiva está presente nos anúncios auto-referenciais de agências

de propaganda, de modo que o tensionamento entre o já dito e o por dizer sugere a

possibilidade de que novos discursos emerjam deste processo.

Trata-se de investigar a constituição de discursos, o seu funcionamento e os processos

de interação discursiva – interdiscursividade. E, nesta perspectiva, encontramo-nos no âmbito

dos estudos da linguagem, concebida como “prática; mediação, trabalho simbólico e não

instrumento de comunicação” (ORLANDI, 2004, p.28). Ou ainda, linguagem “como um

processo de interlocução, que pressupõe a constituição de e por sujeitos numa determinada

situação histórica e social [...] um lugar de interação” (GUIMARÃES, 2009, p.95).

Para Orlandi, o discurso realiza-se no entremeio, entre a língua/ estrutura e o uso/ fala

ou língua em uso. O discurso é “palavra em movimento” (2010, p. 15). Deste modo, a autora

explica como se dá a relação entre discurso, língua e texto:

A Análise de Discurso não trabalha com a língua enquanto um sistema abstrato,

mas com a língua no mundo, com as maneiras de significar, com homens falando,

considerando a produção de sentidos enquanto parte de suas vidas, seja enquanto

sujeitos seja enquanto membros de uma determinada sociedade (ORLANDI, 2010,

p. 15-16).

4 Dedicamo-nos, neste trabalho, a investigar os diálogos entre os discursos nacional e estrangeiro, aspecto que

emergiu nos resultados finais da pesquisa “Ditos e não ditos da narrativa publicitária: modernização e consumo

no Brasil dos anos 1950”, realizada em 2011 junto ao Centro de Altos Estudos, CAEPM-ESPM, mas não foi

analisado em função dos objetivos ali definidos. A partir dos debates desenvolvidos em 2012 no GT “Práticas

interacionais e linguagens na comunicação”, quando parte dos resultados finais da referida pesquisa foram

apresentados, inspiramo-nos a considerar a Análise de discurso como um aporte teórico-metodológico pertinente

ao estudo de práticas interacionais.

Page 3: INTERAÇÃO DISCURSIVA: os discursos nacional e estrangeiro … · Interação discursiva 2. Discursos nacional e estrangeiro 3. Publicidade Abstract: This article presents an analysis

Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação

XXII Encontro Anual da Compós, Universidade Federal da Bahia, 04 a 07 de junho de 2013

www.compos.org.br 3

Considere-se, pois, que a Análise de Discurso de linha francesa (ADF, assim

denominada ao longo do texto) não se dedica ao estudo da língua enquanto sistema, na

perspectiva da Linguística, nem enquanto normas, na perspectiva da gramática: os estudos

discursivos operam com a língua materializada no texto, visando “pensar o sentido

dimensionado no tempo e no espaço das práticas do homem, descentrando a noção de sujeito

e relativizando a autonomia do objeto da linguística” (ORLANDI, 2010, p. 17). O seu objeto

de investigação são os sentidos, ou seja, os gestos de interpretação do(s) sujeito(s) em dado

contexto sócio-histórico – note-se que o conceito de discurso está fundamentado na

necessidade de apreensão dos sentidos.

Fundamentado na ADF, é possível ao pesquisador compreender os sentidos – os

significados – atribuídos ao mundo e aos acontecimentos por determinado grupo, em

determinado contexto sócio-histórico: para se alcançar os sentidos, é preciso chegar ao

discurso – “palavra em movimento” e “trabalho simbólico”, conforme mencionamos acima.

A Análise de discurso concebe a linguagem como mediação necessária entre o

homem e a realidade natural e social. Essa mediação, que é o discurso, torna

possível tanto a permanência e a continuidade quanto o deslocamento e a

transformação do homem e da realidade em que ele vive. O trabalho simbólico do

discurso está na base da produção da existência humana (ORLANDI, 2010, p. 15).

Guimarães (2009, p.89-90), ao estabelecer a abrangência do conceito e seus âmbitos de

atuação em relação à língua, define discurso:

uma entidade histórica (ideológica) que se elabora socialmente, através de sua

materialidade específica, que é a língua manifestada no texto. É próprio do discurso

privilegiar a natureza funcional e interativa e não o aspecto formal e estrutural da

língua. [...] Frise-se a concepção de discurso como uma forma de interação, ou seja,

como um evento comunicativo, que é, por sua vez, encaixado em estruturas sociais,

políticas ou culturais mais abrangentes. Daí considerar o discurso como um efeito

de sentido construído no processo de interlocução, enquanto parte do

funcionamento social.

Para a autora acima mencionada, o discurso pode ser definido como “uma prática”,

pois “para se encontrar sua regularidade não se analisam seus produtos, mas os processos de

sua produção – fato do qual decorre a necessidade de ser objeto de sua análise a língua em

uso” (GUIMARÃES, 2009, p. 90). Em outros termos, a “língua em uso” implica o texto,

instância na qual o discurso se materializa: por meio do texto é que se pode entender o

funcionamento do discurso, visto que o “repetível no nível do discurso é histórico e não

Page 4: INTERAÇÃO DISCURSIVA: os discursos nacional e estrangeiro … · Interação discursiva 2. Discursos nacional e estrangeiro 3. Publicidade Abstract: This article presents an analysis

Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação

XXII Encontro Anual da Compós, Universidade Federal da Bahia, 04 a 07 de junho de 2013

www.compos.org.br 4

formal” (ORLANDI, 2004, p. 29). Depreende-se destas características que o discurso que é

um processo e não um produto acabado, fechado e isolado, dissociado do contexto

sociocultural e histórico.

