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INSTITUTO FEDERAL DO ESPÍRITO SANTO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO EM CIÊNCIAS E
MATEMÁTICA
ALLANA CRISTINI BORGES DE RESENDE
APRENDIZAGEM EM CIÊNCIAS E MATEMÁTICA DE UMA CRIANÇA COM
TRISSOMIA 8: DISCUSSÕES A PARTIR DA TEORIA DAS AÇÕES MENTAIS
POR ETAPAS
Vitória 2016
ALLANA CRISTINI BORGES DE RESENDE
APRENDIZAGEM EM CIÊNCIAS E MATEMÁTICA DE UMA CRIANÇA COM
TRISSOMIA 8: DISCUSSÕES A PARTIR DA TEORIA DAS AÇÕES MENTAIS
POR ETAPAS
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Educação em Ciências e Matemática do Instituto Federal do Espírito Santo como requisito parcial para obtenção do Título de Mestre em Educação em Ciências e Matemática.
Orientador: Prof. Dr. Edmar Reis Thiengo
Vitória 2016
(Biblioteca Nilo Peçanha do Instituto Federal do Espírito Santo)
R433a Resende, Allana Cristini Borges de. Aprendizagem em ciências e matemática de uma criança com
trissomia 8 : discussões a partir da Teoria das Ações Mentais por Etapas / Allana Cristini Borges de Resende. – 2016.
133 f. : il. ; 30 cm Orientador: Edmar Reis Thiengo.
Dissertação (mestrado) – Instituto Federal do Espírito Santo,
Programa de Pós-graduação em Educação em Ciências e Matemática, Vitória, 2016.
1. Matemática - Estudo e ensino. 2. Ciências - Estudo e ensino . 3.
Trissomia. 4. Doenças mentais. I. Thiengo, Edmar Reis. II. Instituto Federal do Espírito Santo. III. Título.
CDD 21: 510.7
DECLARAÇÃO DA AUTORA
Declaro, para fins de pesquisa acadêmica, didática e técnico-científica, que esta
Dissertação de Mestrado pode ser parcialmente utilizada, desde que se faça
referência à fonte e à autora.
Vitória, 9 de novembro de 2016.
Allana Cristini Borges de Resende
DEDICATÓRIA
Aos meus primos Pé de Xaxim e Tiane, por me
apresentarem a normalidade no sentido de ser natural.
E para nossa família o natural é nos amar,
independente de como nosso corpo se apresenta e a
nossa mente se deixa expressar.
AGRADECIMENTOS
Dizer obrigada nem sempre traduz o quanto de fato sou grata e reconheço a
participação de outras pessoas em minhas conquistas ou nossas. Embora as
palavras não traduzam o meu sentimento, tentarei! Não há pessoa mais importante
que mereça palavras mais bonitas e agradecimento mais extenso, sou grata a todos
que participaram desse longo, dolorido e proveitoso processo de aprendizagem.
Portanto, obrigada...
A Deus, meu Senhor, pelos dons que me deu e pela ausência de outros que me
impulsionam a querer mais.
Á minha família, em especial minha doce sobrinha Vitoria, por compartilhar minha
ansiedade à espera do resultado de aprovação ao ingresso no mestrado. Sua
doçura tornou mais branda essa espera.
A Eduardo Moscon, quem primeiro acreditou em mim, sem mesmo me conhecer.
Obrigada por me permitir tão sutilmente estudar o que enche os meus olhos e o meu
coração.
A Edmar Reis Thiengo, por aceitar me orientar de braços abertos e mostrar pelos
olhos marejados e sorriso fácil que finalmente minha pesquisa tinha sentido,
sentimento, razão de ser...
A todos os meus colegas de turma que compartilharam das angústias dos trabalhos
a serem feitos concomitantemente com a pesquisa, em especial Rafaela e Graziani.
Aos professores do programa EDUCIMAT e à FAPES, por auxiliar financeiramente a
pesquisa.
A Janivaldo Cordeiro e Robson Onofre, colegas de profissão. Em um momento em
que nem eu mesma acreditava em mim, foram vocês meus pilares.
A Flávio Lopes, pelo tempo a mim disponibilizado em detrimento das próprias férias.
A Letícia Mattos, aluna querida! Ao compartilhar comigo a própria vitória e dizer o
quanto eu a incentivei, despertou em mim novamente a vontade de querer mais, de
poder dar mais aos meus alunos.
À pedagoga, professores, aluno e sua família, que permitiram esta pesquisa.
A Saulo Coelho, pelas palavras de incentivo e carinho.
A você leitor, pela leitura e crítica à pesquisa.
MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO
INSTITUTO FEDERAL DO ESPÍRITO SANTO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO EM CIÊNCIAS E
MATEMÁTICA
RESUMO
Essa dissertação teve como objetivo analisar a aprendizagem de um aluno com Trissomia 8, conhecida como Síndrome de Warkany, nas disciplinas de Ciências e Matemática com base na Teoria das Ações Mentais por Etapas. Para tanto, buscou-se problematizar os momentos que envolvem as situações de aprendizagem do aluno, analisar a aprendizagem de alguns conteúdos nas disciplinas de Ciências e Matemática com a Teoria das Ações Mentais por Etapas, e discutir o desenvolvimento das funções psíquicas. Para isso, de setembro a dezembro de 2015 adentramos o ambiente escolar de um estudante do 8° ano do ensino fundamental de uma escola da rede pública da Grande Vitória/ES, referência em atendimento a alunos com necessidades especiais, no sentido de entender quais contribuições a Teoria das Ações Mentais por Etapas traz para a aprendizagem de um aluno com necessidade especial. Nas discussões dialogamos com Vigotski, Galperin e Núñez, os quais colaboram com os conceitos da formação das funções superiores, formação da mente humana e organização do processo de ensino, respectivamente, e que formam o aporte teórico e metodológico desta pesquisa. No desenrolar da pesquisa concluímos que as funções psíquicas de atenção e memória apresentam-se fragilizadas e possuem relação direta com as condições escolares ofertadas. Para que o aluno se atente é preciso primeiramente sentir-se motivado a aprender; uma vez atento, facilita o processo mnemônico, que tem como ponto forte a repetição de informações. Palavras-chave: Teoria das Ações Mentais por Etapas. Galperin. Ensino. Aprendizagem. Síndrome de Warkany.
MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO
INSTITUTO FEDERAL DO ESPÍRITO SANTO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO EM CIÊNCIAS E
MATEMÁTICA
ABSTRACT
This dissertation aimed to analyze the learning of a student with Trisomy 8, known as Warkany syndrome, in the subjects of science and mathematics from the Theory of Stage-by-stage Formation of Mental Actions. Therefore we seek to problematize the moments that involve situations of student learning; analyze learning some content in the subjects of science and mathematics from the Theory of Stage-by-stage Formation of Mental Actions; discuss the development of psychic functions. For this, from September to December 2015, we enter the school environment a student of the 8th grade of elementary school in a public school in the Greater Vitória - ES, reference services to students with special needs in order to understand what contributions to the Theory of Stage-by-stage Formation of Mental Actions bring to the learning of a student with special needs. In the discussions we dialogue with Vigotski, Galperin and Núñez which collaborate with the concepts of formation of higher functions, training of the human mind and organization of the teaching process, respectively, and form the theoretical and methodological contribution of this research. In the course of the research we concluded that the mental functions of attention and memory have become fragile and have a direct relationship with the school conditions offered. For the student to watch it is necessary first to feel motivated to learn; once attentive facilitates the mnemonic process that has the strength to repeat information. Keywords: Theory of Stage-by-stage Formation of Mental Actions. Galperin. Teaching. Learning. Warkany syndrome.
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO ............................................................................................12
2 TRISSOMIA 8: EXISTE ALGO A MAIS........................................................16
2.1 PROBLEMA DE PESQUISA.........................................................................19
3 CONTRIBUIÇÕES DA ESCOLA DE KHARKOV.........................................22
3.1 ABORDAGEM HISTÓRICO-CULTURAL – SINFONIA INCOMPLETA.........22
3.1.1 Psicologia histórico-cultural e a concepção sobre o comportamento
anormal.........................................................................................................29
3.2 “À LUZ DA SUA GLÓRIA, QUEM É O CAVALEIRO A CAVALO SOLITÁRIO –
PETER YA. GALPERIN?”........................................................................... 32
3.2.1 Teoria da Formação das Ações Mentais por Etapas ..............................33
3.2.1.1 Momento funcional: orientação......................................................................34
3.2.1.2 Momento funcional: execução........................................................................37
3.2.1.3 Momento funcional: controle..........................................................................40
3.3 O QUE DIZEM OS PESQUISADORES EM SUAS PESQUISAS ...... ........43
4 TRAJETÓRIA DA PESQUISA.......................................................................50
4.1 PARTICIPANTES E LOCAL DA PESQUISA................................................50
4.2 PLANEJAMENTO PARA A INTERVENÇÃO ...............................................54
4.3 ELABORAÇÃO PARA A INTERVENÇÃO.....................................................57
4.3.1 Etapas de Execução....................................................................................57
4.3.2 Controle da Execução.................................................................................62
4.4 ANÁLISE DOS DADOS.................................................................................65
5 APLICAÇÃO DA TEORIA DAS AÇÕES MENTAIS POR ETAPAS.............66
5.1 UM POUCO DO QUE VIMOS....................................................................... 66
5.2. O DESENVOLVIMENTO DAS ATIVIDADES NA DISCIPLINA
MATEMÁTICA...............................................................................................71
5.2.1 Sobre os conhecimentos matemáticos prévios ......................................72
5.2.2 Singularidade da motivação – parte I ..................................................... 73
5.2.3 Sobre a orientação à atividade Matemática...............................................77
5.2.4 Desenvolvimento da Etapa Material/ Materializada em Matemática........79
5.3 O DESENVOLVIMENTO DAS ATIVIDADES NA DISCIPLINA DE
CIÊNCIAS......................................................................................................88
5.3.1 Sobre os conhecimentos prévios em Ciências........................................88
5.3.2 Singularidade da motivação – parte II.......................................................91
5.3.3 Sobre a orientação à atividade de Ciências............................................ 92
5.3.4 Desenvolvimento da Etapa Material/Materializada em Ciências.............95
6 O PAPEL DA ESCOLA NA FORMAÇÃO DO SUJEITO...........................102
6.1 AS FUNÇÕES DA ATENÇÃO E MEMÓRIA E O DESENVOLVIMENTO
COGNITIVO................................................................................................103
7 PRODUTO EDUCATIVO............................................................................116
8 CONSIDERAÇÕES FINAIS........................................................................118
Referências................................................................................................122
APÊNDICE A...............................................................................................126
APÊNDICE B...............................................................................................128
APÊNDICE C...............................................................................................129
APÊNDICE D...............................................................................................130
APÊNDICE E...............................................................................................131
APÊNDICE F...............................................................................................132
ANEXO A.....................................................................................................133
12
1. INTRODUÇÃO
Ao assistir a uma qualificação de mestrado, uma das professoras disse ao
mestrando que sentiu falta dele dizer o que o levou a estudar o tema, e completou
seu raciocínio afirmando que quando o pesquisador escolhe a abordagem histórico-
cultural, ele compreende a importância da própria história na pesquisa. Eu nunca
tinha pensado por esse prisma e confesso que fez minha atitude relutante de falar
sobre mim mesma esmorecer.
Consigo, assim, entender seu pensamento de que a exposição de parte da minha
vida não é importante para a escolha do tema desta pesquisa. Contudo, o convido a
romper com essa visão e perceber, assim como eu, que foi o tema que me escolheu
e não o contrário.
Sou a quarta filha de um mineiro e uma capixaba. Nasci, cresci e vivo em Vitória,
mas sempre que posso viajo para Minas Gerais para visitar meus familiares. Quando
criança, esperava ansiosa pelas férias de junho e julho, pois sabia que veria meus
primos (as), tios (as) e avó.
Minha avó, mãe do meu pai, teve dezoito filhos (isso mesmo!), alguns morreram
ainda bebês e outros enquanto crianças; dos dezoito filhos convivi com oito deles.
Exceto uma tia, todos tiveram filhos, a família que já era grande ficou enorme.
Minhas férias eram repletas de alegria, energia, gritaria e brincadeiras com meus
primos.
Minha tia que não teve filhos recebia todos os sobrinhos em sua casa. Era a casa
em que – quase – tudo era permitido. Comíamos muito, subíamos no telhado,
pulávamos na piscina o dia todo, entrávamos em casa molhados, enfim, éramos
crianças! Todos brincavam juntos e, a não ser pela preocupação das mães, todos
podiam tudo.
Como qualquer criança, sempre tinha um primo mais atazanado que o outro e, com
o passar do tempo, sabíamos que o primo mais velho iria tirar o mais novo do melhor
lugar do sofá, as meninas ficariam horas no chuveiro, que a Tiane empurraria quem
13
estivesse na borda da piscina e que o Pé de Xaxim comeria todas as batatas fritas.
Que família não é assim?
Divertida, amorosa, brigona, que toma conta do que não lhe diz respeito, que tem
filhos ou que não tem. Mas, pela quantidade de tios, tias, primos, primas, tias-avós
que tenho, posso afirmar que nos destacamos entre as famílias que conheço. Até
por volta dos meus doze anos essa era a visão que eu tinha. Mas algo, não me
lembro do que, começou a chamar minha atenção. As pessoas não viam a Tiane e o
Pé de Xaxim como eu os via. Eles eram meus primos que brincavam comigo e que
se comunicavam de maneira diferente e só. Mas os outros olhavam torto, falavam
baixo, cochichavam e meu coração ficou machucado até hoje pelo que aprendi: as
pessoas veem o outro como diferente, inconveniente, estranho, esquisito, mal
quisto. E assim percebi que meus primos eram especiais.
Especiais porque ele é autista e ela tem Síndrome de Down. Especiais porque ele
era o meu Pé de Xaxim e ela o sorriso pertinho da piscina de quem iria me empurrar.
De certa forma, movida pela dor e indignação sentida, por volta dos meus 15 anos
fui servir como voluntária em uma associação para crianças carentes.
Nessa associação conheci crianças que me faziam refletir todos os dias sobre o
comportamento do ser humano. Crianças eram abandonadas pelos seus pais por
diversas razões: por serem surdas, porque eram arteiras e por isso foram mutiladas,
por terem Síndrome de Down, por serem autistas, ou qualquer outra característica
alheia ao padrão. Permaneci por um ano indo aos sábados para brincar com elas.
Por volta dos 20 anos, cursei Ciências Biológicas em outra cidade e novamente fui
voluntária em uma associação que tinha como objetivo o ensino. Como toda
voluntária, fiz o que ninguém mais queria. Estar com um menino hiperativo, que
tomava remédios fortíssimos para dormir e não dormia, corria a sala pela manhã
toda em círculos e na hora do almoço só comia banana. Corri com ele, comi com
ele, chorei com ele e finalmente dormimos. Ganhar a confiança dele demorou
semanas e me esgotou emocionalmente. Aos poucos saí da associação.
14
Ao avaliar minha vida, percebi que o assunto “necessidades especiais” me
acompanhou desde cedo e por isso decidi que minha profissão deveria relacionar-se
a ele. Ao terminar o curso de licenciatura e bacharelado em Ciências Biológicas, fiz
especialização em Educação Especial/Inclusiva. Fui voluntária por dois anos no
Programa Fazendo a Diferença - PROFAD, ofertado pelo município de Vila
Velha/ES, que desenvolvia lazer e recreação para alunos da prefeitura com
necessidades especiais.
Após o término do PROFAD, fiquei por dois anos sem contato com pessoas com
necessidades especiais, até que um professor surdo veio trabalhar na escola em
que eu atuava. Ficamos amigos e senti a necessidade de fazer o curso, básico e
intermediário, de Língua Brasileira de Sinais - LIBRAS. O que me ajudou muito nos
anos seguintes, pois tive alunos surdos. Assim, comecei a pensar em todos aqueles
que apresentavam surdez e que poderiam precisar de mim, porém, se não tivesse
conhecimento para ajudá-los, só a minha boa vontade não seria o bastante. Decidi,
então, ingressar no mestrado em 2014, na linha de pesquisa “Diversidade”,
retornando para a escola em que lecionei por três anos, agora como professora
pesquisadora.
Na escola conversei com a professora do atendimento educacional especializado
(AEE) e com a pedagoga sobre os alunos que precisam desse atendimento a fim de
identificar as possibilidades de pesquisa. Embora já tivesse em mente uma pessoa,
considerei importante fazer essa identificação e dialogar com as profissionais, haja
vista que elas estavam com os alunos diariamente e sabiam de algumas facilidades
ou obstáculos que poderia enfrentar, como a baixa frequência do aluno na escola.
Esta foi a primeira desconstrução do pensamento durante a pesquisa, uma vez que
não fui eu quem escolheu o sujeito, me senti por ele escolhida.
Embora não tivesse estudado comigo nos anos anteriores, pois ainda era dos anos
inicias do ensino fundamental, Filipe1 lembrou-se de mim e com um lindo sorriso me
recebeu, perguntou o que eu fazia na escola e me falou dos seus planos. Esse
pequeno gesto despertou em mim a curiosidade em estudar sua condição genética,
1 Os nomes são fictícios para preservar a identidade dos participantes da pesquisa.
15
e como ocorre o aprendizado desse aluno. Após uma breve explicação do que faria
lá, o convidei a fazer parte da pesquisa. Assim começou a pesquisa sobre trissomia
e a aprendizagem de uma criança com trissomia, a qual será detalhada no capítulo
seguinte.
16
2. TRISSSOMIA 8: EXISTE ALGO A MAIS
É bem provável sentir-se desconfortável com o erro gramatical da palavra trisssomia.
Assim como é possível sentir-se da mesma forma ao estar perto de uma pessoa que
visivelmente tem diferença e essa diferença não está presente na maioria das
pessoas que o cerca. O incômodo provocado é intencional para que possamos
apresentar a trissomia 8.
Alguns educadores, inclusive da área da Biologia, desconhecem o que seja
trissomia, e talvez por isso tendem a homogeneizar todas as pessoas com
trissomias. Afinal, o que é?
Somos formados por conjunto de células que em seu núcleo abriga o código
genético, ou seja, as informações que nos caracterizam. Essas informações
conhecidas como Ácido Desoxirribonucleico – DNA 2 – organizadas em longas
cadeias enroladas em proteínas são chamadas de cromossomos (JUNQUEIRA;
CARNEIRO, 2004). A espécie humana possui 23 pares, sendo vinte e dois pares
autossômicos referentes às características comuns para ambos os sexos, como
formação do baço, fígado, coração, e um par heterossômico que, além de algumas
características, irá determinar o sexo.
Essas células sofrem continuamente um processo de renovação e para isso devem
produzir novas células delas mesmas. As células autossômicas se multiplicam por
meio da mitose, na qual a célula-mãe divide-se formando duas células-filhas com a
mesma quantidade de cromossomos. Já a meiose irá formar as células reprodutivas,
óvulo e espermatozoide, cujo resultado se apresenta com quatro células-filhas e a
metade do número de cromossomos (Figura 1). É importante essa redução do
número de cromossomos na meiose, pois o óvulo com 23 cromossomos, ao se unir
ao espermatozoide com também 23 cromossomos, irá formar um zigoto com 46
cromossomos, ou 23 pares, a quantidade regular nos seres humanos (JUNQUEIRA;
CARNEIRO, 2004).
2 Sigla em inglês (deoxyribonucleic acid).
17
Figura 1 – Divisão celular, meiose, na qual a célula-mãe irá gerar quatro células-filhas com metade do número de cromossomos.
Fonte: Wikimedia Commons3
Entretanto, essas divisões podem sofrer interferências, como erros e mutações,
gerando variações tanto nas informações genéticas quanto no número de
cromossomos; este é o caso da não disjunção. Durante a divisão celular há um
momento em que os cromossomos que foram inicialmente duplicados devem se
separar, porém, por motivo desconhecido, tal fato não ocorre e ambos se destinam
para o mesmo polo da célula. Consequentemente, o resultado das células filhas
apresentará três configurações: duas com a metade do número de cromossomos,
uma com o dobro do número de cromossomos, e a outra sem cromossomos,
conforme representado na Figura 2.
Figura 2 - Divisão celular, meiose, na qual a célula-mãe irá gerar quatro células-filhas diferindo entre si quanto ao número de cromossomos.
Fonte: Wikipedia
4
O gameta com duplicidade cromossômica, ao fecundar outro com a quantidade
regular formará um zigoto com um exemplar a mais, ou seja, 47. Como exposto
3 Disponível em https://commons.wikimedia.org/wiki/File:M%C3%A9iose.png Acesso em: 3 fev 2016.
4 Disponível em https://de.wikipedia.org/wiki/XYY-Syndrom Acesso em: 3 de set 2016.
Células filha com o dobro do
número de cromossomos e
sem cromossomos
18
anteriormente, os cromossomos estão organizados em pares, porém, ao ter uma
cópia extra, um desses pares terá três peças, sendo o evento denominado trissomia.
A trissomia pode ocorrer em qualquer par dos cromossomos, gerando diferentes
características. A mais comum é a Síndrome de Down, resultado da trissomia no
cromossomo de par 21, enquanto outras com menor incidência podem ocorrer nos
cromossomos sexuais, como a Síndrome de Klinefelter, a Síndrome de Patau no par
13 e a Síndrome de Edwards nos cromossomos 18. O evento pode ser letal para
esses casos, mas há taxa de sobrevivência (GRIFFTHS, WESSLER, LEWONTIN,
CARROLL, 2008), e em outros casos não.
A Síndrome de Warkany, presente no par 8, e por isso escrita como T8M, só não é
letal quando algumas células apresentam 46 e parte delas 47 cromossomos,
fenômeno denominado de mosaico. As condições e causas dessa trissomia foram
identificadas pela primeira vez pelo pediatra Josef Warkany na década de 60, assim,
ficou conhecida também como Síndrome de Warkany. A síndrome é rara 1: 25.000-
50.000, na maioria das vezes em homens (RICCARDI, 1977 apud RODRÍGUEZ;
MORENO-CID; RUBIO; PASTOR; DE LEÓN; PUERTO; GARCÍA; RODÍGUEZ,
2013).
Fenotipicamente não se pode dizer que há um padrão (ATKINS; HOMES;
RICCARDI, 1974), embora alguns sujeitos possuam orelhas menores e rosto com
resultado similar. A característica mais recorrente é a ausência da patela e há outras
características, como limitação da supinação do cotovelo, seis vértebras lombares,
espinha bífida oculta, postura anormal dos pés, perda auditiva, peso e altura dez por
cento abaixo do normal, anormalidades neurológicas, incluindo falta de jeito e
subnormalidade mental leve. O desenvolvimento mental dos sujeitos T8M é melhor
que as outras trissomias, provavelmente por algumas células não serem afetadas,
ressaltam os autores.
A descrição na literatura está sempre relacionada às características clínicas em
relatos médicos ou genéticos, sendo referido ao processo de aprendizagem somente
“retardo mental” ou subnormalidade; no campo da educação a denominação é
deficiente intelectual. É importante que estudos na área educativa sejam realizados,
pois nela estão os profissionais que se dedicam ao processo de ensino e
19
aprendizagem. Embora cada um possua características únicas, inclusive na maneira
de aprender, acredita-se que a investigação no ambiente escolar por pesquisadores
da área da educação possa contribuir significativamente.
Pesquisas sobre T8M na área da educação não foram encontradas, sendo a busca
realizada nos sites da Capes, Scielo, USP, UNB, UFBA, UFES, IFES, Google
Acadêmico e inclusive Google não acadêmico. Para essa investigação foram
utilizadas as expressões: Trissomia 8, Trisomy 8, Syndrome Trisomy 8, Warkany.
Pela ausência de resultados, esta pesquisa mostra-se inovadora por tratar não dos
aspectos biológicos e clínicos de uma pessoa com Síndrome de Warkany, mas dos
aspectos do processo de ensino e aprendizagem, tendo a possibilidade de auxiliar
os profissionais da área educacional em tal processo.
Para intensificar a assimilação dos conteúdos de um aluno em relação aos
conhecimentos desenvolvidos no ambiente escolar, particularmente na disciplina de
Ciências e Matemática, e na própria formação do sujeito, buscamos fundamentação
teórica e metodológica na Teoria das Ações Mentais por Etapas.
2.1 PROBLEMA DE PESQUISA
A naturalidade com que aqueles denominados com necessidades especiais se fez
presente em minha vida foi mudando à medida que o tempo passava. Não que eu
deixasse de olhar as pessoas da mesma forma, mas a reação dos adultos em torno
das diferenças me levou a refletir sobre tais problemas, e assim continuei
observando as posturas dos amigos, professores e principalmente dos colegas de
escola. Dessa forma, aconteceu minha formação e enquanto professora refletia
sobre a contribuição da escola no processo de construção da autonomia de um
aluno, e como as questões culturais podem se constituir em barreiras maiores do
que as questões biológicas.
Para alguns docentes, pessoas com diferenças das ditas normais, no que tange à
questão biológica, podem ter seu processo educacional trabalhado com os mesmos
métodos. Igualam todos os alunos que possuem diferenças, como se os ditos
normais fossem também exatamente iguais entre si. Quando reconhecem a
20
necessidade de uma metodologia específica justificam a ausência da mesma por
não terem sido capacitados na formação inicial. É possível que a ignorância, no
sentido de não ter conhecimento, faça com que ajam assim, sendo, então,
importante mostrar que uma síndrome, doença, transtorno ou qualquer que seja a
denominação, não faz com que as pessoas sejam idênticas.
Para ilustrar, tomemos como exemplo os sujeitos com Síndrome de Down, cujas
características físicas marcantes são compartilhadas, mas não obrigatórias. Na
escola, as técnicas de ensino utilizadas com eles diferenciam-se dos demais alunos,
mas não entre eles; isso em um cenário otimista no qual o professor trabalha sob a
perspectiva de um ensino para todos. Se a esse cenário adicionarmos sujeitos com
Síndrome de Edwards, Síndrome de Patau, Síndrome de Wakany e diversas outras,
é provável que tudo, na visão dos educadores, se resuma a uma característica:
dificuldade de aprendizagem.
