infernus 027 sol2 x

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    2/422 ~ Infernus XXVII

    Cartoon-h-ellKing Chaos

    Ficha TcnicaInfernus n XXVI

    Editor: Mosath

    Produo: Fsforo, Colectivo Criativo

    Equipa Editorial: Aires Ferreira, Black Lotus,

    BM Resende, King Chaos, Lurker, Meli, Outubro

    Colaboradores: Adamastor, Charles Sangnoir,

    Ftima Vale, Filipe, Gilberto de Lascariz, Jos Ma-

    cedo Silva, Jlio Mendes Rodrigo, Luis Couto, Lu-

    pum, Melusine de Maos, Naive, Paulo Csar

    Reviso: Meli

    Pg.16: Claire Jones tasastock.deviantart.com

    Pg.17: Francisca Pageo misspaperclip.deviantart.com

    Pg.19, 30, 40, 41: AssassIIn www.fabiopoupinha.pt.vu

    Pg.20, 22, 25: Bruno Miguel Resende

    Pg.26: Narwhal stone100.deviantart.com

    Pg.28, 29: Mosath

    Pg.33, 35: Meli

    Pg.45: Shanti supermimbles360.deviantart.com

    Crditos das Imagens:

    Pg.1, 18: Laetitia Mantis laetitiamantis.wordpress.com

    Pg.4, 8: Jlio Mendes Rodrigo

    Pg.6, 7: Hans Holbein

    Pg.10: David Richards tchaikovskycf.deviantart.com

    Pg.11: Beata sabotazystka.deviantart.com

    Pg.12: Sam Lim samlim.deviantart.com

    Pg.13, 31, 32, 36, 37, 38, 39: Paulo Csar www.paulocesar.eu

    Pg.14: Courtney Robertson legacyantic.deviantart.com

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    3/423 ~ Infernus XXVII

    NDICE

    Nupta Cadavera -------------------------- 4Jlio Mendes Rodrigo

    A Nossa Mortedentro daquilo que represento ----- 10

    Lupum

    Espectros do Amanh ----------------- 13Naive

    pelos Caminhos obliquosda desmesura ---------------------------- 14Gilberto de Lascariz

    Venha Madame Lamort... -------------- 19Ftima Vale

    Santo Orifcio (parte 1) --------------- 20BM Resende

    Morte -------------------------------------- 26Adamastor

    Vazio e Mortena Perspectiva Inicitica -------------- 28Lus Couto

    God Unborn ----------------------------- 30Melusine de Maos

    Deslocaes Poticas ------------------ 31Mosath

    Quando a Morte nos liga ------------- 33Meli

    Dzia do Diabo ------------------------- 36Charles Sangnoir

    Uma Finalidade Maior ---------------- 37Jos Macedo Silva

    Alm Morte ------------------------------ 40Aires Ferreira

    Deusa, h oito anos que no olhopara uma sepultura no posso maiscom esta serenidade sublime! Toda aminha alma arde no desejo do que sedeforma e se suja e se despedaa e secorrompe oh, Deusa Imortal, eumorro com saudades da morte! (APerfeio, Ea de Queiroz)

    Chegado o Solstcio de Inverno,apetece-me celebrar as noites frias aop da lareira, acompanhado por Lite-ratura e bebida, alm de boa compa-nhia humana.

    O Inverno fundamentalmenteuma data em que os nossos corpos seaquecem com o calor da alma, do es-prito, da criatividade e do trabalho/empreendimento. No esquecendo, lo-gicamente, a tranquilidade familiar e asegurana das amizades.

    Inicimos mais um nmero da Infer-

    nus, com a temtica da Morte e, logonesse incio, surgiram incertezas quan-to abordagem que cada um prota-gonizaria. Enquanto Satanista, tenhoque colocar-me numa posio de totaladorao vida, portanto a Morte caa olhar-me de costas. Isto passar-se-com muitos de ns, Satanistas ou no.O mote desta Infernus assenta no quea Morte representa para o Satanismo,para os Satanistas, para o Individua-lista. Quando uma vida recheada deprazeres, trabalhos, lutas e alegriastermina para um Satanista, o que que

    a Morte lhe diz? Um receio, um hor-rvel medo, uma passagem? Ou noter passado somente de um ponto decostumes no horizonte que o arremes-sa a aproveitar a vida enquanto estamonopolizava-o?

    A Morte era narrada nos Clssicoscom pompa e circunstncia literria aum nvel como o era a vida. As situ-aes mais impactantes eram vistas eescritas e transmitidas com hericotom de voz. Em passagens de tempomais recentes, isso mudou, mas pormais que o mundo mude ou se perca,a preocupao central continua a ser aMorte. A recta nal. O m. O vazio.

    No me insiro em crenas de re-encarnao e, apesar de respeitar queas pessoas precisem de tbuas para sesegurarem, eu penso que esta vida queme deram para ser vivida somenteuma vez, neste planeta e sem prolon-gamento ou grandes penalidades. Oque para mim superior motivo deaio morrer em vida, no a Morte.

    Imobilizao, vegetao e degradaofatais, sem opes. A eutansia umrecinto que para muitos no senoheresia e proibio, mas dever seruma opo e uma escolha pessoais,doravante, naqueles casos em que avontade autntica a deseja.

    Um ser humano em degradao e avegetar prolongadamente, se em posseda sua vontade mental e interior ou emtransmisso emocional de si aos seusprximos e amados desejar o boto -nal, aos seus dedos, o mesmo, deve serdado a alcanar.

    Por outro lado, a Morte nunca mal-trata uma vida quando esta fora ex-perimentada em vontade, conquistase ideias pessoais. O corpo e a aura dapessoa desaparecem, mas nunca desa-parecer a obra e as impresses/pega-das.

    Nesta edio, contamos com arti-gos de opinio dos nossos colabora-dores e contribuidores, as quais soessenciais para se obterem respostaspara as perguntas acima. Certamenteque a leitura de todos os artigos ser

    para os leitores um misto de deslum-bramento e de concordncia, seno deousadia; ousadia que um dos vecto-res pelos quais potencializo a vida. Erealo o artigo do Gilberto de Lasca-riz, o qual disserta sobre Ankou -guras da Morte . Fascinante; depoisno digam que no foram avisados!Interessante detalhe o de contarmos,nesta edio, com alguma poesia. AMorte , com certeza, bem homena-geada atravs deste gnero literrio.

    Boas leituras!At 2013! At ao Equincio da Pri-

    mavera!

    EditorialMosath

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    4/42

    Jlio Mendes Rodrigo

    Nupta Cadavera:Um Preldio Putrefaco

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    5/425 ~ Infernus XXVII

    Jlio Mendes Rodrigo

    a morte de um ser

    humano um acon-

    tecimento biolgico

    que em nada difere

    daquilo que acontece

    a um animal ou a

    uma planta.

    Os olhos humanos no su-

    portam o Sol nem o coito, nem o

    cadver, nem a escurido, embo-ra com reaces diferentes

    Georges Bataille em O nus Solar

    I

    Muito provavelmente, semelhanada grande maioria dos leitores, tambmeu, encetei o meu primeiro contactocom a noo da Morte em idade assaz

    prematura. A primeira memria repor-ta-se mise-en-scene, criada no interiorde um pequeno e humilde quarto dealdeia, onde sobre uma cama cobertade ores jazia uma menina vestida debranco. Ter sido esta a primeira vez emque senti o quo absurda a Existncia.A partir da, a carga assptica que a corbranca acarreta, comeou a confundir--se com o conceito da prpria morte, ouento, com o Reino do Inorgnico. Iguale desconfortvel estranheza apodera--se de mim quando visiono um lmede co cientca (atente-se que at h

    bem pouco tempo, esta era uma cor quepredominava nos lmes do gnero), ouainda, quando por algum motivo medirijo a algum hospital.

    Uma outra recordao, qui al-guma campesina reminiscncia da arsmoriendi medieval, prende-se com aimagem de um vizinho idoso, a quem,na hora da sua morte, foram levados fa-miliares e amigos, para que o mesmo sepudesse despedir desta vida e daquelesque com ele privaram no decurso dasua existncia. Por algum motivo, quenunca entendi, eu e outras crianas,

    tambm fomos convidados a despedir-mo-nos do senhor no momento em queeste se preparava para abandonar a suavida terrena.

    Obviamente, que a estes iniciais epueris contactos com a Grande Ceifa-dora, se sucederam muitos outros. Jvrios familiares e amigos foram porela engajados, interrompendo assim, deforma denitiva esse permanente esta-do de transitoriedade que a Vida.

