interaÇÃo discursiva: os discursos nacional e estrangeiro … · interação discursiva 2....
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Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação
XXII Encontro Anual da Compós, Universidade Federal da Bahia, 04 a 07 de junho de 2013
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INTERAÇÃO DISCURSIVA: os discursos nacional e estrangeiro em auto-anúncios de
agências de propaganda nos anos 19501
DISCURSIVE INTERACTION: national and foreign discourses in self- referential advertisements of
advertising agencies in the 1950s
João Anzanello Carrascoza2
Tânia Márcia Cezar Hoff3
Resumo:
Neste artigo, analisamos os modos de interação entre os discursos nacional e
estrangeiro presentes em anúncios auto-referenciais de agências de propaganda
veiculados nos anos 1950 na Revista Publicidade e Negócios. Tecemos
considerações sobre a fertilidade da Análise de discurso de linha francesa para se
investigar a construção dos sentidos de consumo no discurso publicitário, uma vez
que o discurso pressupõe interação no contexto linguístico e social. A partir de um
corpus no qual observamos elementos locais e estrangeiros, buscamos identificar
como se desenvolve a interdiscursividade entre os referidos discursos no âmbito da
mensagem publicitária da época. A Análise de Discurso, articulada aos estudos de
linguagem e de comunicação, é a principal fundamentação teórico-metodológica de
nossa abordagem do discurso publicitário como um dos sistemas de divulgação da
cultura do consumo no Brasil.
Palavras-chave:1. Interação discursiva 2. Discursos nacional e estrangeiro 3.
Publicidade
Abstract:
This article presents an analysis of the ways of interaction between national and
foreign discourses present in self-referential advertisements of advertising agencies
vehiculated in the 1950 decade in the magazine Publicidade e Negócios. We make
some considerations about the fertility of the French line of Discourse Analysis in
order to investigate the construction of the meanings of consumption in advertising
discourse, since discourse presupposes interaction in the linguistic and social
context. Basing our considerations upon a corpus in which local and foreign
elements were observed, we seek to identify in which way interdiscursivity is being
developed. The Discourse Analysis and the language and communication studies
are our main theoretical and methodological basis that allows us to approach
1 Trabalho apresentado ao Grupo de Trabalho “Práticas interacionais e linguagens na comunicação”, do XXII
Encontro Anual da Compós, na Universidade Federal da Bahia, Salvador, de 04 a 07 de junho de 2013. 2 Doutor e docente do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Práticas de Consumo, da ESPM/SP. E-
mail: [email protected] . 3 Doutora e docente do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Práticas de Consumo, da ESPM/SP. E-
mail: [email protected] .
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advertising discourse as one of the systems of the propagation of Brazilian
consumption culture.
Keywords: 1. Discursive interaction 2. National and foreign discourses
3.Advertising
1. Análise de discurso: um percurso teórico-metodológico para investigar
processos de interação
Tendo como perspectiva as lógicas de produção de discursos, abordamos, neste texto,
os processos e as estratégias de construção discursiva na comunicação publicitária dos anos
19504. Delimitamos nossa análise a dois discursos, o nacional e o estrangeiro, que engendram
o discurso publicitário do referido período, a partir de processos interdiscursivos. O diálogo
entre memória e inovação discursiva está presente nos anúncios auto-referenciais de agências
de propaganda, de modo que o tensionamento entre o já dito e o por dizer sugere a
possibilidade de que novos discursos emerjam deste processo.
Trata-se de investigar a constituição de discursos, o seu funcionamento e os processos
de interação discursiva – interdiscursividade. E, nesta perspectiva, encontramo-nos no âmbito
dos estudos da linguagem, concebida como “prática; mediação, trabalho simbólico e não
instrumento de comunicação” (ORLANDI, 2004, p.28). Ou ainda, linguagem “como um
processo de interlocução, que pressupõe a constituição de e por sujeitos numa determinada
situação histórica e social [...] um lugar de interação” (GUIMARÃES, 2009, p.95).
Para Orlandi, o discurso realiza-se no entremeio, entre a língua/ estrutura e o uso/ fala
ou língua em uso. O discurso é “palavra em movimento” (2010, p. 15). Deste modo, a autora
explica como se dá a relação entre discurso, língua e texto:
A Análise de Discurso não trabalha com a língua enquanto um sistema abstrato,
mas com a língua no mundo, com as maneiras de significar, com homens falando,
considerando a produção de sentidos enquanto parte de suas vidas, seja enquanto
sujeitos seja enquanto membros de uma determinada sociedade (ORLANDI, 2010,
p. 15-16).
4 Dedicamo-nos, neste trabalho, a investigar os diálogos entre os discursos nacional e estrangeiro, aspecto que
emergiu nos resultados finais da pesquisa “Ditos e não ditos da narrativa publicitária: modernização e consumo
no Brasil dos anos 1950”, realizada em 2011 junto ao Centro de Altos Estudos, CAEPM-ESPM, mas não foi
analisado em função dos objetivos ali definidos. A partir dos debates desenvolvidos em 2012 no GT “Práticas
interacionais e linguagens na comunicação”, quando parte dos resultados finais da referida pesquisa foram
apresentados, inspiramo-nos a considerar a Análise de discurso como um aporte teórico-metodológico pertinente
ao estudo de práticas interacionais.
