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RUAS SINCRÉTICAS 1 SINCRETIC STREETS Valdenise Leziér Martyniuk 2 Resumo: As ruas de São Paulo foram figurativizadas em duas produções audiovisuais de Destinadores distintos, com a intencionalidade de fazer aderir aos seus objetos de valor: uma marca de automóveis e um discurso popular. O texto discute semelhanças e diferenças nas estratégias de construção de cada discurso, a partir da teoria semiótica, com ênfase nos conceitos de figuratividade, sincretismo e interação. Aponta a mudança dos papéis temáticos e subjetivos exercidos pela ação publicitária e pelos consumidores no ambiente atual, que permite acesso ás competências necessárias para produzir tais discursos. Palavras-Chave: Sociossemiótica. Sincretismo. Publicidade. Abstract: São Paulo streets were used as scene in two different Destinators audiovisual productions, with the intent of making connect to its value objects: an automotive brand and a community discours. The text discusses likenesses and differences in its building strategies, based on semiotics theory, specially the concepts of figurativity, syncretism and interaction. It indicates the changes in the subject roles performed by advertising procedures and by customers in the current environment, which allows access to the necessary competences to produce this kind of discours. Keywords: Sociossemiotics. Sincretism. Advertisement. 1. Identidades em relação na dinâmica do marketing 1 Trabalho apresentado ao Grupo de Trabalho Práticas Interacionais e Linguagens na Comunicação do XXIII Encontro Anual da Compós, na Universidade Federal do Pará, Belém, de 27 a 30 demaio de 2014. 2 Doutora em Comunicação e Semiótica, professora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e pesquisadora do Centro de Pesquisas Sociossemióticas – PUC/SP. Email: [email protected] . 1

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Page 1: INSIRA AQUI O TÍTULO: e aqui o subtítulo, se houver · Web viewEm geral as grandes organizações nacionais e transnacionais praticam o modelo projetado por Aaker (2000, p. 23):

RUAS SINCRÉTICAS 1

SINCRETIC STREETSValdenise Leziér Martyniuk 2

Resumo: As ruas de São Paulo foram figurativizadas em duas produções audiovisuais de Destinadores distintos, com a intencionalidade de fazer aderir aos seus objetos de valor: uma marca de automóveis e um discurso popular. O texto discute semelhanças e diferenças nas estratégias de construção de cada discurso, a partir da teoria semiótica, com ênfase nos conceitos de figuratividade, sincretismo e interação. Aponta a mudança dos papéis temáticos e subjetivos exercidos pela ação publicitária e pelos consumidores no ambiente atual, que permite acesso ás competências necessárias para produzir tais discursos.

Palavras-Chave: Sociossemiótica. Sincretismo. Publicidade.

Abstract: São Paulo streets were used as scene in two different Destinators audiovisual productions, with the intent of making connect to its value objects: an automotive brand and a community discours. The text discusses likenesses and differences in its building strategies, based on semiotics theory, specially the concepts of figurativity, syncretism and interaction. It indicates the changes in the subject roles performed by advertising procedures and by customers in the current environment, which allows access to the necessary competences to produce this kind of discours.

Keywords: Sociossemiotics. Sincretism. Advertisement.

1. Identidades em relação na dinâmica do marketing

O marketing, disciplina e atividade empresarial, abarca todas as responsabilidades que

estabelecem e mantêm a presença das marcas no mercado, respondendo por seu resultado

econômico. No universo das grandes marcas, já se estabeleceu que a disputa pela liderança no

marketing está baseada no conceito de brand equity, o qual foi definido como valor

patrimonial da marca, por David Aaker (1998). Em análise posterior, Andrea Semprini

(2006) adicionou ao sentido do termo o valor simbólico da marca, instaurando-a como uma

1 Trabalho apresentado ao Grupo de Trabalho Práticas Interacionais e Linguagens na Comunicação do XXIII Encontro Anual da Compós, na Universidade Federal do Pará, Belém, de 27 a 30 demaio de 2014.2 Doutora em Comunicação e Semiótica, professora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e pesquisadora do Centro de Pesquisas Sociossemióticas – PUC/SP. Email: [email protected].