Por entender que a dificuldade é provavelmente a mesma, o método utilizado não se
diferencia e nem se fundamenta em autores que estudam tais dificuldades. Assim, é
necessário apresentar alternativas aos métodos conhecidos e autores que darão
suporte teórico, uma vez que desenvolver uma tarefa com mais conhecimento da
metodologia desses estudiosos permitirá que o resultado seja mais próximo ao
esperado e, dessa maneira, seja possível superar o estigma de que alunos com
necessidades especiais não aprendem.
Sendo assim, nos indagamos sobre as síndromes genéticas, sobre esses sujeitos
que frequentam a escola, a escolha dos métodos utilizados pelos professores, a
superação da não aprendizagem e como ser um facilitador da mesma. Diante
dessas ponderações, chegamos ao seguinte problema de pesquisa: quais as
contribuições da Teoria das Ações Mentais por Etapas para a aprendizagem de
um aluno com trissomia no cromossomo 8?
Para responder à pergunta, temos como objetivo geral analisar a aprendizagem de
um aluno com trissomia no cromossomo 8 nas disciplinas de Ciências e Matemática,
com base na Teoria das Ações Mentais por Etapas proposta por Galperin.
21
Para alcançar o objetivo geral, temos como objetivos específicos:
Problematizar os momentos que envolvem as situações de aprendizagem de um
aluno.
Analisar a aprendizagem de alguns conteúdos nas disciplinas de Ciências e
Matemática, com base na Teoria das Ações Mentais por Etapas.
Discutir o desenvolvimento das funções psicológicas da atenção e memória.
Uma vez apresentada a justificativa e os objetivos desta pesquisa seguiremos com a
apresentação das contribuições da psicologia histórico-cultural acerca do
desenvolvimento das funções psíquicas, e da Teoria das Ações Mentais por Etapas,
a qual será o suporte teórico-metodológico para o desenvolvimento das atividades a
serem realizadas. No capítulo três descreveremos o percurso metodológico
percorrido, cujos resultados serão mostrados e discutidos no capítulo cinco,
enquanto as considerações finais serão apresentadas no capítulo seis.
Toda pesquisa de mestrado profissional deve produzir além da dissertação um
produto final, o qual representa materialmente parte do processo da pesquisa. Esse
produto pode se apresentar de diversas formas: sequências didáticas,
documentários, relatórios, kits de ensino, softwares educativos, entre outros. Ele
será abordado no capítulo quatro.
22
3. CONTRIBUIÇÕES DA ESCOLA DE KHARKOV
Este capítulo objetiva apresentar as bases teóricas de suporte e apoio a esta
pesquisa. No primeiro subitem analisaremos as contribuições de L. S. Vigotski 5
acerca do desenvolvimento do sujeito, o psiquismo, o ensino escolar, a importância
da zona de desenvolvimento iminente, a defectologia, e como essas contribuições
influenciaram os estudos de P. Ya. Galperin, fundador da Teoria das Ações Mentais
por Etapas, a qual será tratada nos subitem seguinte.
3.1 ABORDAGEM HISTÓRICO-CULTURAL – SINFONIA INCOMPLETA6
A etimologia da palavra psicologia nos remete ao objeto de estudo nos primórdios
dessa ciência: doutrina ou estudo da alma. Lentamente essa ciência ganhou
diferentes concepções, ora vislumbrando a alma ou questões internas da psique ora
estudando o comportamento como adaptação do ser no meio em que vive. Uma
nova abordagem psicológica surgiu no início do século XIX em um grupo de
pesquisadores, que a intitularam de psicologia histórico-cultural 7(VIGOTSKI, 2004).
Essa nova maneira de pensar a ciência da alma foi fundamentada nos ideais de Karl
Marx e se diferencia das abordagens da época e anteriores por quatro traços.
O primeiro traço distintivo da nova psicologia é seu materialismo, uma vez que ela considera todo o comportamento do homem como constituído de uma série de movimentos e reações dotado de todas as propriedades da existência material. O segundo traço é seu objetivismo, uma vez que ela coloca como condição sine qua non das investigações a exigência de que estas tenham por base a verificação objetiva do material. O terceiro traço é seu método dialético, que reconhece que os processos psíquicos se desenvolvem em indissolúvel ligação com todos os outros processos no organismo e estão sujeitos exatamente às mesmas leis a que está todo o restante na natureza. O quarto e último traço é o seu fundamento biossocial cujo sentido definimos anteriormente (VIGOTSKI, 2004, p. 8).
No materialismo, é necessário analisar o fato concreto, material, enquanto a dialética
considera a relação do agir do homem sobre a natureza, como transformá-la e por
5 Embora haja diferentes grafias para o nome do autor será adotada a escrita Vigotski. Somente nas
citações o nome será escrito como na obra referida. 6 Denominada por Pozo (1998, apud Núnez, 2009, p. 19)
7 Também denominada sócio-histórica.
23
ela ser transformado. Essa produção é feita entre pessoas, em um meio social; é a
relação interpessoal construída historicamente pelos homens que será aprendida
pelo sujeito e propiciará seu desenvolvimento. Assim sendo, o aprendizado acontece
primeiramente no plano social entre pessoas para posteriormente ser internalizado e
ser um processo individual (VIGOTSKI, 2004; 2007).
A conversão de um processo interpsíquico para intrapsíquico ocorre pela
internalização dos signos, como a escrita, o desenho, a leitura, e o uso do sistema
de números, os quais foram construídos ao longo da evolução humana. É esse
universo simbólico que representa a realidade concreta e objetiva que existe fora da
nossa consciência, que são internalizados. Ao utilizar os signos, as ações humanas
passam a ser mediadas, modificando as formas superiores do nosso
comportamento, do nosso psiquismo (VIGOTSKI, 2007; MARTINS, 2013a).
Martins (2011a, p. 45, destaque da autora) define psiquismo como “[...] unidade
material e ideal expressa na subjetivação do objetivo, isto é, na construção da
imagem subjetiva do mundo objetivo”. E continua a explicar que é material do ponto
de vista orgânico, o cérebro, e ideal, pois é a representação que cada um faz da
realidade. Para Luria (ibidem) tal unidade é organizada como um sistema complexo
composto por funções psicológicas - sensação, percepção, atenção, memória,
linguagem e pensamento – que trabalham de maneira interdependente e atuam no
comportamento humano.
A sensação, porta de entrada das funções psíquicas para a formação da imagem,
capta as propriedades dos objetos através dos analisadores. Estes podem ser
visuais, táteis, auditivos, gustativos, e de respostas à fome, sede, sono, dor, entre
outros, fazem parte do sistema arco-reflexo que se encarrega de receber o estímulo,
o qual será conduzido e interpretado pelos receptores, nervos aferentes e pelas
zonas corticais respectivamente. As sensações, que constituem os reflexos que
inicialmente são incondicionados, devido ao desenvolvimento biológico e as
experiências sociais, sofrem transformações para reflexos condicionados e
constituem-se como sensações humanas culturalmente formadas (MARTINS,
2013a; 2013b; VIGOTSKI, 2004).
24
São as diversas exposições a estímulos e o processo biológico que promoverão a
integração primária entre os analisadores, formando uma imagem unificada das
coisas, função da próxima função psíquica, a percepção (MARTINS, 2013a; 2013b).
Embora a percepção, diferentemente da sensação, forme uma imagem sintética,
ambas estão inseridas em um sistema cuja relação é de dependência. São
elementares, uma nasce a partir da outra, e tornam-se complexas ao serem
mediadas pela fala8. É do pareamento da imagem e palavra que ocorrerá o processo
de formação de conceito dos objetos, e essa significação decorre da experiência
social e cultural do ser humano (VIGOTSKI, 2007).
O papel da linguagem na percepção é surpreendente, dadas as tendências opostas implícitas na natureza dos processos de percepção visual e da linguagem. Elementos independentes num campo visual são percebidos simultaneamente; nesse sentido, a percepção visual é integral. A fala, por outro lado, requer um processo sequencial. Os elementos, separadamente, são rotulados e, então, conectados numa estrutura de sentença, tonando a fala essencialmente analítica (VIGOTSKI, 2007, p. 23, destaque do autor).
Signos e palavras se constituem como um meio de contato social entre as pessoas,
logo é por meio da fala que o comportamento humano é direcionado para um fim
específico. Para isso é necessário selecionar um estímulo entre vários, reter o foco
no mesmo e inibir a ação de outros, tarefa possível com o desenvolvimento da
atenção. (MARTINS, 2011b; MARTINS 2013b).
A atenção no início da vida tem sua natureza quase exclusivamente como instinto-
reflexo. Reflexo, pois são reações de origem hereditária que se constituem como
importantes mecanismos de sobrevivência, como, por exemplo, o choro, a reação do
medo, o grito de dor. Está relacionada diretamente ao meio, sendo para este uma
resposta momentânea. Em contrapartida, “O instinto é a forma mais complexa do
comportamento hereditário” (VIGOTSKI, 2004, p. 22), e distingue-se pela relação
com o meio, por não ser previsível e acionar vários movimentos e órgãos para sua
8 Os termos fala e linguagem são bastante discutidos nas traduções das obras de Vigotski. É uma
discussão importante, mas não inserida nos objetivos desta pesquisa. Optamos pelo primeiro termo, e para justificar nossa escolha sugerimos a leitura do capítulo V da tese “QUANDO NÃO É QUASE A MESMA COISA: Análise de traduções de Lev Semionovitch Vigotski no Brasil Repercussões no Campo Educacional, de Zoia Ribeiro Prestes (Brasília, 2010). Disponível em: https://www.cepae.ufg.brup80oZOIA_PRESTES_-_TESE.pdf1462533012 Acesso em: 3 jan 2017.
25
execução, por exemplo, o ato de mamar. Em comum, tanto o reflexo e o instinto de
origem hereditária não são aprendidos, diferentemente dos não hereditários
(VIGOTSKI, 2004).
As reações inatas sob a influência do meio e baseadas na experiência individual irão
suscitar no indivíduo respostas singulares, sendo estas reações condicionadas.
Tanto o reflexo quanto o instinto estão presentes em todos os animais, inclusive o
homem, e
[...] gradualmente, através de um treino longo e complexo, transforma-se em atitude arbitrária que é orientada pelas necessidades mais importantes do organismo e, por sua vez, orienta todo o desenrolar do comportamento humano (VIGOTSKI, 2007, p. 161-162)
Desenvolve, assim, a função da atenção. Esta que pressupõe motivo e finalidade irá
superar o interesse reflexo-instintivo por volta da idade adulta, ou seja, até a
adolescência o indivíduo terá a atenção oscilando entre involuntária e voluntária
(MARTINS, 2013b). Esse aspecto deve ser considerado por professores e
pedagogos ao planejar e executar as aulas.
Ambos, professores e pedagogos, por meio das ações desenvolvidas devem
interferir diretamente na atenção dos alunos, apresentando o objetivo da ação
didática proposta e o caminho a ser percorrido. Cabe aos educadores mostrar o
motivo da ação, e não aos alunos descobri-lo, uma vez que eles ainda não possuem
a atenção desenvolvida e, dessa forma, convergir o interesse propriamente dito à
ação proposta, direcionando assim o comportamento do aluno (MARTINS, 2013b,
VIGOTSKI, 2004).
Comportamento que é influenciado e determinado pela organização do meio e a
forma de realizar a ação. Por isso, professor e pedagogo devem “[...] antes de
explicar, interessar; antes de obrigar a agir, preparar para a ação; antes de apelar
para reações, preparar a atitude; antes de comunicar alguma coisa nova, suscitar a
expectativa do novo” (VIGOTSKI, 2007, p. 163), promovendo condições para a
atenção voluntária. Assim, o comportamento do ser humano rompe com a ação
26
estímulo-reflexo e se torna mais elaborada, dando significados e conceitos aos
objetos que foram internalizados (MARTINS, 2013b).
Novamente os signos, a fala e a relação com o outro são responsáveis pela
mediação da representação mental do objeto material que resultará na formação de
imagens Estas deixam vestígios no sistema nervoso que podem ser recordadas. A
habilidade em recrutar as imagens formadas resultará no desenvolvimento da
memória, definida como “[...] a quem cumpre a formação de imagem por evocação
daquilo que no passado foi sentido, percebido e atentado. Isto é, a quem compete
fixação, o armazenamento e evocação das experiências” (MARTINS, 2011a, p.46,
destaque da autora). Este último momento determinará a qualidade da memória.
Vigotski (2007) distingue a memória, assim como a velha psicologia, chamada por
ele dessa maneira, em mecânica e a associativa. A primeira é a capacidade de
preservar os vestígios de reações repetidas inúmeras vezes a ponto de produzir
modificações nervosas. A segunda refere-se às modificações sofridas no sistema
nervoso em decorrência das experiências vividas. O acionamento dela é como um
efeito dominó, ao passo em que, quando uma reação é lembrada, esta desencadeia
o surgimento de outras, sendo influenciada pela riqueza das experiências passadas.
Ambas fazem parte da composição da memória propriamente dita, a qual se
apresenta heterogênea, complexa e seu funcionamento é desigual para os
indivíduos.
A maneira pela qual uma pessoa memoriza está também relacionada ao campo
perceptivo. Enquanto um sujeito recorda melhor utilizando a visão, outro pode
identificar-se com a audição e um terceiro com a combinação audiovisual. São
várias as possibilidades e todas estão relacionadas ao processo de reação às
experiências as quais são expostas (VIGOTSKI, 2004; 2007).
No campo da educação é útil ao professor identificar o tipo de memória do aluno e
dessa forma selecionar as ferramentas facilitadoras do processo mnêmico. Todavia,
ainda que os recursos mais indicados sejam utilizados, na memorização mecânica
ou associativa a qualidade da imagem formada está relacionada aos motivos e às
intencionalidades da ação (VIGOTSKI, 2007).
27
A imagem mental formada é ligada ao conceito de um objeto que foi sentido,
percebido, atentado, logo, memorizado. A conversão de imagens em linguagem
permite ao ser humano sobrepujar a representação imediata da realidade, e “Dessa
superação resulta a possibilidade para a construção de ideias, que são a rigor, os
conteúdos do pensamento” (MARTINS, 2011b).
As funções que antes eram elementares se desenvolveram em superiores e
modificam o comportamento humano.
Na forma elementar alguma coisa é lembrada; na forma superior os seres humanos lembram alguma coisa. [...] no segundo caso, os seres humanos, por si mesmos, criam um elo temporário através de uma combinação artificial de estímulos (VIGOTSKI, 2007, p. 50).
Assim, é encerrada a necessidade de ter presente o objeto; as ações mediadas
pelos signos influenciam as funções psicológicas de tal maneira que as modificam
estruturalmente e na relação entre as mesmas, e passam a ser denominadas
funções psíquicas superiores ou comportamento superior (VIGOTKI, 2007). Este é o
resultado da internalização da cultura influenciando o indivíduo e transformando-o
em sujeito. A apropriação dessa cultura pode ser feita de diferentes maneiras, como
no seio familiar, entre amigos, na igreja, no esporte, nos museus, zoológicos e na
escola, que dispõe de importante papel no desenvolvimento, mas tem se mostrado
deficiente quanto aos métodos de ensino.
A relação da aprendizagem e desenvolvimento de crianças em idade escolar é tema
recorrente na psicologia pedagógica e a questão metodológica é um ponto
desafiador para os pesquisadores. Diante do exposto, compreendemos que as
funções psicológicas tornam-se complexas com a internalização cultural, que ocorre
primeiramente no plano interpsíquico e posteriormente no plano intrapsíquico;
formando, portanto os valores, juízos, comportamentos, e a cultura do sujeito. No
âmbito escolar, essa formação está relacionada ao ensino que é ofertado e o como
se oferta.
Para a psicologia histórico-cultural é a instrução realizada em uma ação
colaborativa, seja com o professor ou com os colegas, que possibilitará o
28
desenvolvimento (PRESTES, 2010). E como deve ser esse ensino? Vigotski (2004,
p. 509) diz que deve ser aquele “[...] que supera o desenvolvimento, ou seja, arrasta
atrás de si o desenvolvimento, desperta para a vida, organiza e conduz o processo
de desenvolvimento [...]”, e complementa dizendo que o ensino “ [...] fácil demais e
difícil demais é igualmente pouco eficaz”. Por essa razão, o professor deve atuar
com o que o aluno é capaz de fazer ao ser orientado, e não com o que ele realiza de
maneira independente, uma vez que já tem domínio; nem com o que não é capaz de
fazer mesmo com orientação. Esse pensamento relaciona-se com a ideia da Zona
de Desenvolvimento Iminente 9 (ZDI) e Zona de Desenvolvimento Real (ZDR)
(VIGOTSKI, 2004; 2007), conceituadas por Vigotski (apud PRESTES, 2010, p. 173-
174) da seguinte maneira:
No mínimo, deve-se verificar o duplo nível do desenvolvimento infantil, ou seja, primeiramente, o nível de desenvolvimento atual da criança, isto é, o que hoje já está amadurecido e, em segundo lugar, a zona de seu desenvolvimento iminente, ou seja, os processos que, no curso do desenvolvimento das mesmas funções, ainda não estão amadurecidos, mas já se encontram a caminho, já começam a brotar; amanhã trarão frutos; amanhã passarão para o nível de desenvolvimento atual. Pesquisas mostram que o nível de desenvolvimento da criança define-se, pelo menos, por essas duas grandezas e que o indicador da zona de desenvolvimento iminente é a diferença entre esta zona e o nível de desenvolvimento atual. Essa diferença revela-se num grau muito significativo em relação ao processo de desenvolvimento de crianças com retardo mental
10 e ao de crianças normais. A zona de desenvolvimento
iminente em cada uma delas é diferente. Crianças de diferentes idades possuem diferentes zonas de desenvolvimento.
A relevância desse conhecimento para o docente é a compreensão de que alunos
com a mesma idade cronológica podem ter diferentes idades mentais, por
conseguinte, como ensinar a cada um deles também deverá ser diferenciado.
Conhecer a idade mental do aluno possibilitará ao professor elaborar as atividades
de ensino, pois trabalhar sobre o que os alunos estão na iminência de aprender
promoverá e facilitará o desenvolvimento desse aluno. Essa ideia veio contrapor a
9 Essa será a nomenclatura adotada embora sejam encontradas na literatura outras expressões como
Zona de Desenvolvimento Potencial, Zona de Desenvolvimento Proximal e Zona de Desenvolvimento Imediato; será mantido o termo das citações diretas. Tal escolha está fundamentada na tese de Zoia Prestes (2010, p.173, destaque da autora) que traz a seguinte explicação: “[...] a tradução que mais se aproxima do termo blijaichego razvitia é zona de desenvolvimento iminente, pois sua característica essencial é das possibilidades de desenvolvimento, mais do que do imediatismo e da obrigatoriedade de ocorrência [...]”. 10
Vigotski utiliza termos que estão em desuso, porém os mesmos foram mantidos nas citações diretas.
29
pedagogia que aplicava testes para diagnosticar o desenvolvimento mental real do
aluno e, baseado nas etapas que já haviam sido internalizadas, orientava a
aprendizagem para o estágio seguinte. Desconsiderava-se se o aluno era ou não
capaz de realizar a atividade com auxílio e, assim, se tomava como pressuposto que
não sabiam realizá-la (VIGOTSKI, 2004; 2007).
Essa conjuntura torna-se ainda mais evidente quando aborda o público deficiente
intelectual. Ao serem submetidos a testes, os resultados indicavam que o ensino
deveria ser baseado no método direto, ou seja, sem utilizar signos, haja vista a
pouca habilidade em abstração dos conceitos. Experiências posteriores mostraram
que esse método não só não ajudava na superação da deficiência como também o
intensificava, permitindo ao autor propor que só é bom o ensino que supere o
desenvolvimento (VIGOTSKI, 2004).
Acerca desse público, Vigotski também teve um olhar diferenciado, principalmente
pela época em que viveu, início do século XX.
3.1.1 Psicologia histórico-cultural e a concepção sobre o comportamento
anormal
Qual é o limite entre normal e anormal? Linha tênue e inexistente, assim como o
conceito de norma que é “[...] puramente abstrato de certa grandeza média dos
casos mais particulares e, na prática, não é encontrada em forma pura, mas sempre
em certa mistura de formas anormais (VIGOTSKI, 2004, p. 379)”. Entretanto,
ressalta o autor, há comportamentos que se afastam de tal maneira que nos dão o
direito de falar sobre o anormal.
O comportamento anormal, cujas origens podem ser diferentes, é reunido em três
grandes grupos: aqueles em que o comportamento anormal é breve e casual, como
esquecimentos, omissões, delírios; o comportamento constante e vitalício,
decorrente da ausência de um membro, deficiência física; e o comportamento
duradouro e estável, representado pelas neuroses, psicoses e deficiências mentais.
Estes são o foco da discussão quanto ao processo de ensino, aprendizagem e
desenvolvimento, embora possa ser estendido para todos os grupos.
30
O que dizer do processo de ensino e aprendizagem para os sujeitos que foram
marginalizados ao longo do tempo? Seja pela sua condição física, genética ou
psicológica, o desvio da norma fez com que fossem excluídos, tendo o papel social
restrito a um ser parasita que dependia da benevolência do outro. À escola cabia a
tarefa de olhá-los de maneira piedosa, “[...] mantê-los com recursos sociais, ajudá-
los a levar aos trancos e barrancos uma deplorável sobrevivência humana”
(VIGOTSKI, 2004, p. 382). Apesar das mudanças ao longo dos séculos, pouco
mudou para os deficientes intelectuais.
Sob o ponto de vista do desenvolvimento natural é necessário esperar que as
funções biológicas amadureçam para que possam aprender. O item anterior abordou
que, sob a perspectiva da psicologia histórico-cultural, a humanização é um
processo no qual as funções elementares tornam-se superiores a partir das relações
sociais mediadas pelo outro e pelos signos (VIGOTSKI, 2004). Contudo, se
deixarmos o indivíduo à própria sorte, ressalta Martins (2013b), ele nunca passará
pelo processo de humanização.
O comportamento da criança sofrerá mudanças quando ela sentir necessidade de tal
atitude, exigir que ela diga a palavra para referir-se a um objeto, memorize para falar
de um fato acontecido e pense para resolver problemas. Daí a importância da
participação da criança no meio cultural, pois só haverá desenvolvimento psíquico
pelos meios externos da cultura, fala, escrita, aritmética e pela própria função
psíquica, atenção voluntária, lógica e pensamento abstrato. A criança com
deficiência intelectual permanece nessa carência justamente nesses aspectos não
por questões orgânicas, mas pelas possibilidades que são oferecidas para que eles
se desenvolvam (VIGOTSKI, 2004; 2011).
No âmbito escolar é comum utilizar os mesmos métodos de ensino a todos os
alunos, independente de suas especificidades. Entretanto, compete ao professor e
ao pedagogo selecionar técnicas com signos especiais que atendam às
necessidades desse público.
Para a criança intelectualmente atrasada, deve ser criado, em relação ao desenvolvimento de suas funções superiores de atenção e pensamento, algo que lembre o sistema Braille para a criança cega ou a dactilologia para
31
a muda, isto é, um sistema de caminhos indiretos de desenvolvimento cultural, quando os caminhos diretos estão impedidos devido ao defeito (VIGOTSKI, 2011, p. 869).
Além disso, Vigotski (2004) demonstra a importância de trabalhar com atividades
que incitem nos alunos à formação da imagem mental dos objetos, uma vez que os
sujeitos com deficiência intelectual “não são muito capazes de ter pensamento
abstrato”, e justamente terem dificuldade na representação mental é que a “[...]
escola deveria fazer todo esforço para empurrá-las nessa direção, para desenvolver
nelas o que está intrinsecamente faltando no seu próprio desenvolvimento” (idem, p.
101). Porém, ao desenvolver as atividades, pedagogos e professores enfatizam o
plano concreto e reiteram a cada tarefa a deficiência intelectual do aluno, uma vez
que não fomentam situações que promovam o desenvolvimento cognitivo
(VIGOTSKI, 2004; 2007; 2011).
O desenvolvimento cognitivo à luz da psicologia histórico-cultural é formado com
base na internalização da cultura vivenciada na sociedade. A privação da mesma
interfere significativamente no processo de humanização, tanto dos ditos normais
como anormais. A escola enquanto espaço de construção de conhecimento deve
criar oportunidades para que esse desenvolvimento ocorra, ainda que para alcançar
os objetivos precise modificar seus métodos. Vigotski contrapôs o pensamento da
época afirmando que é o ensino que estimula o desenvolvimento, porém não
explicou como ocorre a abstração do que antes era concreto.
A resposta a isso foi exaustivamente pesquisada por Galperin, que esteve presente
na fundação da Escola de Khrakov (HAENEN, 2001). Pouco conhecido no ocidente,
as contribuições do psicólogo para a nova psicologia são de extrema relevância;
pois assim como os demais pesquisadores que continuaram a obra de Vigotski,
aquele preenche lacunas deixadas por este.
A obra inacabada de Vigotski decorreu de sua morte ainda jovem, aos 38 anos. A
Sinfonia Incompleta é assim referenciada em decorrência de suas ideias brilhantes,
sendo considerado ‘O Mozart da Psicologia’, além de formar junto aos seus
colaboradores, Leontiev e Luria, a Troika (HAENEN, 2001). Troika, que significa
32
trinca de cavalos, deixou um quarto cavaleiro solitário, o qual será apresentado a
seguir.
3.2 “À LUZ DA SUA GLÓRIA, QUEM É O CAVALEIRO A CAVALO SOLITÁRIO –
PETER YA. GALPERIN?” 11
Nascido em outubro de 1902, filho de um médico e professor universitário, Galperin
tinha em casa uma vasta biblioteca com artigos sobre Filosofia, Medicina e
Psicologia. Sua formação pode ter sido influenciada pelo seu contexto familiar e
assim formou-se em medicina na década de 30, direcionando sua atuação para a
área da Psicologia (NÚÑEZ; OLIVEIRA, 2013).