“Todo discurso nasce de outro (sua matéria-prima) e aponta para outro (seu futuro

discursivo). Não se trata nunca de um discurso, mas de um continuum” (ORLANDI, 1993, p.

18), o continuum dos discursos. Daí, definir-se discurso como “efeito de sentido entre

locutores‟‟ (ORLANDI, 2010, p.21). Se “na Análise de discurso se trabalha com os

processos de constituição da linguagem e da ideologia e não com seus conteúdos”

(ORLANDI, 2004, p. 30), a dimensão do discurso é a que melhor permite observar os

processos de produção de sentido e interação. Destacamos, aqui, a relevância de se investigar

a interação discursiva entre o elemento nacional e o estrangeiro no discurso publicitário nos

anos 1950, período em que as transformações da sociedade brasileira faziam emergir os

pilares da(s) cultura(s) de consumo, tal qual a concebemos atualmente.

Em conformidade com os princípios da Análise de Discurso, podemos afirmar que o

sentido não existe per si, mas em relação às posições ideológicas que entram em jogo no

processo sócio-histórico. Nesse processo, as palavras não são portadoras de sentido(s) pre-

estabelecido(s), pois elas mudam de sentido conforme as posições daqueles as empregam: ou

seja, elas “não têm um sentido nelas mesmas, elas derivam seus sentidos das formações

discursivas em que se inscrevem” (ORLANDI, 2010, p.43). Note-se a pertinência das

noções de contexto e de situação: a primeira referindo-se a aspectos internos de um

enunciado ou acontecimento ou momento sócio-histórico e a segunda, a aspectos externos

àquilo que envolve a produção de um enunciado, ou acontecimento, ou momento sócio-

histórico. Tais noções são constituintes dos processos de atribuição de sentidos, de modo que

não há sentido nuclear e único ou essência a ser localizada ou revelada: todos os sentidos são

igualmente possíveis, embora, em certas condições de produção, possa haver um sentido

preponderante em relação aos demais, o que se explica não por um a priori ou uma essência,

mas por relações de força que se estabelecem nos processos de interação social. Ou ainda, as

interações desenvolvem-se no bojo das dinâmicas sociais que operam a partir relações de

poder – conforme Foucault5, que concebe o poder como algo difuso, capilar, descentralizado.

5 Em A Ordem do discurso (1999), o filósofo francês elabora uma teoria do discurso, não da perspectiva da

linguagem, mas do funcionamento do discurso, de suas regularidades e dos discursos que foram ditos, ou seja,

Page 5: INTERAÇÃO DISCURSIVA: os discursos nacional e estrangeiro … · Interação discursiva 2. Discursos nacional e estrangeiro 3. Publicidade Abstract: This article presents an analysis

Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação

XXII Encontro Anual da Compós, Universidade Federal da Bahia, 04 a 07 de junho de 2013

www.compos.org.br 5

Nesta perspectiva, há sempre enfrentamentos discursivos, o que faz mover a

construção de sentidos na sociedade. Tanto a elaboração quanto a circulação de enunciados é

controlada pelas relações de poder e são elas que definem o que pode e o que não pode ser

dito em dada situação de comunicação. Considere-se a existência de uma economia política

do poder que se manifesta na instância discursiva, de modo que se há poder e formas de

controle, há também formas de resistência, espaços para a constituição de novos sentidos e/ou

novos discursos. Tanto Pêcheux quanto Foucault concebem os discursos como instâncias de

confronto, de instabilidade/movimentação dos sentidos e também de regularidades6, como

bem esclarece Gregolin, ao discorrer sobre a perspectiva teórica que engendra a noção de

“formações discursivas” nos postulados de ambos os autores: “centrados nessa articulação

entre sistematicidade e dispersão, os desenvolvimentos do conceito de formação discursiva

mostram que a aproximação entre Pêcheux e Foucault se dá na direção de uma ideia cada vez

mais forte de heterogeneidade” (2005, p.01).

As relações de poder no processo discursivo são um pressuposto fundamental para a

Análise de Discurso, posto que permitem melhor compreender a produção de sentidos e de

discursos. Em Inquietude do discurso, ao discorrer sobre as formações discursivas, Pêcheux

(1977) propõe que a Análise de Discurso considere as “invasões, os atravessamentos

constitutivos” como categoria conceitual e como procedimento de formação e de análise do

corpus. Seguindo esta linha de raciocínio, que busca dar conta da constituição e do

funcionamento dos discursos, as formações discursivas e as formações ideológicas ganham

relevância teórica e analítica nas teorizações do estudioso francês sobre AD.

Para Orlandi (2010, p.43), “a formação discursiva se define como aquilo que numa

formação ideológica dada [...] determina o que pode e deve ser dito”, ou ainda, “as formações

“a partir de suas condições externas de possibilidade” (1999, p. 53). Embora Foucault não seja um analista do

discurso identificado com os estudos desenvolvidos por Pêcheux, há pontos de aproximação entre o pensamento

dos dois estudiosos, notadamente após os anos 1970, quando Pêcheux revê seu entendimento da “maquinaria-

discursivo-estrutural” – inspirada em Althusser e alicerçada na noção de homogeneidade enunciativa –, ao

dialogar com as noções foucaultianas de formação discursiva, alicerçadas na noção de saber/poder e não na

ideologia. Neste trabalho, consideramos os pressupostos teóricos contemporâneos da ADF, daí dialogarmos com

estudiosos de discurso que se apóiam no pensamento de Foucault, juntamente com as elaborações teóricas de

Pêcheux. 6 Vale ressaltar que Pêcheux considera as relações de confronto historicamente constituídas no interior das

classes sociais e que Foucault não concebe a dinâmica social a partir da divisão de classes ou da ideologia, mas

sim das relações de poder que emergem nas formações sociais.