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Page 2: INSIRA AQUI O TÍTULO: e aqui o subtítulo, se houver · Web viewEm geral as grandes organizações nacionais e transnacionais praticam o modelo projetado por Aaker (2000, p. 23):

entidade semiótica. Em geral as grandes organizações nacionais e transnacionais praticam o

modelo projetado por Aaker (2000, p. 23):

O modelo emergente pode ser parcialmente capturado pela justaposição de imagem de marca e brand equity. A imagem de marca é tática – um elemento que impulsiona resultados de curto prazo e que pode ser tranquilamente deixado a cargo de especialistas em propaganda e promoção. O brand equity, por outro lado, é estratégico3 – um ativo que pode construir a base da vantagem competitiva e da lucratividade de longo prazo e, portanto, necessita ser monitorado de perto pela alta gerência da organização. A meta da liderança de marca é criar valores de marca e não apenas gerenciar imagens de marca.

Em paralelo a essa operação de peso, existe uma enorme quantidade de empresas regionais,

de marcas de pequeno porte, as que servem como complemento de port-folio para as donas de

grandes marcas, ou aquelas ocupam os terceiros e quartos lugares na preferência dos

consumidores. Esses negócios mantêm uma visão tática, e é natural que dêem mais atenção à

lucratividade que aos ganhos simbólicos de suas marcas.

No primeiro caso, das grandes marcas, as construções de sentidos são de ordem durativa,

enquanto nos últimos são de ordem incoativa e reside nessa diferença também uma distinta

abordagem do que sejam os seus valores de troca. Quais são os valores sobre os quais se

estruturam as bases de trocas instaladas nas relações intersubjetivas de marcas e

consumidores? O que caracteriza essas interações e que modelos teóricos seriam eficazes

para sua compreensão enquanto fenômeno social típico da contemporaneidade?

Obviamente, antes do marketing, desde que foi instalado o conceito de comércio, os dois

lados de uma relação estão interessados em valores (mesmo que estivessem tratando de uma

saca de trigo por uma saca de sal). Considerando os aspectos durativo e incoativo citados

acima, encontramos valores de base e valores de uso, que são correspondentes às dimensões

que Aaker coloca: brand equity e imagem de marca (os valores de base de uma marca só

prometem eficácia se os destinatários a eles aderem). Por exemplo, a situação na qual um

comprador adquire um bem considerado barato, de marca pouco conhecida, acreditando ter

feito um bom negócio porque obteve a funcionalidade desejada por um preço justo, poderia

ser tomada por nós como uma relação baseada no valor de uso. Enquanto um outro sujeito

compra um bem cuja marca é carregada de status e fama, com custo bem mais alto e justifica-

se dizendo que fez uma escolha sustentada na confiança da marca, mas também na imagem

3 O termo estratégia empregado pelo autor é empregado para diferenciar, na atividade empresarial, as ações de longo prazo e amplo impacto, daquelas táticas, mais pontuais. O mesmo termo denominará um dos regimes de sentido e de interação proposto no modelo teórico de Eric Landowski na sociossemiótica.

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que constrói de si mesmo, num querer-ser-visto4 (Landowski, 1992) que o instala diante de

outras pessoas conforme os valores subjetivos que quer projetar. Esses valores são

duradouros, profundos, relacionados à identidade, por isso podemos afirmar que

correspondem a valores de base. Mas, voltando ao primeiro caso, ao tomar a decisão pelo

produto de marca desconhecida, esse indivíduo não está construindo sua identidade como um

comprador inteligente? Pode mesmo dizer aos seus amigos: “Vejam que bom negócio eu fiz”.

E não seria essa inteligência, um valor de base? Entendemos que, num caso como no outro,

pessoas compram segundo sua identidade, ou, ao menos, em função da identidade na qual

acreditam e é esse sistema de valores que interessa à atividade de marketing. Nossa hipótese é

de que a sociossemiótica situe as explicações do marketing como fenômeno que atua no

social e por ele, considerando assim os sujeitos das narrativas, nos seus papéis temáticos e

nas manifestações que operam, construtoras de sentidos e valores. Na análise das

comunicações do marketing e dos consumidores, segundo o modelo, poderíamos então,

compreender as axiologias vigentes no cenário. Nos deparamos assim, com duas identidades:

a da marca e do consumidor - correspondentes no compartilhamento da axiologia, nem

herméticas nem fixas, pois estão inseridas no contexto social, em uma vasta rede de

informações e trocas, que as contaminam num fazer contínuo e em transformação.