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Considere-se, pois, que a Análise de Discurso de linha francesa (ADF, assim
denominada ao longo do texto) não se dedica ao estudo da língua enquanto sistema, na
perspectiva da Linguística, nem enquanto normas, na perspectiva da gramática: os estudos
discursivos operam com a língua materializada no texto, visando “pensar o sentido
dimensionado no tempo e no espaço das práticas do homem, descentrando a noção de sujeito
e relativizando a autonomia do objeto da linguística” (ORLANDI, 2010, p. 17). O seu objeto
de investigação são os sentidos, ou seja, os gestos de interpretação do(s) sujeito(s) em dado
contexto sócio-histórico – note-se que o conceito de discurso está fundamentado na
necessidade de apreensão dos sentidos.
Fundamentado na ADF, é possível ao pesquisador compreender os sentidos – os
significados – atribuídos ao mundo e aos acontecimentos por determinado grupo, em
determinado contexto sócio-histórico: para se alcançar os sentidos, é preciso chegar ao
discurso – “palavra em movimento” e “trabalho simbólico”, conforme mencionamos acima.
A Análise de discurso concebe a linguagem como mediação necessária entre o
homem e a realidade natural e social. Essa mediação, que é o discurso, torna
possível tanto a permanência e a continuidade quanto o deslocamento e a
transformação do homem e da realidade em que ele vive. O trabalho simbólico do
discurso está na base da produção da existência humana (ORLANDI, 2010, p. 15).
Guimarães (2009, p.89-90), ao estabelecer a abrangência do conceito e seus âmbitos de
atuação em relação à língua, define discurso:
uma entidade histórica (ideológica) que se elabora socialmente, através de sua
materialidade específica, que é a língua manifestada no texto. É próprio do discurso
privilegiar a natureza funcional e interativa e não o aspecto formal e estrutural da
língua. [...] Frise-se a concepção de discurso como uma forma de interação, ou seja,
como um evento comunicativo, que é, por sua vez, encaixado em estruturas sociais,
políticas ou culturais mais abrangentes. Daí considerar o discurso como um efeito
de sentido construído no processo de interlocução, enquanto parte do
funcionamento social.
Para a autora acima mencionada, o discurso pode ser definido como “uma prática”,
pois “para se encontrar sua regularidade não se analisam seus produtos, mas os processos de
sua produção – fato do qual decorre a necessidade de ser objeto de sua análise a língua em
uso” (GUIMARÃES, 2009, p. 90). Em outros termos, a “língua em uso” implica o texto,
instância na qual o discurso se materializa: por meio do texto é que se pode entender o
funcionamento do discurso, visto que o “repetível no nível do discurso é histórico e não
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formal” (ORLANDI, 2004, p. 29). Depreende-se destas características que o discurso que é
um processo e não um produto acabado, fechado e isolado, dissociado do contexto
sociocultural e histórico.
“Todo discurso nasce de outro (sua matéria-prima) e aponta para outro (seu futuro
discursivo). Não se trata nunca de um discurso, mas de um continuum” (ORLANDI, 1993, p.
18), o continuum dos discursos. Daí, definir-se discurso como “efeito de sentido entre
locutores‟‟ (ORLANDI, 2010, p.21). Se “na Análise de discurso se trabalha com os
processos de constituição da linguagem e da ideologia e não com seus conteúdos”
(ORLANDI, 2004, p. 30), a dimensão do discurso é a que melhor permite observar os
processos de produção de sentido e interação. Destacamos, aqui, a relevância de se investigar
a interação discursiva entre o elemento nacional e o estrangeiro no discurso publicitário nos
anos 1950, período em que as transformações da sociedade brasileira faziam emergir os
pilares da(s) cultura(s) de consumo, tal qual a concebemos atualmente.
Em conformidade com os princípios da Análise de Discurso, podemos afirmar que o
sentido não existe per si, mas em relação às posições ideológicas que entram em jogo no
processo sócio-histórico. Nesse processo, as palavras não são portadoras de sentido(s) pre-
estabelecido(s), pois elas mudam de sentido conforme as posições daqueles as empregam: ou
seja, elas “não têm um sentido nelas mesmas, elas derivam seus sentidos das formações
discursivas em que se inscrevem” (ORLANDI, 2010, p.43). Note-se a pertinência das
noções de contexto e de situação: a primeira referindo-se a aspectos internos de um
enunciado ou acontecimento ou momento sócio-histórico e a segunda, a aspectos externos
àquilo que envolve a produção de um enunciado, ou acontecimento, ou momento sócio-
histórico. Tais noções são constituintes dos processos de atribuição de sentidos, de modo que
não há sentido nuclear e único ou essência a ser localizada ou revelada: todos os sentidos são
igualmente possíveis, embora, em certas condições de produção, possa haver um sentido
preponderante em relação aos demais, o que se explica não por um a priori ou uma essência,
mas por relações de força que se estabelecem nos processos de interação social. Ou ainda, as
interações desenvolvem-se no bojo das dinâmicas sociais que operam a partir relações de
poder – conforme Foucault5, que concebe o poder como algo difuso, capilar, descentralizado.