Pouco conhecido no ocidente, foi um dos psicólogos mais influentes nas escolas da
antiga União Soviética a partir da década de 50, quando “formulou hipóteses sobre a
teoria da formação por etapas da atividade mental e dos conceitos” (NÚÑEZ,
OLIVEIRA, 2013, p. 288). Participou do seleto grupo de psicólogos do país e esteve
envolvido na fundação da Escola de Jarkov, Ucrânia, sendo o último dessa geração
a ter contato com Vigotski (HAENEN, 2001). Além de outros importantes psicólogos
da época, trabalhou com A. R. Luria, A. N. Leontiev e foi orientador de V. V. Davidov
e N. F. Talízina, contribuindo significantemente em seus estudos. Apresentou-se
como uma importante figura para a compreensão do pensamento da Psicologia
Histórico-Cultural e da Teoria da Atividade, esta desenvolvida por Leontiev, que,
contudo, não explicaram o mecanismo de internalização da atividade externa em
atividade interna (NÚÑEZ, 2009; NÚÑEZ; OLIVEIRA, 2013).
Galperin, continuador desses estudos, contribuiu para a compreensão da formação
de conceitos na mente humana e como esta está relacionada à atividade material
externa, colaborando para a formação do psiquismo humano. No início da década
de 50 formulou hipóteses sobre esse processo e, em 1965, defendeu sua tese com
os “Principais resultados dos estudos sobre a formação da ação mental e dos
conceitos”, assim intitulada (NÚÑEZ; OLIVEIRA 2013, p. 289). As questões
11
Artigo de Boris Gindis, o qual avaliou o livro de Haenen (1996), Psychologist in Vygotsky's Footsteps.
33
relacionadas às mudanças cognitivas do desenvolvimento e à origem da mente são
o centro dos seus estudos (STETSENKO; ARIEVITCH, 2008).
Assim, a relação dos diferentes tipos de aprendizagem, as formas de ensino e sua
relação com o desenvolvimento também se tornam importantes, uma vez que:
Sua preocupação era compreender como os conceitos complexos e muito discutidos de mediação e interiorização, apresentados por Vygotsky, poderiam ser instrumentalizados para se organizar um ensino que desenvolvesse os estudantes como personalidades integrais (NÚÑEZ; OLIVEIRA, 2013, p.293).
A respeito do processo de interiorização e desenvolvimento, Galperin (2013d)
demonstrou que havia um problema do método ao se estudar o intelecto do sujeito.
As discordâncias, segundo Galperin, decorriam do método utilizado para pesquisar o
desenvolvimento intelectual do sujeito e propôs uma nova metodologia, a qual o
conduziu à questão do desenvolvimento mental. A esse método denominou
“formação das ações mentais por etapas” (GALPERIN, 2013d, p. 463).
3.2.1 Teoria da Formação das Ações Mentais por Etapas
O processo de internalização da atividade externa para o plano mental foi estudado
por Galperin culminando em sua teoria. Por ação mental entende-se a capacidade
do sujeito de converter um objeto material em uma representação mental, como, por
exemplo, realizar uma divisão, ler uma palavra, distinguir acordes, determinar um
estilo arquitetônico. Essas qualidades que são aprendidas instigaram o teórico a
perguntar: “Como se adquirem no processo de ensino?” (GALPERIN, 2013b, p.441).
E respondeu:
A formação da ação mental passa por cinco etapas: a primeira pode-se denominar a criação de algum (SIC) assim como um “projeto de ação”, a base orientadora com a que depois o sujeito se guia para realizar a ação. Na segunda etapa, se cria de forma material (ou materializada) essa criação, a primeira forma real no sujeito. Na terceira etapa a ação se separa das coisas (ou de suas imagens materiais) e passa ao plano da linguagem em voz alta. Na quarta etapa a ação se realiza mediante a conversação “para si‟, todavia, imprecisa em seus componentes verbais e conceituais. Esta ação no plano da “linguagem para si” na seguinte etapa se transforma em um processo automático, e a consequência dele, precisamente em sua
34
parte verbal se alia à da consciência, assim o processo verbal se converte em um processo oculto e, em seu sentido mais completo, em um processo interno (GALPERIN, 2013c, p. 456).
Embora os momentos descritos por Galperin recebam o nome de etapas, elas não
devem ser vistas como momentos estanques e sim como um processo que quando
ocorre em situações de aprendizagem real podem ser abreviados, combinados ou
até mesmo ignorados. Por isso não é um processo linear e hierárquico, mas algo
que se aproxima do modelo em espiral (ARIEVITCH e HAENEN, 2005). Neste
modelo o processo de aprendizagem avança com melhorias graduais na qualidade
da ação, esta é determinada por Galperin (2013b) como indicadores da qualidade da
ação.
Os indicadores, ou parâmetros da ação estabelecidos por Galperin (2013b) são a
forma da ação, grau de generalização, grau de abreviação, grau de consciência e
grau de controle. A abreviação e o controle também são denominados,
respectivamente, por detalhamento e independência por Núñez (2009). A qualidade
e o resultado da ação internalizada são determinados pelo tipo de orientação dada.
Dessa forma, entende-se que há três momentos funcionais da ação: orientação,
execução e controle.
No momento da orientação ocorre a formação da base orientadora da ação. A
execução contempla as etapas material/materializada, linguagem externa, mental. O
terceiro momento, e não por último, está o controle que é feito por meio dos
parâmetros da ação (GALPERIN, 2013b). Galperin (2013e) não contemplou o fato
motivacional e reconhecia essa deficiência, a qual foi proposta por Talízina (NÚÑEZ,
2009). Esses momentos funcionais que não ocorrem de maneira linear, e sim como
em um ciclo serão descritos a seguir.
3.2.1.1 Momento funcional: orientação
Durante a pesquisa sobre a formação da ação mental por etapas, Galperin e seus
colaborados observaram que a forma da ação e a qualidade final do produto estão
relacionados à qualidade da orientação dada (GALPERIN, 2013a). Deu o nome de
Base Orientadora da Ação – BOA ao “[...] conjunto de condições nas quais os
35
estudantes se orientam durante a execução da ação” (GALPERIN, 2013d, p.466),
disponíveis em uma ficha ou cartão.
Diversos são os tipos de orientação e as pesquisas realizadas mostraram que
podem se reduzidas a três tipos: o primeiro é caracterizado por ter indicadores
isolados, é frágil e incoerente. O caráter orientador não é dissociado da ação em si,
que ocorre por tentativa e erro, fazendo com que o processo de formação da ação
ocorra lentamente. Por não reconhecer os elementos indicadores da orientação –
aqueles que estão presentes em outras ações – há uma análise breve e rasa da
situação. Consequentemente, a orientação torna-se tão específica que em uma
condição semelhante, mas com variantes, vai necessitar de uma nova base de
orientação (GALPERIN, 2013a).
No segundo tipo de orientação, o professor mostra a orientação completa, explica o
significado das orientações e o modo de executar a ação. Para que esta seja correta
é necessário um controle externo bem determinado a fim de evitar que o sujeito volte
aos ensaios e aos erros. Inicialmente, o aprendiz irá comparar cada elemento da
tarefa com a orientação para, em seguida, desenvolvê-la. Posteriormente, a ação
será feita em blocos isolados, com menos erros e menor necessidade de mediação
da BOA. Esse processo se sucede conforme a necessidade de consulta se abrevie,
até o momento em que não mais seja requisitada e a realização da ação se torne
automática. Uma vez no plano mental a ação é realizada com 100% de precisão e a
aplicação a situações possíveis (generalização) dependerá substancialmente da
presença dos elementos idênticos aos assimilados. A habilidade de reconhecer
novos elementos necessários para executar a tarefa não é desenvolvida por esse
tipo de orientação e, por isso, em cada nova tarefa o sujeito passa novamente pelo
primeiro tipo (GALPERIN, 2013a). Esse segundo tipo de orientação é típica do
ensino tradicional (NÚÑEZ, 2009).
A orientação que permite a formação da “[...] habilidade do sujeito para formar
individualmente a imagem orientadora completa da ação” (GALPERIN, 2013a, p.
437) é a primeira diferença do terceiro tipo. Nessa situação, a orientação pode ser
aplicada a um conjunto de tarefas e não a uma específica, sendo, desse modo, a
única orientação que conduz à generalização. Para tanto, é necessário ensinar o
36
aluno a analisar como reconhecer esses elementos em tarefas diferentes dentro de
uma mesma área. Não se trata de deixar que formulem a base de orientações por si
só, mas oferecer elementos para que possam realizar tal análise. Esse tipo de BOA
se caracteriza por se formar de maneira fácil e rapidamente, enquanto a atividade é
assimilada com menor número de erros (GALPERIN, 2013a).
Núñez (2009) cita pesquisas que demonstram as vantagens em trabalhar com a
BOA do tipo III, destacando o tempo necessário para o aprendizado, que é menor do
que nos outros tipos de orientação; a generalização dos conteúdos; a baixa falha na
transferência dos conteúdos em novas situações; a oferta de possibilidades para
realizar um trabalho independente e criativo; e a contribuição para o
desenvolvimento do pensamento teórico dos alunos.
Apesar de o terceiro tipo de orientação ser o mais indicado, no ensino de tarefas
com alto grau de complexidade e novidade, na qual a única maneira de realizá-la é
ter uma orientação específica, se utiliza a BOA tipo I (NÚÑEZ; PACHECO, 1998).
A orientação é a primeira das etapas do processo e estará presente durante todo o
ciclo cognoscitivo. A construção da base orientadora, que se materializa na forma de
fichas, contém brevemente os signos necessários dispostos em colunas e
numerados, e devem ser seguidas rigorosamente no início da ação, até que não
sejam mais necessários. Os signos dados não podem exigir do sujeito
aprendizagem prévia, visto que nessa etapa não há execução de uma ação e, por
isso, não há assimilação (GALPERIN, 2103b).
A ficha proporciona ao sujeito a possibilidade de visualizar a ação inicial, o resultado
pretendido, as ferramentas necessárias para executar a ação, os conceitos
fundamentais, as condições em que as ações ocorrem, o curso das ações, o
controle e a regulação da aprendizagem, podendo os alunos contribuírem na
produção da BOA com os conhecimentos que já possuem (HAENEN, 2001;
ARIEVITCH; HAENEN 2005; STETSENKO; ARIEVITCH, 2008; NÚÑEZ, 2009).
Portanto, a BOA deve refletir todas as etapas da ação: orientação, execução e
controle, embora o uso da mesma ocorra somente na primeira etapa da execução, a
etapa materializada.
37
A fase da orientação foi descrita por Galperin como um momento em que se mostra
ao sujeito a direção da ação. Ele reconhece que em todo o processo – até a
formação mental da ação – há duas deficiências: o aspecto motivacional e tarefas
que contemplem o desenvolvimento do pensamento crítico (GALPERIN, 2013e).
Segundo Núnez (2009), foi Talízina quem descreveu a etapa motivacional,
conhecida como ‘etapa zero’. Esse momento é marcado pela ausência da ação e
introdução de assuntos, pois irá preparar o aluno para assimilar os novos
conhecimentos.
A motivação pode se apresentar como interna, quando os motivos estão
relacionados à busca de conhecimentos – cognitivo – e externos, quando o estudo
está relacionado a outros fins (NÚÑEZ; PACHECO, 1998). Deve-se também
preparar o aluno psicologicamente, observando sua situação de vida, que podem ser
motivadoras ou inibidoras da aprendizagem (NÚÑEZ, 2009).
Ainda que a motivação e a orientação estejam presentes no início do processo de
assimilação da ação, reconhece-se a importância de estar presente também na
etapa funcional, quando a ação é executada.
3.2.1.2 Momento funcional: execução
O momento funcional compreende as etapas em que há execução da ação e esta
pode se apresentar de três formas: material ou materializada, linguagem externa e
mental.
A assimilação de uma ação inicialmente ocorre quando ela se encontra em sua
forma externa, sendo assim a única maneira de ser demonstrada corretamente. “Por
essa razão a forma inicial da ação é necessariamente material” (GALPERIN, 2013b,
p. 442). Nos casos em quem não existem objetos, estes podem ser representados
de maneira que sua reprodução seja fidedigna e contenha as propriedades
essenciais, nesse caso, diz-se que a ação é materializada. Eles, observa Galperin,
devem conter os elementos essenciais evidentes e os nãos essenciais minimizados
para que o aluno não se distraia com os últimos.
38
É na fase material/materializada que o aluno de fato pratica a ação, contudo, por
ainda não desenvolvê-la no plano mental, ele a realizará somente no plano externo.
Em grupo ou em duplas a tarefa deve contemplar situações semelhantes que
ocorrem na vida dos alunos para que os mesmos possam aplicar a solução em
outras situações e assim generalizar o conhecimento obtido. Há também o controle
do professor e a mediação da BOA, como esquema para realizar a atividade. Esta
acontecerá de forma detalhada, perpassando todas as operações da composição da
ação; o aluno deverá manipular o objeto, falar sobre ele, se relacionar com o mesmo
de maneira que posteriormente possa fazer a transição para o plano mental
(NÚÑEZ, 2009; GALPERIN, 2013b).
Por ainda não ter a abstração da ação, o aluno sozinho não tem a habilidade para
controlar a qualidade da mesma, e por isso necessita do auxílio do professor. Esse
controle
[...] por parte do aluno só pode se dar com o auxílio da percepção da situação. É um momento de reflexão e discussão, enquanto a atividade é realizada. É necessário incluir tarefas que reflitam os casos típicos de aplicação da atividade para garantir sua generalização, evitando-se nesse momento, tarefas idênticas, pois podem conduzir a uma automatização prematura (NÚÑEZ, 2009, p. 107).
Ao se desenvolver, a ação sofre duas variações; a primeira está relacionada à
aplicação dos elementos essenciais a outras situações possíveis, ou seja, à
generalização. A segunda variação está relacionada à redução; quando o aluno
solicita menos ajuda, realiza a ação com menos passos, de forma mais automática,
denominada abreviação (GALPERIN, 2013b). Quando a presença física e a
manipulação dos objetos não são mais necessárias, os sujeitos passam para um
nível mais complexo da ação, fase da linguagem externa.
Nessa fase, os objetos não estão mais presentes e serão representados por
sistemas simbólicos. Os alunos, ainda em pares ou em grupos, se necessário
controlados pelo professor, realizam as ações que ocorrem por meio da linguagem,
escrita ou oral (NÚÑEZ, 2009).
39
Inicialmente, a linguagem se apresenta como um reflexo de toda a ação que
anteriormente foi realizada com o material ou sua representação. Gradualmente, o
estudante dará significado às palavras e aos poucos substituirá a representação
material pela linguagem verbal ou pela escrita. Esta se configura como um
instrumento para assimilar a ação e, por isso, percebem-se três mudanças
essenciais nessa fase: a ação verbal deixa de ser somente um reflexo da ação
executada com o objeto e passa a ser um meio de comunicação com o outro,
consequentemente torna-se um fenômeno da consciência social e, devido a isso, a
ação inicialmente é interpsicológica.
Em segundo lugar, o conceito compõe a base da ação, ou seja, o aluno aprende o
conceito de um assunto e consegue extrapolar para os correlatos, por exemplo, “É
muito mais fácil contar 100 objetos que três, porém, o conceito de “cem” não é mais
difícil que o conceito de “três” (GALPERIN, 2013b, p. 445, destaque do autor)”.
A terceira mudança é a consequência da correta assimilação da ação; esta
gradualmente é realizada em menos passos, reduzida, até que se transforma em
uma “ação por fórmula”. Se ensinada corretamente, a mesma será realizada de
maneira consciente e a ação não é executada com o objeto. É nesse momento que
a fala será direcionada para o falante, para si; por conseguinte, entra-se na etapa
em que a ação passa para o plano intrapsicológico e terá sua forma mental
(GALPERIN, 2013b).
Na terceira etapa do momento funcional da execução da ação há mudança na
essência do processo, uma vez que nela a linguagem como comunicação é
substituída pela tarefa de reflexão, na qual o sujeito fala para ele mesmo. Dessa
maneira, a linguagem transforma-se no objeto de análise, o qual inicialmente era
material ou materializado (GALPERIN, 2013b). Essas duas mudanças essenciais
sinalizam a etapa mental, última do processo de execução da ação.
Nessa fase, “[...] a linguagem interna (nova estrutura psicológica) se transforma em
função mental interna e proporciona aos alunos novos meios para o pensamento”
(NÚÑEZ, 2009, p.114). Assim, a ação torna-se abreviada e posteriormente
consciente, sendo somente o produto final dessa ação revelado e, portanto,
40
percebido; não há presença do material ou sua materialização, consulta à BOA, tão
pouco controle do professor. A consciência da ação torna-se uma das propriedades
desta e, juntamente com a generalização, redução e assimilação, formam um
sistema de indicadores da qualidade da ação (GALPERIN, 2013b) que auxiliará o
professor e o aluno no processo de controle.
3.2.1.3 Momento funcional: controle
Este terceiro momento funcional refere-se ao controle da ação, o qual está
direcionado ao acompanhamento da ação, à correção e comparação dos resultados
obtidos utilizando a BOA como modelo. O controle junto com as etapas de
orientação e execução não pode ser visto como um momento isolado, pois “[...]
integram as etapas da teoria de Galperin, que formam ciclos cognoscitivos numa
espiral dialética de desenvolvimento intelectual dos estudantes (NÚÑEZ; OLIVEIRA,
2013).”.
Durante o processo de assimilação percebe-se o controle quando a ação muda sua
forma e, consequentemente, o aluno recorre menos ao professor ou aos seus pares,
à BOA, à fala externa, à fala para si, até que a ação se torna consciente e, por fim,
automática. Estas propriedades são definidas por Galperin (2013b) como
indicadores de qualidade da ação. Núñez (2009; NÚÑEZ; OLIVIERA, 2013) nos
ajuda a compreender esses parâmetros que ele e Talízina descreveram como
primários: São eles:
a) Forma pela qual a ação se realiza: é o plano na qual a ação ocorre. Se a
mesma acontece por meio da manipulação dos objetos, a ação ocorre no plano
material. Se o objeto da ação deixa de ser o material e passa a ser representado
pela forma verbal externa, oral ou pela escrita, então, será a segunda etapa do
processo, fase verbal. A terceira etapa é a forma superior na qual o aluno realiza
para si a ação, em uma representação mental.
b) Grau de generalização: é a habilidade em compreender o essencial para a
ação, seus aspectos mais simples, e extrapolar para outras situações em que são
possíveis de aplicação. Generalizar só é possível se a orientação inicial é do terceiro
41
tipo (GALPERIN, 2013b). Núñez (2009) traz o entendimento de generalização
baseado em Talízina, que a entende como a relação entre as situações em que o
aluno aplicou a habilidade adquirida e as possíveis situações em que elas são
aplicadas.
c) Grau de abreviação ou detalhamento: inicialmente o estudante tem a
necessidade de passar por todos os passos da ação para alcançar o resultado final,
ou seja, de maneira detalhada. Na medida em que percebe uma ação estereotipada
nas quais os dados iniciais mostram sempre um mesmo resultado específico,
deixam de reproduzir tal ação, pois já conhecem o resultado final. Esse processo é
chamado de redução (GALPERIN, 2013b).
Por esse motivo o aluno deixa de utilizar a ficha de orientação, presença do material
ou sua representação, controle do professor e a fala externa, tornando a ação
abreviada. Logo, o aluno passa a executar a ação com mais rapidez e de maneira
automatizada (GALPERIN, 2013b).
d) Grau de consciência: refere-se à possibilidade do estudante realizar
corretamente a ação e explicar verbalmente o que faz e por que (NÚÑEZ;
OLIVEIRA, 2013). Nesse momento ele não só tem consciência da ação como
também sabe que sabe.
Na necessidade de explicar e argumentar o que se faz para comunicar a outra pessoa, será imprescindível a utilização da linguagem verbal em sua forma oral ou escrita, e é precisamente esta a tradução de uma lógica da ação para uma lógica dos conceitos, o que contribui para garantir que a ação seja consciente (NÚÑEZ, 2009, p. 122).
e) Grau de controle ou independência: é atribuído à possibilidade de o aluno
desempenhar uma ação com ou sem ajuda. Por todo exposto, a ação é iniciada no
plano material e coletivamente para gradualmente ser interna e individual. Todo esse
processo das etapas que se iniciou no plano concreto, passando pela linguagem até
chegar ao plano mental, com ações coletivas e orientadas que gradualmente
tornaram-se independentes, conscientes e individuais tem proximidade aos estudos
de Vigotski quanto à Zona de Desenvolvimento Iminente (ARIEVITCH e HAENEN,
2005).
42
É por meio do controle que “[...] obtém-se a informação necessária para a correção
das ações que os alunos executam e para a correção do próprio sistema”
(TALÍZINA, apud NÚÑEZ, 2009, p. 201). Nesse processo não deve se considerar
somente o resultado da aprendizagem, mas também a aquisição de conhecimentos
e a formação de novas propriedades psíquicas.
Assim, não basta atribuir somente uma nota, é importante retroalimentar o aluno
mostrando seus êxitos e dificuldades com o intuito de que o mesmo possa aprender
com os próprios erros. O controle se caracteriza como uma ajuda ao estudante que
o estimulará a ter consciência dos próprios erros e os motivará para o estudo,
promovendo futuramente um autocontrole (NÚÑEZ, 2009).
Para tanto, é necessário que as tarefas sejam organizadas em uma sequência de
atividades que devem ser corrigidas e comentadas pelo professor e devolvidas aos
alunos para que possam refletir sobre a causa dos erros. Essa reflexão deve ser
escrita para ser entregue posteriormente ao professor e ele analise novamente em
um processo cíclico.
Núñez (2009) atenta para a necessidade de diferenciar controle de avaliação. O
primeiro ocorre a todo momento, enquanto o segundo ocorre em um tempo
diferenciado. A avaliação está inserida no controle final do processo e deve
considerar os objetivos traçados e os critérios qualitativos estabelecidos, que serão
relacionados aos quantitativos. Pode ser realizada utilizando provas escritas, orais,
atividades práticas, desde que o instrumento seja familiar ao aluno e que seu
conteúdo suscite a tomada de decisões e a formulação de juízos, entre outros.
Como é possível perceber, a Teoria das Ações Mentais por Etapas “[...] objetivava
organizar e estruturar o ensino de forma tal que favorecesse a aprendizagem de
conceitos teóricos e científicos com potencial para o desenvolvimento do
pensamento das crianças” (NÚÑEZ; OLIVEIRA, 2013, p. 293). Dessa maneira, serão
apresentadas no item seguinte algumas pesquisas que se fundamentaram na teoria
de Galperin e ulteriormente o percurso metodológico.
43
3.3 O QUE DIZEM OS PESQUISADORES EM SUAS PESQUISAS
É uma pretensão pensar que esse tópico será o “estado da arte” sobre as produções
acadêmicas nas quais a Teoria das Ações Mentais por Etapas foi de alguma
maneira utilizada. Desde já reconhecemos nossa limitação e esclarecemos que os
estudos trazidos representam parte de um todo desconhecido. Foram encontradas
duas teses, uma dissertação da Teoria de Galperin na área de educação; alguns
artigos também foram encontrados, sendo um selecionado devido à semelhança do
tema estudado nesta pesquisa.
A tese de Bassan (2012) parte da hipótese de que a teoria proposta por Galperin é
um dos caminhos para que ocorra o processo de humanização dos estudantes na
sua vida acadêmica. Para averiguar sua hipótese, ela estabeleceu como objetivo
geral “evidenciar as possibilidades metodológicas da Teoria da Formação por
Etapas das Ações Mentais de Galperin para a organização da atividade de ensino
voltada à humanização do estudante” (BASSAN, 2012, p. 14).
A metodologia utilizada nessa pesquisa baseou-se em um estudo de caso realizado
durante seu próprio mestrado, aliado a estudos de qualidade teórica. Embora tenha
acompanhado a prática de oito professoras da 1ª e 2ª séries, há reflexão de apenas
uma dessas professoras. Essa professora foi selecionada por se destacar entre o
grupo de docentes pelo número de produções escritas dos seus alunos.
Embora a referida professora não tivesse conhecimento da Teoria das Ações
Mentais, Bassan encontrou elementos em sua prática que pudessem ser
relacionados a ela nas fases de orientação e execução da tarefa. Pelo resultado da
produção dos alunos, a autora concluiu que a Teoria da Formação por Etapas das
Ações Mentais é um método de ensino possível que viabiliza a humanização do
estudante como sujeitos críticos, capazes de solucionar problemas.
Pereira (2013, p. 31) pesquisou em sua tese
A formação da habilidade de interpretar gráficos cartesianos como parte do conhecimento profissional, desenvolvida por meio de um Sistema Didático que toma como referência as etapas da Teoria da Formação por Etapas das
44
Ações Mentais e dos Conceitos de P. Ya. Galperin, constitui-se como um processo de aprendizagem que garante a assimilação da orientação do sistema de operações ao nível mental, de forma sólida, com alto grau de generalização, independência, e consciência e com alto poder de transferência a novos contextos.
Para tanto, optou por um estudo de intervenção por meio de uma experiência
formativa, cujo objetivo foi, baseado na Teoria de Galperin, “[...] Organizar,
desenvolver e estudar o processo de formação da habilidade de interpretar gráficos
cartesianos [...]” (PEREIRA, 2013, p.31). Teve como sujeitos de pesquisa seis
estudantes de Licenciatura em Química da Universidade Federal do Rio Grande do
Norte.
O autor fez uma atividade diagnóstica; nela forneceu a equação da decomposição
da água oxigenada e o gráfico referente ao processo. Solicitou aos alunos que
escrevessem o máximo de informações que pudessem obter a partir da
interpretação do mesmo. O pesquisador constatou que todos os participantes tinham
um baixo nível de desenvolvimento da habilidade para interpretar e generalizar
gráficos cartesianos.
Na etapa motivacional, Pereira (2013) promoveu um debate entre os pesquisados e,
para envolvê-los, apresentou dados de quinze pesquisas sobre as dificuldades de
interpretar gráficos. Dessa forma os licenciandos poderiam comparar as próprias
dúvidas e gerar um debate, intenção inicial do pesquisador. Essa estratégia
estimulou os alunos a realizar a tarefa por escrito de situações-problemas
relacionadas à futura atividade profissional, na qual a interpretação dos gráficos os
ajudaria.
Assim, procedeu-se à etapa de construção da Base Orientadora da Ação com a
participação do pesquisador, alunos e professor da disciplina. Para isso, o
pesquisador instigou os discentes a dialogarem sobre como procurar a maior
quantidade de informações em um gráfico para solucionar um problema. Eles
deveriam pensar de maneira geral, e não em caso específico, assim formariam a
BOA do tipo III, ou seja, generalizada.