Observaremos a seguir duas manifestações midiáticas que ocorreram no mesmo período,

utilizando-se de expressão e figuratividade semelhante, mas que, em sua composição

narrativa e contextualização, fizeram ver valores e sentidos particulares, além de apontar

peculiaridades sobre o exercício dos papéis temáticos de cada uma dessas identidades: o

anúncio da marca Fiat publicado em maio de 2013, intitulado “Vem pra rua”; e a sua

releitura, feita por populares e divulgada no site Youtube, convocando cidadãos para

participar do movimento contra o aumento das tarifas de transporte público ocorrido em

junho de 2013.

2. As ruas no discurso da marca de automóveis

No mês de maio de 2013, a Fiat, grande corporação do setor automotivo, construiu uma

campanha publicitária, ancorada no sistema de valores de sua marca e, como é recomendado

à ação mercadológica, nos acontecimentos do contexto social, que estimulam a lembrança do

4 Segundo o conceito dos regimes de visibilidade. Eric Landowski, A Sociedade Refletida, Tradução de Eduardo Brandão, São Paulo, EDUC, 1992.

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público. A produção audiovisual5 conta com música produzida para a ação e gravada pelo

grupo Rappa, cujo refrão insiste: “Vem pra rua porque a rua é a maior arquibancada do

Brasil.” A campanha insere a marca na ambientação de três eventos esportivos seqüenciais e

de grande monta no Brasil: a Copa das Confederações em 2013, a Copa do Mundo de Futebol

de 2014 e as Olimpíadas de 2016. Utilizando o mote do esporte, a empresa faz a associação

entre os produtos vendidos (os automóveis), referenciados no final do anúncio em texto

verbal impresso (em tinta verde, como que pintado a mão em um muro) e oralizado: “Vem

com quem mais entende de rua. Vem com a Fiat”. Esta chamada afirma a competência do

Destinador, o seu saber-fazer, e instaura a rua como lugar de euforia.

As imagens do texto começam mostrando ruas de São Paulo vazias, enquanto torcedores, em

silêncio concentrado, acompanham um jogo de futebol, em diferentes lugares: residência, bar,

campo, praia. Gradativamente, são vistas pessoas correndo pelas ruas, viadutos, uma viela, a

escadaria de um edifício, e o ritmo vibrante de seu movimento vai ganhando volume com o

acompanhamento da música, enquanto umas contagiam às outras e uma massa vai se

formando na cidade. Uns poucos veículos (de marca Fiat, obviamente) são vistos em meio à

festa. A comemoração de uma suposta vitória do time brasileiro de futebol toma corpo e se

estende pela noite, com muitos corpos suados e molhados em festa, observada a

aspectualização manifesta no vídeo. Figuras femininas aparecem em destaque no vídeo, na

sua dança alegre e sensual. As mulheres (embora o vídeo traga imagens de muitos homens e

crianças), são os únicos sujeitos vistos de frente, em olhar direto para o enuncitário, num

processo de embreagem. O convite verbalizado pelo vocalista Marcelo Falcão, do grupo

Rappa, em operação sincrética com as imagens das cinco mulheres cujos rostos são

enquadrados nas cenas, soam como a chamada para aquele que assiste o vídeo, convocando-o

para sair do assento passivo de sua casa para a arquibancada da rua, viva e vivida na euforia.

Desse modo, o espaço eufórico é na rua, fora das paredes, mesmo local da performance do

automóvel, donde reside o prazer da comemoração na coletividade. Conforme teoriza

Oliveira (2009, p.82): O tratamento das homologações dos dois planos de um objeto sincrético, considerando que só há conteúdo manifesto em uma expressão, nos permitiu depreender como se situa nas figuras da expressão a heterogeneidade de termos ou formantes que são reunidos por uma grandeza sincretizada. Manifestada na reunião de feixes de formantes intersistêmicos ou de figuras intersistêmicas, essas partes vão coexistir em distintas simultaneidades na materialização significante do significado.

5 http://www.youtube.com/watch?v=SxMIwZZPlcM, consultado em janeiro de 2014.