5 Em A Ordem do discurso (1999), o filósofo francês elabora uma teoria do discurso, não da perspectiva da
linguagem, mas do funcionamento do discurso, de suas regularidades e dos discursos que foram ditos, ou seja,
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Nesta perspectiva, há sempre enfrentamentos discursivos, o que faz mover a
construção de sentidos na sociedade. Tanto a elaboração quanto a circulação de enunciados é
controlada pelas relações de poder e são elas que definem o que pode e o que não pode ser
dito em dada situação de comunicação. Considere-se a existência de uma economia política
do poder que se manifesta na instância discursiva, de modo que se há poder e formas de
controle, há também formas de resistência, espaços para a constituição de novos sentidos e/ou
novos discursos. Tanto Pêcheux quanto Foucault concebem os discursos como instâncias de
confronto, de instabilidade/movimentação dos sentidos e também de regularidades6, como
bem esclarece Gregolin, ao discorrer sobre a perspectiva teórica que engendra a noção de
“formações discursivas” nos postulados de ambos os autores: “centrados nessa articulação
entre sistematicidade e dispersão, os desenvolvimentos do conceito de formação discursiva
mostram que a aproximação entre Pêcheux e Foucault se dá na direção de uma ideia cada vez
mais forte de heterogeneidade” (2005, p.01).
As relações de poder no processo discursivo são um pressuposto fundamental para a
Análise de Discurso, posto que permitem melhor compreender a produção de sentidos e de
discursos. Em Inquietude do discurso, ao discorrer sobre as formações discursivas, Pêcheux
(1977) propõe que a Análise de Discurso considere as “invasões, os atravessamentos
constitutivos” como categoria conceitual e como procedimento de formação e de análise do
corpus. Seguindo esta linha de raciocínio, que busca dar conta da constituição e do
funcionamento dos discursos, as formações discursivas e as formações ideológicas ganham
relevância teórica e analítica nas teorizações do estudioso francês sobre AD.
Para Orlandi (2010, p.43), “a formação discursiva se define como aquilo que numa
formação ideológica dada [...] determina o que pode e deve ser dito”, ou ainda, “as formações
“a partir de suas condições externas de possibilidade” (1999, p. 53). Embora Foucault não seja um analista do
discurso identificado com os estudos desenvolvidos por Pêcheux, há pontos de aproximação entre o pensamento
dos dois estudiosos, notadamente após os anos 1970, quando Pêcheux revê seu entendimento da “maquinaria-
discursivo-estrutural” – inspirada em Althusser e alicerçada na noção de homogeneidade enunciativa –, ao
dialogar com as noções foucaultianas de formação discursiva, alicerçadas na noção de saber/poder e não na
ideologia. Neste trabalho, consideramos os pressupostos teóricos contemporâneos da ADF, daí dialogarmos com
estudiosos de discurso que se apóiam no pensamento de Foucault, juntamente com as elaborações teóricas de
Pêcheux. 6 Vale ressaltar que Pêcheux considera as relações de confronto historicamente constituídas no interior das
classes sociais e que Foucault não concebe a dinâmica social a partir da divisão de classes ou da ideologia, mas
sim das relações de poder que emergem nas formações sociais.
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discursivas podem ser vistas como regionalizações do interdiscurso, configurações
específicas dos discursos em suas relações” (2010, p.43).
Já segundo Maingueneau (1976, p.86-87), uma formação ideológica é:
um conjunto de atitudes, representações etc referidas a posições de classe, que é
susceptível de intervir com força confrontada a outras na conjunção ideológica que
caracteriza uma formação social em um momento dado [...]. Dada uma conjuntura
determinada por um estado de luta de classes, e por uma “posição” (ideológica e
política).
Observemos a referência à posição ocupada pelo sujeito (posição de sujeito) numa
situação de comunicação: os valores que ele defende consciente ou inconscientemente trarão
as marcas de sua identidade social e ideológica. Também a noção de ideologia é re-
significada pela AD na perspectiva discursiva: assim, a “ideologia não é ocultação, mas
função da relação necessária entre linguagem e mundo. Linguagem e mundo se refletem no
sentido da refração, do efeito imaginário de um sobre o outro” (ORLANDI, 2010, p.47).