Page 6: INTERAÇÃO DISCURSIVA: os discursos nacional e estrangeiro … · Interação discursiva 2. Discursos nacional e estrangeiro 3. Publicidade Abstract: This article presents an analysis

Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação

XXII Encontro Anual da Compós, Universidade Federal da Bahia, 04 a 07 de junho de 2013

www.compos.org.br 6

discursivas podem ser vistas como regionalizações do interdiscurso, configurações

específicas dos discursos em suas relações” (2010, p.43).

Já segundo Maingueneau (1976, p.86-87), uma formação ideológica é:

um conjunto de atitudes, representações etc referidas a posições de classe, que é

susceptível de intervir com força confrontada a outras na conjunção ideológica que

caracteriza uma formação social em um momento dado [...]. Dada uma conjuntura

determinada por um estado de luta de classes, e por uma “posição” (ideológica e

política).

Observemos a referência à posição ocupada pelo sujeito (posição de sujeito) numa

situação de comunicação: os valores que ele defende consciente ou inconscientemente trarão

as marcas de sua identidade social e ideológica. Também a noção de ideologia é re-

significada pela AD na perspectiva discursiva: assim, a “ideologia não é ocultação, mas

função da relação necessária entre linguagem e mundo. Linguagem e mundo se refletem no

sentido da refração, do efeito imaginário de um sobre o outro” (ORLANDI, 2010, p.47).

Ambas as formações, discursivas e ideológicas, complementam-se: “as formações

discursivas determinam o que se pode dizer; e as formações ideológicas determinam o que se

deve dizer” (GUIMARÃES, 2009, p. 119). Complementam-se também porque é necessário

localizar as formações ideológicas para se alcançar as formações discursivas. Em outros

termos, a formação discursiva é definida, a partir da localização e identificação da ou das

posições de sujeito presentes num texto. Essas formações, conceitualmente, explicam a

instabilidade constitutiva do conceito de discurso e, metodologicamente, auxiliam na

identificação dos sentidos.

Outro aspecto relevante a se considerar no constructo teórico da ADF é que se a ideia

de interação não está formulada como um conceito, ela é constitutiva da edificação conceitual

do discurso conquanto seja condição sine qua non da interdiscursividade. “Todo discurso é,

em princípio interdiscurso [...] parte-se do que já foi dito, do que tem sido dito, dos sentidos

postos, para podermos sustentar nossa comunicação” (Guimarães, 2009, p. 118).

Podemos afirmar que a interação se manifesta em várias instâncias da ADF: (1) na da

palavra que não tem um sentido próprio, preso a sua literalidade – a palavra ganha sentido na

relação com as demais palavras do texto; (2) na da posição do sujeito que assume vários

lugares de fala, dependendo da situação de comunicação, dentre outros fatores; (3) na da

constituição de sentidos que são atribuídos na instabilidade das relações de poder constituídas

Page 7: INTERAÇÃO DISCURSIVA: os discursos nacional e estrangeiro … · Interação discursiva 2. Discursos nacional e estrangeiro 3. Publicidade Abstract: This article presents an analysis

Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação

XXII Encontro Anual da Compós, Universidade Federal da Bahia, 04 a 07 de junho de 2013

www.compos.org.br 7

numa dada sociedade em dado momento sócio-histórico e que afetam os sujeitos nas diversas

posições que podem assumir; acrescente-se também que os sentidos dependem de relações

constituídas nas e pelas formações discursivas; (4) na das formações discursivas que se inter-

relacionam com as formações ideológicas; e no do interdiscurso, já que todo discurso existe

em relação a outro discurso – a noção de interdiscurso compreende a de interação, como um

aspecto inerente da interdiscursividade. Não há interdiscurso sem interação.

Esse princípio interativo presente no entendimento do discurso e da

interdiscursividade pode ser observado no discurso publicitário que tem seu processo de

constituição associado ao desenvolvimento do capitalismo. Zayas, em Publicid y hegemonia:

matrices discursivas, considera que “a publicidade nasce de um projeto cultural capitalista”

(2006, p.14) e que é um “discurso produto da modernidade capitalista” (2006, p. 18). Tal

entendimento da publicidade nos remete a processos interativos, os quais permitiriam que

esta produção cultural ocupasse lugar tão destacado na constituição dos discursos ao longo do

desenvolvimento das culturas do consumo e da mídia.

Ainda para Zayas, o discurso publicitário “se constituiu em um discurso hegemônico

que, sem ser um discurso empírico, nem transcendental, incorporou aquelas instâncias que

lhe permitiram apropriar-se de certas vozes destes discursos e ainda se converteu no

representante de um projeto cultural baseado na propriedade privada e na cultura de

mercado” (2006, p. 18).

Havey (1989) corrobora tal entendimento ao afirmar que a publicidade, nas últimas

três décadas do século XX, tornou-se um discurso hegemônico, capaz de reorientar a

experiência semiótica dos indivíduos. Para ele, a construção deste novo sistema de signos se

deve às transformações dos sistemas financeiros globais após 1973, o que resultou em

modificações significativas nas práticas políticas, econômicas e socioculturais. No que se

refere ao contexto brasileiro, Rocha (2010) também desenvolve uma análise das

transformações da sociedade capitalista, com foco nas características neoliberais de nossa

sociedade a partir do golpe militar de 1964 até os anos FHC, para analisar as transformações

retórico-persuasivas do discurso publicitário, por meio de anúncios de grandes marcas do

mercado nacional (automóveis, alimentação, cigarros, entre outros segmentos).