    Todavia, essa repulsa que a corbranca me causa, no signica que esseestado, que marca o m de uma deter-minada corporeidade, tenha deixadode exercer fascnio sobre mim. Assim,sempre que me desloco a algum pasque nunca tenha visitado anteriormen-te, uma das primeiras incurses a fa-zer, consiste em visitar um cemitrio.Creio conseguir tirar algumas ilaes

    bastante interessantes acerca de umpovo, simplesmente pela observaoda forma como a memria dos mortos preservada.

    Em Portugal, incomoda-me a bran-cura marmrea que adorna a gran-de maioria dos tmulos, bem como okitsch predominante na arte fnebre.Na Islndia, por seu turno, fascina-meque a ora que embeleza estes recin-tos transforme os cemitrios em locaisconvidativos para ponto de encontrode adolescentes. Em Portugal, ainda,incomoda-me tambm a memria deter visto um funcionrio de um grandehospital, a ouvir msica com headpho-nes a preceito e a mascar chiclete, des-locar um carrinho onde transportava

    um pequeno caixo branco, entregar deforma diligente a uns lacrimejantesprogenitores o cadver do seu pequenoente querido. Incomoda-me tambm tervisto um dos funcionrios desta insti-tuio passar toda a manh em volta doseu Mercedes, novo em folha, a recortargrandes pedaos de papelo de forma aproteger a sua preciosa viatura do trri-do calor que se fazia sentir. Estvamosem Agosto de 2003, e como diria LusBuuel andaba la muerte con muchotrabajo ultimamente!.

    II

    Voltando ainda questo da Morteno nosso pas. Se verdade que entrens no abundam os estudos em tornoda Tanatologia, excepto aqueles que soproduzidos no mbito acadmico, e pornorma dentro da rea da Psicologia,nomeadamente em torno das questesrelacionadas com o luto, no poderiadeixar passar em branco uma honrosaexcepo. Estou a referir-me obra AMorte, da autoria de Maria FilomenaMnica, com a chancela da Fundao

    Francisco Manuel dos Santos. Esta obraprivilegia um enfoque alicerado nasreexes pessoais da autora, nomeada-mente, as que ocorreram aps a mortede sua me. Na minha opinio a mesmaobra, como a grande maioria daquelasque orbitam em torno das mundivi-dncias pessoais dos autores, enfermade alguns aspectos de leitura mais sub-jectiva. No caso da autora aqui citada,parece-me que de forma mais ou menosexplcita se nota um estigma, para nodizer preconceito de classe. Todavia,este texto tem o grande mrito de con-tribuir para que a questo da eutansiano seja tema tabu. Posicionando-senuma linha pr-eutansia, a autoraconfessa-se ateia e coloca a essa pardaeminncia que a Igreja Catlica quenos Estados ditos laicos, ainda continuaa exercer uma perniciosa inuncia em

    questes que j no so do seu foro noseu devido lugar.

    Nesta obra, Maria Filomena Mni-ca, fala-nos das trs formas possveisde abordar a morte: a religiosa, a cien-tca e a losca. Assim, a perspectivareligiosa v a morte como o momentode julgamento e a entrada num ou-tro mundo. A cientca, olha a mortecomo a extino de um organismo, ouseja, o momento em que o ser humanodeixa de existir. Por ltimo, a loscaconsidera-a como um m que deve serconsiderado em funo da totalidadeda vida. No mundo Ocidental, infeliz-mente, aps o eliminar sistemtico dasautctones matrizes pags, as leis evo-luram aliceradas na tradio judaico-

    -crist. Neste sentido, para o cristianis-mo, o corpo o involucro da alma, oque o torna sagrado. No importar pordecerto relembrar aqui, o magncotrabalho que o Tribunal da SantssimaInquisio fez em prol de um Huma-nismo mais cristoSegundo a visocientca, a morte algo que acontecea qualquer organismo quando, este en-tra em colapso. Ora, de acordo com estaperspectiva, a morte de um ser humano um acontecimento biolgico que emnada difere daquilo que acontece a umanimal ou a uma planta. Neste contex-

    to, a tarefa da losoa, por seu turno, a de detectar o signicado da morte,e, com base nele, fornecer linhas direc-tivas como aceitar a essncia humana.

    III

    Tu autem mortem ut nunquam ti-meas semper cogita

    Sneca

    Num curioso texto datado da d-cada de 1930, intitulado Ensaio sobrea experincia da morte, o seu autor,

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    6/426 ~ Infernus XXVII

    Nupta Cadavera

    os mistrios e floso-

    fas das ltimas dca-das da Antiguidade

    foram quase exclusiv-

    amente determinados

    por esta angstia do

    indivduo...

    Paul Louis-Landsberg, coloca-nos logono incio do mesmo a seguinte questo: Para a pessoa humana o que signicaa morte?. Ao que se segue a seguinteconsiderao, O problema inesgo-tvel: o prprio mistrio do homemabordado sobre determinada perspecti-va. Cada verdadeiro problema da lo-soa contm os outros todos na unida-de do mistrio.

    Temos, pois, de nos impor limites eprocurar uma base de experincia para

    possveis respostas; e somos sempreobrigados a deixar de lado problemasde extrema importncia. To longe -camos de uma verdadeira metafsica damorte como da vida.

    Para Landsberg, que estabelece umfundamento ontolgico da morte, este um problema especicamente humanoque apenas se coloca pela existncia doacontecimento que a transformaode um ser vivo em pessoa. Para o au-tor, este problema tanto se manifestana histria da humanidade, como nabiograa pessoal do indviduo. As-

    sim, deve-se considerar a pessoa comouma existncia que se faz a si prpria,ou seja, a actualizao de um ser - vir

    a ser (Werdesein) que dar sentido auma unidade existncia pessoal noseu todo. Bastar que ela aparea paratransformar o em personalidade o to-doa da individualidade. Atravs destatransformao unicadora, todos osdemais elementos que precedem a per-sonalizao perdem a essncia que lhes prpria.

    A experincia da morte e a indivi-dualizao, que lhe est subjacente, spode ser entendida no seguimento daconsecutiva evoluo ao longo de v-rias pocas histricas, ricas em indivi-dualidades singulares, devidamenteobcecadas pelo pensamento da morte.Nesta perspectiva pode-se entenderque, os mistrios e losoas das ltimas

    dcadas da Antiguidade foram quaseexclusivamente determinados por estaangstia do indivduo. A emergnciade um novo grau de individualidadehumana, e por consequncia, uma novaangstia de morte abre as portas aosmistrios, s seitas loscas e em l-tima instncia preparao do cristia-nismo.

    Posteriormente, nos perodos doRenascimento e da Reforma, assiste-seao dissolver da comunidade medieval,e encontramos, novamente, uma huma-nidade muito individualizada, em per-

    manente tormento com a angstia damorte. um perodo em que o indiv-duo necessita de se saber justicado nahora da morte. tambm, a poca dasdanas macabras e da representao deum Cristo cruelmente realista morto nacruz ou no tmulo. Veja-se a ttulo deexemplo a fantstica pintura de HansHolbein, o Jovem Der Leichnam Chris-ti im Grabe, datado de 1521.

    Ainda que esta perspectiva de in-dividualizao e de tomada de consci-ncia do indivduo acerca da sua ni-tude, como explanado anteriormente,

    remonte a vrios sculos atrs, o sur-gimento de uma disciplina como aantropo-tanatologia bastante recente.

    O escritor francs, Andr Malraux, noseu Lazare armava, o seguinte: La mort est une dcouverte recente etinacheve. De facto, s muito recen-temente que os estudos em torno datemtica da morte se tornaram um im-portante assunto de reexo. Assim, ocampo das Cincias Sociais e Humanas,s encontrou um interessante campode estudo, a partir da dcada de 1950,com a publicao dos estudos de EdgarMorin. No entanto, so vrios os nomesque surgem na senda deste precursor.Citarei apenas alguns, a ttulo de exem-plo, para o leitor que entenda comopertinente aprofundar esta temtica. Apartir da dcada de 1970 so dignos deregisto os estudos e concluses levadas

    a cabo por autores como Philippe Aris,Louis-Vincent Thomas, Jean Ziegler,Michel Vovelle e Jean Baudrillard.

    No estado dos conhecimentos quepossumos actualmente, tudo leva aacreditar que, este importante momen-to para a histria da Humanidade, quefoi a inveno da sepultura, ter ocor-rido h cerca de 100 000 anos atrs. In-veno ocorrida num perodo em queo Homem de Neandertal e o HomosSapiens coabitavam no planeta. Estasduas linhagens humanas foram as res-ponsveis pelo desenvolvimento e im-

    plantao das mais antigas prticas deinumao que conhecemos. Para com-bater a angstia da morte, o homemprimitivo teve de estruturar o seu pen-samento, de maneira a que conceitoscomo o rito, o sagrado, os mitos, a lin-guagem e religio se integrassem, quaisbaluartes irredutveis, no seu modusvivendi quotidiano. De forma assaz sin-ttica pode-se armar que o desenvol-vimento de um pensamento simblicoter permitido que os nossos antepassa-dos se comeassem a questionar acercada morte e do sentido a atribuir vida.