Ambas as formações, discursivas e ideológicas, complementam-se: “as formações
discursivas determinam o que se pode dizer; e as formações ideológicas determinam o que se
deve dizer” (GUIMARÃES, 2009, p. 119). Complementam-se também porque é necessário
localizar as formações ideológicas para se alcançar as formações discursivas. Em outros
termos, a formação discursiva é definida, a partir da localização e identificação da ou das
posições de sujeito presentes num texto. Essas formações, conceitualmente, explicam a
instabilidade constitutiva do conceito de discurso e, metodologicamente, auxiliam na
identificação dos sentidos.
Outro aspecto relevante a se considerar no constructo teórico da ADF é que se a ideia
de interação não está formulada como um conceito, ela é constitutiva da edificação conceitual
do discurso conquanto seja condição sine qua non da interdiscursividade. “Todo discurso é,
em princípio interdiscurso [...] parte-se do que já foi dito, do que tem sido dito, dos sentidos
postos, para podermos sustentar nossa comunicação” (Guimarães, 2009, p. 118).
Podemos afirmar que a interação se manifesta em várias instâncias da ADF: (1) na da
palavra que não tem um sentido próprio, preso a sua literalidade – a palavra ganha sentido na
relação com as demais palavras do texto; (2) na da posição do sujeito que assume vários
lugares de fala, dependendo da situação de comunicação, dentre outros fatores; (3) na da
constituição de sentidos que são atribuídos na instabilidade das relações de poder constituídas
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numa dada sociedade em dado momento sócio-histórico e que afetam os sujeitos nas diversas
posições que podem assumir; acrescente-se também que os sentidos dependem de relações
constituídas nas e pelas formações discursivas; (4) na das formações discursivas que se inter-
relacionam com as formações ideológicas; e no do interdiscurso, já que todo discurso existe
em relação a outro discurso – a noção de interdiscurso compreende a de interação, como um
aspecto inerente da interdiscursividade. Não há interdiscurso sem interação.
Esse princípio interativo presente no entendimento do discurso e da
interdiscursividade pode ser observado no discurso publicitário que tem seu processo de
constituição associado ao desenvolvimento do capitalismo. Zayas, em Publicid y hegemonia:
matrices discursivas, considera que “a publicidade nasce de um projeto cultural capitalista”
(2006, p.14) e que é um “discurso produto da modernidade capitalista” (2006, p. 18). Tal
entendimento da publicidade nos remete a processos interativos, os quais permitiriam que
esta produção cultural ocupasse lugar tão destacado na constituição dos discursos ao longo do
desenvolvimento das culturas do consumo e da mídia.
Ainda para Zayas, o discurso publicitário “se constituiu em um discurso hegemônico
que, sem ser um discurso empírico, nem transcendental, incorporou aquelas instâncias que
lhe permitiram apropriar-se de certas vozes destes discursos e ainda se converteu no
representante de um projeto cultural baseado na propriedade privada e na cultura de
mercado” (2006, p. 18).
Havey (1989) corrobora tal entendimento ao afirmar que a publicidade, nas últimas
três décadas do século XX, tornou-se um discurso hegemônico, capaz de reorientar a
experiência semiótica dos indivíduos. Para ele, a construção deste novo sistema de signos se
deve às transformações dos sistemas financeiros globais após 1973, o que resultou em
modificações significativas nas práticas políticas, econômicas e socioculturais. No que se
refere ao contexto brasileiro, Rocha (2010) também desenvolve uma análise das
transformações da sociedade capitalista, com foco nas características neoliberais de nossa
sociedade a partir do golpe militar de 1964 até os anos FHC, para analisar as transformações
retórico-persuasivas do discurso publicitário, por meio de anúncios de grandes marcas do
mercado nacional (automóveis, alimentação, cigarros, entre outros segmentos).
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Considerando a análise do corpus, o interdiscurso permite investigar os processos de
interação entre os significados socioculturais do Brasil passado e do Brasil futuro, os dois
imaginários de Brasil que se encontram na década de 1950. Na perspectiva das lógicas de
produção dos discursos, é possível compreender os fluxos comunicacionais que interagem
com as práticas discursivas nos anos 1950. Na análise dos anúncios auto-referenciais das
agências de propaganda, buscamos compreender os modos de interação entre os discursos
nacional e estrangeiro, a partir da noção de interdiscursividade e, para tanto, somos instados a
identificar as posições de sujeito que os publicitários assumem nos enunciados/textos de
divulgação do trabalho publicitário das agências, bem como a identificar as formações
discursivas e ideológicas mobilizadas por meio da memória discursiva.
Destaque-se que as reflexões desenvolvidas neste artigo partem dos resultados finais
de uma pesquisa já concluída que se propunha a identificar os ditos e não ditos presentes na
narrativa publicitária dos anos 1950. O discurso publicitário registra determinados
entendimentos de modernização e de consumo, dentre outros tantos que circulavam na
sociedade de então. Certamente, não abriga todos os sentidos possíveis nem todos os
discursos existentes daquele momento socio-histórico, já que o sujeito enunciador deste
discurso o faz a partir da perspectiva de certo lugar social e de certa posição de sujeito.