Page 8: INTERAÇÃO DISCURSIVA: os discursos nacional e estrangeiro … · Interação discursiva 2. Discursos nacional e estrangeiro 3. Publicidade Abstract: This article presents an analysis

Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação

XXII Encontro Anual da Compós, Universidade Federal da Bahia, 04 a 07 de junho de 2013

www.compos.org.br 8

Considerando a análise do corpus, o interdiscurso permite investigar os processos de

interação entre os significados socioculturais do Brasil passado e do Brasil futuro, os dois

imaginários de Brasil que se encontram na década de 1950. Na perspectiva das lógicas de

produção dos discursos, é possível compreender os fluxos comunicacionais que interagem

com as práticas discursivas nos anos 1950. Na análise dos anúncios auto-referenciais das

agências de propaganda, buscamos compreender os modos de interação entre os discursos

nacional e estrangeiro, a partir da noção de interdiscursividade e, para tanto, somos instados a

identificar as posições de sujeito que os publicitários assumem nos enunciados/textos de

divulgação do trabalho publicitário das agências, bem como a identificar as formações

discursivas e ideológicas mobilizadas por meio da memória discursiva.

Destaque-se que as reflexões desenvolvidas neste artigo partem dos resultados finais

de uma pesquisa já concluída que se propunha a identificar os ditos e não ditos presentes na

narrativa publicitária dos anos 1950. O discurso publicitário registra determinados

entendimentos de modernização e de consumo, dentre outros tantos que circulavam na

sociedade de então. Certamente, não abriga todos os sentidos possíveis nem todos os

discursos existentes daquele momento socio-histórico, já que o sujeito enunciador deste

discurso o faz a partir da perspectiva de certo lugar social e de certa posição de sujeito.

Estudar a publicidade como discurso implica relacioná-la à memória discursiva – como uma

enunciação heterogênea –, pois é inerente à natureza do discurso misturar-se com outros, a

partir de processos interdiscursivos e intertextuais.

A interdiscursividade está associada aos modos de produção da memória que é

sempre contextual e dialógica: sua constituição se dá por meio de um processo de edição das

experiências vividas, de forma que neste processo sempre concorrem tensões, conflitos e

negociações de diferentes naturezas. Assim, o discurso publicitário dos anos 1950 permite

observar quais enquadramentos ou edições da vida concorreram na formação do discurso do

consumo do referido período.

Nos anos 1950, quando as agências de propaganda alardeavam a necessidade de

adequação das empresas nacionais aos imperativos do mundo do consumo, identificamos a

partir das principais formações discursivas presentes em anúncios auto-referenciais de

agências de propaganda, uma euforia bastante acentuada em relação à modernização e ao

consumo, traduzida, principalmente, em estatísticas e em índices de crescimento de distintos

Page 9: INTERAÇÃO DISCURSIVA: os discursos nacional e estrangeiro … · Interação discursiva 2. Discursos nacional e estrangeiro 3. Publicidade Abstract: This article presents an analysis

Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação

XXII Encontro Anual da Compós, Universidade Federal da Bahia, 04 a 07 de junho de 2013

www.compos.org.br 9

segmentos da sociedade brasileira, tais como: das rodovias; da construção civil; do parque

industrial; das vendas; dentre outros (CARRASCOZA e HOFF, 2011).

Nos anúncios auto-referenciais investigados, as agências de propaganda dos anos

1950 revelam o lugar privilegiado que ocupam na esfera do consumo e suas práticas: se

consideradas como enunciadores, elas ocupam uma posição de sujeito autorizado, com

legitimidade e autoridade para apregoar os novos valores. As narrativas publicitárias auto-

referenciais selecionadas deixam entrever uma edição do mundo que privilegia certos

aspectos em detrimento de outros. Essa negociação de sentidos atribuídos aos eventos

cotidianos é constituinte de processos de interação social produzidos no âmbito na linguagem

e apreendidos, neste artigo, a partir dos conceitos de discurso e de interdiscurso. No item que

se segue, analisamos os discursos nacionais e estrangeiros presentes em um corpus formado

por anúncios auto-referenciais de agências de propaganda, veiculados na Revista Publicidade

e Negócios nos anos 1950, buscando a partir da identificação dos sentidos de nacional e de

estrangeiro, analisar a interdiscursividade, ou seja, os modos de interação dos dois

mencionados discursos.

As formações discursivas e as formações ideológicas, bem como a constituição de

sentido são aspectos constitutivos de processos interacionais da cena midiática. Neste sentido,

cena midiática e cultura do consumo se constituem num grande cenário de novas interações.

2. Análise de interações dos discursos nacional e estrangeiro nos auto-anúncios das

agências de propaganda nos anos 1950

Na década de 1950, o mercado publicitário no Brasil vivia um momento de inédita

euforia. O suicídio de Getúlio Vargas abriu caminho para Juscelino Kubitschek e sua política

desenvolvimentista, que atraiu o capital estrangeiro para viabilizar seus ideais de crescimento

acelerado, sintetizados no slogan “Cinquenta anos em cinco”.