45
Finalizada a etapa e uma vez compreendida por todos, iniciou-se a etapa
materializada. Com o auxílio da BOA e em duplas foram propostas resoluções de
problemas distintos, mas com as mesmas exigências. A tarefa possibilitou que a
ação fosse compartilhada com o colega, trabalhando dessa forma o plano
interpsicológico. Ao final da fase materializada o pesquisador notou que o número de
erros caiu no decorrer da etapa, mas no decorrer da pesquisa percebeu que
algumas das dúvidas foram recorrentes.
Na etapa seguinte, linguagem externa, a BOA não estava mais disponível, mas as
duplas permaneceram. As tarefas eram do mesmo tipo da fase anterior, porém a
maneira de resolver foi modificada. Nela os alunos resolviam a questão em voz alta
para que o outro pudesse ouvir sua resposta, e interferir se fosse necessário e fazer
correções. Nessa fase, a ação é caracterizada como verbal, na qual a atividade
gradativamente passa do plano interpsicológico para o intrapsicológico.
Uma vez no plano psicológico, a atividade passa ser realizada no plano mental. Para
esta foi proposto um número menor de tarefas e se esperou que elas fossem
resolvidas individualmente e no pensamento. O desenvolvimento da habilidade
também foi verificado no controle final por tarefas, com o objetivo de averiguar se o
educando foi capaz de assimilar e transferir o método para outro contexto. Nessa
atividade havia um item não trabalhado nas tarefas anteriores e que exigiu deles um
raciocínio mais complexo.
Quatro meses depois o pesquisador realizou nova tarefa com a finalidade de
confirmar a assimilação da interpretação de gráficos cartesianos pelo grau de
solidez. Com base em uma situação-problema complexa os alunos deveriam
interpretar os gráficos e redigir por meio de texto um novo item acrescentado e não
trabalhado anteriormente. O resultado demonstrou que todos resolveram o problema
com mais de 80% de compatibilidade com a chave de respostas propostas,
corroborando com sua tese inicial.
A dissertação de mestrado profissional desenvolvida por Jesus (2014) teve como
hipótese a contribuição positiva e potencializadora dos materiais pedagógicos na
(des)construção do pensamento geométrico do aluno surdo. Esta foi verificada com
46
base no objetivo principal de “analisar a (des)construção do Pensamento
Geométrico de uma aluna surda com o uso de Materiais Pedagógicos” (p. 24).
Nesse estudo, a autora teve como foco o processo de ensino-aprendizagem
referente ao Pensamento Geométrico de uma aluna surda, Lia. As tarefas realizadas
com a aluna em questão, bem como análise dos resultados foram pautadas na
Teoria das Ações Mentais.
Assim como Pereira (2013), Jesus realizou o diagnóstico para investigar o
conhecimento prévio de Lia, juntamente com o intérprete, todos sujeitos da
pesquisa. Percebeu que a aluna demonstrou conhecimentos sobre a diferença entre
figuras planas e espaciais e, em parte, sobre a quantidade de lados e ângulos de
uma figura. Entretanto, não soube o significado da palavra polígono, tão pouco a
nomenclatura dos mesmos.
Jesus (2014) depreendeu que as dúvidas de Lia estão relacionadas ainda aos
conceitos básicos, mas elaborou um plano de ensino com conhecimentos mais
profundos para que a aluna pudesse acompanhar seus pares. Esta é uma
reivindicação da comunidade surda, ter acesso a mesma qualidade de informações
dos alunos ouvintes. Para isso, elenca os seguintes “[...] temas: figuras planas e
tridimensionais, nomenclatura de polígonos, propriedade dos polígonos, simetria,
diagonais e ângulos de um polígono, composição e decomposição de figuras,
visualização” (JESUS, 2014, p.98).
Após o diagnóstico, iniciou-se a fase motivacional utilizando o Tangram como
material pedagógico. A pesquisadora, ao comparar as peças do jogo aos elementos
tridimensionais presentes na sala na qual se encontram, foi surpreendida pela fala
da aluna que a fez refletir sobre sua postura ao ensinar:
[...] “figura plana, só no chão?”. Nesse momento refleti e percebi que sempre que me referia a uma figura plana eu fazia um movimento na horizontal e isso pode ter induzido a aluna a pensar que figuras planas só podem estar na horizontal ou no “chão” como ela afirmou. Foi necessário refletir por alguns instantes sobre todas as vezes que utilizei essa estratégia para, assim, (des)construir meu olhar sobre as estratégias anteriores e buscar novas alternativas para construir esse novo conhecimento, não só para a Lia, mas para mim e para Felipe que acompanhava a atividade (JESUS, 2014, p.100).
47
Foi nesse momento que ocorreu a (des)construção do pensamento geométrico para
todos os envolvidos na pesquisa. Esse movimento tem continuidade na tentativa de
demonstrar a diferença do plano e o tridimensional. Assim continua Jesus:
Após reflexão sobre minhas ações, pedi para Lia visualizar os azulejos da sala de aula e os cartazes afixados nas paredes e perguntei se existia alguma diferença entre os azulejos da parede e do chão. A aluna afirmou que não. Fiz a mesma pergunta sobre os cartazes colados nas paredes (vertical) e o papel que estava em cima da mesa na horizontal, conforme ilustrado na figura 24 e 25. Ela também respondeu que eram iguais. Nesse instante, explicamos a ela que apesar de estarem em locais diferentes, um na horizontal ou no plano do chão e outro na vertical, eles são iguais e são planos, pois apresentam apenas duas dimensões (JESUS, 2013, p. 100).
Nessa etapa motivacional percebeu-se que a criticidade de todos os sujeitos
envolvidos foi requisitada e colocou a aluna na posição de autora do processo
ensino-aprendizagem. Com essa motivação diversas tarefas foram realizadas,
algumas perpassando todas as etapas descritas por Galperin e outras com parte
delas. Jesus ressalta que é ao percorrer esse caminho que o professor tem a
oportunidade de conhecer quais são as estratégias utilizadas pelo aluno para
compreender a ação efetuada e assim avaliar se a ação é consciente ou não.
Em suas conclusões, a pesquisadora verificou que a aluna passou a se preocupar
mais com o processo da resolução de um problema do que com o resultado final,
contribuindo para uma formação mais consciente das ações realizadas. Tal fato
mostrou que a aplicação da Teoria das Ações Mentais com alunos surdos se
apresenta como uma possibilidade teórico-metodológica a ser realizada, e que o
material pedagógico foi um instrumento mediador que potencializou positivamente a
(des)construção do pensamento geométrico, confirmando a hipótese levantada no
início da pesquisa.
O artigo de Karpov (2013) refere-se a uma pesquisa realizada nos Estados Unidos
com um grupo de professores, alunos de pós-graduação, os quais deveriam aplicar
as aulas previamente planejadas a alunos da rede pública de ensino.
Para tanto, três disciplinas foram selecionadas: Ciências, Matemática e História. A
seleção desta baseou-se no desempenho dos alunos, índice que não alcançava o
48
avançado, segundo a avaliação nacional. Por interesse deste estudo trataremos
apenas das duas primeiras disciplinas.
Para a disciplina de Ciências, os alunos do 5° ano deveriam classificar os animais
vertebrados conforme sua classe taxonômica – peixes, répteis, anfíbios, aves e
mamíferos. Como etapa motivacional foram mostradas diversas figuras de animais
aos alunos, incitando-os com a indagação: "Como identificar que tipo de animal
vertebrado é este?”. Ao mostrar as respostas corretas, o professor deixou os alunos
surpresos, conduzindo-os à pergunta: O que faz um pássaro ser um pássaro?
Para responder essa pergunta, o professor deveria fornecer em uma ficha os
conceitos necessários e, baseados neles, elaborou junto aos alunos um mapa
conceitual. Novamente as figuras de animais foram mostradas e, utilizando-se do
mapa conceitual, os alunos deveriam classificar os animais. Em um dos casos, o
docente percebeu a aula como um sucesso pois, embora alguns alunos tenham
incialmente errado a resposta, quando solicitados que a revissem, conseguiam
corrigir fundamentando cientificamente as próprias respostas.
Dos 54 professores participantes, 37 apresentaram relatos semelhantes mostrando
o sucesso da lição aprendizagem teórica; onze professores disseram ter sido bem
sucedidos, mas que havia algumas reservas; e seis professores sentiram sérios
problemas ao executar a lição.
Na disciplina de Matemática, os alunos de 7º grau deveriam identificar os tipos de
formas quadriláteras. Para tanto, tiveram como fator motivacional a seguinte
pergunta: Como identificar que tipo de quadrilátero é este? O professor desenhou na
lousa um quadrado e solicitou que os estudantes o nomeassem. Ao ter a resposta
correta retrucava dizendo se a figura poderia ser chamada de losango ou
paralelogramo. A discussão em seguida afetou emocionalmente os alunos, os quais
se sentiram motivados a buscar as respostas. Essa oportunidade foi a abertura
necessária para que o professor introduzisse os novos conceitos que seriam
necessários para responder tal questão.
49
Em seguida, alunos e professor elaboraram um mapa conceitual que foi testado
pelos alunos. Em duplas, enquanto um resolvia um problema utilizando-se do mapa,
o outro colega deveria monitorar a tarefa e observar se o primeiro a desenvolvia
corretamente, depois trocavam o papel.
Os relatórios dos professores mostraram resultados positivos para 19 dos 36
professores que participaram no estudo; onze deles relataram uma lição bem
sucedida com certas reservas e somente seis professores assentiram problemas ao
executar a lição.
Karpov (2013) concluiu que a proposta de Galperin resulta na melhoria da
aprendizagem dos estudantes americanos e a mesma pode ser facilmente
incorporada ao currículo tradicional.
50
4 TRAJETÓRIA DA PESQUISA
Este capítulo tem como foco caracterizar os participantes da pesquisa, o local e as
estratégias utilizadas para alcançar os objetivos propostos. Após a exposição do
local e dos personagens envolvidos (3.1), descreveremos o planejamento da
pesquisa (3.2), seguido do desenvolvimento da experiência de intervenção (3.3),
finalizando com a proposta da análise dos dados (3.4).
4.1 PARTICIPANTES E LOCAL DA PESQUISA
A necessidade em descrever os critérios pela escolha da escola me fez perceber
que eles foram direcionados pela minha trajetória profissional. Por isso, ao descrever
o local e os participantes, é preciso alertar que haverá alguma presença dessa
relação.
A escola pertence à rede pública estadual e se localiza na Grande Vitória/ES. Iniciou
suas atividades em 1973 e atualmente atende as modalidades regular, educação de
jovens e adultos – EJA, e técnico. A primeira modalidade contempla o ensino
fundamental e médio, é ofertada nos turnos matutino e vespertino, enquanto as duas
últimas no turno noturno. Muitos alunos que estudam à noite são pais ou avós dos
alunos que estão cursando o ensino regular, como aponta o Projeto Político
Pedagógico12 (2015) da instituição.
A maioria das pessoas é de classe média baixa, nascidos no município ou
imigrantes dos estados da Bahia, Minas Gerais e Rio de Janeiro. Moram no próprio
bairro da escola ou em bairros vizinhos, sendo alguns destes formados por
invasões. Embora o bairro seja formado por uma população composta por
funcionários públicos ou de pequenos empresários, os alunos trabalhadores ou seus
pais são operários do terceiro setor, além do setor público.
12
O projeto é um documento público que pode ser consultado quando requisito. Porém o mesmo não será listado nas referências para que a escola não seja identificada, nem os participantes da pesquisa.
51
A escola tem capacidade para atender 1400 alunos, embora não tenha alcançado tal
quantidade. As salas podem conter até 40 estudantes, enquanto a média é de 25. A
equipe é formada ao todo por uma diretora, 4 coordenadoras, 3 pedagogas, 11
auxiliares de secretaria, 12 auxiliares de serviços gerais, 3 estagiários e 47
professores (PROJETO POLÍTICO PEDAGÓGICO, 2015).
Parte do corpo docente é concursada e parte dos professores contratados todo
início de ano. Participei desse processo seletivo nos anos de 2010 a 2014, e
trabalhei nessa escola entre os anos de 2010 e 2012. Durante o período, fui
professora de Ciências dos anos finais do ensino fundamental nos primeiros dois
anos e no último também lecionei na EJA a disciplina de Biologia.
Nos anos de 2011 e 2012 tive uma aluna cujo irmão mais novo, na época dos anos
iniciais do fundamental, ia constantemente à sala em que ela estava para pedir
ajuda. Às vezes, chegava chorando, outras vezes tímido, às vezes enérgico..., mas
toda semana lá estava ele, solicitando a irmã. Em conversa com ela, soube que ele
tinha uma síndrome, segundo ela raríssima, e, por isso, estava sempre o ajudando.
Saí da escola e retornei em 2015, dessa vez como pesquisadora. Enquanto
conversava com professores, coordenadores e pedagoga, ele me viu e gritou:
- Ei, tia! (abriu um sorriso). Cheguei próximo a ele e perguntei se lembrava de
mim, o qual respondeu prontamente:
– Lembro, sim! Explicando em seguida: Lembra que eu estudava no prédio
de lá? (referia-se ao andar que estuda os anos inicias do fundamental) Agora estou
aqui, ó (apontando para as salas no primeiro andar) e depois eu vou pra de manhã!
(horário em que a irmã estuda, cujo nível é o médio) E depois eu vou fazer
faculdade13.
A minha intenção era pesquisar juntamente outra criança, mas Filipe me cativou e
assim propus a ele e a família esta pesquisa.
13
Todos os diálogos, entrevistas e anotações do diário de bordo foram destacados com a fonte itálica.
52
Filipe tem 14 anos e está cursando a 7ª série, ou 8° ano no ensino de 9 anos no. É
um ano mais velho do que os alunos que estão seriados, pois foi reprovado no ano
anterior. Conhece bem todos da escola, desde o vigia à coordenação, uma vez que
lá está desde a 3ª série ou 4° ano dos anos iniciais do ensino fundamental.
Compará-lo com outros meninos parece ser uma cilada, embora não saiba como
fazer de outra maneira. Assim, Filipe tem estrutura corporal compatível aos seus
pares, é curioso, procrastina as tarefas escolares, articula junto aos professores, se
distrai com facilidade durante as aulas, adora educação física, tudo como seus
colegas. Um olhar mais cuidadoso perceberia algumas nuanças como o dedo
mindinho da mão esquerda atrofiado, menor mobilidade do pescoço, imaginação
aguçada, dificuldade na leitura e na escrita por meio de palavras e com grande
afinidade com jogos virtuais. Fenotipicamente Filipe se assemelha aos demais
alunos, porém há um pequeniníssimo detalhe em seu genótipo que apresenta um
cromossomo a mais no par de número 8, conforme laudo médico (ARQUIVO DA
ESCOLA). Esse detalhe acarreta a Síndrome de Warkany descrita no segundo
capítulo, cujas características são basicamente genéticas e genéricas. Assim,
esperamos que no decorrer do texto possamos conhecê-lo melhor.
Atualmente, Filipe é aluno das professoras Antônia e Juliana, que lecionam
Matemática e Ciências, respectivamente. A primeira conhece o aluno desde que o
mesmo estava nos anos inicias do ensino fundamental, bem como sua família,
embora esta seja a primeira vez que o tem como aluno. A respeito dos discentes
com necessidades especiais, em anos anteriores, por um período de dois anos,
trabalhou com alunos deficientes mentais e outros com altas habilidades e com
superdotação. Sua atuação está relacionada à sua formação, a qual inicialmente foi
Matemática, seguida de uma especialização em Educação Especial e um curso
voltado para altas habilidades. Antônia também é formada no antigo curso de
magistério. Iniciou sua carreira profissional em 1998 nos anos inicias do ensino
fundamental e em 2000 ingressou na atual rede de ensino como contratada
temporária, efetivando-se em 2008 (ENTREVISTA14, 2015).
14
Entrevistas realizadas com os participantes da pesquisa durante a realização da mesma.
53
Juliana tem sua formação voltada para a área das Ciências. É técnica em química e
licenciada em Ciências Biológicas com especialização em Educação Ambiental.
Ingressou na rede de ensino em 2003 e, assim como Antônia, efetivou-se em 2008,
porém chegou à escola há dois meses devido a sua remoção. Ambas trabalharam
em uma mesma escola de outra rede de ensino e, assim, já se conheciam; todas as
outras pessoas da escola são novidades para Juliana, inclusive a turma em que
Filipe estuda (ENTREVISTA, 2015).
Essa turma, 7ª série/8° ano, é composta por 23 alunos, porém um deles não
frequentou as aulas durante a realização da pesquisa. Como toda turma, esta
também é bastante heterogênea e apresenta diversidade de faixa etária, cor, credo,
aptidão, afinidade, dificuldade e necessidades. Há uma surda, uma cadeirante, um
Síndrome de Warkany, um tímido, um nervoso, o que bate, o que apanha...., enfim,
jovens que convivem e demonstram as questões naturais da idade e dos
acontecimentos da vida.
A turma está sob a orientação pedagógica de Elisa, que teve seu ingresso na escola
no final de 2010, quando se efetivou em 2008. Apesar de atualmente estar somente
em uma rede de ensino, já atuou tanto na rede pública quanto privada como
professora. Atualmente, além da função de pedagoga, tem uma pequena carga
horária nos anos inicias do ensino fundamental para auxiliar as crianças no processo
de leitura. Iniciou sua carreira no magistério na década de 90, e na década seguinte
fez graduação em Pedagogia, seguida de uma especialização em Psicopedagogia
(ENTREVISTA, 2015).
Esta é uma apresentação dos participantes desta pesquisa, almejando que não seja
uma mera descrição deles, mas compreendendo que tão pouco alcançarei a
totalidade de cada um. Foi breve e, por certo, superficial, dada a complexidade de
cada ser humano, construída ao longo dos anos e cuja história será sempre singular.
Devemos ter em mente que muitos personagens não aparecerão ao longo desta
dissertação, como merendeiras, auxiliares gerais, alunos de outras turmas, outros
professores, bibliotecária, secretárias, cantineiro, vigias, coordenadores, enfim,
pessoas que possuem contato com Filipe, mas que por questão de delimitação da
54
pesquisa não integrarão este estudo. Eles influenciam a formação de Filipe? É
possível, já que estamos realizando um trabalho sob a perspectiva histórico-cultural.
Todavia, devido a nossas limitações, restringiremos nossos participantes ao aluno, à
família, à turma do 8° ano, à pedagoga, às professoras de Matemática e Ciências e
à própria pesquisadora, sendo o aluno nosso sujeito central de estudo.
4.2 PLANEJAMENTO PARA A INTERVENÇÃO
A estrutura do processo de intervenção teve como norteador a organização do
processo de ensino15, disposto por Núñez (2009) a partir das ideias de Vigotski,
Galperin e Leontiev. A proposta é definir os objetivos a serem alcançados, as
atividades a serem desenvolvidas e os critérios envolvidos em cada um desses
itens.
O primeiro elemento dessa organização são os objetivos do ensino que irão
orientar a seleção dos conteúdos, métodos de ensino e a forma de avaliação. Os
critérios para a escolha dos mesmos têm diferentes níveis, como sistema nacional,
estadual, municipal, de uma área de conhecimento, da disciplina em questão. A
escolha desses objetivos obedeceu ao currículo básico comum do Estado e o plano
de aula das professoras, bem como a definição dos conteúdos. Seguir as diretrizes
dos órgãos competentes é um dos princípios elencados por Talízina para definir os
objetivos gerais de uma disciplina (NÚÑEZ, 2009).
Junto ao grupo de pesquisa “Educação Matemática, História e Diversidades” do
IFES, buscamos transformá-los em objetivos de aprendizagem, conforme propõe
Núnez (2009, p. 158) “o professor deve converter os objetivos de ensino em
objetivos de aprendizagem, isto é, componentes da atividade de aprendizagem, de
forma tal que não se transformem em imposição para o aluno”. Para tanto, tivemos
como norte em nossos debates a seguinte questão: Qual o objetivo do ensino e
como o aluno aproveitará tal conhecimento?
No período do planejamento das professoras, dialogamos sobre os assuntos que
seriam abordados no terceiro semestre letivo. Como a pesquisa teve início quando
15
Os destaques quanto a estruturação do sistema didático foram realizados pela autora a fim de salientar os passos listados por Núñez (2009).
55
um assunto já havia sido abordado e as observações que estavam sendo feitas não
contemplavam a introdução do mesmo, decidimos pelo assunto que viria a seguir;
no caso de Matemática geometria plana, e em Ciências pele e seus anexos.
Por não saber o grau de comprometimento cognitivo do aluno, ressaltamos que na
literatura médica pessoas com Síndrome de Warkany são descritas com deficiência
intelectual, optamos pelo essencial do conteúdo e, se com o desenvolvimento das
tarefas percebêssemos que era possível ir além, o faríamos. Desse modo, os
objetivos dentro de geometria plana foram:
a) Nomear as formas geométricas, a fim de contextualizá-las em suas atividades
diárias;
b) Diferenciar as formas geométricas, para compreender a funcionalidade das
mesmas nos objetos utilizados no dia a dia;
c) Classificar algumas formas geométricas quanto ao ângulo e ao lado, para que
possa diferenciar as formas e a partir delas criar outras.
E em Ciências:
a) Identificar a pele e seus anexos, com a finalidade de conhecer melhor o corpo
humano.
b) Descrever a função da pele e seus anexos, com o intuito de reconhecer nos
estudos científicos a aplicação prática dos mesmos.
Tendo definidos os objetivos a serem alcançados e os conteúdos a serem
trabalhados, o próximo passo consistiu em realizar um diagnóstico do nível inicial
de conhecimento do aluno, segundo elemento proposto por Núñez (2009) para a
estruturação do ensino.
O diagnóstico inicial não teve a intenção de mostrar se o aluno tem pré-requisitos
para a compreensão do conteúdo que será trabalhado, e sim ter como ponto de
partida os conhecimentos por ele demonstrados. É durante o diagnóstico que o
professor pode avaliar o grau de desenvolvimento de uma habilidade, no nível Real
e Proximal, como descrito na Psicologia Histórico-Cultural (NÚÑEZ, 2009). Os
critérios elencados para a construção dessa atividade basearam-se em duas ideias:
56
condução do professor e resposta do aluno. A primeira deve permitir que o aluno
expresse suas ideias e concepções antes da assimilação do novo material; a
segunda leva em consideração três níveis de desenvolvimento:
a) domínio do conceito; b) o domínio do procedimento, que em relação ao conceito representa a
habilidade como a atividade a ser formada; c) os parâmetros qualitativos da ação (NÚÑEZ, 2009, p. 166).
Tal atividade foi realizada entre os dias 19 e 27 de outubro utilizando o diálogo com
base em perguntas sobre uma figura que representasse uma situação cotidiana, no
caso de Matemática, e de uma sequência de fotos para o ensino de Ciências
(APÊNDICES A e B). As perguntas de Ciências foram feitas de maneira ilustrada
para verificar como seria a compreensão do aluno, uma vez que ele não interpreta a
escrita (APÊNDICE C), já as perguntas de Matemática foram escritas e lidas pela
pesquisadora. A formulação das questões foi feita pela pesquisadora e as imagens
utilizadas foram retiradas de um site de busca. A análise do diagnóstico foi realizada
com base em parâmetros qualitativos da ação (APÊNDICE D).
Com as respostas do aluno foi estruturado o conteúdo, terceiro elemento para o
planejamento do ensino, que responde à “[...] seguinte pergunta: o que se ensinar?”
(NÚÑEZ, 2009, p.166). Para essa situação, é importante que se ofereça ao aluno
não só os conteúdos previstos, mas toda a bagagem necessária para sua formação,
assegurando que as habilidades exigidas pelas escolas sejam formadas, como
também a capacidade de aplicá-las em situações diversas de maneira crítica o que
foi assimilado. Ademais, se faz necessário gerenciar a disciplina para que não
aumente seu volume (NÚÑEZ, 2009; NÚÑEZ; RAMALHO; ALBINO, 2013).
As tarefas propostas são caminhos para estimular atitudes criativas, independência
cognoscitiva e formar qualidades da personalidade do aluno que estejam
relacionadas aos objetivos estabelecidos (NÚÑEZ, et al., 2013). Esse sistema de
tarefas foi elaborado tendo como base teórico-metodológica a Teoria das Ações
Mentais por Etapas e coletado das observações e entrevistas realizadas com o
sujeito da pesquisa, professoras e pedagoga.
57
4.3 ELABORAÇÃO PARA A INTERVENÇÃO
Após a submissão e aprovação da pesquisa no conselho de ética (ANEXO A),
iniciou-se e etapa de observação, que ocorreu no período de 21 de setembro a 8 de
outubro de 2015, seguindo um roteiro norteador (APÊNDICE E). O objetivo centrava-
se em conhecer sobre o cotidiano do aluno e suas relações com os colegas,
professor e seu comportamento perante o processo de ensino-aprendizagem. As
observações foram anotadas em um diário de campo e gravadas em áudio.
A fim de conhecer os participantes envolvidos na pesquisa, professoras de
Matemática, Ciências, pedagoga, família e sujeito da pesquisa, foram realizadas
entrevistas nos mês de outubro e novembro, todas registradas em gravações de
áudio e diário de campo.
Assim como na observação, havia um roteiro norteador preestabelecido para o
corpo pedagógico e discente, mas não fechado, de maneira que a entrevista fosse
realizada em forma de diálogo e que os entrevistados pudessem expressar sua
opinião sem uma condução das respostas (APÊNDICE F). Para a família não houve
um roteiro, sendo a indagação inicial a história de vida do aluno. Foi solicitado que
contassem como foi desde o nascimento até a idade atual, bem como as relações
familiares. Esperávamos identificar a reação da família ao saber da síndrome do
aluno, como lidou e lida com a situação, além de compreender a relação do mesmo
com os membros familiares. As entrevistas realizaram-se entre outubro e novembro
de 2015.
Paralelamente às entrevistas, iniciou-se a tarefa diagnóstica no mês de
outubro/2015, sucedida pelas etapas de execução e controle.