Estudar a publicidade como discurso implica relacioná-la à memória discursiva – como uma
enunciação heterogênea –, pois é inerente à natureza do discurso misturar-se com outros, a
partir de processos interdiscursivos e intertextuais.
A interdiscursividade está associada aos modos de produção da memória que é
sempre contextual e dialógica: sua constituição se dá por meio de um processo de edição das
experiências vividas, de forma que neste processo sempre concorrem tensões, conflitos e
negociações de diferentes naturezas. Assim, o discurso publicitário dos anos 1950 permite
observar quais enquadramentos ou edições da vida concorreram na formação do discurso do
consumo do referido período.
Nos anos 1950, quando as agências de propaganda alardeavam a necessidade de
adequação das empresas nacionais aos imperativos do mundo do consumo, identificamos a
partir das principais formações discursivas presentes em anúncios auto-referenciais de
agências de propaganda, uma euforia bastante acentuada em relação à modernização e ao
consumo, traduzida, principalmente, em estatísticas e em índices de crescimento de distintos
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segmentos da sociedade brasileira, tais como: das rodovias; da construção civil; do parque
industrial; das vendas; dentre outros (CARRASCOZA e HOFF, 2011).
Nos anúncios auto-referenciais investigados, as agências de propaganda dos anos
1950 revelam o lugar privilegiado que ocupam na esfera do consumo e suas práticas: se
consideradas como enunciadores, elas ocupam uma posição de sujeito autorizado, com
legitimidade e autoridade para apregoar os novos valores. As narrativas publicitárias auto-
referenciais selecionadas deixam entrever uma edição do mundo que privilegia certos
aspectos em detrimento de outros. Essa negociação de sentidos atribuídos aos eventos
cotidianos é constituinte de processos de interação social produzidos no âmbito na linguagem
e apreendidos, neste artigo, a partir dos conceitos de discurso e de interdiscurso. No item que
se segue, analisamos os discursos nacionais e estrangeiros presentes em um corpus formado
por anúncios auto-referenciais de agências de propaganda, veiculados na Revista Publicidade
e Negócios nos anos 1950, buscando a partir da identificação dos sentidos de nacional e de
estrangeiro, analisar a interdiscursividade, ou seja, os modos de interação dos dois
mencionados discursos.
As formações discursivas e as formações ideológicas, bem como a constituição de
sentido são aspectos constitutivos de processos interacionais da cena midiática. Neste sentido,
cena midiática e cultura do consumo se constituem num grande cenário de novas interações.
2. Análise de interações dos discursos nacional e estrangeiro nos auto-anúncios das
agências de propaganda nos anos 1950
Na década de 1950, o mercado publicitário no Brasil vivia um momento de inédita
euforia. O suicídio de Getúlio Vargas abriu caminho para Juscelino Kubitschek e sua política
desenvolvimentista, que atraiu o capital estrangeiro para viabilizar seus ideais de crescimento
acelerado, sintetizados no slogan “Cinquenta anos em cinco”.
O progresso industrial paulista – graças ao sucesso do plano de JK, que levou a
instalação da indústria automobilística em São Paulo (PINHO, 1998) –, o advento da
televisão no país, a relevância da comunicação no cenário mundial e o avanço do marketing,
entre outros fatores, vão dinamizar o setor publicitário nacional, além de forçar o surgimento
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da primeira escola de propaganda no país, concebida para preparar profissionais para as
demandas emergentes da área (BRANCO, MARTENSEN & REIS, 1990).
Às agências já em atividade no país, somam-se, neste período, a inúmeras outras, de
origem estrangeira ou de capital nacional, todas objetivando aproveitar do momento de
expansão econômica e modernização pelo qual o Brasil estava passando. Muitas foram as
transformações em seus sistemas de produção, e a publicidade, nas centenas de anúncios da
revista P&N que compõem o corpus de nossa pesquisa, é apresentada, de forma uníssona,
como a força-motriz do consumo. As formações discursivas evidenciam os sentidos do
progresso, da modernização e do consumo, associando-se a formações ideológicas que lhes
conferem positividade e sentido de urgência.
Os apelos dominantes nos auto-anúncios das agências de publicidade, que promoviam
seus serviços nos anos 1950, enfatizavam: 1) a capacidade, unicamente da propaganda, de
impulsionar as vendas de todos os tipos de produto; 2) a valorização do crescimento
econômico nacional; 3) a importância da atividade publicitária para o crescimento econômico
do país e 4) a sua finalidade de ensinar também o público a consumir os produtos da “vida
moderna”, como energia elétrica, telefone e automóvel, entre outros (CARRASCOZA e
HOFF, 2011).
Neste contexto, em que o capital externo dinamizava os processos de produção
brasileiros, e as agências nacionais e estrangeiras já estabelecidas ou surgidas justamente
pelas condições crescentes de bons negócios, como o discurso de “dentro” e o de “fora”
interagiam?