O progresso industrial paulista – graças ao sucesso do plano de JK, que levou a

instalação da indústria automobilística em São Paulo (PINHO, 1998) –, o advento da

televisão no país, a relevância da comunicação no cenário mundial e o avanço do marketing,

entre outros fatores, vão dinamizar o setor publicitário nacional, além de forçar o surgimento

Page 10: INTERAÇÃO DISCURSIVA: os discursos nacional e estrangeiro … · Interação discursiva 2. Discursos nacional e estrangeiro 3. Publicidade Abstract: This article presents an analysis

Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação

XXII Encontro Anual da Compós, Universidade Federal da Bahia, 04 a 07 de junho de 2013

www.compos.org.br 10

da primeira escola de propaganda no país, concebida para preparar profissionais para as

demandas emergentes da área (BRANCO, MARTENSEN & REIS, 1990).

Às agências já em atividade no país, somam-se, neste período, a inúmeras outras, de

origem estrangeira ou de capital nacional, todas objetivando aproveitar do momento de

expansão econômica e modernização pelo qual o Brasil estava passando. Muitas foram as

transformações em seus sistemas de produção, e a publicidade, nas centenas de anúncios da

revista P&N que compõem o corpus de nossa pesquisa, é apresentada, de forma uníssona,

como a força-motriz do consumo. As formações discursivas evidenciam os sentidos do

progresso, da modernização e do consumo, associando-se a formações ideológicas que lhes

conferem positividade e sentido de urgência.

Os apelos dominantes nos auto-anúncios das agências de publicidade, que promoviam

seus serviços nos anos 1950, enfatizavam: 1) a capacidade, unicamente da propaganda, de

impulsionar as vendas de todos os tipos de produto; 2) a valorização do crescimento

econômico nacional; 3) a importância da atividade publicitária para o crescimento econômico

do país e 4) a sua finalidade de ensinar também o público a consumir os produtos da “vida

moderna”, como energia elétrica, telefone e automóvel, entre outros (CARRASCOZA e

HOFF, 2011).

Neste contexto, em que o capital externo dinamizava os processos de produção

brasileiros, e as agências nacionais e estrangeiras já estabelecidas ou surgidas justamente

pelas condições crescentes de bons negócios, como o discurso de “dentro” e o de “fora”

interagiam?

Passando em análise o corpus, detendo-nos em especial nas formações ideológicas e

discursivas dos auto-anúncios e nos imbricamentos de interdiscursividade presentes, os

aspectos mais relevantes de interações discursivas, apresentados em detalhes logo a seguir,

foram: 1) o discurso nacional e o estrangeiro interagiram na linguagem dos auto-anúncios, 2)

o discurso nacional se apropriou de formações discursivas e estratégias retóricas do discurso

estrangeiro, 3) o discurso estrangeiro se apropriou de formações discursivas e estratégicas

retóricas do discurso nacional, e 4) ambos os discursos evitaram polêmicas.

Vejamos o primeiro aspecto: os auto-anúncios, independentemente se eram de

agências brasileiras ou americanas, já que emanaram de uma mesma posição enunciativa,

textualizavam o jargão publicitário, também em expansão, como os “jingles” e “spots” de

Page 11: INTERAÇÃO DISCURSIVA: os discursos nacional e estrangeiro … · Interação discursiva 2. Discursos nacional e estrangeiro 3. Publicidade Abstract: This article presents an analysis

Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação

XXII Encontro Anual da Compós, Universidade Federal da Bahia, 04 a 07 de junho de 2013

www.compos.org.br 11

rádio, os “filmes publicitários”, os “planos de propaganda”, a “promoção de vendas”, o

“consumidor”.

A “confiança no futuro do Brasil” perpassa toda esta produção publicitária,

condicionada à aceitação de que a tecnologia estrangeira era vital para isso. No texto de um

auto-anúncio da Standard Propaganda, que relatava o trabalho publicitário da agência para a

Pirelli, é dito que esta indústria, ao vir para o Brasil, “colocava meio século de experiências a

serviço da nossa pátria”.

Pelo texto de outro auto-anúncio, sobre a Internacional Harvester Máquinas – entre

tantos que revelam esta mesma interação –, vamos saber que essa empresa representava “o

esforço contínuo e entusiasta de uma organização que participa ativamente do nosso

desenvolvimento econômico, utilizando em alto grau os recursos da mais avançada técnica

aliados a uma experiência internacional dos problemas fundamentais da produção de

alimentos”.

Pelo discurso publicitário, o que vinha de fora, uma vez assimilado pelo mercado

nacional, poderia e deveria também se expandir. Há numerosos exemplos de auto-anúncios

nos quais as próprias agências se orgulhavam de serem essenciais no sucesso alcançado pelas

empresas estrangeiras no Brasil. O texto da agência Standard, sobre seu cliente Vick

Chemical Inc., traz um fecho que se reproduz, em termos discursivos, com mudanças

mínimas de construção linguística, em dezenas destes materiais: “No Brasil, Vick Chemical

Inc. É nosso cliente há dez anos e a popularidade dos seus produtos em nosso país é a melhor

prova de que, também, nesse setor, estamos cumprindo rigorosamente a nossa missão”.

O segundo aspecto, o discurso nacional apropriando-se de formações discursivas e

estratégias retóricas do discurso estrangeiro, manifesta-se de várias maneiras. A mais comum

delas é o uso de exemplos, nos auto-anúncios, da trajetória histórica de grandes empresas

estrangeiras que, invariavelmente, surgiram pequenas e, ante o mercado da livre iniciativa,

cresceram a ponto de se tornarem internacionais. Enfeixados na mesma formação ideológica

(capitalista), esses exemplos cobrem empresas dos mais variados segmentos econômicos,

como Duchen e Kibon (alimento), Rodhia e Lupo (tecelagem), Clipper (moda masculina) e

Vasp (aviação), entre outras. É também o caso da “história da velha Fazenda Anastácio” (fig.