4.3.1 Etapas de Execução
Continuando a organização do ensino, o quarto elemento é a organização de
aprendizagem, segundo a Teoria das Ações Mentais por Etapas, e ocorreu entre
22 de novembro a 3 de dezembro de 2015. A base teórica foi discutida no capítulo
anterior, por isso ressaltaremos os aspectos metodológicos.
58
Primeiramente realizou-se a etapa da motivação. “As tarefas utilizadas na etapa de
motivação são organizadas de forma que apresentem situações problemas e que
despertem o interesse dos alunos pelo estudo do conteúdo” (NÚÑEZ, 2009, p. 186).
Por essa razão, utilizamos as observações para identificar os interesses de Filipe e
conectá-los às tarefas realizadas.
A escolha das tarefas para a formação da atividade é o quinto elemento na
organização do ensino. Com as observações em sala de aula sobre o interesse do
aluno foram elaboradas as tarefas a serem desenvolvidas, as quais estavam
relacionadas às situações concretas, conforme descreve Núñez (2009).
Assim, para incentivá-lo na disciplina de Matemática, propusemos observar como a
Matemática está presente na construção da escola, enquanto em Ciências
deveríamos partilhar histórias sobre as marcas que os machucados podem deixar na
nossa pele, cada um com exercícios específicos (Quadro 1).
Quadro 1- Tarefas motivacionais para introdução à geometria plana e pele e anexos.
Matemática
Vamos dar uma volta na escola e observar como a matemática está presente na construção dela? Nossas tarefas serão:
Encontrar na escola objetos com formatos geométricos. Representar as figuras encontradas na folha e colocar as medidas de cada uma. Agrupar as figuras semelhantes, a partir de um critério.
Para isso vamos precisar de prancheta, lápis, borracha e fita métrica.
Ciências Quando nos machucamos a pele pode ficar marcada por um tempo pequeno ou durante toda nossa vida. Toda marca tem uma história para ser contada. Vamos compartilhar algumas dessas histórias! Essas marcas que ficam na pele, como elas são formadas? Ou, se sumiram, explique por quê? Após compartilhar a história nossa tarefa será: Observar, com a lupa, a pele e tudo o que está nela. Observar as marcas, diferenças e semelhanças. Desenhar tudo o que nos chamar a atenção. Observar e desenhar por onde a lágrima e o suor saem. Observar e desenhar um pelo e um fio de cabelo.
Fonte: Produzido pela autora.
59
Em seguida, elaboramos juntos, pesquisadora e aluno, a Base Orientadora da Ação
seguindo os princípios de Galperin (2013a, 2013b, 2013e). Embora o terceiro tipo de
orientação seja a indicada para melhor assimilação e posterior generalização, por
motivos que serão discutidos no capítulo seguinte, houve uma oscilação entre o
segundo e o terceiro tipo (Quadro 2).
Quadro 2 - Base Orientadora da Ação – Matemática e Ciências
BOA – Matemática
Lado – parte de uma reta de um polígono. Ângulo – abertura entre duas retas que tem um ponto em comum.
1) É um polígono? a) Há retas?
b) As retas se tocam?
c) O formato da figura é fechado?
2) Classificar o polígono
a) Determinar a quantidade de lados. b) Dar o nome da forma da figura. c) Verificar quantos lados iguais. d) Medir os ângulos. e) Quantidade de ângulos iguais.
BOA - Ciências Para identificar a pele é preciso observar:
1) Se for a camada mais externa do corpo que está em contato com o meio ambiente. 2) A função da pele.
Identificar
16 os anexos:
1) Nascer na pele.
2) O anexo tem que proteger a pele.
Fonte: Produzido pela autora.
A etapa para a formação da ação no plano material em Matemática teve como tarefa
identificar os polígonos, e neles os lados, os ângulos, os vértices, e diferenciar os
16
É comum no ensino básico utilizar o termo identificar no sentido de apontar, sendo este o motivo pelo qual escolhemos adotá-lo.
Sim Não
Sim Não
Sim Não
Todos SIM é um
polígono
60
triângulos. Assim, os mesmos foram confeccionados em papelão pela pesquisadora,
bem como palavras relacionadas e levados para o aluno (Figura 3).
Figura 3 - Material produzido para primeira etapa da fase de execução da ação de geometria plana.
Fonte: Arquivo pessoal
Em Ciências foi proposto identificar a função do anexo ‘unha’ em relação à pele
utilizando um problema representado em uma gravura, além de identificar as
camadas da pele e os anexos nela contidos e suas funções (Figura 4). Com a
finalidade de formular uma tarefa na qual o aluno pudesse ter autonomia para
interpretar, houve a tentativa de representar os comandos por meio de gravuras, por
ele anteriormente criadas, e alternar com a escrita.
Entretanto, a primeira questão, por não corresponder com a BOA, não foi
desenvolvida e substituída por um experimento e uma observação ao microscópio.
Inicialmente apresentou-se um vídeo exibindo a formação da glândula sebácea e
seu desenvolvimento. Em seguida, realizou-se um experimento cujo objetivo foi
demonstrar a função do sebo, substância secretada pelas glândulas sebáceas para
a pele. Para isso, uma folha foi partida ao meio; na primeira metade derramou-se
óleo de cozinha e, em seguida, água; na segunda metade a água foi aplicada
diretamente na folha. Outros dois anexos também foram analisados, o cabelo e o
cílio. No microscópio, Filipe pôde comparar a estrutura de cada um. Com ajuda de
uma lupa, observou o posicionamento de cada um na pele, inclusive a própria pele.
61
Figura 4 - Tarefa proposta para primeira etapa da fase de execução da ação na disciplina de ciências
Etapa Materializada – Ciências
1) Ao abrir uma latinha corremos o risco de cortar o dedo, porém quando fazemos com a unha
esse risco diminui. Com ajuda da carta de orientação explique o que é a unha e a importância
dela.
2)
3) Como você identificou os ?
4) Qual a função dos ?
Fonte: Produzida pela autora
Na etapa da linguagem externa em Matemática foi utilizado o geoplano como
instrumento para representação dos diversos triângulos, ângulos, vértices e lados.
Em seguida, o aluno deveria representar em uma folha um desses triângulos feitos
no geoplano, sem que pudesse consultar a tarefa.
Nessa mesma etapa para Ciências, por meio do diálogo, o aluno discursou sobre os
anexos, as funções dos mesmos e os representou por meio de desenhos.
A etapa mental não foi contemplada em nenhuma das disciplinas.
Representação de Filipe para a palavra anexo.
Veja a figura e circule os anexos.
62
4.3.2 Controle da Execução
O quinto elemento para a organização do ensino é a escolha das tarefas de
controle e o controle do processo de aprendizagem. As tarefas para controle
foram pensadas com base em indicadores qualitativos da ação, como a forma da
ação, grau de generalização, grau de independência e grau de consciência,
conforme descrito por Núñez (2009). O significado de cada um deles foi discutido no
capítulo anterior.
Duas tarefas foram utilizadas para o conteúdo de geometria plana: o primeiro
consistiu em identificar e classificar os triângulos presentes em uma construção
representada na Figura 5, e o segundo foi identificar os polígonos em situações
diferentes, além de correlacionar o número de lados e vértices, lados e diagonais em
um jogo educativo on-line17.
Figura 5 - Tarefa para controle da etapa material e linguagem externa.
Fonte: http://www.casa-fortaleza.com/
Em Ciências não houve uma sequência diferenciada, sendo o controle das tarefas
realizadas com as próprias de cada etapa. A BOA foi também utilizada como auxílio
para controle, tanto nessa disciplina quanto naquela.
A avaliação da aprendizagem do aluno foi realizada em dois tempos. Primeiramente
elaborou-se uma prova escrita para cada uma das disciplinas, atendendo aos
objetivos almejados e a maneira como o conteúdo foi trabalhado, conforme as
Figuras 6 e 7.
17
Disponível em: <http://www.educacaodinamica.com.br/ed/views/game_educativo.php?id=14&jogo=Jogo%20dos%20Pol%C3%ADgonos>. Acesso em: out 2015.
63
Figura 6 - Avaliação escrita sobre geometria plana
1) Identifique nas figuras:
a. Lados: cor azul b. Vértices: cor vermelha c. Ângulos: cor preta d. Marque com T as figuras que são triláteras. e. Marque com Q as figuras que são quadriláteras.
2) Desenhe triângulos: a. Equilátero b. Escaleno c. Isósceles.
3) Desenhe um triângulo com um ângulo de: 90° b) 50° c) 130°
Qual desses triângulos é um triângulo retângulo? Por quê?
4) Veja a figura.
a) Escolha na figura um polígono, pinte. b) Por que essa figura é um polígono? c) Há triângulo isósceles? Qual?
Fonte: Produzido pela autora.
64
Figura 7 - Avaliação escrita sobre pele e anexos.
1) IDENTIFIQUE AS CAMADAS DA PELE E OS ANEXOS.
2) COMO IDENTIFICAR A PELE? ________________________________________________________________ 3) COMO IDENTIFICAR OS ANEXOS?
4) OBSERVE A FOTO: POR QUE A UNHA É IMPORTANTE PARA A PELE?
5) OBSERVE AS FIGURAS E RESPONDA:
A) COMO NOSSO CORPO SE PROTEGE DE FICAR MUITO FRIO OU QUENTE?
6) POR QUE É IMPORTANTE O ÓLEO NA NOSSA PELE?
Fonte: Produzido pela autora.
65
A aplicação da avaliação ocorreu na semana de prova final da escola, 19 e 22 de
novembro, e foi corrigida pelo próprio aluno e pela pesquisadora. Para esse fim, o
aluno utilizou a BOA e a pesquisadora como ajuda.
4.4 ANÁLISE DOS DADOS
A própria Teoria das Ações Mentais por Etapas contribui para analisar a assimilação
dos conteúdos por parte dos alunos, uma vez que o controle da execução da ação é
um norteador para a análise dos dados e, por esse motivo, foram utilizados como
critérios os parâmetros da qualidade da ação descritos por Galperin (2013b, 2013d,
2013e).
Para além dos conteúdos, a mudança de comportamento do Filipe frente às
situações escolares será analisada e discutida sob a perspectiva da abordagem
histórico-cultural.
66
5. APLICAÇÃO DA TEORIA DAS AÇÕES MENTAIS POR ETAPAS
O capítulo que segue foi dividido entre momentos de observação e de intervenção.
Nele foram explicitadas as etapas da Teoria das Ações Mentais nas disciplinas de
Matemática e Ciências em itens distintos, juntamente com as análises.
Ainda que sejam disciplinas distintas, os momentos eram muito próximos e, por isso,
acontecimentos de um influenciavam o desenvolvimento do outro. Esses episódios
serão tratados no Capítulo 6, que envolve o desenvolvimento das funções
superiores da atenção e memória.
5.1 UM POUCO DO QUE VIMOS
Adentramos a sala de aula e, embora quisesse parecer imperceptível, os alunos
cujos olhares eram curiosos sondavam a nova presença. À turma foi explicado que
estávamos estudando o processo de ensino das professoras e que poderiam ficar
tranquilos, pois não seriam avaliados; Filipe estava ciente da pesquisa. Ao
perceberem que a presença da pesquisadora não implicava em tomada de atitude
perante o comportamento dos mesmos, essa presença foi gradualmente ignorada e
invisibilizada por eles.
Durante duas semanas atentamos para os fatos que ocorriam. Essa observação não
era ingênua e despretensiosa, pelo contrário, procurava-se nela elementos que mais
tarde serviram como auxilio para o entendimento do processo de ensino e
aprendizagem de Filipe. Logo, esse período foi importante para conhecer o ambiente
no qual o aluno estava, a inter-relação dos alunos, destes para com as professoras e
vice-versa, como também os métodos de ensino utilizados por Antônia e Juliana
para o ensino de Matemática e Ciências, respectivamente.
Na turma, havia alunos com idade para estar no ensino médio, se tornando um dos
grupos rapidamente identificado, pois se sentam próximos uns aos outros no fundo
da sala. Do lado oposto, meninos cuja idade corresponde ao 8° ano sendo liderado
por um de seus colegas aparentemente um ano mais velho, porém mais novo que o
primeiro grupo. Na frente havia mais dois grupos, um formado por algumas meninas,
67
e outro por duas alunas, sendo uma surda e outra ouvinte, a qual se destaca nas
disciplinas de Ciências e Matemática. Havia alguns alunos que não estavam em
nenhum desses grupos, como Filipe; e todos conversavam entre si, embora alguns
de forma mais discreta. A exceção era a aluna surda, Denise, que conversava
basicamente com Nicole, a única na sala a buscar comunicação em libras.
Raramente outro aluno tentava gesticular algo para Denise.
Denise e Filipe são os dois alunos que apresentam necessidades educacionais
especiais18 - n.e.e – causadas pelas deficiências sensorial e intelectual. A primeira é
acompanhada em sala por uma intérprete, enquanto o segundo é atendido no
contraturno por uma professora especializada em educação inclusiva, Bel. O parcial
isolamento perante seus pares, a ausência de tarefas adaptadas, a ociosidade em
sala de aula são alguns dos elementos que compartilham.
Ambos sentam-se nas primeiras carteiras da sala, bem na frente da mesa do
professor, mas isso não significa que são atendidos. Denise é ensinada basicamente
pela intérprete que se desdobra para pensar em instrumentos de ensino para facilitar
a aprendizagem da aluna; pois não há tarefas adaptadas para a mesma. Filipe não
tem a mesma sorte (se é que assim podemos nos referir) uma vez que a
metodologia adotada pelas professoras não facilita o envolvimento do mesmo nas
aulas.
Juliana relatou que sua postura é tradicional. Extremamente consciente do próprio
ponto de vista diz que não se identifica com a educação especial e deixa a cargo
das professoras do contraturno e da intérprete a função de ensinar Ciências.
Ressalta que até poderia fazer algo, mas a escola, carente de recursos materiais e
humanos, dificulta a promoção de aulas que contemplem a diversidade; isso a
desestimula a buscar novos caminhos e confirma sua atitude tradicional.
Antônia, que já trabalhou com alunos deficientes intelectuais e com altas
habilidades, diz que se preocupa com os alunos com deficiência e, ao planejar suas
18
O termo é utilizado no documento de Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva. Está disponível no site https://inclusaoja.com.br/legislacao/ Acesso em: 20 abr. 2016.
68
aulas, pensa em como atender as especificidades desses alunos. Entretanto,
durante as duas semanas em que as observações ocorreram não foram visualizadas
tarefas planejadas, e sim pensadas no momento, além do conteúdo não
corresponder ao ministrado para o restante da turma. Inicialmente partem de uma
visão divergente sobre a presença do aluno em sala de aula e o planejamento de
tarefas específicas, todavia, a metodologia é semelhante, conforme registrado no
Diário de Bordo19.
As aulas repetem-se: professora entra, passa exercício do livro ou no quadro, senta
e espera que os alunos façam. Há cobranças verbais para o cumprimento da tarefa,
pouca, mas há. Normalmente o exercício é corrigido na aula seguinte, ainda que
seja no mesmo dia. Terminada a correção há nova bateria de exercícios (DIÁRIO DE
BORDO, p. 13-14).
A didática por elas adotada é resultado da prática e da reprodução do próprio
processo escolar; realidade esta que nos remete às lacunas deixadas pelos cursos
de licenciatura20. A ausência de uma metodologia se reflete no processo de ensino
e aprendizagem. Na sala de aula, quando os alunos terminavam as tarefas
propostas, ficavam desocupados e consequentemente conversavam entre si; tal
comportamento atrapalhava os demais colegas que não haviam terminado o dever.
Há de se destacar que os exercícios propostos não vislumbravam situações nas
quais os conhecimentos aprendidos poderiam ser aplicados em situações reais,
dessa maneira, os alunos faziam por fazer, mecanicamente.
O planejamento ainda se torna um desafio maior se considerarmos as condições
nas quais as professoras se encontravam. São muitos alunos e pouco suporte da
instituição; sozinhas devem diagnosticar, planejar atividades, conseguir os
instrumentos necessários, executar, avaliar os resultados e planejar novas ações
sobre esses resultados. Em outras profissões, tal profissional teria uma equipe e
material para suporte, diferente do que ocorre na educação. Dessa maneira, o
19
Todas as citações diretas feitas do Diário de Bordo serão registradas em itálico e fonte ‘Times New Roman’ para diferenciar do restante do texto. 20
Embora o assunto seja relevante e pertinente nesse momento não caberá discussão da contribuição dos mesmos para a formação de professores.
69
desânimo atinge o profissional e o que se percebe é a predominância do “cuspe e
giz”. Portanto, tarefas direcionadas às especificidades de Filipe não foram
realizadas.
Ainda que o cenário entre as duas disciplinas seja próximo, a postura dele perante
ambas as professoras é distinta. Enquanto em Ciências ele parece pensar em outras
coisas enquanto rói unha, em Matemática tenta participar - ainda que timidamente -
quando a professora faz perguntas à turma. Filipe inclusive muda a postura ao se
sentar, ficando mais ereto e olhando diretamente para a professora Antônia.
Não é possível afirmar os motivos para adotar tal conduta, mas acreditamos que a
exaltação da figura do professor, nesse caso específico da professora Antônia, é um
dos fatores que influenciam Filipe, e todos os outros alunos, a se comportar de
maneira diferenciada na disciplina de Matemática. Antônia é carismática e acessível
aos alunos, conquista, na maioria das vezes, todas as turmas nas quais trabalha.
Porém, não é o método utilizado que é um diferencial e sim seu próprio jeito de ser.
A respeito dessa preferência, Vigotski (2004, p. 453) afirma:
O problema é antes fazer os alunos ficarem inspirados pelo mesmo motivo. [...] até mesmo quando a inspiração atingia a consciência dos alunos nem sempre tinha o endereço certo e se transformava em adoração ao professor, que assumia formas profundamente antipedagógicas.
A motivação a ser suscitada é do próprio aluno e não conferir à mesma ao professor,
pois quando o primeiro caso acontece observa-se mais efetividade na assimilação
da atividade (NÚÑEZ, 2009). E, se esse professor por algum motivo é afastado de
suas atividades? Juliana assumiu a turma em agosto daquele ano, e por isso está no
início da relação com a turma; consequentemente, a afinidade com Filipe ainda é
algo que está sendo trabalhada, um desafio como ela mesma disse (DIÁRIO DE
BORDO).
Motivado interna ou externamente, Filipe se depara com um dilema, pois ainda que
se sinta motivado, raramente há atividades a serem desenvolvidas. Quando têm,
duas situações são observadas: a primeira refere-se às atividades desenvolvidas
que requerem habilidades já adquiridas pelo aluno e por isso estão na ZDR.
70
Comumente é dado ao aluno tarefas que se restringem ao plano material, limitando-
o a esse plano e, desse modo dificultam a formação de uma imagem abstrata. Para
os alunos com deficiência intelectual, como Filipe, é reforçar sua condição, visto que
possui pouca capacidade para o pensamento abstrato (VIGOTSKI, 2004).
A segunda situação conta com atividades que não são resolvidas pelo aluno, ainda
que tenha controle da professora. No caso de Filipe, são trabalhadas atividades que
requerem pensamento abstrato, sendo ignoradas as tarefas que ele desenvolve com
a ajuda de seus pares, com a orientação do professor ou com apoio de algum
instrumento, como a ficha de orientação; ou seja, as tarefas não são propostas
utilizando a zona de desenvolvimento iminente.
Entre essas situações, o resultado foi um aluno sem tarefas a realizar, ocioso na
maior parte do tempo e por isso ansioso, ato demonstrado pelo hábito de roer
unhas. Quando disposto a executar as tarefas, a leitura e a escrita tornam-se as
primeiras barreiras que afastam Filipe do processo de aprendizagem, e raramente
tem atenção dos pares e das professoras. De certa forma, ele parece apreciar tal
situação, pois sabe que ao fechar o livro e o caderno dificilmente será importunado e
poderá jogar no celular.
Há de ser pensar sob a perspectiva histórico-cultural de que a formação da
personalidade é parte do processo da assimilação do próprio aluno acerca do
comportamento humano (VIGOTSKI, 2004; 2007). Abster-se das atividades não é
uma característica por ele inventada e sim aprendida no decorrer dos
acontecimentos da sua vida, principalmente a escolar. Outras características típicas
da conduta de um adolescente também foram observadas: desconcentra-se com
facilidade do que está sendo ensinado, prefere jogos às tarefas escolares, afronta a
autoridade do professor, faz pirraça quando não atendido em suas solicitações para
sair ao banheiro e beber água. Há de se destacar que ele pede para sair com muita
frequência, embora não tenha problemas em relação aos sistemas urinário e
digestório. Bem como seus colegas, também quer impor sua vontade imediatista e
seu comportamento é comum aos seus pares, não representando características
específicas da sua condição genética. Todavia, seu desenvolvimento não é visto da
71
mesma forma, como uma internalização do ambiente em que está e no qual esteve
nos anos anteriores, mas sim atrelado à trissomia.
Findado o período de observação, iniciou-se a intervenção, que teve como primeiro
passo a tarefa diagnóstica. No primeiro dia, ao conversar com Filipe, foi explicado
novamente como seria a pesquisa e perguntado se ainda aceitava participar,
respondendo positivamente.
As tentativas de aproximação com ele foram marcadas por assuntos informais, por
exemplo, “Como foi seu final de semana?” ou “ O que fez no final de semana?” e as
respostas curtas, sem continuidade “Foi bom” ou “Não fiz nada!”. Parecia estar
tímido com a presença de um adulto ao lado, diferenciando-o dos demais colegas. A
distância era mantida pelo seu costume de se portar na sala de aula, isto é, pediu
para que não ocupasse a carteira ao lado dele, pois gostava de colocar a mochila
nela.
Ao perceber que essa presença causava certo incômodo, a atitude foi sentar entre
ele e a aluna que mais se destacava nas disciplinas. Quando as professoras
passavam exercícios, a ajuda era direcionada à aluna, que aceitou e solicitou que tal
postura continuasse. Em poucas horas, Filipe aceitou a aproximação de maneira
discreta, pois ainda sentia-se tímido, pedindo para que fizéssemos as atividades na
biblioteca. Logo, acatando seu pedido fomos para um local em que se sentiria mais
confortável, como a biblioteca e o laboratório de Ciências e Matemática.
5.2. O DESENVOLVIMENTO DAS ATIVIDADES NA DISCIPLINA MATEMÁTICA
Peço licença ao leitor para escrever na primeira pessoa este tópico, uma vez que
expressarei minhas observações acerca das minhas próprias percepções sobre o
processo de intervenção nas disciplinas de Matemática e Ciências; sendo esta
relatada no próximo item.
A intervenção apresentou-se como uma via de mão dupla, na qual tanto o sujeito
pesquisado quanto eu sofremos a ação. É preciso lembrar que minha formação
inicial foi em Ciências Biológicas, ocorrida há exatos dez anos. Os conhecimentos
72
sobre polígonos restringem-se ao ensino fundamental e médio, os quais me
lembrava superficialmente.
No início, receei pesquisar algo que não dominava, e durante o processo aprendi
que sim, isso faz diferença, mas ainda que haja domínio do conteúdo, o mesmo não
é garantia de facilidade em planejar utilizando a Teoria das Ações Mentais por
Etapas.
Durante as observações, tornou-se ainda mais notório que o conteúdo ministrado
pelo professor permanece em segundo plano em relação a sua didática. Tal fato foi
corroborado com o processo de intervenção, que demonstrou que a maneira de
ensinar o aluno se sobressai ao conteúdo desse processo. Como, então, planejar
uma aula de maneira que o aluno se sinta envolvido a ponto de desejar o domínio do
conteúdo?
Para a disciplina de Matemática foi mais natural pensar em exercícios que
contemplassem as etapas da teoria proposta por Galperin, principalmente na etapa
materializada. Acredito que tal facilidade tenha decorrido da representação diária
dos objetos estudados e da aplicação dos mesmos nos jogos pelos quais Filipe se
interessava. Assim, me senti mais confortável do que supunha.
5.2.1 Sobre os conhecimentos matemáticos prévios
Ao ser entrevistado, Filipe disse gostar de jogos de sobrevivência, labirinto, carros,
casas, estratégia e ajuda ao próximo. Embora não conseguimos unir todos os
interesses dele em uma única figura, a imagem de uma cidade, com casas, escola,
supermercado, trânsito foi o bastante para realizarmos o exercício (APÊNDICE A).
Nessa conversa, identificamos que o reconhecimento das figuras quadrado,
triângulo, retângulo e círculo estão na zona de desenvolvimento real, representando
o resultado de um ciclo já concluído (VIGOTSKI, 2004). Ao apontar o retângulo
presente em diversas gravuras, como faixa de pedestre, placas, baú do caminhão,
escada, janelas, observamos o grau de generalização, parâmetro da qualidade da
ação descrito por Galperin (2013e). Tal parâmetro pode também ser constatado na
73
relação de outras formas do exercício n° 2 (APÊNDICE A) às coisas representadas
na figura do trânsito. Contudo, essa generalização ocorreu baseada em um
pseudoconceito, uma vez que ignorou a identificação das figuras a partir dos
elementos essenciais, como quantidade e tamanho dos lados.
Quanto à diferenciação entre as formas, Filipe utilizou como critérios o tamanho da
figura - maiores, menores, mais finos - e quanto às características da mesma, como,
por exemplo, ao dizer que o quadrado possui lados iguais, enquanto no retângulo
tem altura diferente da largura. Agrupou estes dois com o losango, embora não visse
semelhança destes com o trapézio e o paralelogramo. Quanto aos triângulos, os
diferenciou pelos ângulos que são formados, mas disse que os valores dos mesmos
não podem mudar. Isso porque memorizou que o valor dos ângulos devem ser todos
60° ou três diferentes, cujos valores são de 90°, 30°, 60°. A conversa com Filipe
mostrou que há conceitos ainda não formados e que estão ao alcance do seu
desenvolvimento, enquanto outros devem ser trabalhados, pois novamente foram
assimilados como pseudoconceitos (VIGOTSKI, 2007).
A palavra polígono ainda não fazia parte do seu vocabulário, tão pouco os
elementos essenciais e necessários – figura fechada, com linhas retas e que se
encontram - para que uma figura seja assim classificada, resultado também
encontrado na pesquisa de Jesus (2014).