Passando em análise o corpus, detendo-nos em especial nas formações ideológicas e
discursivas dos auto-anúncios e nos imbricamentos de interdiscursividade presentes, os
aspectos mais relevantes de interações discursivas, apresentados em detalhes logo a seguir,
foram: 1) o discurso nacional e o estrangeiro interagiram na linguagem dos auto-anúncios, 2)
o discurso nacional se apropriou de formações discursivas e estratégias retóricas do discurso
estrangeiro, 3) o discurso estrangeiro se apropriou de formações discursivas e estratégicas
retóricas do discurso nacional, e 4) ambos os discursos evitaram polêmicas.
Vejamos o primeiro aspecto: os auto-anúncios, independentemente se eram de
agências brasileiras ou americanas, já que emanaram de uma mesma posição enunciativa,
textualizavam o jargão publicitário, também em expansão, como os “jingles” e “spots” de
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rádio, os “filmes publicitários”, os “planos de propaganda”, a “promoção de vendas”, o
“consumidor”.
A “confiança no futuro do Brasil” perpassa toda esta produção publicitária,
condicionada à aceitação de que a tecnologia estrangeira era vital para isso. No texto de um
auto-anúncio da Standard Propaganda, que relatava o trabalho publicitário da agência para a
Pirelli, é dito que esta indústria, ao vir para o Brasil, “colocava meio século de experiências a
serviço da nossa pátria”.
Pelo texto de outro auto-anúncio, sobre a Internacional Harvester Máquinas – entre
tantos que revelam esta mesma interação –, vamos saber que essa empresa representava “o
esforço contínuo e entusiasta de uma organização que participa ativamente do nosso
desenvolvimento econômico, utilizando em alto grau os recursos da mais avançada técnica
aliados a uma experiência internacional dos problemas fundamentais da produção de
alimentos”.
Pelo discurso publicitário, o que vinha de fora, uma vez assimilado pelo mercado
nacional, poderia e deveria também se expandir. Há numerosos exemplos de auto-anúncios
nos quais as próprias agências se orgulhavam de serem essenciais no sucesso alcançado pelas
empresas estrangeiras no Brasil. O texto da agência Standard, sobre seu cliente Vick
Chemical Inc., traz um fecho que se reproduz, em termos discursivos, com mudanças
mínimas de construção linguística, em dezenas destes materiais: “No Brasil, Vick Chemical
Inc. É nosso cliente há dez anos e a popularidade dos seus produtos em nosso país é a melhor
prova de que, também, nesse setor, estamos cumprindo rigorosamente a nossa missão”.
O segundo aspecto, o discurso nacional apropriando-se de formações discursivas e
estratégias retóricas do discurso estrangeiro, manifesta-se de várias maneiras. A mais comum
delas é o uso de exemplos, nos auto-anúncios, da trajetória histórica de grandes empresas
estrangeiras que, invariavelmente, surgiram pequenas e, ante o mercado da livre iniciativa,
cresceram a ponto de se tornarem internacionais. Enfeixados na mesma formação ideológica
(capitalista), esses exemplos cobrem empresas dos mais variados segmentos econômicos,
como Duchen e Kibon (alimento), Rodhia e Lupo (tecelagem), Clipper (moda masculina) e
Vasp (aviação), entre outras. É também o caso da “história da velha Fazenda Anastácio” (fig.
1), que, de uma apagada propriedade rural, se converte numa potência de indústria de
comestíveis – o Frigorífico Amour.
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FIGURA 1- Anúncio da Agência Standard Propaganda S.A.
FONTE – Revista Publicidade e Negócios, 1956.
Outra interação discursiva dessa natureza se dá em dezenas de auto-anúncios que
incorporam em seus textos o “novo” na forma do progresso (discurso estrangeiro), como
resultado do aprimoramento da tradição (discurso nacional). O país do futuro se transforma
no país do presente, como nessas linhas iniciais de um auto-anúncio da Standard para os
fabricantes de relógios da Suíça: “Modifica-se em todo o mundo o ritmo de vida. E no Brasil
desapareceu a filosofia tropical do „amanhã‟ Hoje, cada minuto vale muito”. O elemento
externo, que traz o crescimento, povoa os anúncios do nosso corpus, e é assimilado pela
nossa sociedade tradicionalmente rural. Modelar, neste sentido, é o texto de abertura do
anúncio a seguir (fig. 2):
FIGURA 2- Anúncio da Agência Standard Propaganda S.A.
FONTE – Revista Publicidade e Negócios, 1958.
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“Cajatió, um bom mercado. Pode ser essa ou qualquer outra cidade, um ponto que você
ainda não localizou, perdido em seu mapa de vendas. O problema é cobrir sempre novas
regiões, trabalhar novos mercados. E é natural que você se preocupe, que procure o
necessário apoio, indispensável ao êxito crescente de seus negócios. Nós poderemos auxiliá-
lo a descobrir o seu Cajatió. Esse lugar que é um símbolo, e muitos outros, cidades e cidades
que a propaganda trouxe para o seu mercado, para o interesse de seu produto”.