1), que, de uma apagada propriedade rural, se converte numa potência de indústria de

comestíveis – o Frigorífico Amour.

Page 12: INTERAÇÃO DISCURSIVA: os discursos nacional e estrangeiro … · Interação discursiva 2. Discursos nacional e estrangeiro 3. Publicidade Abstract: This article presents an analysis

Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação

XXII Encontro Anual da Compós, Universidade Federal da Bahia, 04 a 07 de junho de 2013

www.compos.org.br 12

FIGURA 1- Anúncio da Agência Standard Propaganda S.A.

FONTE – Revista Publicidade e Negócios, 1956.

Outra interação discursiva dessa natureza se dá em dezenas de auto-anúncios que

incorporam em seus textos o “novo” na forma do progresso (discurso estrangeiro), como

resultado do aprimoramento da tradição (discurso nacional). O país do futuro se transforma

no país do presente, como nessas linhas iniciais de um auto-anúncio da Standard para os

fabricantes de relógios da Suíça: “Modifica-se em todo o mundo o ritmo de vida. E no Brasil

desapareceu a filosofia tropical do „amanhã‟ Hoje, cada minuto vale muito”. O elemento

externo, que traz o crescimento, povoa os anúncios do nosso corpus, e é assimilado pela

nossa sociedade tradicionalmente rural. Modelar, neste sentido, é o texto de abertura do

anúncio a seguir (fig. 2):

FIGURA 2- Anúncio da Agência Standard Propaganda S.A.

FONTE – Revista Publicidade e Negócios, 1958.

Page 13: INTERAÇÃO DISCURSIVA: os discursos nacional e estrangeiro … · Interação discursiva 2. Discursos nacional e estrangeiro 3. Publicidade Abstract: This article presents an analysis

Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação

XXII Encontro Anual da Compós, Universidade Federal da Bahia, 04 a 07 de junho de 2013

www.compos.org.br 13

“Cajatió, um bom mercado. Pode ser essa ou qualquer outra cidade, um ponto que você

ainda não localizou, perdido em seu mapa de vendas. O problema é cobrir sempre novas

regiões, trabalhar novos mercados. E é natural que você se preocupe, que procure o

necessário apoio, indispensável ao êxito crescente de seus negócios. Nós poderemos auxiliá-

lo a descobrir o seu Cajatió. Esse lugar que é um símbolo, e muitos outros, cidades e cidades

que a propaganda trouxe para o seu mercado, para o interesse de seu produto”.

Exemplo constante do discurso nacional (o Brasil natural) que interage, em dinâmica

discursiva, com o estrangeiro (o novo, aqui associado à propaganda) é o texto abaixo de um

anúncio sobre loteamento (fig. 3):

FIGURA 3- Anúncio da Agência Standard Propaganda S.A.

FONTE – Revista Publicidade e Negócios, 1957.

Paz e bucolismo. Vende-se. Era uma vez um vale tranqüilo e prazeroso, de clima

privilegiado, onde vicejavam parreiras. Um local ótimo para casas de campo, onde passar

férias e fins de semana, retemperando os nervos para a luta semanal. Mas, oculto entre as

montanhas, quem lhe conhecia a existência? A propaganda pôs mãos à obra e agora o Vale

das Videiras – um loteamento de nosso cliente Banco Oliveira Roxo – rapidamente se povoa

de novos proprietários, satisfeitos de descobrirem, tão à mão, terrenos de preço tão

conveniente. Por mais qualidades que tenha um produto ou serviço, elas só vendem quando

conhecidas. Divulgue as qualidades do que tem à venda, recorrendo à Standard Propaganda.

Nós saberemos onde e como anunciar para obter o melhor resultado”.

Page 14: INTERAÇÃO DISCURSIVA: os discursos nacional e estrangeiro … · Interação discursiva 2. Discursos nacional e estrangeiro 3. Publicidade Abstract: This article presents an analysis

Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação

XXII Encontro Anual da Compós, Universidade Federal da Bahia, 04 a 07 de junho de 2013

www.compos.org.br 14

A tranqüilidade local, das montanhas, só “existe” e tem valor para a “vida moderna”

se for descoberta por um agente exterior, o progresso (a publicidade). O “paraíso” não está na

natureza, mas na expansão das cidades.

Na outra mão, no continuum dos discursos das agências de propaganda da época, o

discurso estrangeiro também se apropria de formações discursivas e estratégicas retóricas do

discurso nacional, produzindo efeitos de sentidos e interação.

Dentre elas está o uso das estatísticas sobre o crescimento brasileiro (discurso

nacional), anunciadas pelo governo JK, para lembrar que o contingente de consumidores se

alargava e era vital para os agentes do negócio publicitário explorarem o novo mercado

(discurso estrangeiro). Os “lugares de quantidade” – recursos suasórios baseados na

dimensão numérica, conforme Perelman e Tyteca (2005) – inundam os auto-anúncios, como

este exemplo de um anúncio da J. Walter Thompson, agência americana com filial no país:

“É só olhar as estatísticas... Em 1920, a população brasileira era de 30.635.605. Em 1940,

subia a 41.236.315. No último recenseamento chegava a 51.944.397. E a população está

crescendo: nascem no Brasil mais de dois milhões de crianças por ano, cerca de 5.500 por dia

! Para você, população é mercado. E essas crianças que surgem representam muito

simplesmente mercado maior, maiores negócios”.

Outro exemplo, dentre dezenas de outros coligidos:

Uma indústria nacional de 7 bilhões 899 milhões 130 mil cruzeiros que produziu, em 1957, 3

bilhões 415 milhões 328 mil pneus de veículos a motor e bicicletas – eis o ramo de negócios a

que você se dedica.