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Figura 1 – Recorte da cena do vídeo na qual a figura feminina vira o corpo em direção contrária à do fluxo de

pessoas e dirige o olhar para o enunciatário. Fonte: http://www.youtube.com/watch?v=SxMIwZZPlcM

Na análise das categorias, percebe-se que algumas oposições da expressão correspondem a

similares no conteúdo, colocando em operação o sistema semi-simbólico do texto. À

oposição vazio x cheio correspondem, respectivamente, os valores de tensão x distensão, os

primeiros disfóricos e os segundos, eufóricos. Correlação semelhante se dá no tratamento do

espaço no anúncio – a horizontalidade das ruas é eufórica, enquanto que a verticalidade (da

escada, do prédio, dos satélites – estes últimos situados temporalmente antes da realização da

performance do time) permanece no eixo da disforia. Situação semelhante opõe o alto ao

baixo – local onde a festa ocorre, no chão, na rua. Assim, descer a ladeira, ou descer a escada

do prédio, é a realização da performance de vir para a rua, de encontrar-se com o objeto de

valor, protagonizado pela marca. O mesmo ocorre com a oposição interior x exterior – estar

na rua, fora de casa, é fazer parte da festa, enquanto o interior é a passividade disfórica da

qual procura-se tirar o Destinatário, na concretização do programa narrativo da manipulação.

Observa-se que o espaço não assume apenas a função de aspectualização da cena enunciativa,

ao lado do espaço e da pessoa, mas como figura de conteúdo, que tem na expressão sincrética

das escolhas imagéticas do vídeo, acompanhadas da sonorização, o sentido que leva à

estrutura fórica do fazer narrativo do texto, conforme resumo do quadro abaixo:

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TABELA 1 - Categorias do espaço operando em

conformidade com categorias de conteúdo em sistema

semissimbólico.

Conteúdo eufórico Conteúdo disfórico

Categorias

da expressão

espacial

Exterior Interior

Baixo Alto

Horizontal Vertical

Cheio Vazio

Cinético Estático

FONTE: elaborado pela autora

A seguir, observaremos como um texto distinto, mas que se aproveita de expressão

semelhante, estabelece sua enunciação, operando em intertexto que ressignifica o discurso.

3. As ruas no discurso da manifestação popular

No mês de junho de 2013, uma grande mobilização popular tomou conta das ruas de muitas

cidades brasileiras, das quais elegemos São Paulo como foco de análise. Dentre diversas

comunicações propostas pelos manifestantes – faixas, cartazes, site do Movimento Passe

Livre na internet, blogs, etc – uma foi o recurso da paródia. Parte do anúncio da marca Fiat,

em especial sua música, foi empregada como hino da mobilização em alguns vídeos

produzidos por cidadãos, que no entanto, construíram edições diversas, tendo como tema a

mobilização popular pela redução de tarifas. Tendo sido um evento de grande complexidade,

conflitos e apoios entre diversos atores na cidade – manifestantes participantes,

simpatizantes, vozes contrárias ao movimento, pode público, agentes da polícia, imprensa –

foram vistos. Portanto, o uso da música da campanha ganhou nova roupagem, interferindo na

comunicação da marca, que optou por tirar a campanha do ar (declarando não ter sido

motivada pelo fato). Conforme dissemos antes, o marketing é uma atividade social, portanto

faz uso de elementos do cotidiano para manter seu discurso em conformidade com as

expectativas dos consumidores, bem como familiarizado com os assuntos do dia-a-dia. Ao

deparar-se com a situação contrária, ou seja, uma apropriação de parte do seu discurso, nos

instiga a investigação. Várias paródias foram feitas nesse mesmo episódio, dado que a

campanha conta com música muito contagiante, como bem ensinam as práticas da

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propaganda. Destas, elegemos uma das duas versões que possuem maior número de

visualizações na rede YouTube6, sendo a escolhida a mais longa, com duração de dois

minutos e quarenta e seis segundos.

Ao contrário da produção anterior, as imagens do vídeo começam já com as ruas cheias,

dando a ver muitos manifestantes nas ruas, portanto suas bandeiras (do Brasil e com as frases

reivindicatórias que foram amplamente vistas na cobertura jornalística do fato, como: “Se a

tarifa não baixar a cidade vai parar”, “Por uma vida sem catracas”, além de referências ao

valor do aumento da tarifa para uso dos ônibus, aos gastos com a realização da Copa do

Mundo, aos problemas nacionais de educação e saúde.