    Atravs da inumao dos seus mortosdava-se a experincia de reencontrocom o sagrado. Assim, para outorgar

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    7/427 ~ Infernus XXVII

    no existe nenhuma

    sociedade que aban-done os seus mortos

    sem nenhuma

    precauo de ordem

    ritual.

    Jlio Mendes Rodrigo

    resposta a uma crescente necessidadede auto-compreenso, d-se o desen-volvimento, graas linguagem e aossmbolos, dos primeiros sistemas deexplicao e de concesso de sentido,que so os mitos. Se o mito se encontraimplantado e subjacente a determinadacultura, ento, a prtica quotidiana dedeterminados rituais, atravs dos siste-mas religiosos em que se encontram in-tegrados, permitiro, que se coloquemem aco os mecanismos necessriospara a implementao de toda uma (i)lgica mecnica estruturante que per-mita dar as necessrias respostas colec-tivas que a morte suscita.

    Neste pressuposto de ideias e a t-tulo ilustrativo ocorre-me aqui citar a

    denio de rito, cunhada por PascalLardellier: () un contexte social par-ticulier, instaur au sein dun disposi-tif de nature spectaculaire, caractrispar son formalisme, et un ensemblede pratiques normatives, possdantune forte valeur symbolique pour sesacteurs et ses spectateurs. Spectacle,donc, mais plus que cela, le rite est uneperformance,ecace symboliquementdun point de vue social et institution-nel. Obviamente seria desnecessrioenfatizar a universalidade dos rituaisfunerrios, uma vez que ser consen-

    sual armar que no existe nenhumasociedade que abandone os seus mor-tos sem nenhuma precauo de ordemritual. de extrema importncia para oequilbrio de uma sociedade o papel de-sempenhado por este tipo de ritos. Osritos passam ento, a operar como ferra-mentas de mediao atravs das quaistransitam, atravs de determinado actoperformativo, meta - mensagens queutilizam cdigos extralingusticos.

    Perante o exposto anteriormente noser despropositado armar, em conso-nncia com Edgar Morin, que a inveno

    da sepultura foi to determinante paraa o desenvolvimento da Humanidade,como a inveno de utenslios ou instru-

    mentos. Ambos marcam uma passagemda Natureza para a Cultura. Segundoum outro autor, Jean-Claude Mtraux:Toute tradition mortuaire permet eneet de perptuer ou restaurer lidentitnarrative dune communaut corchepar la mort de ses membres. Para ele,a morte, desempenha um papel de ful-cral importncia na criao humana, emparticular no que concerne atribuiode sentidos.

    Importar tambm referir, a ttulo deinformao adicional, que embora estecampo de investigao conte com umahistria bastante recente, o mesmo nose encontra isento de polmicas e de dis-cordncia acadmicas. Um outro autor,Jean-Claude Chamboredon, arma o se-

    guinte: [...] les discours savants sur lamort contemporaine, tels ceux dAris,Baudrillard et Ziegler, ne sont pas dlisdune certaine dploration de la pertede sens de la mort et dune nostal -gie du paradis social perdu faites aunom [dun] traditionalisme passiste,[dun] conservatisme moral ou dun an-ticapitalisme radical. Aos pioneiros daTanatologia, -lhes recriminado o factode apresentarem, em perfeita oposiosimtrica, os modelos de morte vigentesno passado, com os actuais, permitindoassim, que se ignorem algumas das pr-

    ticas contemporneas neste domnio.No tomarei aqui qualquer partido,pois o mbito e extenso deste texto atal no me autoriza.

    Em jeito de sistematizao, apresen-ta-se-me como pertinente, elencar aquialguns dos aspectos que tero contribu-do para a gradual e progressiva perdade importncia, dos rituais fnebresnesta ps-modernidade em que nos en-contramos:

    - Desaparecimento de algumas dasguras ou aces, que em perodos an-teriores exerciam uma parte importante

    no ritual, tais como os responsveis pelatoilete do morto, por norma familiares.Ou ainda, a realizao de cortejos fne-

    bres, bem como a evocao pblica do

    extinto nos meses ou anos posteriores.- A simplicao de todo este pro-cesso, que luz do pressuposto ante-riormente, tornam todo este processomais rpido.

    - A tecnicizao das prticas tanato-lgicas. Importa no esquecer que, maisdo que uma prtica de higiene, a toiletedo morto, era mais um gesto de puri-cao ritual do cadver do que outracoisa em si. Assim, o cadver, depois deintervencionado, por exemplo atravsda maquilhagem, deixa de apresentarum aspecto macabro. A partir deste

    momento, assiste-se criao de umsimulacro, levando a que parea, que, aqualquer momento, o morto v acordarde uma longa letargia, se levante e exer-a as actividade inerentes a um corporaviva. A tecnicizao provocada pelasprticas crematrias exerce tambm umimportante contributo no surgimentodestas novas dinmicas.

    - A prossionalizao que se estabe-lece com o aparecimento do agente fu-nerrio e da sua equipa. Quem estiverfamiliarizado com os domnios da for-mao prossional no nosso pas, j ter

    com certeza reparado na existncia deuma UFCD (Unidade de Formao deCurta Durao) muito apropriadamen-

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    8/428 ~ Infernus XXVII

    Nupta Cadavera

    te designada como Tcnicas de Marke-ting para Agentes Funerrios.

    - Deslocamento de alguns lugares. Ohospital e a morgue passam a substituira casa do morto. Por outro lado, atravsda disperso das cinzas, que a cremao,por norma acarreta, leva a que se percaum topos de referncia e memria dosvestgios da nossa passagem terrena.

    - Dissimulao, que pode passar,pelo j referido embelezamento docadver, mas tambm pela camuagema que alguns cemitrios so submetidos,

    perdendo a sua carga ancestral e pas-sando a ser uma espcie de no-lugareshbridos, situados entre o ldico e o re-creativo.

    - A reduo, em que os traos ouvestgios tradicionais da morte so limi-tados ao mnimo. A comear pelas cin-zas, resultantes do processo crematrioe terminando na tendncia minimalistados epitos.

    Aos aspectos elencados anterior-mente podem ainda ser equacionadosoutros de no menor importncia. Ades-simbolizao que torna as rema-nescncias rituais em meros simulacrosdespidos da sua verdadeira essncia, ouainda a perda progressiva dos laos quecaracterizam o processo de socializao.

    IV

    Do not gentle into that good night/ Old age burn and rave at close of theday / Rage, rage against the dying of thelight.

    Dylan Thomas

    Parece que o homem ps-modernoolvidou um dos principais motivos queestiveram na base de todo o processo dehumanizao e civilizacional. Atente--se no seguinte pargrafo da autoria

    de Fustel de Coulanges, na sua A Ci-dade Antiga, parae se compreenderna sua plenitude a armao anterior: () Esta religio dos mortos pareceter sido a mais antiga que existiu entreestas gentes. Antes de conceber ou ado-rar Indra ou Zeus, o homem adorou osseus mortos; teve-lhes medo e dirigiu--lhes preces. Parece ter o sentimentoreligioso do homem comeado com esteculto. Foi talvez por via da morte que ohomem pela primeira vez teve ideia dosobrenatural e quis tomar para si maisdo que lhe era legtimo esperar da suaqualidade de homem. A morte teria sidoo seu primeiro mistrio, colocando o ho-mem no caminho de outros mistrios.Elevou o seu pensamento do visvel aosensvel, do transitrio ao eterno, do hu-mano ao divino. Nestes povos, e citan-do novamente Landsberg () O temor

    do morto innitamente maior do queo temor da morte. Os mortos que ain-da no reencarnaram so temidos comoseres prximos, ocultos, ameaadores.So vistos como possveis almas do ou-tro mundo que necessrio satisfazere encantar com rituais, sobretudo paraimpedi-las de fazer mal.

    Para Nikolai Fedorov, pensadorrusso do sculo XIX, a Natureza era oinimigo porque condenava extino apersonalidade humana. Para este pen-sador, o nico projecto humano quevalia a pena, era o empenho desmesura-do numa titnica luta pela obteno daimortalidade. Para ele, no era sucien-te que as geraes futuras acabassem

    com a morte. S quando todos os sereshumanos que um dia estiveram vivosfossem resgatados dos mortos, que aespcie humana se tornaria verdadeira-mente imortal. Para Fedorov, a missoda humanidade era a ressurreio tec-nolgica dos mortos.