Os auto-anúncios compunham um painel dos principais ditos da modernização e do

consumo do Brasil nos anos 1950, mostrando, em grandeza estatística, o crescimento de

variados tipos de indústrias do país, comprovando a pujança do mercado da propaganda e a

importância de anunciar. O discurso estrangeiro, enunciado por agências de propaganda

brasileiras ou norte-americanas instaladas no país, incorpora a euforia desenvolvimentista

(discurso nacional) e, inclusive, se vale de formações discursivas próprias da cultura local.

Page 15: INTERAÇÃO DISCURSIVA: os discursos nacional e estrangeiro … · Interação discursiva 2. Discursos nacional e estrangeiro 3. Publicidade Abstract: This article presents an analysis

Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação

XXII Encontro Anual da Compós, Universidade Federal da Bahia, 04 a 07 de junho de 2013

www.compos.org.br 15

A J. Walter Thompson afirma em seus textos que está “profundamente identificada

com o meio, estudando e trabalhando o mercado brasileiro”. A Standard diz que “a sua

especialidade é o Brasil”, e que o seu trabalho “baseia-se, fundamente, no estudo da realidade

brasileira, das condições e desenvolvimento do nosso mercado”. Em outro texto, informa que

sabe como falar com o consumidor brasileiro, pois ouve “a voz, os desejos, os pensamentos –

a sua própria maneira de sentir”. E ainda em outra oportunidade, assegura que sua equipe está

integrada “nesse complexo de forças vivas que é a realidade nacional”. A McCann-Erickson

também anuncia que os profissionais de seus escritórios no Brasil estão familiarizados com

os problemas de vendas dos mais diferentes produtos. A Grant Advertising divulga que seus

funcionários “viajaram pelos principais Estados, colhendo informações sobre: hábitos de

leitura e de audiência, mercado consumidor, vida bancária, movimento financeiro etc.”, além

de promover um intercâmbio constante com nossos escritórios no Exterior, “a fim de

aproveitar e adaptar ao nosso meio uma experiência internacional”. No título de outro auto-

anúncio (fig.4), a Grant afirma que é formada por “homens que conhecem o terreno em que

pisam”.

FIGURA 4- Anúncio da Agência Grant Publicidade S.A.

FONTE – Revista Publicidade e Negócios, 1953.

Ou seja, o discurso estrangeiro nos auto-anúncios, neste contexto, é irrigado com as

formações discursivas que realçam a expertise autóctone, o conhecimento do brasileiro de

suas particularidades sócio-econômicas e culturais. Ao mesmo tempo, a cultura estrangeira, o

saber que vem de fora, é valorizado, desde que absorvido para matizar, fortalecer e expandir

Page 16: INTERAÇÃO DISCURSIVA: os discursos nacional e estrangeiro … · Interação discursiva 2. Discursos nacional e estrangeiro 3. Publicidade Abstract: This article presents an analysis

Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação

XXII Encontro Anual da Compós, Universidade Federal da Bahia, 04 a 07 de junho de 2013

www.compos.org.br 16

o mercado local. As avançadas técnicas publicitárias transferidas pelas agências sediadas no

exterior a suas filiais no Brasil são bem-vindas quando garantias de propulsão ao nosso

desenvolvimento econômico. Tal estratégia discursiva se espraia por todo o corpus da

pesquisa.

Essa interação entre o discurso de nacional e o estrangeiro, pode ser resumida pelos

versos de Ferreira Gullar (2001, p. 335):

Uma parte de mim é permanente:

outra parte se sabe de repente.

Uma parte de mim (da publicidade dos auto-anúncios) é permanente (discurso

interno), outra parte se sabe de repente (discurso externo). O sentido inverso é, igualmente,

válido.

O último aspecto a respeito dessa interação discursiva entre o nacional e o estrangeiro

nos auto-anúncios das agências de propaganda na década de 1950 é a ausência de polêmicas,

o que pode ser atribuído à mesma posição discursiva e de sujeito enunciador (agências

nacionais e estrangeiras).

Apesar dos imbricamentos discursivos (o nacional e o estrangeiro em contínua

aglutinação, contaminando-se e hibridizando-se), na categorização dos modos organizativos

de discursos de Orlandi (1983) – lúdico, polêmico e autoritário –, não encontramos elementos

polemizadores, mas, sim, a dominância do discurso autoritário.

O material publicitário analisado acolhe, em seu bojo, a voz de uma mesma

autoridade que dita as “verdades” para os anunciantes, como a necessidade imperiosa de

anunciar para ampliar as vendas e a urgência de explorar o momento de grande modernização

e expansão do consumo, entre outras. Não há tensionamento, mas, estrategicamente,

assimilação do discurso nacional pelo estrangeiro e vice-versa, ambos fios entremeados da

mesma teia ideológica.

Considerações Finais

Page 17: INTERAÇÃO DISCURSIVA: os discursos nacional e estrangeiro … · Interação discursiva 2. Discursos nacional e estrangeiro 3. Publicidade Abstract: This article presents an analysis

Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação

XXII Encontro Anual da Compós, Universidade Federal da Bahia, 04 a 07 de junho de 2013

www.compos.org.br 17

Examinando as principais formações discursivas presentes no corpus, observamos as

interações discursivas – os interdiscursos – que ajudaram a forjar os discursos a sociedade de

consumo dos anos 1950.