Tal resultado foi condizente com o ensinado no início do ano letivo, quando Antônia
trabalhou com os alunos a identificação e a classificação das figuras geométricas,
mas sem se referir a elas como polígonos; tão pouco trabalhou com os discentes o
conceito dessa figura. Diante desse diagnóstico, prosseguimos com as atividades de
motivação.
5.2.2 Singularidade da motivação – parte I
Observar a escola e tudo o que há nela foi a tarefa proposta para motivar o aluno
com relação às formas geométricas. Munidos de fita métrica, lápis, borracha, régua e
prancheta saímos para o pátio da escola. Filipe rapidamente apontou algumas
figuras representadas nos objetos, a mesa era um retângulo, os azulejos da cantina
74
eram quadrados, a tampa da lixeira a metade de um círculo, a grade um losango, os
quadrados poderiam ser dois triângulos, tudo observado pelo aluno. Escolhemos
algumas dessas figuras para desenhar e escrever suas medidas.
Essa tarefa não o motivou como o esperado, sendo outro o elemento de motivação:
utilizar os instrumentos de medida e representar objetos e suas características por
escrito, uma vez que a habilidade de escrever por ele ainda não é dominada. Usar a
fita métrica e régua para medir e não somente fazer linhas, compreender a
contagem dos números decimais e a diferença entre unidades de medida, como
metro e centímetro e registrar, eram problemas reais para Filipe.
Sobre a motivação, Núñez (2009) ressalta que a aprendizagem será potencializada
quando a motivação interna for a estimuladora da busca do conhecimento, ou seja,
“As necessidades estimulam a atividade e a orientam, visto que o sujeito tem a
consciência delas” (NÚÑEZ, 2009, p. 80). Embora o que motivou Filipe não fosse o
objetivo de ensino, para ele tornou-se o objetivo de aprendizagem. Essas
necessidades que perpassaram os objetivos iniciais foram trabalhadas junto àqueles
preestabelecidos. Logo, Filipe foi estimulado a escrever, medir e comparar. Diante
do que foi realizado, observamos que ele não tinha noção de medidas, conversão
entre elas, representação do processo de soma, além de confundir largura, diagonal,
tamanho, comprimento e altura. Quanto à escrita, ao soletrar sílabas da palavra
‘retângulo’, identificou algumas letras, mostrando dificuldade em relacionar o som â,
n, g com a escrita das mesmas (Figura 8).
Figura 8 – Fase motivacional - matemática
Fonte Arquivo pessoal
75
Nessa atividade, Filipe forneceu pistas de que confundia lado e ângulo e, embora a
etapa motivacional não contemple nenhum tipo de ação, tão pouco a introdução de
novo assuntos (NÚÑEZ, 2009), foi necessário um novo diagnóstico para que
pudéssemos entender o que o aluno sabia.
Na aula seguinte, na biblioteca, retomamos a atividade diagnóstica. Dessa vez, sem
a representação material, pedimos ao aluno que desenhasse figuras com:
1) três lados;
2) três lados, mas diferente da primeira;
3) três lados diferentes;
4) quatro lados iguais;
5) quatro lados, sendo dois iguais e outros dois iguais, mas diferentes entre si.
6) dois lados iguais e dois lados diferentes;
7) cinco lados;
Filipe diferenciou figuras com três e quatro e cinco lados, embora não tenha
conseguido reproduzi-las. A dificuldade do aluno em representar um triângulo
equilátero é decorrente da não identificação e diferenciação de lados e ângulos
(Figura 9, n° 3), confirmada em sua explicação, ao apontar os ângulos como lados e
os vértices como ângulos.
É interessante ressaltar que na pergunta de n° 5, “quatro lados sendo dois iguais e
outros dois iguais, mas diferentes entre si.”, o aluno respondeu que seria uma figura
retangular, demonstrando raciocínio lógico sobre a mesma. Em contrapartida,
embora tenha indicado corretamente o ‘lado’ de um livro, objeto material, quando o
comparou ao ‘lado’ de um retângulo desenhado ele novamente indicou na figura o
ângulo. Questionado se a relação que fez correspondia, o mesmo afirmou que não,
mas não soube dizer o porquê.
A fim de averiguar se com ajuda ele era capaz de fazer essa relação, duas canetas
iguais foram unidas pelas pontas formando um ângulo reto no canto do livro. As
canetas eram abertas e fechadas para que ele visualizasse a abertura do ângulo.
Em seguida, novamente se mostrava a figura do retângulo e se solicitava que
76
identificasse ângulo e lado, dessa vez, respondeu com sucesso. Assim, “O que a
criança se revela em condições de fazer com a ajuda de um adulto nos indica a zona
de seu desenvolvimento imediato” sobre a qual o ensino deve agir, garantindo assim
uma boa aprendizagem (VIGOTSKI, 2004, p. 480).
Embora a atividade proposta para despertar o entusiasmo de Filipe não apresentou
um resultado pleno, cumpriu naquele momento o papel de preparar o aluno para a
assimilação de novos conhecimentos, como assinala Núñez (2009).
Figura 9 - Representação das figuras geométricas
Fonte: Arquivo pessoal
5
3
6
7 1
4
2
3
Indicação dos
ângulos
77
5.2.3 Sobre a orientação à atividade Matemática
Na etapa de formação da base orientadora da ação explicou-se ao aluno os
objetivos de ensino e sobre a própria ficha orientadora, esquematizados por Filipe
conforme figura. (Figura 10).
Como é possível observar, a escrita é uma habilidade em formação para Filipe, por
isso o aluno criou uma simbologia própria para representar as instruções
necessárias para realizar a ação. Porém, na aula seguinte não se recordou do que
havia estabelecido e foi necessário formular nova ficha.
Figura 10 - Representação por Filipe da BOA de matemática
Fonte: Arquivo pessoal
Novamente Filipe criou simbologia própria para compreender as instruções contidas
na BOA, porém, dessa vez, as mesmas foram escritas pela pesquisadora com o
intuito de aproximar o aluno da escrita, estimulá-lo quanto à leitura para que
pudesse, por meio da repetição, memorizar o que estava escrito. (figura 11).
Polígono é uma figura fechada.
Ver a quantidade de lados.
Ver a quantidade de ângulos
78
Na nova ficha de orientação foram acrescentadas novas informações sobre ângulo e
lado, detalhamento para conceito de polígonos e classificação dos mesmos, mas
nenhum tipo de assimilação, pois nessa etapa não se visa a ação (GALPERIN,
2013b).
Figura 11 - Nova ficha formulada pela pesquisadora e aluno.
Fonte: Produzido pela autora
Seguindo as ideias de Galperin (2013a, 2013b), buscamos elaborar a BOA do tipo
III, a qual tem como elementos a elaboração em conjunto, informações essenciais
para a área estudada e não para um assunto específico, e que não fosse um
controle (interno e externo) da atividade a ser desenvolvida.
A construção da ficha de orientação demandou de Filipe grande energia para se
concentrar. Diferente da sala de aula, não demonstrou tédio ou ansiedade, mas
expressou cansaço nos levando a considerar a “lei psicológica da disposição, a qual
enuncia que o aluno, para estudar efetivamente, tem de estar preparado tanto no
plano psicológico como no fisiológico” (NÚÑEZ, 2009, p. 99). Assim, finalizamos o
momento e aproveitamos o tempo oportuno do recreio para ser o intervalo entre a
fase da orientação e a materializada.
79
5.2.4 Desenvolvimento da Etapa Material/ Materializada em Matemática
Ao retornar do recreio, inicia-se a fase materializada. A atividade consistia em
apontar as figuras que representavam polígonos triláteros e quadriláteros, além de
classificá-los quanto aos lados (Figura 12).
Figura 12 - Resultado da fase material em matemática
Fonte: Arquivo pessoal
A habilidade em identificar e nomear as figuras geométricas é algo que se encontra
na ZDI, uma vez que, para identificar as figuras segundo as características
essenciais, foi necessário utilizar a BOA como mediadora. “[...] a BOA materializada
situa-se entre o objeto e o sujeito, tendo como função ser um mediador nesse
processo” (NÚÑEZ, 2009, p. 108).
Quanto à classificação, Filipe diferenciou figuras triláteras e quadriláteras baseado
na quantidade de lados, porém ainda confundia lado com ângulo. Também não
soube dizer os nomes de algumas formas, e por isso ajustamos a BOA com o item
“DAR O NOME DA FORMA DA FIGURA” (Figura 11).
80
Há de se destacar que durante a realização da atividade Filipe solicitou ajuda para
saber se escreveu corretamente, mostrando que está ciente que precisa ser
controlado nessa ação, e que a motivação para superar tal problema é interna, ou
seja, cognitiva (NÚNEZ, 2009).
Motivação essa que declinou vertiginosamente já que durante o processo do estudo
ele bocejou, apresentou-se preguiçoso e até tedioso, indicando que a etapa
motivacional não foi eficaz e tão pouco mantida. O problema a ser resolvido na
etapa materializada mostrou-se de pouca complexidade, e por Filipe ter identificado
e classificado com facilidade, embora não tenha utilizado das características
essenciais, mostrou que a tarefa poderia ter sido mais bem planejada. Acerca da
motivação e situação-problema, Núñez (2009, p. 99) diz que:
Um dos meios que suscita a motivação interna nos alunos é a aprendizagem por problemas ou por situações problemas, nas quais a formação de conceitos se vincula diretamente à sua experiência, a seu dia-a-dia, a contextos da criação científica, tecnológica e social. Os alunos ficam mais motivados ao constatarem a utilidade prática de seus novos conhecimentos na atividade produtiva ou criativa.
A reflexão acima exemplifica a empolgação remanescente em Filipe, que assim se
mostrava enquanto utilizava a régua para medir os lados e o cronômetro para
marcar o tempo de aula. No final do dia ele levou a BOA para casa e não trouxe
mais nas aulas seguintes.
Na aula seguinte era necessário saber o quanto o aluno se recordava sobre a etapa
materializada; esse resgate vai ao encontro da proposta da psicologia histórico-
cultural para a formação da memória, função psíquica superior. Foi dada uma breve
tarefa , apresentadas na Figura 13 pelos exercícios 1 e 2.
Na primeira atividade, Filipe sinalizou que todas as figuras eram polígonos, alegando
que todas são fechadas. Ao ser questionado sobre os critérios de classificação,
Filipe utiliza a BOA por ele produzida e o auxílio da pesquisadora, e percebe que o
coração não se enquadrava no conceito, retirando o mesmo da categoria polígono.
Logo, a habilidade de identificar figuras geométricas permanece na ZDI, uma vez
81
que necessita de controle para realizar a ação (GALPERIN, 2013b; VIGOTSKI,
2004, 2007).
Os conceitos de lado e ângulo ainda se mostram duvidosos, pois na questão 2 Filipe
confundiu ambos. Por esse motivo, na terceira questão pedimos a ele que
desenhasse um triângulo com três lados iguais, dois lados iguais, e com todos os
lados diferentes. Ele realizou a tarefa com sucesso, sem necessitar de controle, e
daí em diante indicou corretamente os lados de uma figura.
Figura 13 - Nova base orientadora da ação/ tarefa
Fonte: Arquivo pessoal
No mesmo item 3 foi ensinado sobre a classificação quanto aos lados do triângulo e
Filipe relacionou cada um dos triângulos a um reino pertencente a um jogo on-line.
As tentativas de estudar mais sobre triângulos foram paulatinamente engolidas pelas
histórias e as preocupações apresentadas por ele. Embora não houvesse fortes
estímulos concorrentes à vista, a vida virtual de Filipe é trazida à tona e desvia a
atenção dele. Entre castelos, reinos amigos e inimigos, buscamos no exercício de
‘tarefa para controle’ (Figura 14) atentar para a assimilação de lados e os tipos de
triângulos.
82
Figura 14 - Tarefa para controle - matemática
Fonte: Arquivo pessoal
Inicialmente, Filipe afirmou haver uma figura, triângulo, porém sublinhou apenas dois
lados. Ao ser questionado sobre a quantidade de lados indicou o terceiro, mostrando
que assimilou o que é um ‘lado’. Ao se corrigir, observou a figura e encontrou outros
triângulos, logo utilizando os parâmetros forma da ação, grau de generalização, grau
de independência e grau de consciência (GALPERIN, 2013b; NÚNEZ, 2009),
observamos que o aluno encontra-se no plano materializado, generaliza, embora
não de maneira independente e tem consciência ao explicar o motivo pelo qual o
triângulo não é formado por duas retas. O mesmo ainda não aconteceu para a
classificação dos triângulos, que precisou da orientação da pesquisadora e da ficha
orientadora.
Ao final da etapa materializada, concluímos que Filipe está na iminência em
assimilar o conceito de polígono e ângulos. Dentro do grupo das triláteras, nomeia a
figura como triângulo e a classifica quanto aos lados, contudo precisa de controle
para se lembrar dos nomes de cada tipo. Quanto à habilidade em diferenciar figuras
triláteras e quadriláteras pela quantidade de lados é uma habilidade por ele
assimilada. Filipe mostrou que o objeto da ação não precisava estar presente,
83
indicando a possibilidade da próxima etapa. Diante do exposto, enfatizamos que “A
ação se liberta desta dependência direta dos objetos somente na seguinte etapa,
quando passa ao plano de linguagem” (GALPERIN, 2013b).
Na segunda etapa, ao utilizar o geoplano, Filipe deveria representar cada um dos
triângulos e nomeá-los (Figura 15).
Figura 15 - Tarefa no Geoplano
Fonte: Arquivo pessoal
Por ainda se encontrar desenvolvendo as habilidades de leitura e escrita, as
palavras necessárias para executar o exercício ficaram à disposição do aluno. Filipe
apontou os lados de cada triângulo por ele representado e quantificou cada um pela
quantidade de pregos presentes. Entretanto, quando indicou vértice e ângulo, ainda
confundiu ambos. Precisou de ajuda para diferenciar os triângulos, embora tenha
acertado um deles (Figura 15).
Aos poucos, Filipe se apresentava tedioso e foi necessário resgatar sua motivação
para que pudesse voltar a atenção para o conteúdo, recorrendo à história por ele
inventada sobre castelos, reinos e lutas medievais. Ainda assim havia algum
estímulo, não material e nem presente, que despertava mais a atenção do aluno.
Por isso, nesse dia nos recorremos a um jogo on-line, o qual foi atrativo para o aluno
pelo simples fato de ser no computador e que tinha como foco lados e ângulos de
uma figura.
84
Filipe leu vagarosamente os comandos e respondeu a atividade com empolgação,
pois estava manuseando o computador e a internet. Embora o conteúdo para o
aluno tenha sido segundo plano, ele concluiu que a quantidade de ângulos de uma
figura é a mesma quantidade de lados.
No dia seguinte, novamente o geoplano foi utilizado, e sem controle ou ajuda da
ficha indicou lados, ângulos e vértice de maneira correta. Somente na classificação
dos triângulos ele ainda demonstrou necessidade de auxílio, pois não se lembrou
dos nomes, mas sabia que a diferença está em relação ao tamanho dos lados.
Também se mostrou mais disposto à tarefa, sem tédio como na aula anterior.
O ponto alto dessa tarefa foi representado por Filipe quando fez um triângulo com
base em uma imagem mental e não do material concreto dado, pois como dito
anteriormente, às pessoas com deficiência intelectual restringe-se a atividade que
viabiliza a formação de uma imagem abstrata. Essa tarefa, embora simplória, foi um
passo nessa direção. Nesse sentido, pode-se afirmar que:
[...] o sistema de ensino baseado somente no concreto – um sistema que elimina do ensino tudo aquilo que está associado ao pensamento abstrato – falha em ajudar as crianças retardadas a superar as suas deficiências inatas, além de reforçar essas deficiências, acostumando as crianças exclusivamente ao pensamento concreto e suprindo, assim, os rudimentos de qualquer pensamento abstrato que essas crianças ainda possam ter. Precisamente porque as crianças retardadas, quando deixadas a si mesmas, nunca atingem formas bem elaboradas de pensamento abstrato, é que a escola deveria fazer esforço para empurrá-las nessa direção, para desenvolver nelas o que está intrinsecamente faltando no seu próprio desenvolvimento (VIGOTSKI, 2007, p. 101-102).
Por não apresentar requisitos estruturais e humanos, a escola tem limitado o
atendimento aos alunos com deficiência, e responsabiliza o sujeito pela sua própria
condição. A ausência do esforço para promover o desenvolvimento do aluno
também é refletida nas avaliações. Mesmo sabendo que o aluno não havia atingido
os objetivos de ensino, por questões institucionais, deveríamos avaliar o aluno
quanto à sua aprendizagem e assim seguimos para o controle do processo.
Na prova escrita (Figura 16), identificou corretamente lados, ângulos e vértices de
um triângulo. Também indicou corretamente quais figuras eram triláteras e
quadriláteras. Confundiu-se ao classificar os triângulos quanto aos lados e
85
parcialmente na definição de polígonos. O resultado apresentado foi condizente a
todo processo realizado, como também à orientação dada desde o início da ação.
Sobre a qualidade da ação, Galperin (2013a, 2013e) é categórico ao afirmar que a
formação da imagem depende principalmente da orientação dada. Mas é preciso
considerar que a etapa da linguagem não pode ser completada, haja vista o
calendário escolar e a necessidade de cumpri-lo.
Há de se destacar que a avaliação escrita não é o ponto final, mesmo na etapa da
linguagem, pois o processo de aprendizagem é em espiral (MARTINS, 2013d).
Dessa forma, a avaliação corrigida foi entregue a Filipe para que ele pudesse refletir
sobre erros e acertos.
Figura 16: Avalição escrita de matemática
87
A respeito desse controle, Núñez (2009, p. 202) diz que devem ser:
[...] corrigidos imediatamente e devolvidos aos alunos, que devem avaliar os comentários feitos pelo professor e realizar uma nova reflexão, por escrito, das causas de seus erros, assinalando as idéias erradas que ainda persistem e as não consideradas. Essa reflexão é avaliada pelo professor com o objetivo de motivar o aluno, para que aprenda sobre a base de seus erros
Assim que corrigida a avaliação, esta foi entregue a Filipe e os comentários feitos
pessoalmente, para facilitar a compreensão. O aluno, com auxílio da BOA, refletiu e
consertou os erros. Quando finalizou a correção,
[...] mostrou para a pedagoga sua façanha. “Eu fiz tudo sozinho!”, dizia feliz e
orgulhoso de si mesmo. Era perguntado a ele os itens da prova de maneira aleatória
e ele respondia, com os olhos brilhantes, e de maneira correta! Sim, ele acertou
polígonos, classificação dos triângulos quanto aos lados, o que eram vértices,
ângulos e lados! Estava radiante, confiante no próprio aprendizado. A prova foi
pontual, mas o processo avaliativo não. Filipe mostrou durante a correção da prova
que sim, ele sabia! (DIÁRIO DE BORDO).
Para além da Matemática é importante relatar a postura de Filipe durante a
avaliação, compenetrada e comprometida. Demostrou seriedade no processo ao
tentar ler e responder cada questão, embora a leitura e a escrita ainda fossem
entraves que estavam sendo superados. Superação essa verificada quando durante
a prova pediu ajuda para compreender alguns comandos, mesmo estando próximo
aos seus colegas, timidez vencida!
Paralelo a toda essa caminhada pela Matemática acontecia o processo na disciplina
de Ciências. Não menos complexo, se não fosse pela didática. Porém, poderia ter
sido analisado juntamente a Matemática, pois eventos discutidos no capítulo da
formação das funções psicológicas superiores ocorreram entre uma e outra
disciplina. Assim, seguimos com o estudo sobre pele e anexos realizado com base
na Teoria das Ações Mentais Por Etapas.
88
5.3 O DESENVOLVIMENTO DAS ATIVIDADES NA DISCIPLINA DE CIÊNCIAS
Antes de iniciarmos o capítulo, um breve comentário novamente sobre minhas
percepções. Por ser professora de Ciências, havia uma expectativa natural de que
não houvesse dificuldade em planejar as aulas de intervenção, contrapondo os
fatos.
Ao planejar sob a Teoria das Ações Mentais por Etapas foi necessário olhar sob um
novo ponto de vista e, com isso, o meu saber sobre “Pele e anexos” foi por mim
questionado. Não pelo conteúdo em si, mas porque não havia pensado nele da
maneira proposta pela teoria. Desse modo, me senti desestruturada e foi nesse
momento que pude questionar os objetivos propostos, e ouvir o que Filipe tinha a
dizer.
Ao resgatar o sujeito Allana, não só a pesquisadora, mas a professora, o ser
humano, foi que pude praticar a empatia e assim construir junto ao aluno tarefas que
atendessem suas necessidades. Não foi fácil essa perda de sentidos, todavia, foi a
partir dela que pude alcançar as metas propostas.
Esse processo me mostrou que o domínio do conteúdo, embora seja importante,
não é determinante para o sucesso de um planejamento baseado na teoria proposta
por Galperin; o conhecimento desta é tão importante quanto do conteúdo.
5.3.1 Sobre os conhecimentos prévios em Ciências
A curiosidade de Filipe foi despertada inicialmente por ver que utilizaríamos o
computador na intervenção. Seu interesse súbito não foi pelo que faríamos e sim
pelo que sabia fazer, pediu para mostrar os jogos que gostava e descreveu o que
fazia em cada um deles. Foi explicado que não havia internet, era somente o
computador e por isso não tínhamos acesso a jogos on-line. Ele insistiu e abriu uma
página que mostrou não haver conexão. Nessa página offline é possível brincar com
um pequeno dragão que pula obstáculos e isso foi Filipe quem ensinou. Aos poucos
conduzimos o diálogo para a tarefa a ser feita.
89
Assim que o arquivo abriu, ele afirmou já ter visto a figura em pesquisas sobre peixe
e que era o mesmo que as pessoas possuem no aquário. Rapidamente disparou a
falar o que via; a rã era venenosa, pois o olho era vermelho, identificou-se com o
anfíbio dizendo que sempre quis ser um, assim como o jacaré, o cisne, cachorro...,
continuou a dizer enquanto olhava todos os slides. Como se pode perceber,
atropelamos as informações para mostrar que assim aconteceu a primeira tarefa. Foi
importante deixar Filipe expressar-se, pois as ideias prévias vieram sem limitações,
sem respostas, já que não havia perguntas.
O diagnóstico inicial é importante para a introdução de conceitos científicos,
possuindo uma relação dinâmica entre eles, já que,
Os conceitos espontâneos constituem a base dos conceitos científicos, no entanto, estes, quando são assimilados, permitem a formação de outros conceitos espontâneos com possibilidades de uso consciente e deliberado. O desenvolvimento de conceitos científicos depende e se constroem do conjunto de conceitos espontâneos de que o aluno dispõe como um processo de assimilação/apropriação. Daí a importância do diagnóstico do nível de desenvolvimento do conceito espontâneo (idéias prévias) e do nível de desenvolvimento da habilidade na formação de conceitos científicos (NÚÑEZ, 2009, p. 48).
Os conceitos espontâneos podem ser observados na justificativa de Filipe ao dizer
que a rã é venenosa devido à coloração do olho. Outros conceitos foram trazidos,
mas dessa vez ordenados pelos comandos do exercício entregue (APÊNDICE C), o
qual deveria interpretar para depois realizar a tarefa exposta no computador nos dos
slides a serem observados (APÊNDICE B). Embora ele tenha interpretado a folha de
comandos da atividade, não relacionou que deveria fazer o mesmo com as
ilustrações expostas e, por isso, o diálogo foi fundamental nesse momento.
Por exemplo, na segunda gravura (APÊNDICE C), ele interpreta que deve dizer o
nome dos animais que estão sombreados e não relaciona que deve fazer isso com
os animais que aparecem nos slides. Porém, quando conduzido ele faz essa
relação. Assim prosseguiu para a maioria dos comandos (DIÁRIO DE BORDO).
Assim como no diagnóstico realizado em Matemática, leitura, escrita e interpretação
não são habilidades adquiridas por Filipe. A compreensão do que deve ser feito no
90
exercício também é um item que demanda controle do professor para que o aluno
desempenhe a tarefa.
Quanto ao desempenho dele em relação à tarefa, observamos que reconhece os
animais, nomeia-os, diz algumas características, embora não fundamente
corretamente. Acerca da pele, mesmo que compreenda que é a camada externa ao
corpo e auxilia na proteção do animal, não identificou as diferentes formas nas quais
ela pode se apresentar.
[...] a rã tem gosma e não pele, diz ele. Sobre a definição da mesma, diz em tom
seguro “produto elementar do nosso corpo”, e ressalta que aprendeu no tablet
enquanto pesquisava (DIÁRIO DE BORDO).
Filipe realmente pareceu se interessar em pesquisar no tablet e mostrou alguns
conhecimentos sobre o assunto a ser estudado. Quanto aos anexos, identificou
alguns deles e suas funções, soube dizer que o pelo do cachorro ajuda a esquentar
o corpo, assim como as penas do cisne, todavia não relacionou o pelo dos seres
humanos da mesma maneira. Associou o suor à atividade física, a unha à proteção
da pele e o acúmulo de gordura pelo excesso de comida.
Mas não são somente informações sobre a pele que Filipe traz. Toda essa conversa
foi narrada com várias breves histórias de lugares que ele visitou, da viagem ao Rio
de Janeiro, da mini fazenda do tio, de animais que tem, entre outras que ora
parecem ser reais ora são de fato imaginárias. A tarefa diagnóstica permitiu
compreender que, para trabalhar com o conteúdo de estudo, é necessário trazer
Filipe para a realidade, pois a todo o momento volta-se para questões imaginárias.
A tarefa proposta mostrou-se suficiente para alcançar os objetivos, uma vez que
suscitou no educando o desejo em dizer o que sabia sobre o tema sem medo de
estar certo ou errado, e o diálogo foi fundamental para que o conhecimento
espontâneo viesse à tona. Espontaneidade foi elemento-chave para a atividade
diagnóstica e um momento prévio para despertar a motivação para o estudo.
91
5.3.2 Singularidade da motivação – parte II
Se há algo que notamos que Filipe gosta de fazer é contar histórias. Assim, a fase
motivacional foi elaborada utilizando a contação de uma história sobre uma cicatriz
na própria pele (Figura 3). Novamente, entre histórias possíveis e impossíveis,
provocamos nele a disposição para o estudo (NÚÑEZ, 2009).