Exemplo constante do discurso nacional (o Brasil natural) que interage, em dinâmica
discursiva, com o estrangeiro (o novo, aqui associado à propaganda) é o texto abaixo de um
anúncio sobre loteamento (fig. 3):
FIGURA 3- Anúncio da Agência Standard Propaganda S.A.
FONTE – Revista Publicidade e Negócios, 1957.
Paz e bucolismo. Vende-se. Era uma vez um vale tranqüilo e prazeroso, de clima
privilegiado, onde vicejavam parreiras. Um local ótimo para casas de campo, onde passar
férias e fins de semana, retemperando os nervos para a luta semanal. Mas, oculto entre as
montanhas, quem lhe conhecia a existência? A propaganda pôs mãos à obra e agora o Vale
das Videiras – um loteamento de nosso cliente Banco Oliveira Roxo – rapidamente se povoa
de novos proprietários, satisfeitos de descobrirem, tão à mão, terrenos de preço tão
conveniente. Por mais qualidades que tenha um produto ou serviço, elas só vendem quando
conhecidas. Divulgue as qualidades do que tem à venda, recorrendo à Standard Propaganda.
Nós saberemos onde e como anunciar para obter o melhor resultado”.
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A tranqüilidade local, das montanhas, só “existe” e tem valor para a “vida moderna”
se for descoberta por um agente exterior, o progresso (a publicidade). O “paraíso” não está na
natureza, mas na expansão das cidades.
Na outra mão, no continuum dos discursos das agências de propaganda da época, o
discurso estrangeiro também se apropria de formações discursivas e estratégicas retóricas do
discurso nacional, produzindo efeitos de sentidos e interação.
Dentre elas está o uso das estatísticas sobre o crescimento brasileiro (discurso
nacional), anunciadas pelo governo JK, para lembrar que o contingente de consumidores se
alargava e era vital para os agentes do negócio publicitário explorarem o novo mercado
(discurso estrangeiro). Os “lugares de quantidade” – recursos suasórios baseados na
dimensão numérica, conforme Perelman e Tyteca (2005) – inundam os auto-anúncios, como
este exemplo de um anúncio da J. Walter Thompson, agência americana com filial no país:
“É só olhar as estatísticas... Em 1920, a população brasileira era de 30.635.605. Em 1940,
subia a 41.236.315. No último recenseamento chegava a 51.944.397. E a população está
crescendo: nascem no Brasil mais de dois milhões de crianças por ano, cerca de 5.500 por dia
! Para você, população é mercado. E essas crianças que surgem representam muito
simplesmente mercado maior, maiores negócios”.
Outro exemplo, dentre dezenas de outros coligidos:
Uma indústria nacional de 7 bilhões 899 milhões 130 mil cruzeiros que produziu, em 1957, 3
bilhões 415 milhões 328 mil pneus de veículos a motor e bicicletas – eis o ramo de negócios a
que você se dedica.
Os auto-anúncios compunham um painel dos principais ditos da modernização e do
consumo do Brasil nos anos 1950, mostrando, em grandeza estatística, o crescimento de
variados tipos de indústrias do país, comprovando a pujança do mercado da propaganda e a
importância de anunciar. O discurso estrangeiro, enunciado por agências de propaganda
brasileiras ou norte-americanas instaladas no país, incorpora a euforia desenvolvimentista
(discurso nacional) e, inclusive, se vale de formações discursivas próprias da cultura local.
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A J. Walter Thompson afirma em seus textos que está “profundamente identificada
com o meio, estudando e trabalhando o mercado brasileiro”. A Standard diz que “a sua
especialidade é o Brasil”, e que o seu trabalho “baseia-se, fundamente, no estudo da realidade
brasileira, das condições e desenvolvimento do nosso mercado”. Em outro texto, informa que
sabe como falar com o consumidor brasileiro, pois ouve “a voz, os desejos, os pensamentos –
a sua própria maneira de sentir”. E ainda em outra oportunidade, assegura que sua equipe está
integrada “nesse complexo de forças vivas que é a realidade nacional”. A McCann-Erickson
também anuncia que os profissionais de seus escritórios no Brasil estão familiarizados com
os problemas de vendas dos mais diferentes produtos. A Grant Advertising divulga que seus
funcionários “viajaram pelos principais Estados, colhendo informações sobre: hábitos de
leitura e de audiência, mercado consumidor, vida bancária, movimento financeiro etc.”, além
de promover um intercâmbio constante com nossos escritórios no Exterior, “a fim de
aproveitar e adaptar ao nosso meio uma experiência internacional”. No título de outro auto-
anúncio (fig.4), a Grant afirma que é formada por “homens que conhecem o terreno em que
pisam”.
FIGURA 4- Anúncio da Agência Grant Publicidade S.A.
FONTE – Revista Publicidade e Negócios, 1953.