    O pensamento do autor russo, aindaque possa parecer estranho, foi uma dascorrentes intelectuais que conguravamo regime sovitico. Para os bolchevi-ques, o destino do homem era dominara Natureza. Esta concepo que Fedorovfazia da humanidade como uma espcie

    eleita, destinada a conquistar a Terra ea derrotar a mortalidade, nada mais do que a formulao moderna de umaantiga f. Ou seja, o platonismo e o cris-tianismo sempre sustentaram que os se-res humanos no pertencem ao mundonatural. Os iluministas, por seu turno,quando imaginaram que a humanidadepoderia superar os limites que constran-gem todas as outras espcies animais,limitaram-se a perpetuar esse velhoerro. Saint Simon e Auguste Comte an-teviam e almejavam um futuro em quea tecnologia seria usada para garantir o

    domnio da Terra. Creio poder armarque esta fuso de gnosticismo tecnolgi-co com o iluminismo humanista ter es-tado na base de inspirao de Karl Marxe dos seus seguidores.

    Biologicamente, arma Georges Ba-taille, O pensamento de um mundoem que a organizao articial assegu-raria o prolongamento da vida humanaevoca a possibilidade de um pesade-lo. Os resultados de tal pesadelo eco--distpico encontram-se bem visveisna nossa Memria Colectiva. A UnioSovitica, inspirada por uma losoamaterialista causou no meio-ambientedevastaes mais duradouras e maioralcance, do que qualquer outra civiliza-o ou regime. O legado de Chernobyl por demais evidente para que haja ne-cessidade de explanar com maior graude detalhe o exposto anteriormente.

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    9/429 ~ Infernus XXVII

    Jlio Mendes Rodrigo

    V

    The punishment imposed by Me-zentius on the soldiers of Aneas shouldbe inected, by coupling him to oneof his own corpses and parading himthrough the streets until his carcass andits companion were amalgamated byputrefaction.

    Erinensis,; On the Exploitation ofDead Bodies, The Lancet, 1828-9: 777

    Em Junho de 2009, numa deslocaoefectuada Cornualha, Reino Unido,tomei contacto com uma curiosa publi-cao. Mais concretamente, no decursodesta estadia, foi-me apresentada a re-

    vista Collapse, publicao sediada emFalmouth e editada por R. Mackay. Noseu nmero quatro, esta publicao dereferncia, contm como parte integran-te, um texto assinado por Reza Nega-restani, intitulado The Corpse Bride:Thinking with Nigredo.

    Quando li pela primeira vezeste texto, e em consonncia com Ge-orges Bataille, ocorreu-me, que naverdade, o cadver repugna. Aindaque, de forma mais ou menos implci-ta se encontre imbudo de uma certasacralidade, o cadver tambm mal-

    dito. Para o lsofo francs, lemos noseu LErotisme: Un cadavre nestpas rien, mais cet objet, ce cadavre estmarqu ds labord du signe rien. Pournous qui survivons, ce cadavre, dont laprudence prochaine nous menace, nerpond lui-mme aucune aente sem-blable celle que nous avions du vivantde cet homme tendu, mais une crain-te: ainsi cet objet est-il moins que rien,pire que rien Georges Bataille, ar-ma ainda que, rien ne nous donne plusobjectivement la nause. Para este au-tor, o cadver a representao do limi-

    te, e a rbita imposta pela ritualizaoa que submetido, nada mais do quea possibilitao de uma re-presentaodo insuportvel. O lugar da ritualizaoda morte na vida, bem como a repre-sentao inicitica da morte - ou seja, odelinear de uma temporalidade no li-near, mas sim, integrada num processode transmisso inter-geracional servepara o estabelecer de uma distanciaonecessria. Este distanciamento, paten-te na nusea repugnante que a viso docadver acarreta, de que nos fala Geor-ges Bataille, tambm, uma tentativade recusa da aceitao de uma morteinerte, despojada de qualquer acosobre o mundo dos vivos. Aquilo quese vislumbra na contemplao do ca-dver no se resume apenas a uma tris-teza provocada pelo trmino de umaexistncia. Mas acima de tudo ressalta

    aquela inquietude que se encontra bempatente nos relatos acerca dos mortosvivos.

    Eu no adoro necessariamentecorpos a apodrecer, mas h uma textu-ra num corpo a apodrecer que inacre-ditvel. J alguma vez viu um pequenoanimal apodrecido? Adoro olhar paraessas coisas, tanto quanto gosto deolhar para um grande plano de umacasca de rvore, ou de um pequeno in-secto, ou de uma chvena de caf, ou deuma fatia de tarte. Chega-se perto e astexturas so maravilhosas.

    David Lynch em Catching the BigFish a propsito da noo de Textu-ra

    Quem est familiarizado com a es-crita de Bataille, j se ter com certezadeparado com uma viso da mortecomo princpio excessivo, bem como deanti-economia. O autor utiliza de for-ma abundante a metfora com o luxo,ou seja, enfatiza o carcter luxuoso damorte. Para Bataille, s o gasto sumptu-rio e intil apresenta sentido. A econo-mia per si apresenta-se sem sentido, e simples resduo, de que se fez a lei davida, ao passo que a riqueza se encontrana troca luxuosa da morte: o sacrifcio,

    a parte maldita, a que se esquiva aoinvestimento e s equivalncias e ques pode ser aniquilada. Nesta sequn-cia, para o autor em questo, se a vidanada mais do que uma necessidade dedurar a qualquer preo, ento o aniqui-lamento um luxo sem preo. Num sis-tema em que a vida regida pelo valore pela utilidade, a morte torna-se umluxo intil e surge como a nica alter-nativa.

    Para mim, numa perspectiva alicer-ada numa entronizao de Herodes- enquanto pessimista e enquanto indi-

    vduo dado exuberncia, sendo quena minha ptica, esta tambm umanoo que se insere no lxico bataillia-no de despesa -, entendo que, a essnciabase da humanidade se pode resumirnum perptuo adiamento do Pai no Fi-lho, compelindo sua realizao pelapaternidade, adiando-se na prognie eassim sucessivamente, num processodarwinista que se pretende ad aeter-num na sensaborona gura do CAD-VER ADIADO QUE PROCRIA.

    Bibliografa

    ARIS, Philippe Essais surlhistoire de la mort en Occident: DuMoyen-Age nos jours. Paris: Seuil,1977.

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    GRAY, John Sobre Humanos eOutros Animais. Lisboa: Lua de Papel,2007.

    HUIZINGA, Johan O Declnio daIdade Mdia. Lisboa: Ulisseia, 1996.

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    LARDELLIER, Pascal Thorie dulien rituel. Anthropologie et communi-cation. Paris: LHarmaan, 2003.

    MENDELL, Leilah The Necro-mantic Ritual Book. New Orleans: Wes-tgate Press, 1995.

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    MNICA, Maria Filomena A Mor-te. Lisboa: Fundao Francisco Manuel

    dos Santos, 2011.MORIN, Edgar LHomme et lamort. Paris: Ed du Seuil, 1976.

    Enciclopdia da Morte e da Arte deMorrer, coord. de Glennys Howarth eOliver Leaman Lisboa: Quimera, 2004.

    COLLAPSE IV, ed. R. Mackay (Fal-mouth: Urbanomic, May 2008) ISBN978-0-95530887-3-4

    Penael, Outubro anno 2012 era

    vulgaris

  • 7/27/2019 Infernus 027 SOL2 X

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    Lupum

    A NossaMorte DentroDaquilo QueRepresento

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    11/4211 ~ Infernus XXVII

    Lupum

    Sentimento de circunstncia? No.Sentimento em constante evoluo erevoluo. Vejamos, conheo algumque tenha estado naquilo que habitu-almente ouvimos como sendo o ou-tro lado? Primeira questo: Mas queraio o outro lado? Ora se o antnimo

    de vida morte Respondido? Serassim to simples? Se h algo que te-nho aprendido que, normalmente,as coisas no so simples. DependeAcredito na experincia quase morte.Ser que chega? Vises Tantos rela-tos Estaro todos a alucinar? Meiode defesa do nosso crebro? Muitasexplicaes so dadas e as certezas?As minhas so: estou aqui, neste mun-do, consciente que tenho um prazo devalidade. No sei quando expira. Masdepois s pegarem na velha carcaa ecolocarem-na num caixote de madeira

    e fogo com eleDaqui do alto, deste alto de onde

    vejo e ouo, onde me encontro e meolho Aqui, deste alto vejo a vidapassar Morte em estado preservadopela vida! Invlucros prontos a conhe-cerem o seu tempo de reaco e de res-posta Morre Morre? Morre onde?Enquanto perdurar aquela lembrana,

    aquele sentimento de no esquecimen-to a morte ca em estado de criogenia.Alheio a tudo e aos estados Matriamorta Dou um pontap nas folhasde Outono e despacho as suas corespara outro lado. Oh que sorriso Umestalar seco e sobrevivente dos sonhospostos em prtica Falas de mim? Ocu tem outra cor por estes dias Ato tempo parece morrer, numa subli-me conscincia viciosa. Crculos Amorte e a vida andam sempre de mosdadas Vejo constantemente morte evida.