Constatamos que os anúncios auto-referenciais de agências de propaganda consistem

em um material valioso para analisar como as práticas de consumo são representadas na

perspectiva sócio-econômica que predominava no período estudado: elas enunciam as

formações imaginárias do mundo dos negócios. Foi possível também identificar os traços

mais significativos dos gestos de interpretação do fenômeno do consumo nas enunciações das

agências de propaganda, as quais ocupam um lugar de enunciador autorizado que divulga os

modos de ver de cada um dos períodos a ser investigado. Por certo, os anúncios analisados

revelam várias posições de sujeito que o enunciador/agência de propaganda assumia na

situação de comunicar, por meio do discurso publicitário, as formações ideológicas do mundo

desenvolvido.

A sociedade brasileira se transformava em ritmo acelerado e o país se enveredava por

diferentes cenários de nação, ou seja, enveredava-se pelo caminho da industrialização, da

urbanização e do consumo. O cenário urbano associa-se à novidade, de modo que novas

formações ideológicas e discursivas são necessárias para se forjar os sentidos de nação

desenvolvida, o Brasil do futuro e também os discursos desta vindoura realidade social. As

transformações de cenário – do rural para o urbano – reclamam novos investimentos de

significação da vida: a tradição não desaparece, mas seus sentidos são realocados,

reorganizados numa outra perspectiva discursiva. O passado nacional, nos auto-anúncios das

agências de publicidade dos anos 1950, é textualizado como o território das tradições, onde o

discurso estrangeiro vai buscar se nutrir dos nossos valores para se tornar aceito, ao passo que

o futuro é construído discursivamente como uma fusão necessária entre o que é brasileiro e a

experiência do que vem de fora.

Sob o ponto de vista da produção dos discursos, observamos a ebulição das formações

discursivas que culminariam na emergência de discursos do consumo em decorrência da

transformação dos sentidos atribuídos às práticas cotidianas. O discurso publicitário, por

meio do interdiscurso, abriga formações discursivas do passado e do presente: abriga o

acontecido ou o já dito e, ao trazê-lo para abordar o presente, forja o futuro – traz os

elementos que o constituirão. Em outros termos, o discurso publicitário foi forjado a partir de

Page 18: INTERAÇÃO DISCURSIVA: os discursos nacional e estrangeiro … · Interação discursiva 2. Discursos nacional e estrangeiro 3. Publicidade Abstract: This article presents an analysis

Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação

XXII Encontro Anual da Compós, Universidade Federal da Bahia, 04 a 07 de junho de 2013

www.compos.org.br 18

elementos socioculturais sedimentados no tecido social como, por exemplo, as condições

naturais favoráveis à modernização e ao consumo, manifestando-se no presente – no

momento de sua enunciação – e preparando o futuro, ao fazer referência ao mercado

promissor, às estatísticas de crescimento e desenvolvimento do país, à confiança e ao

conhecimento do trabalho a ser realizado, bem como às promissoras condições financeiras.

Referências

BRANCO, R. C., MARTENSEN, R. L. e REIS, F. (orgs.). História da propaganda no Brasil. São Paulo:

Ibraco, 1990.

CARRASCOZA, J. e HOFF, T. Narrativa publicitária: modernização e consumo no Brasil dos anos 1950.

Primeiro movimento. In: PEREZ, C.; TRINDADE, E. (Org.). Como anda a publicidade? São Paulo: Schola

Ltda., 2011.

CHARAUDEAU, P. El discurso de la información. La construcción del espejo social. Barcelona: Gedisa

Editorial, 2003.

________________. Linguagem e discurso: modos de organização. São Paulo: Contexto, 2008.

________________. Discurso das Mídias. São Paulo: Contexto, 2012.

FOUCAULT, M. A ordem do discurso. São Paulo: Loyola, 1999.

GREGOLIN, M (org.). Discurso e Mídia: a cultura do espetáculo. São Carlos: Claraluz, 2003.

GUIMARÃES, E. Texto, discurso e ensino. São Paulo: Contexto, 2009.

GULLAR, F. Toda poesia. 11a ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2001.

HARVEY, D. A condição da pós-modernidade.Uma pesquisa sobre as origens da mudança cultural. São

Paulo: Loyola, 1992.

MAINGUNEAU, D. Initiation aux méthodes de l’analyse du discours. Paris:Hachette, 1976.

ORLANDI, E. A linguagem e seu funcionamento. São Paulo: Brasiliense, 1983.

___________. Análise de Discurso: princípios e procedimentos. Campinas: Pontes, 2009.

___________. Interpretação: autoria, leitura e efeitos do trabalho simbólico. Campinas: Pontes, 2004.

___________ (org.). Discurso Fundador: a formação do país e a construção da identidade nacional.

Campinas SP: Pontes, 2001.

PERELMAN, Chaim e TYTEC, Lucie Olbretchts. Tratado de argumentação: a nova retórica. São Paulo:

Martins Fontes, 2005.

PINHO, J. B. Trajetória da publicidade no Brasil: das origens à maturidade técnico-profissional. In: PINHO, J.

B. (Org.). Trajetória e questões contemporâneas da publicidade brasileira. 2a ed. São Paulo: INTERCOM,

1998.

ROCHA, M. E. A nova retórica do Capital: a publicidade brasileira em tempos neoliberais. São Paulo:

EDUSP, 2010.

SLATER, D. Cultura do consumo &Modernidade. São Paulo: Nobel, 2002.

THOMPSON, J. B. A mídia e a modernidade: uma teoria social da mídia. Petrópolis: Vozes, 1998.

ZAYAS, E. Publicidad y hegemonía. Matrices discursivas. Bogotá: Editorial Norma, 2006.