Emergem da leitura, portanto, que a figurativização escolhida no novo discurso, ressignifica a

idéia da rua mencionada na música que aqui se repete. Os eventos esportivos, antes muito

euforizados, transmutam-se em motivos de revolta e fúria. As imagens destacam a violência,

sem no entanto, disforizá-la totalmente. Há presença da violência da polícia e dos

manifestantes – porém a primeira destaca ações contra pessoas e a segunda, contra mobiliário

urbano, em uma operação que parece querer suavizar o efeito da ação. O vídeo persiste com

muitas imagens de fogo em sacos de lixo e outros objetos, luz que ilumina a visão noturna

quase permanente no texto. Ao final, mostra-se a rua vazia, e reconhece-se, em meio às notas

finais da música, vozes que rejeitam a violência. Portanto, na aspectualização, o texto faz

caminho contrário ao primeiro antes analisado, dado que começa com a rua cheia que termina

vazia e onde predomina o escuro da noite, horário que concentrou a maior parte das

manifestações naquele mês.

Ambos os vídeos (da marca e sua paródia) tratam da mobilidade urbana e, embora o

automóvel possa parecer, em um primeiro momento, inimigo do transporte público, não foi

desse modo que a voz popular se apropriou do discurso. Algumas cenas do vídeo flagram

veículos parados em meio à manifestação popular e à ação policial – na imobilidade a que são

submetidos no caos da cidade durante a intervenção.

Ainda sobre as oposições do espaço, o ponto de vista do enunciador é a rua, o chão, numa

predominância da horizontalidade. O alto aparece poucas vezes, e dá a ver outros sujeitos

presentes na cena – como o helicóptero da imprensa, por exemplo, o que ressalta uma

intencionalidade do discurso do movimento em se tornar notícia para mobilizar a opinião

pública.

6 http://www.youtube.com/watch?v=i3lCMiUAJ90 (assinado por www.treta.com.br).

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O destaque para a figura feminina também é dado, assim como no primeiro texto, porém

desta vez, o sujeito mulher, manifestante, volta a cabeça para trás, não para chamar o

enunciatário, mas como que para conferir se está sendo perseguida. E ao virar-se, visualiza-se

que usa máscara contra o gás disparado pelos policiais para conter a movimentação dos

manifestantes.

A rua figurativizada nesta versão do vídeo é, portanto, o mesmo lugar da performance do

primeiro texto, porém sua construção inverte elementos da figuratividade. Nota-se que a

mesma homologação entre categorias da expressão e categorias do conteúdo (Figura 2) válida

para o anúncio do automóvel pode ser usada para o vídeo dos manifestantes.

TABELA 2 – Figuratividade e diferentes efeitos de sentido

Figura Sentido no anúncio do automóvel Sentido no vídeo de protesto

Eventos esportivos Vitória e motivo do festejo Derrota e mau uso do recurso público

Automóveis Partícipes da festa Vítimas da imobilidade

Figura feminina Sedutora e alegre Heroína engajada

Rua Local do encontro Local do confronto

Fonte: Elaborado pela autora

Das duas obras analisadas, pudemos compreender a significação e ressignificação que se

opera no sincretismo de linguagens, provando que, apesar de se utilizar da mesma

composição musical, o sentido só faz pelo todo, na conjunção dos sistemas de linguagens

(assim como é diverso o resultado quando se escuta separadamente a mesma música

performada pelo Rappa e descontextualizada das situações observadas).

4. As interações entre identidades

O estudo das manifestações aponta também que o fazer publicitário é uma prática da qual, na

atualidade, consumidores e usuários comuns da Internet acabam por se apropriar, operando

por regime de sentido e de interação da estratégia (Landowski, 2006), na tentativa de

persuadir seus destinatários, em procedimento baseado na intencionalidade. Além disso, a

produção, no caso analisado, se utilizou do sucesso do anúncio publicitário como argumento

para aumentar sua popularidade, em uma inversão de papéis, dado que esta é uma prática

recorrente da atividade publicitária. Desse modo, dá-se a ver ainda que a publicidade, assim

como as ações que envolvem o marketing e o consumo, configuram-se como práticas

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corriqueiras do social, não apenas se aproveitando de seus fenômenos, como ela mesma

sendo parte desses fenômenos, ou um agente que se situa no mesmo patamar de importância

que seus consumidores.