O uso da lupa despertou nele o interesse por investigar, já que em suas pesquisas
no tablete biólogos usam lupas para realizar as pesquisas. Apoderou-se de tal
instrumento e comparou o cabelo dele com o meu, a pele com a minha, nossas
unhas, o orifício por onde a lágrima sai. Observar a mim deixou Filipe menos tímido
com minha presença e, por isso, perguntava mais sobre suas dúvidas,
principalmente sobre a escrita dos nomes (DIÁRIO DE BORDO). Tudo
esquematizado na figura 17.
Figura 17 - Tarefa Motivacional em ciências
Fonte: Arquivo pessoal
Comparação entre
cabelo e pelo.
Orifício do
canal lacrimal
92
Diferente da tarefa motivacional em Matemática, em Ciências ele não demonstrou
tédio nem desinteresse, pelo contrário, contava uma história atrás da outra sobre
cada um dos elementos desenhados. O próprio Filipe contextualizou o conteúdo e
deu significado ao aprendizado do mesmo.
5.3.3 Sobre a orientação à atividade de Ciências
Terminada a etapa motivacional, iniciou-se a construção da base orientadora da
ação, embora esta deva ser mantida durante todo o processo de assimilação
(NÚÑEZ, 2009). Assim como em Matemática, foi explicado a Filipe os objetivos de
ensino, representados a sua maneira na Figura 18, e sobre a própria ficha
orientadora.
Figura 18 - Anotação de Filipe sobre o que foi aprendido
Fonte: Arquivo pessoal
A primeira questão, “Por que a pinta é mais escura que a pele?”, foi inserida a
pedido de Filipe, para nos lembrar de que deveríamos respondê-la durante as
atividades. As questões seguintes estão nos objetivos de ensino de Ciências, porém
O que é pele?
Por que a pinta é mais escura que a pele?
Qual a função da pele?
93
não contemplaram os anexos, os quais foram esquematizados na base orientadora
da ação.
Por ser a ficha um elemento de familiarização com as condições concretas da ação
(GALPERIN, 2013e), ela foi elaborada pela pesquisadora juntamente com Filipe e
representada por este (Figura 19). Nota-se a riqueza de detalhes em sua
representação que, segundo ele, ajudam a lembrá-lo do que se trata. O sol está
presente para indicar o suor que escorre no rosto, em vermelho. O desenho da
carne envolta representa a função da pele, de envolver o corpo, e o escudo próximo
é a proteção do mesmo. A palavra anexos está próxima ao desenho do cabelo, pelo,
lágrima, suor e unha.
Figura 19 - Base Orientadora da Ação – ciências
Fonte: Arquivo pessoal
As representações foram sugestões do próprio aluno, que justificou a escolha de
cada um deles. A carne, que representa o músculo, é a figura presente nos
desenhos que vê; o escudo está no contexto dos jogos. O suor é decorrente do
calor, pois é no rosto que ele mais transpira. Enfim, todas as relações estavam
presentes no dia a dia.
94
Assim como em Matemática, Filipe criou uma simbologia própria para representar os
elementos da ficha, mas a mesma não contemplava uma sequência que o ajudasse
a resolver as questões (GLAPERIN, 2013a). Assim, em Ciências repetiu-se o
processo de refazer a BOA para incluir tal sequência (Figura 20).
Figura 20 - Reformulação da Base Orientadora da ação
Fonte: Arquivo pessoal
Observou-se que durante a elaboração não foram introduzidos novos conceitos nem
realizada alguma ação (GALPERIN, 2013ª; NÚÑEZ, 2009). Novamente foi almejada
a BOA do tipo III, na qual,
[...] o professor tem um papel essencial na orientação e direção do mesmo. Não se trata de o aluno descobrir por si só a invariante da atividade, e sim de construí-la com a ajuda e colaboração do professor e dos colegas no contexto da dada Zona de Desenvolvimento Proximal (NÚÑEZ, 2009, p. 103).
Ambas as fichas partiram do conhecimento de Filipe, inclusive quanto à escrita.
Enquanto Filipe sentia-se inseguro na leitura das palavras, a ficha rosa foi a mais
usada, porém com o passar das aulas ele foi adquirindo confiança e mais habilidade
na leitura e, por isso, o uso da ficha com escritas sobressaiu.
95
5.3.4 Desenvolvimento da Etapa Material/Materializada em Ciências
De posse das fichas de orientação, Filipe recebeu um exercício escrito (Figura 7).
Nessa tarefa, a questão número 1 foi bem respondida por ele, o qual afirmou que a
unha protegia a pele por ser mais resistente. Embora tenha respondido
corretamente, a tarefa foi mal formulada, pois não correspondia ao conteúdo da
BOA, além de não atender aos critérios da etapa materializada, como suprimir
elementos não necessários à ação (GALPERIN, 2103b). Por esse motivo não demos
continuidade à primeira questão e seguimos para as próximas. Na segunda questão,
ele apontou os anexos sem necessidade de controle, enquanto na seguinte
necessitou de orientação da ficha e controle da pesquisadora (Figura 21).
Figura 21: Questão 2 e 3 da fase materializada em ciências
Fonte: Arquivo pessoal
A glândula sebácea, diferente dos outros anexos, não é visível a olho nu e sua
materialização aconteceu ao visualizar um vídeo curto, que a mostrava em
funcionamento e a causa da formação de uma espinha. Filipe reagiu de maneira
entediada, bocejava e, dessa forma, foi necessário acrescentar uma rápida aula
prática, já que nos encontrávamos no laboratório de Ciências e Matemática.
96
Uma folha foi dobrada ao meio e apenas na metade foi espalhado óleo de cozinha.
Com auxílio de um béquer derramou-se água em ambas as partes alternadamente.
Filipe observou o que acontecia com cada uma das partes e chegou à conclusão de
que a absorção da água escorria na metade oleosa, enquanto na outra era
absorvida rapidamente pelo papel. Ele se interessou pela rápida experiência, o
estudo começou a ter mais sentido para ele, e novamente sentiu-se motivado a
aprender.
Naquele instante, a motivação de Filipe o impulsionou a dizer o lhe interessava. Ele
queria ver uma célula, ver no microscópio como são as coisas. Foi ouvindo a
insistência de Filipe que ficou claro que a fase materializada esteve a todo tempo
disponível enquanto era negligenciada. Fomos ao microscópio, permiti que Filipe
retirasse um fio de cabelo com a raiz, e colocamos na lâmina para que ele a
observasse. Ele entrou em êxtase!
Observou a raiz do cabelo, o couro cabeludo, para entender como estava disposto
na cabeça até compreender que a parte visualizada no microscópio não ficava à
mostra. Retiramos um pelo e um cílio para comparar com o cabelo. Filipe fazia
perguntas, formulava hipóteses..., queria pedir à mãe para ter um microscópio em
casa. O bocejo, os olhares distantes e entediados cederam lugar à curiosidade e
motivação para descobrir tudo o que estava sua frente, dando sentido até à escrita
(Figura 22).
Figura 22 - Esquema de representação do cabelo visto ao microscópio
Fonte: Arquivo pessoal
97
Não houve comparação com reinos, castelos e amigos imaginários. Pela primeira
vez, a atenção esteve totalmente voltada para a atividade em questão, sem
concorrentes e cada objeto estudado promovia a motivação para o próximo. Sobre a
natureza da atenção deve-se entender que:
[...] a reação de atitude como o esforço que se prolonga incessantemente no organismo e não como uma manifestação instantânea da sua natureza ativa. Nesse sentido têm razão aqueles que dizem que a atenção (como um motor) funciona por explosões, mantendo a força do impulso de uma explosão para a outra. Assim, o ato da atenção deve ser entendido como um ato que se autodestrói constantemente e torna a surgir, que se extingui e entra em autocombustão a todo instante (VIGOTSKI, 2004, p. 160).
A atenção de Filipe, que até então era difusa, foi tenaz pela primeira vez de forma
plena. Tal fato nos permite acreditar que conseguimos estimular Filipe de tal maneira
que a motivação interna foi promovida e ela possibilitou acontecer a busca por
conhecimento. Mas alcançar esse grau de atenção demandou um ambiente
silencioso, ferramentas que pudessem mostrar no plano material o que estava sendo
estudado e a participação ativa do aluno, porém ao retornar à esquematização do
conhecimento, a atenção novamente tornou-se difusa.
Ao final da etapa, inferimos que utilizar o microscópio como ferramenta de
aprendizagem despertou em Filipe a motivação interna para aprender. Ele ainda
precisa da BOA para identificar os anexos, principalmente quando algo chama mais
atenção do que a tarefa e, por esse motivo, responde errado as perguntas. Quando
concentrado, os acertos são maiores que os erros. É necessário que ele tenha
atenção total ao que está fazendo para executar corretamente a tarefa. Embora
ainda precise da ficha de orientação como mediadora para realizar as tarefas, o
mesmo não se aplica ao material presente ou representado, sendo este um dos
critérios para a passagem da primeira para a segunda etapa da linguagem
(GALPERIN, 2013b). Para verificar a forma da ação, seguimos no dia seguinte com
o controle da ação.
Para o controle, foi utilizada a quarta questão da primeira atividade material (Figura
23), visto que exigia de Filipe tudo o que foi aprendido na experiência da água e óleo
e também do que foi visto ao microscópio. Não houve necessidade de se recorrer à
ficha nem a objetos materiais, porém houve ajuda da pesquisadora. Logo,
98
entendemos que a forma da ação é da linguagem, embora não se tenha alcançado
totalmente o grau de independência (GALPERIN, 2013b).
Figura 23 - Controle da fase materializada em ciências
Fonte: Arquivo pessoal
Quanto à escrita, novamente Filipe cria símbolos para a função específica de cada
anexo e a representação dos mesmos.
Houve dificuldade para desenvolver uma tarefa de controle devido à leitura do aluno.
Por isso, na aula seguinte a leitura e escrita foram priorizadas com a finalidade de
dar mais suporte ao controle do processo que seria realizado em poucos dias devido
ao calendário escolar. Duas atividades foram propostas.
A primeira forma de controle foi realizar o diagnóstico final utilizando as mesmas
tarefas do diagnóstico inicial. Filipe interpretou com mais facilidade os comandos
que estavam representados por figuras. Dessa vez apontou para a presença da pele
em todos os animais, como a escama é a pele do peixe, a do jacaré é ‘molinha’ no
ventre e as peles do cisne e da cachorra estão sobre a pena e o pelo,
respectivamente. Filipe estava mais desenvolto e, ao ser perguntado sobre o que
estávamos estudando, respondeu sem pestanejar: pele, pelo, cabelo, unha, suor... e
lembrou-se da palavra ‘anexo’ ao olhar a ficha. Sim, podemos dizer que o resultado
mostrou que houve assimilação do conteúdo, mesmo que não tenha sido total.
Símbolo criado por Filipe para representar
‘anexo’.
Símbolos criados por Filipe para representar
as funções do pelo e cabelo.
Símbolos criados por Filipe para representar
as funções do suor e unha.
99
A segunda forma de controle obedeceu aos critérios da instituição; todo final de
semestre deve ser realizada uma prova escrita. Assim como em Matemática, a
avaliação foi elaborada abarcando os elementos trabalhados durante as últimas
semanas, inclusive as palavras, comandos e algumas figuras. Também se atentou
para que o aluno estivesse nas mesmas condições que a turma. Assim, embora a
prova tivesse sido elaborada de acordo com suas especificidades, o aluno teria
cinquenta minutos para executá-la. Também foi acordado que ele poderia pedir
ajuda quanto à leitura se precisasse, o que foi feito.
O resultado da avaliação (Figura 24) mostrou mais assimilação sobre os anexos do
que sobre a identificação da pele. Ao observarmos as questões referentes às
funções de cada anexo, notaremos que o aluno acertou. Tal fato pode ser remetido
às tarefas anteriores que priorizaram as funções dos anexos. Ao analisar o histórico
do caminho percorrido, o resultado foi condizente ao que foi mais trabalhado com
Filipe e à BOA. A orientação, segundo Galperin (2013a, 2013b), determinará a
qualidade da ação, ou seja,
Por meio do controle, obtém-se a informação necessária para a correção das ações que os alunos executam e para a correção do próprio sistema. Nesse sentido, o professor deve ter os elementos necessários por meio do controle, para estar seguro de que o aluno pode passar de uma etapa para outra e que, no final, ele tenha percorrido corretamente todas as etapas da assimilação (NÚÑEZ, 2009, p.201).
A avaliação, nesse caso o controle, é um norteador das ações a serem corrigidas
tanto para nós como para Filipe. Assim, o aluno a recebeu após a correção para que
refletisse sobre os erros e acertos.
Allana: Tem o número dois aqui em baixo, não tem? [indicando o segundo item da
BOA para o critério de ser anexo].
Filipe: Sim.... [olhando para a BOA e lendo mentalmente o que estava escrito] Tem
que proteger a pele! [se dando conta que ele sabia, mas que não havia colocado].
Allana: Você sabia, não sabia?
Filipe: Eu tinha esquecido! [com tom de pesar pelo esquecimento].
100
O tom de voz e a expressão corporal mostram o reconhecimento da informação, ele
sabia, mas não havia lembrado. Ou seja, foi a evocação do conteúdo que no
momento foi falho, a função da memória, como sinaliza Martins, (2013c).
Figura 24 -: Prova escrita de ciências.
Fonte: Arquivo pessoal
101
Ao final das etapas, tanto em Ciências quanto em Matemática, a maior
transformação concreta aconteceu na leitura e na escrita, mesmo não sendo os
objetivos de ensino. Talvez por não ter sido o propósito, mas uma necessidade a ser
saciada para cumprir outra finalidade. Vigotski (2007), citando Montessori, diz que é
no jardim de infância que a criança deve aprender a ler e a escrever, descobrindo
essas habilidades em situações de brinquedo. Ainda que não tenha sido a mesma
situação, Filipe não se via obrigado a desempenhar tal tarefa, e com isso descobriu
a leitura e a escrita.
A aplicação dos conceitos assimilados na solução de tarefas tem papel fundamental
na passagem do plano concreto para o abstrato e deste para aquele. Esse
movimento de via dupla contribuirá para o desenvolvimento das funções
psicológicas superiores e para a personalidade integral dos sujeitos (NÚÑEZ, 2009).
102
6 O PAPEL DA ESCOLA NA FORMAÇÃO DO SUJEITO
Trabalhei em várias escolas públicas no Estado do ES e o cenário é bem parecido
entre elas: instalações precárias, salas de aula quentes, com pouca ventilação,
quadro desgastado e manchado, poucos recursos audiovisuais..
Laboratórios também são precários. Parte das máquinas não funciona, a internet é
lenta, e só podem ser utilizados na presença de estagiários, nem sempre
contratados em número suficiente. A biblioteca só pode ser usada por grupos
pequenos, logo, uma aula nela é impraticável. Os laboratórios de Química, Física e
Biologia comumente estão reunidos no mesmo espaço, com vidraria escassa,
reagentes vencidos, raro ou nenhum material para o ensino de Ciências, como
microscópio, lâminas permanentes e modelos anatômicos. Não é fácil ser professor
do ensino básico nem mesmo para o professor tradicional que utiliza somente livros,
pincéis e quadro, pois esses materiais ou estão em mau estado ou não estão
disponíveis para todos os alunos.
As condições
Representam o conjunto de situações nas quais o sujeito realiza a atividade atrelado ao contexto social. Refere-se às condições ambientais (espaço, iluminação, ventilação) e ao clima psicológico no qual se desenvolve a atividade. O agir com sucesso depende do contexto e também das condições de realização da atividade. Para a psicologia soviética, é conhecida a influência das condições e do contexto na atividade da aprendizagem, como espaço de construção de significados e de desenvolvimento da personalidade do aluno (NÚNEZ, 2009, p.86).
Para Filipe, a influência dessas condições ganha proporções mais expressivas no
seu processo de ensino e aprendizagem devido à Síndrome de Warkany. As
condições da escola, como estrutura física e disponibilidade de recursos, e
pedagógicas, como metodologia de ensino, interferem no desenvolvimento cognitivo
do aluno. Sobre essa relação, do meio externo e processos internos, Vigotski (2004,
p. 71). afirma que “O meio não é algo absoluto, exterior ao homem. Não se
consegue nem se quer definir onde terminam as influências do meio e onde
começam as influências do próprio corpo”. É a respeito do desenvolvimento das
funções cognitivas e a atuação da escola em relação a elas que trataremos neste
capítulo.
103
6.1 AS FUNÇÕES DA ATENÇÃO E MEMÓRIA E O DESENVOLVIMENTO
COGNITIVO
Filipe: Não sei porque, mas eu sou mais ajudar que estudar.
Allana: Ajudar o quê? [surpresa, continuei o diálogo].
Filipe: Ajudar as pessoas.
Allana: Mas como você vai ajudar as pessoas? Lembra quando você estava
cuidando do passarinho? Você disse que deu água e depois foi onde?
Filipe: No veterinário.
Allana: No veterinário. E por que você foi ao veterinário?
Filipe: Porque o passarinho tava muito, muito, muito, muito, muito machucado.
Allana: Mas por que você levou no veterinário? Porque ele estudou muito, muito,
muito, muito e ele sabe como cuidar, não é? [concorda e prossigo] Então, quem
estuda muito, muito, muito vai saber de alguma coisa, não vai? [ele concorda com a
cabeça] Se você estudar você vai pode ajudar mais gente ou menos gente?
Filipe: Menos.
Allana: Se você estudar você vai poder ajudar menos? Por quê?
Filipe: Não sei...
Allana: Sabe sim. Você acabou de me falar do veterinário! O veterinário estudou
muito ou pouco?
Filipe: Muito.
Allana: Ele ajudou mais ou menos que você?
Filipe: Mais.
Allana: Mais. Então, se a gente estuda muito, a gente ajuda mais ou ajuda menos?
Filipe: Mais [com um tom baixo, como se reconhecesse algo].
Allana: Mais... olha pra mim agora. Por que você não quer estudar se você quer
ajudar as pessoas ou os animais?
Filipe: Tô um pouquinho cansado...
A conversa foi longa e profunda, a ponto de Filipe sentir-se sensibilizado e desabafar
sobre a própria opinião acerca dos estudos, da ausência de amigos na escola, sobre
ele mesmo.
Filipe: É muita coisa na minha cabeça. [suspira] Tô preocupado com a guerra.
104
Allana: Que guerra?
Filipe: A guerra do meu jogo.
Allana: O seu jogo é de verdade?
Filipe: Sim.
Allana: Quero dizer, é da vida real?
Filipe: Vida real não, mas no negócio da vida real.
Embora ele saiba que o jogo não é a vida real, insiste em dizer que o próprio castelo
está em perigo, ainda que fisicamente esse castelo não exista. Tudo é virtual, ele
sabe, mas persiste em viver essa realidade paralela, pois nela as pessoas não o
veem como ‘diferente’. Virtualmente tem um reino, família e amigos que tratam com
amor e lutam juntas contra um reino inimigo. Na escola não é assim que percebe.
Filipe, quando mais novo, estudou em outra escola, na educação infantil. Ao sair de
uma escola e ir para outra, não foi somente o ambiente e as pessoas que mudaram,
ele percebeu que algo mais mudou. Disse que é diferente21 no modo de andar, na
maneira de falar, que sente dificuldade para correr... era igual aos seus pares na
escola anterior e por isso querido. Mas agora não; as pessoas não gostam dele e
não entende o motivo. Ele se interessa pela ajuda às pessoas e animais, fala da
bondade e caridade, além de se questionar por que as pessoas não são todas
“boas”. A escola, por não trabalhar nesse sentido, não alcança o aluno.
Escutar as palavras de Filipe foi ensurdecedor, e os objetivos desta dissertação
foram questionados. Desnorteada, 22 fui buscar orientação com o mestre. Essa
conversa me fez entender a importância do ser humano Allana para o processo de
formação de Filipe, pessoa que afeta e deixa ser afetada, e assim a pesquisa ganha
um novo e mais complexo sentido. Questionei a profissão da docência, os métodos,
os conteúdos e a razão para ensinarmos. Até então Filipe se esforçara para me
ajudar, pois ele gosta de ajudar as pessoas, porém não entendia a razão de
aprender tudo aquilo. Entendi que os resultados estavam além do que faria no papel,
há algo a mais! Não são somente os cromossomos, é a relação professor e aluno,
21
Diferente foi a palavra utilizada pelo próprio aluno. 22
Tal conversa foi tão impactante que separar pesquisadora dos ideais da pessoa Allana é insustentável. Por isso esse parágrafo foi escrito na primeira pessoa, evitando a impessoalidade.
105
aluno e aluno, pedagoga e aluno..., a formação do sujeito! Nessa formação, os
relatos médicos atêm-se em descrever o atraso no desenvolvimento mental,
deixando a desejar no detalhamento do mesmo. Como essa deficiência intelectual
afeta na aprendizagem? Qual a melhor maneira de ensinar para uma pessoa com
Síndrome de Warkany?
É uma audácia supor que essas perguntas serão respondidas com exatidão para
todos os nascidos com essa síndrome, e também para Filipe. Entretanto, no
decorrer da intervenção, nas observações e, principalmente, no diálogo com ele
obtivemos pistas para responder tais questões. Estar com Filipe sem dividir minha
atenção com outros alunos me proporcionou oportunidades que demais professores
não poderiam ter devido à quantidade de alunos, e pude entender que durante o
processo de ensino e aprendizagem é necessário considerar as funções
psicológicas da atenção, memorização, linguagem e imaginação.
A atenção mobiliza três mecanismos: seleção do conteúdo, a retenção deste e a
inibição de estímulos concorrentes (MARTINS, 2013b). Na sala de aula, os
estímulos para Filipe não eram direcionados especificamente a ele; em um ambiente
de conversas e tarefas, para as quais não tinha ferramentas para solucionar os
jogos, eram sua seleção e retenção, enquanto o conteúdo passado era o estímulo
concorrente.
Filipe está jogando no celular como de costume. Em 30 minutos, sem fazer as
tarefas, o aluno solicita para sair e beber água. Durante toda a aula jogou no celular
(DIÁRIO DE BORDO).
Ficou claro que Filipe é capaz de realizar os três mecanismos da atenção,
principalmente quando o estímulo são os jogos. Mas estes se tornaram fortes
concorrentes quando foram dadas tarefas para que ele resolvesse. Não
materialmente, jogar no celular, mas pela realidade virtual e a fantasia criada a partir
deles.
Allana: [...] lados diferentes se chamam Escaleno. [...]
Filipe: Esse Escaleno me lembra de um reino.
106
Allana: De onde o reino?
Filipe: De um jogo de guerra, que eu jogava. Que aí chamava escaleno o reino. Que
tipo, é..., chamava bem assim: OSC OSC Escaleno (DIÁRIO DE BORDO).
Prosseguiu contando uma história sobre um reino, as pessoas que lá vivem, a
importância do ferreiro para o rei, e que ele, claro, é o Rei! São inúmeras as histórias
por ele contadas, ora reais ora fantasiadas, engatilhadas pela atividade em questão
ou por algo que dissemos. A realidade de Filipe é recheada de fantasias que
preocupam as professoras.
Ele é muito viajante, fantasia demais. Ele acaba fantasiando coisas de forma
negativa. Muitas vezes o Filipe inventa coisas a respeito da família, [...] como um tio
que disse ter e não existe (ANTÔNIA, DIÁRIO DE BORDO).
Em outras ocasiões, os personagens são criados e materializados, como o Seu Zé.
Ele pega uma bexiga, enquanto limpo a mesa, e faz um rostinho e diz que é o Zé, zé
mané. [...] Quando peço para lermos juntos a BOA, ele faz uma voz diferente e eu
brinco com ele em relação à voz. Ele diz que é de um jogo, relata os personagens e
diz que Gutinho é o que ele gosta e que faz essa voz. [...] Enquanto escrevo, ele
brinca com a voz e o balão no qual desenhou o rosto. (DIÁRIO DE BORDO). (Figura
25)
Figura 25: Seu Zé
Fonte: Arquivo pessoal
107
Pode-se dizer que o mecanismo psicológico da brincadeira consiste integralmente no trabalho da imaginação e que entre a brincadeira e o comportamento imaginativo pode-se colocar um sinal de igualdade. Brincadeira não é outra coisa senão a fantasia em ação, a fantasia não é outra coisa senão uma brincadeira inibida, reprimida e não descoberta. Por isso, sobre a fração da imaginação na idade infantil recai ainda a terceira função, que vamos denominar educativa, cuja finalidade e sentido constituem em organizar o comportamento cotidiano da criança em formas que permitam a esse comportamento exercitar-se e desenvolver-se para o futuro (VIGOTSKI, 2004, p. 207).
Ficaram evidentes aos nossos olhos as tantas histórias e a associação entre
realidade e fantasia. Penetrar nessa imaginação poderia facilitar o diálogo com ele,
talvez compreendê-lo melhor, e assim dispor a aula de maneira que sua atenção se
voltasse exclusivamente para o teor da matéria.
Observamos na presença do novo amigo um duplo efeito: primeiro, distraiu o aluno,
o qual desenvolvia diálogos com o boneco e fugia ao foco da atividade; o segundo
foi tornar o exercício mais interessante, pois Seu Zé não era somente uma bexiga,
ao ganhar vida se tornou colega de estudo. Filipe utilizou-se do boneco para
responder às perguntas, que no momento eram direcionadas também ao Seu Zé.
Allana: A gente quer descobrir o que é um...?
Seu Zé: Polígono
Allana: Pra descobrir o que é um polígono temos que saber o que é um..?
Seu Zé: Lado.
Allana: E que é um lado?
Seu Zé: Quadrado.
Allana: Quadrado?
Filipe: Seu Zé, é um lado! [chamando a atenção]
Allana: É Seu Zé, é um lado. E o que é um lado?
Seu Zé: É um pedacinho de uma linha.
Allana: É um pedacinho de uma linha, muito bom (DIÁRIO DE BORDO).