    A sociedade liberta morte e vida,nem sempre se lembram da persegui-

    o dos conceitos Esto enraizados,interiorizados Di-me a vistaPenso que tenho de correr e fechar osolhos que habitualmente transmitema informao, nem sempre correcta, aoutra esquina do meu corpo Estilha-os dos vidros que corroem o meu dia--a-dia, vidros Espelhos sem a cons-tante informao de mim. Envolve-meeste contentamento Livre novamen-te, soltou-se toda a corrente desconten-te do sofrimento.

    Suores vivos a corroerem a ma-deira seca Acabou-se? Recomea om! Sinto saudades de mim, de ti. Deti principalmente, tantas como as quetu tens de mim A vida vale em mimtodo o meu interior, todo o meu grito

    mudo que olha em volta e no v aque -le olhar Tenho saudades de chei-rar De evocar a memria Morri evejo morrer Acabou em mim umaparte de mim. Quando acabar o quesou, o que ser de ti?

    O que ca no sonho Animal desentimentos, coberto por uma cama-da de lgrimas em cinza Pedra duraque racha com as labaredas altasChamo a mim a morte. Desespero altoe baixo Quantitativos que no po-dem existir. A morte Como ? Comoser o m? Como aps o m? Agar-

    ro no telefone e falo com ele Escutoum piii piii piii Est? Est l????

    A morte Princpio do m? Incio de outra vida? S.f. Cessao

    da vida A minha viso? Acredito que todos somos energia. Segun-

    do Antoine Lavoisier Na natureza, nada se cria, nada se perde,tudo se transforma.

  • 7/27/2019 Infernus 027 SOL2 X

    12/4212 ~ Infernus XXVII

    A Nossa Morte dentro daquilo que Represento

    Vou beber um caf

    para sentir o copo a

    transmitir um pouco

    mais de vida para

    mim. Consigo con-sumir cheiros, sab-

    ores, vidas

    Estouuuu? Preciso de questionar se estou?Est a algum desse lado??? Acabou-seo piiiii. Silncio Morte da linha

    Visto-me de negro para ir ao meu en-terro Ao enterro da comunicao!Putrefaco dissipada em tons

    negros Fico pendurado ao lado doGanges Corpos vazios e inchados apassearem-se sem batimento carda-co sob olhares de quem se banha Amorte aqui to perto A morte semsignicado Preencho um pouco devida Espreito agora Neste precisomomento em que escrevo, espreitoAs nuvens cobrem o meu mundoAquele mundo como eu o interpretoOscilo na cadeira Olho e levanto-

    -me Vou beber um caf para sentiro copo a transmitir um pouco mais devida para mim. Consigo consumircheiros, sabores, vidas Passo nos de-dos a recordao mental de uma qual-quer foto onde aquele velho olha paraa sua vida. Pensa nos seu propsitosPensa na morte Ou na falta delaem si Tento eu adivinhar No te-nho essa capacidade. Morte VidaAmor dio Conceitos que podemser muito mais do que aquilo que re-almente so Produtos em constantemutao e reviso Hoje no sei quemsou Ontem no sabia que hoje nosaberia quem poderia vir a ser Des-cansoCostas com a frente do sofNo morro hoje. No morri ontemOu ser que vou morrendo por cadasegundo que passa No sou alheio vida Sou alheio morte. No penso

    nisso No merece a pena pensar emalgo to importante? Talvez a impor-tncia seja relativa, talvez se que pela

    importncia que lhe damos Sonhocom a morte Sonho com a morte emvida Estado REM do sono Todosos dias, todas as noites morro e vivoA vida e a morte jogam de mos dadasmais uma vez DanamDaname no se cansam. Tomam o seu lugarno ser Ou mesmo naquilo que nose sabe ser Todos os dias o sol ircontinuar a aparecer Esteja eu c ouno Poderei ser recordado ou noSomos pequenos demais para saber oque existe depois. O nada absolutoEsse, para j, o resultado a saborear.

    Enquanto isso, co por aqui, a par-

    tilhar um pouco mais de vida e de mor-te Estado latente de todos Caixa aaguardar pelo clic de abertura. Ru-

    nas a perderem areia Caminham pa-radas no espao para a morte Sorri-so Melancolia Este sou eu, sentadona ponta do relgio Tic Tac interno espera de ser acertado Actualizo otempo J no chove hoje. No cho-ve c fora, vista de todos minhavista Corre agora um raio de sol. Jalguma vez sentiste as nuvens? Bagaomacio pelo corpo fora Os olhos bri-lham, contam a vida ganha. Concursocom a morte hoje Ontem Ama-nh Sempre! Luto para viver! Vivopara lutar! No vivo de luto, mas vis-

    to-me de preto constantemente

    Oscar Wilde disse: (...) Morte om da vida, e toda a gente teme isso, s aMorte temida pela Vida, e as duas reec-tem-se em cada uma (...)

    Escrito por Paulo Sequeira, nes-ta vida, conhecido assim Culpa demeus pais Culpa boa Recorda-do por este nome, recordado por Lu-pum Recordado por uma outra alcu-nha qualquer No me recordem so nome Recordem os meus feitos, asminhas aces, ou falta delas A vidavive-se um passo de cada vez

  • 7/27/2019 Infernus 027 SOL2 X

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    Assombra-me o espectro do amanh

    Negra clarividncia deste meu sentir

    Saboreio o veneno ednico da ma

    E abrao a escurido que h-de vir

    Tudo o que eu sou desfeito em nada

    A dor a amanhecer j em meu peito

    Como a noite diluda na madrugada

    Padecimento a que no me enjeito

    Temo o passado, o presente e o futuro

    Sentidos dispersos na intemporalidade

    O corpo vergado no cho frio e duro

    A alma esvaziando-se de vitalidade

    Vagueio por longos e vos caminhos

    Adenso-me entre veredas espinhosas

    Crucico-me nos meus pergaminhos

    Com palavras esbeltas e articiosas

    Sou arteso e ensasta de uma dor

    Parida do ventre da criatividade

    Confesso-me sem qualquer pudor

    S para sentir a minha liberdade

    Nada mais me dado a contemplar

    Pela minha alma nua e sedimentada

    E no silncio das cantigas de embalar

    Deixo-me dormir nda a madrugada

    Mas o dia vindouro no me perdoa

    Expulsa-me fora do meu caixo

    Logo dentro de mim uma voz ecoa

    Fazendo-me estremecer de emoo

    E a Morte que paira minha frente

    Sedutora a minha parceira de dana

    Que a dita se transforme nalmente

    No seu desgnio de eterna bonana

    Espectro do AmanhNaive

  • 7/27/2019 Infernus 027 SOL2 X

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    Gilberto de Lascariz

    O Ankou, o Po e o Cadver:pelos Caminhos

    Oblquos da Desmesura

  • 7/27/2019 Infernus 027 SOL2 X

    15/4215 ~ Infernus XXVII

    Gilberto de Lascariz

    Eu mato-vos a todos.

    Dstico no Ankou de La Roche--Maurice

    No universo nada se incrementa edesenvolve de forma linear. A natu-reza tem averso linha recta. Tudoa leva a se inclinar para o sinuoso. Avida no seu sentido mais sensorialexprime-se por isso de forma recur-vada e ondeante, reencontrando-sepermanentemente com a sua sombra,o seu oposto: a Morte. Embora a Mor-te seja permanentemente recalcada namemria e abafada no esquecimento,

    inevitavelmente h momentos em quetropeamos nela. Nem que seja numpasseio de domingo pelo cemitrio ounuma passagem imprevista pela mor-gue do hospital. Ento um dia surgeo momento corajoso de a interrogar,mesmo sabendo que ela nos devolvesempre o seu perptuo silncio. Masa eccia est em fazer a prpria per-gunta e no em receber a resposta. So-mos como Perceval no salo do castelodo Rei Pescador. Diante da viso daprocisso sangrenta e luminosa, emque as donzelas trazem a lana a san-

    grar e o prato resplandecente, eco douxo processional do prprio existirque sangue e luz, sofrimento e felici-dade, camos sempre silenciosos. Fica-mos calados diante da Morte e da Vidano as interrogando. Como resultadodesse auto-imposto silncio camosmortos e fossilizados em padres dehbito de existir que consideramos onosso direito de viver.