Em contrapartida, a prática de tentar controlar os acontecimentos da comunicação, como é de

praxe no marketing e na publicidade, encontra novas questões que colocam sua regularidade

em xeque. O fenômeno do big data7, por exemplo, a grande vedete da prática contemporânea

do marketing, reitera sua posição controladora, programadora de rotinas de um consumidor

com as marcas. Ao monitorar as navegações, conversas entre amigos, buscas realizadas por

um internauta e rearquitetá-las em bancos de dados inteligentes, é uma poderosa ferramenta

de controle que permite às empresas conhecer o seu consumidor mais do que este conhece os

meandros da marca. Tal transparência do indivíduo que se deixa ver em suas práticas

cotidianas é o mesmo procedimento de uma marca que quer instituir seus valores e para isso

manifesta-se em discursos diversos aos seus consumidores. A diferença entre o primeiro e o

segundo caso está nos regimes de visibilidade, também ancorados na sociossemiótica. Os

consumidores, em grande parte de suas atitudes nas redes sociais, por exemplo, atuam

segundo um procedimento de “não-querer-não-ser-visto”8, e as marcas atuam por um modelo

de “querer-ser-visto”. O que resulta dessas situações é que o marketing que vê o sujeito, a ele

responde com manifestações cuidadosamente planejadas, em sistemas de valores que lhe

dizem respeito ou correspondem aos seus anseios, continuando um processo manipulatório

que já tinha lugar nas mídias de massa e hoje opera nas mídias digitais e nas manifestações

experienciais proporcionadas pelas marcas aos seus consumidores. Schmitt (2003) define um

modelo de gestão de marketing, denominado Customer Experience Management (CEM): O processo de gerenciar estrategicamente a experiência completa de um consumidor com um produto ou empresa, procedimento que se daria em cinco etapas: análise do mundo experiencial do consumidor (o contexto sociocultural no qual os consumidores atuam incluindo suas necessidades e desejos de experiência e seus estilos de vida); a construção de uma plataforma de experiências, o desenho da experiência de marca (em produtos, imagens e vivências), a estruturação da interface com o consumidor e a inovação contínua para manter o engajamento do consumidor.

7 Não há uma só definição para o termo, que em geral é postulado como uma grande quantidade de dados armazenados, mas que na prática do marketing implica no uso desses dados coletados a partir de diferentes fontes, como dispositivos móveis e redes sociais, em tempo real, para a proposição de produtos, serviços, publicidade, etc, de modo a conquistar a atenção dos consumidores por conta da precisão e velocidade entre a obtenção da informação e as ações.8

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O modelo traz ganhos ao entender que um conjunto de experiências produzidas e sentidas no

domínio do ambiente social compartilhado, mais que comunicações da marca, conduz ao

sentido. Reforça a idéia de continuidade e permanência, dada pela renovação das

experiências, provocada pelas marcas, reiterando o que dissemos antes sobre o caráter

durativo da visão estratégica do marketing. Ainda, ao considerar a etapa do desenho da

experiência de marca dará grande ênfase ao componente sensível, levando em conta que

qualquer experiência humana se dá na percepção integrada dos cinco sentidos e de sua

interpretação inteligível. O que parece falhar no modelo acima, no entanto, é o fato de que a

construção da plataforma de experiências, apesar de ser seguida pelo monitoramento das

interfaces com o consumidor, mantém o marketing no papel temático de controlador da

relação e das experiências de um consumidor com a marca, ou seja, permanece na dêixis da

segurança.

As interações entre esses agentes não se limitam ao universo de proposições que o marketing

sugere, nem ao conjunto de experiências do modelo CEM de Schmitt – uma série de outras

situações pode povoar a vivência de um consumidor, amparado pelas novas tecnologias da

informação e da comunicação em rede que promovem trocas multilaterais, mesmo que

monitoradas. Há que se considerar a intervenção de terceiros envolvidos na relação

inicialmente bilateral entre marca e consumidor, os quais podem gerar situações inesperadas,

características do acaso, como amigos, concorrentes, analistas, pesquisadores, críticos,

blogueiros, etc. Esse consumidor, no entanto, não possui um único papel temático: ele é

também cidadão, trabalhador e, nos dias atuais, comunicador, dado que o acesso aos meios de

produção da comunicação, democrarizados pelo avanço tecnológico, lhe confere essa

competência, conforme visto no exemplo do audiovisual aqui estudado.

Nesse ambiente, uma teoria como a da sociossemiótica, abrangente e que dá conta do

enunciado, da enunciação e, principalmente, da produção de sentido nas relações

intersubjetivas em ato, vai sustentar a compreensão dessas manifestações tão presentes no

cenário contemporâneo.

Referências

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Negócio Editora, 1998.

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