O tom da voz deu ar de brincadeira embora não fosse, e a atenção sobre o conteúdo
da tarefa foi requisitada como condição para dialogar com o boneco, uma vez que
para isso era necessário entender sobre o que se falava. A ludicidade permitiu a
Filipe controlar o boneco, quando na verdade controlava a si mesmo, tanto no
108
comportamento quanto no conteúdo. Todavia, tudo isso só foi possível porque Filipe
tinha uma tarefa a desempenhar.
Daí a importância do ambiente escolar e dos métodos de ensino para a formação
das funções psicológicas superiores, as quais, segundo Vigotski (MARTINS, 2013c),
têm como natureza uma relação de dependência que necessita de um fenômeno
externo para então ser internalizada. A complexidade das funções psíquicas ocorre
no processo de humanização e isso é cultural, logo, a aprendizagem desde a
sensação até a imaginação passa primeiramente pelo plano social, para então ser
individual (VIGOTSKI, 2004). A atenção de Filipe para as tarefas propostas foi
possível porque havia tarefas de acordo com sua ZDI e porque elas de alguma
forma sensibilizavam o aluno. Quanto a isso, Vigotski diz que:
O mestre deve ter sempre a preocupação de preparar as respectivas potencialidades não só da mente como também do sentimento. Não devemos nos esquecer de atingir o sentimento do aluno quando queremos enraizar alguma coisa na sua mente. Dizemos frequentemente: “Eu me lembro disso porque isso me impressionou na infância” (2004, p. 195).
O prazer, segundo Vigotski (2004), também está relacionado à função da memória,
o qual mobiliza três mecanismos: fixação, armazenamento e evocação de
determinado conteúdo (MARTINS, 2013c).
Referente aos mecanismos da memória, Filipe demonstrava em alguns momentos
que era na evocação do objeto que apresentava certa fragilidade, como o nome
‘ângulo’, que foi para ele custoso memorizar.
5 de novembro
Allana: Duas linhas que se encontram vão formar o quê? O que elas formarão aqui?
[mostro a abertura entre as linhas]
Filipe: Polígono.
Allana: Não...
Filipe: Lado, lado!
Allana: Não, quero isso aqui ó [mostro novamente a abertura entre as linhas].
Filipe: Esqueci.
Allana: Olha o que você desenhou [BOA de matemática]. O que é isso?
109
Filipe: Esqueci o nome.
Allana: Ân...ân...
Filipe: Ai, esqueci o nome! Eu sei o que é, mas esqueci o nome.
Allana: Ângu...
Filipe: está. Angustá
Allana: Não....ângulo!
Filipe- Ahhhh, é! Seu Zé ia saber! [concordo com ele]. Gutinho também porque fica o
dia todo estudando.
12 de novembro
Allana: [Filipe aponta no geoplano os lados, vértices e ângulos de um triângulo].
Então, qual a diferença entre vértice, ângulo e lado?
Filipe: Hummmmm, não sei.
Allana: Você acabou de me dizer!
Filipe: Esqueci.
Allana: Esqueceu não, faz força que eu tenho certeza que você sabe. [silêncio].
Você acabou de explicar pra mim, não explicou?
Filipe: Aham, mas eu esqueço as coisas rápido.
Allana: O que você esqueceu?
Filipe: O que que é pra fazer.
Allana: O que tem na figura? São três coisas que têm nessa figura.
Filipe: Vértiche, lado e as pontinhas [e aponta para o ângulo] (DIÁRIO DE BORDO).
A memória é como uma cicatriz, formada pela quantidade e intensidade de vezes
em que foi utilizada. Foram necessárias mais aulas para que Filipe não somente
fixasse e armazenasse o conteúdo, mas que também o evocasse quando
necessário, como no controle final – avaliação de Matemática. A repetição de tarefas
foi corroborada com o próprio comportamento do aluno, o qual disse que, ao
pesquisar no tablet, repetia várias vezes até aprender. A repetição, afirma Martins
(2011b), é a essencialidade concreta da estabilização mnêmica que está relacionada
às peculiaridades individuais, à estrutura da atividade e à organização semântica.
Suscitar a memória do aluno no início do ano sobre a matéria do ano anterior é de
extrema relevância e integra o processo de memorização, para que se crie a cicatriz.
110
É também por isso que o planejamento deve ser interdisciplinar, para que a
informação passada aos alunos seja repetida em todas as disciplinas, não somente
como uma repetição, sobretudo acrescentar algo, uma vez que o processo educativo
deve ser visto como um espiral e crescente (MARTINS, 2013c).
No processo de memorização trabalham também as modalidades sensoriais. Cada
indivíduo terá mais facilidade de aprender enquanto ouve, escreve, debate et cetera.
Não importa o modo, pois o processo de memorização não é impedido, mas pode
ser dificultado caso o professor desconheça essa particularidade do aluno. Filipe
preferia repetir de diversas formas: ao escrever, dialogar, explicar para outra pessoa.
Pode parecer contraditório afirmar que ele memoriza com o ato de escrever se o
mesmo não tinha tal habilidade dominada. Todavia, no percurso das tarefas, tal ação
em muitos momentos deixou de ser coadjuvante e foi a ação principal, inclusive
como motivadora.
Filipe: Nossa, fiz um textão aqui!
Allana: Viuuuuu! E acertou tudo, né?
Filipe: Ahammmm, nossa, não..., eu não conseguia fazer isso! E eu fiz sozinho.
[...] eu nem sabia fazer esse textão!
A linguagem tem um papel fundamental no desenvolvimento das funções psíquicas
(VIGOTSKI, 2004, 2007). O que e como se fala, a riqueza do vocábulo são suportes
para o desenvolvimento do sujeito. Para Filipe, a vocalização das palavras tem
prejuízo por ele confundir a sonoridade de algumas letras como V e F; Ã, N, M, R,
PR, L, Q, QU, T. A leitura silábica com entonação diferenciada prejudica na
compreensão da palavra e, consequentemente, na interpretação do que se lê. Filipe
sentia por não ler e escrever como os colegas, preferia dizer o que vinha à cabeça
na tentativa de acertar.
22 de outubro
Allana: E isso aqui, você sabe o que é que é?
Filipe: Espermercado.
Allana: Quase isso. ES [nesse momento tampo a primeira sílaba e indico a segunda]
111
Filipe: Co [com som fechado, cô] la. Escola [pronunciando corretamente].
Allana: Ahhh, garoto!
Filipe: Eu tava pensando nisso, mas pensei que era espermercado.
Allana: Hummmm, mas existe espermercado? [Filipe acena negativamente com a
cabeça] escola tá certo, muito bom! E aqui, você consegue ler? Tá meio
pequenininho, né?
Filipe: Banco
Allana: Banco? Não... lê direitinho?
Filipe: Eu não sei lê não!
Allana: Mas você acabou de ler!
Filipe: É que eu leio só esse aqui.
Episódios como esse se repetiram. Acertar deixava Filipe confiante, mas o erro o
afetava de tal maneira que se recorria ao que, provavelmente, diziam para ele: não
sabe, e assim desviava a atenção para algo que poderia fazer com sucesso.
27 de outubro
Allana: Que figura geométrica é essa?
Filipe: É um retângulo.
Allana: Vamos escrever retângulo?
Filipe: Eu não sei escrever.
Allana: Eu vou te ajudar, aí você vai lembrar. R, você lembra do R?
Filipe: Aham, [escreve R e E]
Allana: E depois você acha que é qual letra? [pronuncio as duas primeiras sílabas].
Filipe: T?!
Allana: Isso, muito bom. [escreve o “t” e o “a”]. E depois? RETÂNNNNN [silêncio].
Qual letra tem esse som nnnnnnnn, de nenêm.
Filipe: R? [nego com a cabeça e continuo vocalizando]. Não sei.
A escrita foi assimilada gradativamente, e por não ser o objetivo, mas por fazer parte
do contexto de aprender sobre Matemática e Ciências, aos poucos se sentiu mais
confortável para escrever.
112
10 de novembro
Allana: Essa parte final [do cabelo] é a raiz. Vamos escrever raiz?
Juntos: Raiz [Filipe escreve rais].
Filipe: O “i”e o “s” [confirmando se o que escreveu estava correto].
Allana: É quase isso, é o “i” e o “z”
Filipe: Ah! O “i” o “z” e depois o “s”.
Allana: Só o “i” e o “z”.
Filipe: Raiz. [pronuncia e corrige a escrita]. E “cabe” “be”? “pe”? [pronunciava em
tom de pergunta].
Allana: Be
Filipe: Be é o “b”?
Allana: Isso [escreveu o “b” e continuei a pronúncia]. Be, depois do “b” é o que?
Filipe: É o “e”.
Allana: Isso, muito bom!
Filipe: Cabe lo lo. É o “l” e o “o”.
Allana: Muito bom!
Quando alguém torna explícita sua compreensão do que se faz, pode verbalizar o curso da ação, tomando consciência dos acertos e erros. A linguagem se transforma em uma via de compreensão na aprendizagem. O processo de colocar pensamentos em palavras permite ao aluno conscientizar-se de seus conhecimentos e desconhecimentos, de suas ações, fator este que contribui potencialmente para a assimilação dos conhecimentos científicos (NÚÑEZ, 2009, p. 112).
Consciência. O que até então era mecânico, reprodutivo, agora se torna consciente.
A assimilação dos conceitos abstratos contribuirá para o desenvolvimento das
funções psicológicas superiores e a personalidade dos sujeitos (NÙÑEZ, 2009, p.
92).
17 de novembro
Filipe: Nossa, antes eu não sabia nada disso daqui, hein!
Allana: Tá sabendo tudo!
Filipe: Não sabia ler, não sabia escrever..., não sabia nada!
Ele sabia, e disso não sabia, e tão pouco os professores. Estes não poderiam, pois
as tarefas propostas estavam além das possibilidades reais do aluno,
113
comprometendo a qualidade do ensino. O bom ensino é aquele que se volta para o
desenvolvimento iminente, para o que o sujeito ainda não tem, mas pode alcançar
(VIGOSTKI, 2004, 2007). Observamos que as oportunidades ofertadas a Filipe não
favoreceram seu pleno desenvolvimento e que suas crenças – como dizer não sabe
– podem ser replicações do que fora dito por outras pessoas, pois,
[...] o fator decisivo do comportamento humano é não só o biológico, mas também social, que traz consigo momentos inteiramente novos para o comportamento do homem. A experiência do homem não é mero comportamento do animal que assumiu posição vertical; é uma função complexa decorrente de toda a experiência social da humanidade e de seus grupos particulares (VIGOTSKI 2004 p. 44).
A condição biológica de Filipe não é a única responsável pela deficiência intelectual,
como o laudo médico atesta. No momento em que a escola - e a família e sociedade
- negligencia as necessidades específicas de aprendizagem de Filipe, contribui para
a formação deturpada da ‘imagem subjetiva da realidade objetiva’ (MARTINS,
2011b).
A nossa contribuição para a educação inclui Filipe, e consiste em planejar tarefas
que considerem, acima de tudo, o fator motivacional, porque este será responsável
por afetar o aluno e, uma vez afetado, irá perceber, atentar e memorizar. A memória
deverá ser trabalhada considerando a repetição por diferentes maneiras, como a
visual, a auditiva e a escrita. No processo como um todo, destacamos o propósito de
formar mentalmente uma ação, negado à grande parte dos alunos com deficiência, e
a aproximação dos objetivos de ensino aos de aprendizagem. Todos esses
elementos são contemplados na Teoria das Ações Mentais por Etapas.
Depois de toda essa intervenção, será que ocorreu aprendizagem?
Assim, chamaremos de aprendizagem a toda atividade cujo resultado é a formação de novos conhecimentos e habilidades em que a executa, a incorporação de novas qualidades aos conhecimentos e habilidades que já se possuíam (GALPERIN, 2013e, p. 478).
Filipe, em um recado carinhoso respondeu (Figura 26).
114
Figura 26 - Agradecimento de Filipe à Allana
Fonte: Arquivo pessoal
Na educação não há mérito exclusivo, embora muitos professores escolham
caminhos que muitas vezes vão de encontro à psicologia histórico-cultural, há
contribuições significativas. Outros possuem traços dessa psicologia e uma delas é
Bel. Todas as sextas-feiras, na parte da manhã, Filipe foi atendido na sala de
recursos para trabalhar com ela, cujo empenho para alfabetizá-lo tem sido enorme.
A pedido dele, demonstrou o orgulho por si mesmo em um bilhete escrito no
notebook, revelando sua gratidão à professora (Figura 27).
Figura 27 - Homenagem de Filipe à Bel.
Fonte: Arquivo pessoal
115
Aprender para desenvolver. A escola, enquanto espaço privilegiado, deve se
fundamentar no princípio do ensino que desenvolve, que dará suporte ao
desenvolvimento integral da personalidade do aluno (NÚÑEZ, 2009).
Filipe: Oh, Tia, amanhã a gente podia chegar bem cedo pra eu dar aula.
Allana: Ah é?! Você gostaria?
Filipe: Aham, sobre as células [referindo-se ao que viu no microscópio].
Ah, as células! Torço para Filipe aprender sobre as células e quem sabe um dia
libertar-ssse do que hoje lhe condena.
116
7 PRODUTO EDUCATIVO
O mestrado profissional tem como resultado duas produções: a dissertação e o
material educativo. Assumimos a definição de material educativo feita por Kaplún
(2003):
[...] um objeto que facilita a experiência de aprendizado [...]. [...] algo que facilita e apoia o desenvolvimento de uma experiência de aprendizado, isto é, uma experiência de mudança e enriquecimento em algum sentido: conceitual ou perceptivo, axiológico ou afetivo, de habilidades ou atitudes etc. (ibid. p.46).
Por meio da leitura da experiência vivida nesta pesquisa, esperamos que o material
educativo desperte nos docentes a reflexão sobre ensino, aprendizagem e
desenvolvimento do aluno. Ao criar um produto oriundo de uma investigação
vivenciada na prática, nos aproximamos da realidade vivida por cada professor de
maneira mais empática.
Apesar dessa visão mais realista, devemos ressaltar que não é nossa intenção
produzir um material com atividades que devem ser reproduzidas na íntegra e cujos
resultados serão os mesmos obtidos por nós. Afinal, não há uma fórmula que possa
ser usada e que produza bons resultados para todos! Por isso, ressaltamos que as
atividades são exemplos para facilitar a compreensão da Teoria das Ações Mentais
por Etapas e a relação desta com o ensino e a aprendizagem.
Sendo assim, a criação do material baseou-se em critérios elencados por Kaplún
(2003), o qual diz que devemos considerar durante a construção do material o
processo de criação em si, o próprio material e o seu uso posterior. Estes itens estão
relacionados a três eixos: conceitual, pedagógico e comunicacional.
O primeiro eixo nos remete ao conteúdo que será trabalhado, a seleção e a
organização dele, e que deverá ser realizado após uma leitura minuciosa de autores
que se debruçam sobre o tema. O segundo eixo se atenta para o público-alvo e a
metodologia que será aplicada com base em um objetivo estabelecido; este eixo é o
principal articulador do material, sendo ele a definição do ponto de partida e
chegada. O último eixo, o comunicacional, promove interlocução entre comunicação
117
visual, textual e audiovisual. Considera uma leitura dinâmica com informações
técnicas na mesma proporção em que é didático em um texto atrativo; este deve ir
ao encontro do embasamento teórico em que se fundamenta (KAPLÚN, 2003).
Ao cogitar os eixos citados, propomos um material que contenha a essência da
pesquisa de maneira que não seja um manual de instruções sobre ensino e
aprendizagem. Apresentaremos a Teoria das Ações Mentais por Etapas em fichas,
cada uma contendo um elemento da teoria, bem como as propostas de Núñez
(2009) sobre a organização do ensino. As fichas serão reunidas e formarão um
único documento, que é a concretização do material educativo, e será
disponibilizado avulso, cujo acesso será pelo site do Programa de Pós-Graduação
em Ciências e Matemática (EDUCIMAT)23.
23
Link de acesso ao material educativo: http://educimat.vi.ifes.edu.br/?page_id=1409
118
8 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Baseado nas ideias de Galperin em relação ao processo de formação de conceitos
na mente humana, e de Vigotski acerca do desenvolvimento das funções psíquicas,
este estudo objetivou analisar a aprendizagem de um aluno com trissomia no
cromossomo 8 nas disciplinas de Ciências e Matemática, com base na Teoria das
Ações Mentais por Etapas. Para além da base teórica, a Teoria das Ações Mentais
por Etapas foi também metodológica, norteando como planejar, executar e analisar o
processo de ensino e aprendizagem.
As observações realizadas, bem como as entrevistas e a aplicação da teoria,
permitiram que os momentos cujas situações de aprendizagem estivessem
envolvidas fossem problematizadas. O primeiro item pontuado referiu-se ao tempo
em que o aluno permaneceu ocioso, inserido na sala de aula, visto que Filipe
demanda mais de três quartos do tempo em jogos no celular, roendo as unhas e em
saídas para beber água e ir ao banheiro. Tal rotina se formou, uma vez que são
escassas ou ausentes as tarefas a serem cumpridas, e quando há, não são
planejadas de acordo com o grau de desenvolvimento do aluno, segundo fato a ser
pontuado.
Filipe ainda não desenvolveu as habilidades de escrita, leitura e interpretação, está
na iminência em aprender (ZDI), por isso os exercícios realizados consideravam tais
necessidades e o grau de desenvolvimento das mesmas. Quando o nível da tarefa é
superior à capacidade de resolução, mesmo com o auxílio do professor, a tendência
do aluno é sentir-se desmotivado (VIGOTSKI, 2004), sendo este o terceiro fator
encontrado.
Durante a etapa motivacional, foi custoso afetar Filipe a ponto de ele sentir-se
motivado, disposto a aprender. Pela primeira vez o aluno foi cobrado
sistematicamente pelo cumprimento das tarefas que eram desenvolvidas de acordo
com as possibilidades dele. Não havia mais tempo ocioso e, assim, a rotina de Filipe
havia sido rompida, gerando um desconforto inicial. Superar a ociosidade e provocar
a motivação para a aprendizagem foram elementos trabalhados no processo de
intervenção. Neste, o objetivo da pesquisa consistiu em analisar a aprendizagem
119
sobre alguns aspectos da pele e anexos, no caso de Ciências, e figuras geométricas
na disciplina de Matemática, ambos fundamentados na Teoria das Ações Mentais
por Etapas.
Em ambas as disciplinas, a etapa material foi concluída e a etapa da linguagem
iniciada. No controle final do processo verificou-se que houve um avanço em relação
ao conhecimento inicial de Filipe acerca do assunto. Em Ciências, o conceito de
anexo sobressaiu ao conceito de pele, pois, ao analisarmos as tarefas planejadas,
observamos que houve de fato uma dominância do primeiro em detrimento do
segundo, sendo o resultado coerente ao processo realizado. Em Matemática, o
aluno demonstrou ter assimilado o que são ‘lados, ângulos e vértices’, necessidade
apresentada ao longo da intervenção; identificou polígonos, mas ainda precisou de
controle para classificar os tipos de triângulos. Todos esses resultados foram ao
encontro das atividades realizadas e principalmente das orientações dadas, da
relação de dependência entre a qualidade da formação da ação e a orientação foi
descrita por Galperin (2013a, 2013e).
Uma das fragilidades da Teoria, descrita pelo próprio Galperin (2013e) e elaborada
por Talízina (NÚÑEZ, 2009) é o aspecto motivacional, que antecede todas as
etapas. Este aspecto apresentou-se como diferencial em todo o estudo. Enquanto
Filipe não se sentisse afetado, os motivos para aprendizagem apresentavam-se
como fugazes e superficiais, reforçando a falta de concentração. Núñez (2009)
indica que a motivação interna é suscitada a partir de problemas ou situações-
problema que sejam familiares para o aluno. Para Filipe, escrever, ler e interpretar
eram habilidades em formação, apresentados em todos os momentos de motivação,
elaboração da base orientadora da ação e execução da ação.
Embora não fosse o intuito desta pesquisa, durante a realização das etapas Filipe
sentiu necessidade de utilizar tais recursos, configurando-se como um problema
real. Dessa forma, em alguns momentos, os conteúdos de Matemática e Ciências
foram secundários, enquanto a escrita o objetivo principal, permitindo que a
aprendizagem decorresse da própria necessidade, a qual foi significada como um
fator de motivação interna. Tal fato não descaracterizou a pesquisa, pelo contrário, a
partir do momento em que a motivação interna foi suscitada em Filipe, este deu
120
significado à própria aprendizagem, e assim os objetivos deste convergiram com os
de ensino. A disposição para o estudo permitiu que algumas funções psicológicas
fossem observadas e, consequentemente, discutidas.
A atenção voluntária que inicialmente apresentava-se frágil tornou-se tenaz com a
mudança de comportamento de Filipe, embora ainda demandasse esforço por parte
do aluno. As conversas sobre os jogos on-line diminuíram na mesma proporção que
o interesse pelo conteúdo aumentava e, portanto, retomava a atenção, facilitando o
processo de execução e repetição da atividade.
Segundo Martins (2013c), a intensidade de vezes que uma tarefa é realizada
influenciará a formação da memória, fato apresentado também por Filipe; para
aprender algo, ele dizia, é preciso repetir muitas vezes. Durante o processo de
aprendizagem, o aluno queixou-se diversas vezes de não se lembrar de elementos
para resolver a questão, como o nome de alguns itens ou mesmo da pergunta que
era feita. Na correção do controle final também se verificou que o momento da
evocação da lembrança é frágil se comparado à fixação e ao armazenamento das
informações.
É importante lembrar que as funções psicológicas tornam-se complexas no processo
de humanização do indivíduo. A atenção voluntária, memória, pensamento e a
imaginação são funções aprendidas com a vivência em sociedade, mediados pelos
signos. Portanto, nos desenvolvemos com base no que é dado no plano externo
para em seguida ser internalizado (MARTINS, 2011a, VIGOTSKI, 2004). A
discussão sobre as funções psicológicas da atenção e da memória de Filipe não
podia ser dissociada do ambiente e das situações em que se encontrava, tempo
ocioso e ausência de atividades. Assim, para afirmar que tais funções sofrem
prejuízo em decorrência da condição genética, é preciso que mais estudos sejam
realizados, garantindo que o meio forneça todos os recursos para a formação de tais
funções.
Assim sendo, concluímos que o desenvolvimento das funções da atenção e da
memória de alguma forma sofre com a condição genética de Filipe, Síndrome de
Warkany, porém os fatores externos, nesse caso o meio escolar, têm sido mais
121
determinísticos do que o primeiro, pois as características encontradas, a ociosidade
e a falta de motivação foram aprendidas do que estava posto. A mudança de postura
foi percebida quando houve uma sistematização de tarefas, que aconteceu baseada
na Teoria das Ações Mentais por Etapas. Esta contemplava aspectos importantes
para Filipe, como o fator motivacional e a repetição de tarefas.
122
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126
APÊNDICE A
Atividade diagnóstica
Vamos conversar sobre a figura!
Fonte: http://www.e-brabo.com/images/2007/pixelart-b.jpg
O que ela representa?
O que está acontecendo?
Observe as construções: O que possuem em comum? Observe o formato.
Escolha alguns desses formatos e desenhe-os. Vamos compará-los!
127
1) Quais as diferenças entre essas figuras?
2) Observe o quadro abaixo.
3) Vamos comparar essas formas, alguma dessas formas aparece na figura?
4) Qual o nome dessas formas do quadro acima?
5) Há figuras iguais? Se sim, quais?
6) Há figuras parecidas? Quais as semelhanças e diferenças?
7) Quais dessas formas são polígonos?
8) Como identificar os polígonos?
130
APÊNDICE D
Item Generalização Forma da Ação Detalhamento Independência Consciência
1
2
3
Item Necessidade do aluno
de ser controlado na
solução da tarefa
Sucesso na solução
da tarefa
Controle do
professor para
ajuda.
Sim ou não Sim ou não Sim ou não
1
2
3
Parâmetros da qualidade da
ação. Grau de:
Generalização Aplicar nas situações
possíveis.
Forma da ação Plano em que ocorre a ação.
Detalhamento – abreviação à
maestria.
Momentos da ação são
conscientes.
Independência Com ou sem ajuda.
Consciência Explica verbalmente o que
faz e por quê.
Fonte: Núnez, 2009, p.203
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APÊNDICE E
Roteiro norteador para observação nas aulas de ciências e matemática.
Quais as estratégias utilizadas pelo professor para lecionar um novo assunto.
Quais as práticas pedagógicas são utilizadas pelo professor para que os
alunos realizem uma tarefa.
Como é o comportamento do aluno perante os colegas e professor.
Quais as angústias demonstradas pelo professor e aluno quanto ao processo
ensino-aprendizagem.
O aluno realiza as tarefas propostas.
O aluno recorre a algum colega para realizar a atividade.
Se não realiza as tarefas, o que faz nesse tempo.
Como é o clima da sala de aula (amistoso, ansiedade, tensão).
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APÊNDICE F
Roteiro norteador para entrevista com aluno.
O que o professor pediu para fazer.
Como ele resolveu essa tarefa.
Se achou difícil a questão e por quê.
Quais as angústias dele em relação à aprendizagem
Discorrer sobre a tarefa que fez na vida que mais gostou, menos gostou.
Se gosta de fazer trabalhos em grupo.
Como faz amigos na sala, e na escola.
Como estuda em casa, como gosta de aprender algo novo e pelo que se
interessa.
O que você mais gosta na escola.
Quando for adulto, com o que gostaria de trabalhar e o que ele faz hoje na
escola que poderá ajuda-lo a ter tal profissão.
Roteiro norteador para entrevista com professor e pedagoga.
Quando está planejando as aulas, como são selecionadas as estratégias de
ensino.
Contar se havia trabalhado com alunos com necessidades especiais e como
se deu.
Como são passadas as informações sobre as necessidades dos alunos?
Como é a escolha do método de ensino.
Há quanto tempo trabalha com o Filipe
Quais são as observações em relação ao Filipe
Quais as dificuldades sentidas ao planejar tarefas que atendam as
necessidades do Filipe?
A visão de cada um a respeito das maiores dificuldades do Filipe
Como os professores se comportam quanto a realizar tarefas que fogem ao
tradicional (para pedagoga).
Como são informadas ao professor as necessidades especiais de alunos que
possuem laudo? (para pedagoga).