    As guras da Morte chamadasAnkou que pela zona de Finisterra, naBretanha, se encontram esculpidas emmuitas igrejas e ossurios ou erguidas

    como esttuas ao lado de representa-es de santos e martrios provavel-mente o nico interlocutor que temosainda hoje para representar o papel daEsnge ou do Graal que um dia inter-rogou dipo e Perceval. Ambos so as-sassinos involuntrios: um do seu pai eoutro de sua me. A Morte est semprea rondar volta dos heris. Sempre aconstruir-lhe ardis. Percorri, por isso,o Caminho da Morte que de formalabirntica se abre e fecha em sucessi-vos crculos de expanso e contracopor terras de Finisterra s para me co-locar de frente destes esqueletos e osinterrogar. Desde Le Roche-Mauricepassando por Ploudiry at Ploumiliau,no norte de Ctes DArmor, a Morteparece ter escolhido aquela zona iso-lada e grantica como anteatro desua majestade. Sob a palavra Ankou,

    do breto Ankoun, Esquecimento, ouAnken, Tristeza, revela-se a plangnciae melancolia dos vivos ao lembrar-sedos mortos assim como a dolncia bea-tca dos mortos a que almejam algunsvivos1.

    Nestes lugares cerimoniais da Mor-te no preciso muita imaginao paranos transplantarmos para sculos dis-tantes no passado. No deixa de serfascinante pensar como em lugaresperdidos como estes, nesta fria e bru-mosa Bretanha, se elevaram igrejas, os-surios e catedrais, que so verdadei-ras jias artsticas que perduram athoje interrogando o nosso imaginrio!Mas o que atrevidamente inquietante que nada perdure das vidas daqueles

    que as construram e as frequentavam. como se a prpria vida, esta vida uti-litria e banal de todos os dias, fosse oscampos elsios da prpria Morte ondetudo est condenado ao anonimato eesquecimento. A sua imagem desfo-cada s permanece nas representaesda Dana Macabra ao lado da Morte atocar tambor e no corrupio serpente-ante da dana com bispos, suseranos,feirantes, prostitutas, cruzados e intru-jes. No mundo moderno s IngmarBergman conseguiu ilustrar a belezamacabra da Morte no seu lme O Sti-

    mo Selo. Ele percebeu que existem mo-mentos em que possvel ter a percep-o da ubiquidade da vida e da mortee que nesses instantes fulgurantes quesamos de sbito da nossa iluso de se-gura unidimensionalidade temporal.Ento, podemos atravessar as frontei-ras do tempo e sentir o que seria essemundo dos sculos XV a XVII2, em quepor toda a Europa exorcizava o Diaboqueimando as bruxas e se erguiam si-multaneamente hinos em pergaminhoe pedra Morte.

    Tem-se com razo defendido al-

    gumas vezes que as ceias e danas vi-sionrias das bruxas, que formavam otemplate ritual do Sabat, foram enxerta-das na Dana Macabra. Alguns acredi-tam mesmo que esta Morte, que vemosnua at ao esqueleto, no teria sidonada mais do que Caim condenado aser errante, o primeiro lho de Eva aVivente e o primeiro assassino da hu-manidade. A relao mais directa da

    1 A palavra Ankou j aparecedurante o sc. IX no gals (angheu) e nocrnico (ankow).

    2 As representaes escultri-cas mais antigas do Ankou que exis-tem na Finisterra so do sculo XVmas a sua memria recua at gran-de peste de 1348 e Guerra dos CemAnos que dizimou uma grande parteda populao francesa de ento.

    Morte com Caim no s a sua errn-cia solitria pelo mundo mas tambm alana que traz sempre consigo, como sepela metonmia da sua representaoinvocasse o seu nome: Qayin (Lana)3.A maestria de Caim como agricultor eassassino sacricial, o primeiro Ankouda Humanidade, deve ter iniciado asimbiose, que desde ento se desen-volveu, entre a fertilidade do campoe o mundo dos mortos. Ambas tm asua origem nas entranhas da terra e nodomnio do Senhor dos Mortos.

    Tudo o que hoje sabemos doAnkou deve-se a Anatole Le Braz eao seu La Lgende de la Mort chez lesBretons Armoricains. As lendas que elerecolheu desde a Finisterra, na pon-

    ta ocidental da Bretanha, at ao seuinterior perdido no seio das orestasfrias e intimidantes de Cte DArmor,foram importantes para compreenderesta gura de psicopompo veneradoe temido por terras clticas. H quemmesmo defenda que este Ankou, quevemos ora de lana e de foucinha namo, outras vezes de p ou com picacomo o Bawon La Croix do VoodooHaitiano4, no seja nada mais do queuma reminiscncia do Dis Pater, o Paidos Mortos, que Jlio Csar considera-va ser a divindade ancestral dos gaule-

    ses. Nesta perspectiva a origem mticados povos celtas adviria do Senhor dosMortos. Isso signicaria que de umamaneira ou outra todos eram mortosmesmo se julgando vivos. Assim sen-do ele teria representado o papel deSaturno ou Cronus entre os romanose gregos, criando e devorando os seusprprios lhos. No deixa de ser inspi-rador que esta faceta canibal de Satur-no esteja expressa numa escultura doAnkou em La Roche-Maurice onde eleexclama: eu mato-vos a todos.

    Embora a gura do Ankou se te-

    nha centralizado sobretudo numazona especica da Bretanha, a Finis-terra, a imagem descrita nas lendasbrets de um vulto coberto de negro,com o chapu ou o manto cobrindo--lhe parcialmente o rosto, no deixade nos lembrar outras guras comoOdin e Mephistophilus. Um e outroso os Portadores da Morte, verdadei-ros tanathoforos. O primeiro enquanto

    3 Algumas das suas represen-taes trazem tambm o martelo doferreiro o que reporta a uma sua outrahipstase, a gura de Tubal-Caim.

    4 Ainda se est por saber atque ponto a ocupao colonial france-sa ter inuenciado a iconograa dosfnebres Bawons do Voodoo Haitianoface ntida semelhana formal com osAnkous da Finisterra.

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    16/4216 ~ Infernus XXVII

    Pelos Caminhos Oblquos da Desmesura

    protector dos enforcados e dos herismortos em batalha e o segundo comoprecioso dador desse dom da Morteque o Conhecimento Gnsico. Me-phistophilus no deixa de repetir omodelo da Serpente no Paraso, quemais do que um alto estado espiritualdever ser considerado um estado in-ferior, vegetativo e primevo de consci-ncia, que ao infundir o ConhecimentoGnsico em Eva simultaneamente amarca com o destino da Morte. O pactocom Mephisto com a Morte que tudosabe e tudo conhece. Por isso ele temum prazo e uma clusula de cednciada alma. No deixa de ser paradoxalque o bem mais precioso, que a Sabe-doria, s possa ser recebido das mos

    da Morte e receb-lo seja sempre umaforma morrer, de perder a alma. Mor-rer pelo menos para a dimenso larvare vegetativa do ego humano.

    A gura do Ankou aparece sobre-tudo sobre os sumptuosos ossuriosarmricos, nas fachadas ocidentais dasigrejas e, algumas vezes, sobre piasbaptismais. Porqu esta impressionan-te e elaborada preocupao iconogr-ca sobre os ossrios da Finisterra?O Ankou parece ser uma tnue lem-brana, emergida pelas epidemias e asguerras, dos Deuses liminais do Nas-

    cimento e da Morte. Eles erguem-secomo inuncias positivas nos ritos denascimento antes do baptismo e comoinuncias trgicas no rito fnebre de-pois da uno dos mortos. O seu tem-

    plo por excelncia , no entanto, o os-surio. No seu reino, a casa morturia,ricos e pobres, gnios e medocres, tmo mesmo destino: serem despidos dacarne at sua essncia, o esqueleto.Quando a humanidade se reverte nanudez do esqueleto, fortuna e talento,homem e mulher, que separam e hie-rarquizam a condio humana, trans-forma-os a todos em iguais. O smbo-lo dessa igualdade, onde se celebra abeatitude samdica do caos, o mantonegro com que a morte se envolve.

    No deixa de ser um acaso signi-cativo que os anarquistas, defensoresradicais da liberdade e da igualdade,tenham sempre usado a bandeira ne-gra desde que Louise Michel a carre-

    gou nos braos em 9 de Maro de 1883,durante as violentas manifestaes dedesempregados em Paris, e que NestorMakhno tenha sobre a sua divisa der-rotado doze exrcitos durante a Revo-luo Russa e dado a liberdade a umagrande rea da Ucrnia. Atravs dessesudrio negro o Negro fala da igual-dade consubstancial de toda a huma-nidade quando passa pelo seu leito demorte. no esqueleto, smbolo dessaigualdade que se esconde por debaixoda nossa carne, dos nossos desejos sen-suais, que est sempre o Ankou. Mes-

    mo no momento mais intenso da vidasensorial, que o sexo e o orgasmo, eleespreita-nos sob a forma da Petite Mort.