Ou seja, o discurso estrangeiro nos auto-anúncios, neste contexto, é irrigado com as
formações discursivas que realçam a expertise autóctone, o conhecimento do brasileiro de
suas particularidades sócio-econômicas e culturais. Ao mesmo tempo, a cultura estrangeira, o
saber que vem de fora, é valorizado, desde que absorvido para matizar, fortalecer e expandir
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o mercado local. As avançadas técnicas publicitárias transferidas pelas agências sediadas no
exterior a suas filiais no Brasil são bem-vindas quando garantias de propulsão ao nosso
desenvolvimento econômico. Tal estratégia discursiva se espraia por todo o corpus da
pesquisa.
Essa interação entre o discurso de nacional e o estrangeiro, pode ser resumida pelos
versos de Ferreira Gullar (2001, p. 335):
Uma parte de mim é permanente:
outra parte se sabe de repente.
Uma parte de mim (da publicidade dos auto-anúncios) é permanente (discurso
interno), outra parte se sabe de repente (discurso externo). O sentido inverso é, igualmente,
válido.
O último aspecto a respeito dessa interação discursiva entre o nacional e o estrangeiro
nos auto-anúncios das agências de propaganda na década de 1950 é a ausência de polêmicas,
o que pode ser atribuído à mesma posição discursiva e de sujeito enunciador (agências
nacionais e estrangeiras).
Apesar dos imbricamentos discursivos (o nacional e o estrangeiro em contínua
aglutinação, contaminando-se e hibridizando-se), na categorização dos modos organizativos
de discursos de Orlandi (1983) – lúdico, polêmico e autoritário –, não encontramos elementos
polemizadores, mas, sim, a dominância do discurso autoritário.
O material publicitário analisado acolhe, em seu bojo, a voz de uma mesma
autoridade que dita as “verdades” para os anunciantes, como a necessidade imperiosa de
anunciar para ampliar as vendas e a urgência de explorar o momento de grande modernização
e expansão do consumo, entre outras. Não há tensionamento, mas, estrategicamente,
assimilação do discurso nacional pelo estrangeiro e vice-versa, ambos fios entremeados da
mesma teia ideológica.
Considerações Finais
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Examinando as principais formações discursivas presentes no corpus, observamos as
interações discursivas – os interdiscursos – que ajudaram a forjar os discursos a sociedade de
consumo dos anos 1950.
Constatamos que os anúncios auto-referenciais de agências de propaganda consistem
em um material valioso para analisar como as práticas de consumo são representadas na
perspectiva sócio-econômica que predominava no período estudado: elas enunciam as
formações imaginárias do mundo dos negócios. Foi possível também identificar os traços
mais significativos dos gestos de interpretação do fenômeno do consumo nas enunciações das
agências de propaganda, as quais ocupam um lugar de enunciador autorizado que divulga os
modos de ver de cada um dos períodos a ser investigado. Por certo, os anúncios analisados
revelam várias posições de sujeito que o enunciador/agência de propaganda assumia na
situação de comunicar, por meio do discurso publicitário, as formações ideológicas do mundo
desenvolvido.
A sociedade brasileira se transformava em ritmo acelerado e o país se enveredava por
diferentes cenários de nação, ou seja, enveredava-se pelo caminho da industrialização, da
urbanização e do consumo. O cenário urbano associa-se à novidade, de modo que novas
formações ideológicas e discursivas são necessárias para se forjar os sentidos de nação
desenvolvida, o Brasil do futuro e também os discursos desta vindoura realidade social. As
transformações de cenário – do rural para o urbano – reclamam novos investimentos de
significação da vida: a tradição não desaparece, mas seus sentidos são realocados,
reorganizados numa outra perspectiva discursiva. O passado nacional, nos auto-anúncios das
agências de publicidade dos anos 1950, é textualizado como o território das tradições, onde o
discurso estrangeiro vai buscar se nutrir dos nossos valores para se tornar aceito, ao passo que
o futuro é construído discursivamente como uma fusão necessária entre o que é brasileiro e a
experiência do que vem de fora.
Sob o ponto de vista da produção dos discursos, observamos a ebulição das formações
discursivas que culminariam na emergência de discursos do consumo em decorrência da
transformação dos sentidos atribuídos às práticas cotidianas. O discurso publicitário, por
meio do interdiscurso, abriga formações discursivas do passado e do presente: abriga o
acontecido ou o já dito e, ao trazê-lo para abordar o presente, forja o futuro – traz os
elementos que o constituirão. Em outros termos, o discurso publicitário foi forjado a partir de
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elementos socioculturais sedimentados no tecido social como, por exemplo, as condições
naturais favoráveis à modernização e ao consumo, manifestando-se no presente – no
momento de sua enunciação – e preparando o futuro, ao fazer referência ao mercado
promissor, às estatísticas de crescimento e desenvolvimento do país, à confiança e ao
conhecimento do trabalho a ser realizado, bem como às promissoras condições financeiras.
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