    Contam as lendas armricas queo dom das bruxas e feiticeiros verem

    atravs do vu opacos dos sentidose de, assim, contemplarem o mundodos Espritos e dos Deuses que forjamcomo andeiras a realidade multifa-cetada da Natureza, era uma ddivaconcedida pela Morte, pois a crianas o poderia receber atravessando ocemitrio antes de entrar na igreja paraser baptizada. Este cortar caminhopelo cemitrio para entrar na igrejano deixa de ser uma traio consci-ncia crist: ade primeiro ter atraves-sado o Mundo dos Ancestrais antesde ter atravessado o Reino da Igreja eter recebido o exorcismo do baptismo.Ver com clarividncia e existir entre osdois mundos um apangio dos sereslmbicos e ambivalentes do qual a ima-

    gem de excelncia o Diabo. De certamaneira o dom da vidncia seria umdom do Diabo.

    Pergunto-me muitas vezes diantedo Ankou, representado no centro dasala de minha casa por um crnio hu-mano deposto sobre uma salva de pra-ta do sculo XVI, a poca de prolifera-o escultrica do Ankou, que papeltem a morte para alm da celebraopiedosa da aniquilao e extino davida humana. Se nas situaes extre-mas tudo tem tendncia a se tornar oseu plo oposto, uma espcie de enan-

    tiodromia dos valores, o Ankou s sepode rever na sua contraparte que oStiro. O Ankou reverte, na situaoextrema, para a exuberncia sensorialdo Stiro nas Danas Macabras da

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    Gilberto de Lascariz

    mesma maneira que o Stiro reverte nacondio do Ankou nas Danas do Sa-bat. Conduzindo a sua sexualidade atao extremo da violncia o Stiro trans-forma-se na Morte. A ideia que temosda Morte nasceu do erro cristo de ahomenagear com contrio, piedade earrependimento, quando ela deve sercelebrada no desmedido e no potlach,no jbilo e na hilaridade. Isso deve-seao facto de tanto o Stiro como a Morteestarem excludos da ordem social dascoisas, do mundo do comedido e docircunspecto. Ao contrrio do mundoordenado em que vivemos e do qualexpulsamos a morte e a obscenidade oLimbo propicia o riso e o obsceno. Ofolio, mais do que o padre, o ver-

    dadeiro e genuino sacerdote da Morte.Quando todos os dias comemosno nos lembramos que precisamos,ns ou algum por ns, de ter matado.Fazemos uma cesura cerebral ampu-tando-nos da capacidade de ver e lem-brar que vivemos sobre um monto desangue e ossos. Vivemos em perptuacumplicidade com a morte para viver.A vida e a morte foram, contudo, ex-pulsas para os limbos do excesso e dadesmesura, onde tudo se vira do aves-so e todos os valores se revertem noseu oposto. Num bordel a prostituta

    plida e entediada que se estende nuana chaise longue espera de seu prxi-mo cliente facilmente poderia ser con-fundida com um imponente cone daMorte, tal como Georges Bataille a viu.A adolescente que se ajoelha sobre aslajes de mrmore do cemitrio, sacu-dindo com as mos as ores que de-posita com trivial melancolia sobre otmulo, esculpindo com sua postura asensual graciosidade da curva animalde suas ndegas, facilmente poderia

    ser comparada a um verdadeiro co-ne das bacantes no reino dos mortos,como tantas vezes as vi. Essa desmesu-ra toma-nos sem licena e apropria-sede sbito de ns. H na desmesura osopro de uma verdadeira Gnose Dai-mnica. Quando isso acontece entoum pouco do louco e do poeta descesobre ns em estado de Graa. Mais fa-cilmente o Divino Paracleto nos traz aGraa diante da viso de uma bacantedobrada sensualmente sobre a laje deum tmulo do que na contemplaoda Virgem num nicho perfumado de

    igreja. Tal como o Ankou Quandode sbito nos fecha estrepitosamente opalco do teatro onde nos habituamos aexistir, consolados no doce enlevo dosubsistir medocre e vegetativo, e vema casa buscar-nos com a sua carreta fu-nerria (karrigel).

    H um cheiro a mortos na igre-ja e no bordel. Mas presentemente sno bordel ainda se mantm o segredoque nos descarna at ao esqueleto. Atao segredo do Eterno. No deixa para

    mim de ser sempre uma perplexidadecomo o corpo se desveste da decnciapelo relmpago da luxria na cama dobordel e acaba transxado no caracte-rstico silncio da Morte. verdade,por isso, que no lupanar se amonto-am mortos transformados em Ankou.Na crena armrica o ltimo morto decada ano sepultado no cemitrio daparquia o Ankou do ano seguin-te. A mesma tradio subsistiu entreas crenas Voodoo em que o ltimosepultado do ano o Gede da aldeiano ano seguinte. Nas lendas brets oltimo morto do ano reveza-se ao doano anterior servindo como Ankoupara conduzir as almas ao seu destinono Alm. Ele faz esse servio cheio de

    grande elegncia: numa carreta sump-tuosa mas barulhenta puxada por doiscavalos e guiado por dois esqueletosassistentes. Isso signica que o Ankouna sua faceta escultrica, tal como ve-mos esculpidos por vrias igrejas re-motas de Finisterra e Ctes drmorrepresenta tendencialmente o Guar-dio dos Mortos, enquanto o Ankouque se relata nas lendas, transmitidasde pais para lhos, representa o Psico-pompo. Assim, o Ankou no o Tha-natos dos gregos que aparece acom-panhado de seu irmo gmeo Hipnos,

    deus do sono. o seu terrvel servidor:o humano transgurado pela morteem executor da Morte. O Ankou oMensageiro da Morte da mesma formaque Cristo o mensageiro de Deus.

    Se a Morte no fosse to assexua-da, pois o esqueleto no tem nem sexonem gnero, morrer poderia ser o in-cio de todos os deleites. Em algumaslnguas como a portuguesa e a italianaa Morte feminina. Embora o esquele-to e o traje nunca indiciem a sua sexua-lidade a linguagem corrente dos povoslatinos caracteriza-a indubitavelmente

    como sendo mulher, La Santa Muerte.No inconsciente da populao bret oAnkou poder ser uma segunda me,a Me Negra do Destino, Senhora dosOssos e Protectora das Almas. Anato-le Le Braz reporta que na sua infnciapassada em Ploumilliau sempre cons-tatou com perplexidade como tantaspessoas se dirigiam ao altar do Ankoudentro da igreja para rezar com devo-o. Rezar Morte pode parecer parans hoje um acto mrbido mas semdvida ainda o fazemos inconscien-temente quando vamos ao cemitrioorar pelos nossos antepassados. Avenerao corrente aos mortos nos ce-mitrios catlicos revela por detrs dasua inocente simplicidade um ritualnecromntico, quando executado comconscincia do seu simbolismo. Sobreo tmulo, dentro do qual se encontram

    Quando todos os

    dias comemos nonos lembramos que

    precisamos, ns ou

    algum por ns,

    de ter matado.

  • 7/27/2019 Infernus 027 SOL2 X

    18/4218 ~ Infernus XXVII

    Pelos Caminhos Oblquos da Desmesura

    os restos mortais, despeja-se um poucode gua smbolo da Vida para saciar asede dos mortos e alumia-se uma velapara que a Luz permanea guiandovivos e mortos entre os caminhos quena sepultura se cruzam entre ambos osmundos.

    Nas pocas passadas em que seofereciam alimentos aos mortos nocemitrio a laje era o equivalente damesa da cozinha e o ritual uma ceia en-tre vivos e mortos. Ora, se h uma tra-dio bizarra de culto aos mortos semdvida a que poder ser eleita como amais estranha ser aquela que se faziapela antiga Armrica: a de colocar omorto sobre a mesa da cozinha dianteda janela principal e de cobri-lo com o

    pano com que se envolvia o po cozidono forno para o proteger do sol e dapoeira. A mesa da cozinha ser talvezo altar mais primitivo da religio dospovos. Desde o Neoltico que conhece-mos a tradio de sepultar os mortosdebaixo da laje da lareira da cozinha volta da qual se faziam as refeiescomunais. Comer e venerar os mortossempre estiveram correlacionados. Co-zinha e cemitrio sempre foram paren-tes secretos. Sobre a superfcie da mesadurante milnios se dividiu o po e be-beu o vinho que se tornar no Cristia-

    nismo uma recordao da ltima Ceiaque antecipa a morte de Cristo.Na tradio armrica era sobre

    a mesa da cozinha que se colocava omorto depois de lavado e vestido. volta do cadver assim deitado sobrea mesa de comer fazia-se a viglia noc-turna e as oraes antes de o enterrar.Descono que por detrs desta for-ma de despedida do morto est sub--repticiamente um culto de veneraoquele e aquela que se tornava desdeento um Ancestral. Na minha fam-lia permaneceu a estranha tradio de

    um rito alternativo: a de o moribundochamar antes de morrer o lho varo esegurar a sua mo enquanto a sua vidagradualmente se desvanecia. Assimme despedi de meu pai e meu av. Esta curiosamente a forma de transmissoinicitica do xamanismo de pai para -lho em algumas zonas da Sibria, umaespcie de passagem de poder de sa-cerdcio numa igreja hereditria.

    A estranha relao entre o po eo cadver estabelecida na imaginaopopular bret era mediada pela toalhae a mesa. Muitas famlias conserva-vam religiosamente essa toalha comoinforma Anatole Braz, como fosse umaespcie de santo sudrio. A sacralida-de desse sudrio era to nobre quantopor um lado cobria os antepassados e,por outro, o po de alimento dirio.Por uma espcie de contgio mgico-

    -semntico o acto de comer o po decenteio ou trigo colhido no campo etapado pelo mesmo sudrio que co-briu os seus antepassados no deixade, pelo mecanismo sgnico, ser umaforma de comungar com os Ancestrais.Comer sobre a mesma mesa em que

    se exps o corpo morto dos antepas-sados e o po consagrado pela Mortesob a sacralidade da toalha-sudrio spoderia ser vivido como um poderososacramento alternativo ao sacramen-to da eucaristia em que se comia pormimesis o corpo de Cristo. No deixode sorrir pela forma criativa como ospovos conseguiram ludibriar a vigiln-cia e serventia da religio crist conser-vando ritos aparentemente inocentes

    mas reveladores, contudo, de cultosgentlicos aos Ancestrais. Reforandoesta ideia no deixa de ser eloquente-mente simblico o facto de que o trigoe o centeio serem habitualmente seme-ados nos primeiros dias de Novembro,quando se celebrava o culto aos Mor-tos e Antepassados, para depois sercolhido em Agosto no pico do sol devero, informando-nos sobre a relaosimblica intrnseca entre a Morte e oSol, smbolo da Vida Eterna.

    Nas sociedades modernas rejei-tamos muitos ritos fnebres que hojeconsideramos mrbidos pela sua obs-cena nsia de comunho com o mundodos vivos. Por todos os meios expul-samos a morte porque ela nos lembra

    a inevitabilidade da aniquilao edesgurao do corpo que desejamoseterno. O que h de eterno no corpo o seu esqueleto e aqueles que ain-da hoje honram o esqueleto, como osbruxos tradicionais europeus ou osmonges budistas tibetanos, nas suasmeditaes msticas e transes inici-ticos celebram a Eternidade Essencialpor detrs da carne do sucessivo devir.Criamos com a nossa civilizao racio-nal e cientica um vazio intolervelque rompeu com os elos atvicos queuniam as almas dos que mortos vivem

    na sua medocre aventura de existirneste mundo e os vivos que pensamosmortos e vivem serenos o seu no--existir no outro mundo. O Ankou aencruzilhada semiolgica forjada pelaalma cltica sobrevivente na Armricaentre os Vivos e os Mortos. o exem-plo de como uma Antiga Aliana doPassado com o Futuro ainda sobreviveno fugidio devir do Presente.

    Criamos com a nossa

    civilizao racio-nal e cientifca um

    vazio intolervel que

    rompeu com os elos

    atvicos que uniam

    as almas dos que

    mortos vivem na sua

    medocre aventura deexistir

  • 7/27/2019 Infernus 027 SOL2 X

    19/4219 ~ Infernus XXVII

    venha madame lamortlevar os genocdas das

    razes fliais do desejoFtima Vale

    acordei com uma crista de soldadi-nhos de chumbo

    sem os longos cabelos negros razesdo caos

    os cabides envergavam as roupagenscadavricas do entusiasmo

    contudo na nsia de se compostarempara o pnico

    para o mundongo tremor da ansie-dade

    os gatos repousam-me na cabeaos soldados alinham-se em trinchei-

    ra e com este capacete felinoronrona em mim a imploso da re-

    voltano admito mais que probam a exis-

    tncia da articao da humanidadetodo o animal um criadorno admito mais que a rua seja regu-

    lamentada pelo poderque os movimentos sejam oprimidosno admito mais profanao da na-

    turezamuitas vezes j s as nossas camisas

    se abraam no roupeirolidam-se por ali h longas tempora-

    das

    olhando para elas noto-lhes o deses-pero do abandono

    da quietudesofrem os gurinos na asxia da per-

    sonagemtribo exilada num miservel corpo

    entregue a si mesmohs-de atomizar-te com a rebeldia!

    - o caraIlho! tempo de nos retirarmos das gaio-

    las de arame que fazem as saias antigasvoar Ser Ar___acontecer-Seregar as plantas com as lgrimas da

    chuva que escorre pela face de cada triboescrever livros como quem concebe

    lhospintar como quem despolui as cons-

    cinciasdanar como puricao das lnguastanto mais para evitar a imploso

    para evitar a putrefaco vivendans os artistas no somos culturaisno somos nada___Estamoscolhemos a verdade de todos os sil-

    vadosno servimos mesaalimentamos-nos muito

    mas condenam-nos fome____geno-cdio limpo

    o que seria do mundo sem a arte____pergunto

    mas fcil saberesbasta andar pelas ruas

    pelos metroso poder tem feito uma excelente de-

    sarticao____estamos todos deverassuicidados

    venha o amor salvar o habitculo dosdeuses_____o entusiasmo

    e venceremoso sangue o sol que nos corre nas

    veiasque se lave o beto das estradas car-

    tidas do mundoe voltemos a SERsimples mente Ser

    ftima sapetiveoatl valechamatielhos an_arquistas, caderno arte-

    sanal, edies betarrabista,

  • 7/27/2019 Infernus 027 SOL2 X

    20/4220 ~ Infernus XXVII

    Santo Orifcio

    (parte 1)BM Resende

    no-dramatis ex-personae: exquisi-dor estevo, carrasco geremias; horcio,o defecador; estefnia, a gemideira; al-merinda, a assoadeira; um co com cincocabeas; eco das hienas de amonaco

    (Levantamento de panos. esquer-da uma tabuleta diz ameixeira, direi-ta uma tabuleta diz aucenas.)

    carrasco jeremiasEis-me chegado aos conns do mun-

    do.(Aproxima-se da tabuleta que diz

    ameixeira.)A esta zona desrtica dominada por

    uma poderosa ameixeira.(Ouvem-se relmpagos.)Pois que o castigo dos celerados

    inimigos das cadeias dos deuses a talobriga. E ser neste inspito lugarejo

    abandonado pelas mos humanas que ojulgamento saciar a ira dos bem-aven-turados deuses. Sedentos da mo pe-sada da justia que acalma a contenda.Porque nada os detm nos seus rumossapientes eternidade. E que os ultrajess leis divinas no sirvam de exemplo.Que assim sendo se instale o poder dajusta recompensa pela impiedade.

    (Ouvem-se relmpagos. O carrascojeremias ajoelha-se.)

  • 7/27/2019 Infernus 027 SOL2 X

    21/4221 ~ Infernus XXVII

    BM Resende

    apicultor do meu av que j esticou otoucinho. Que os deuses o tenham...

    exquisidor estevoFica-te a matar. Diria que te cas a

    aparentar com um carrasco arraado deastronauta. E esta merda que no funcio-na.

    carrasco jeremiasEstevo, ests a tentar acender o ci-

    garro com um agrafador.

    exquisidor estevo

    Ora foda-se. E l se foram os agrafestodos. Que...

    eco das hienas de amonacoQue! Que! Que! Que! Que!

    exquisidor estevoShiu! Fora de tempo... Assim no

    d... Onde que raio tenho o lume.(Guarda o agrafador e procura um

    isqueiro nos bolsos.)Jeremias, tens lume? Tenho de per-

    der a mania de pousar isqueiros verme-lhos em cima de livros vermelhos.

    carrasco jeremiasNo.(Pensa.)Ento um agrafador ser uma dor

    grafada que no existe?

    exquisidor estevoExacto!(D-lhe uma galheta.)Deixa l o lume. Temos de estar sem-

    pre a arranjar novas formas de fazer amesma coisa.

    (Mastiga e engole o cigarro.)Olha l, trouxeste quatro arguidos

    como te tinha pedido?

    carrasco jeremiasClaro! E de boa sade. Esto atrs

    daquela amendoeira espera que oschames.

    exquisidor estevo(Pe a mo sobre a testa a tapar o sol

    que no existe.)No vejo amendoeira nenhuma.

    carrasco jeremias uma mendoeira que deixou de

    existir.

    exquisidor estevoHum... Andas a car no. E como

    que os seleccionaste?

    carrasco jeremiasFui aldeia mais prxima e pus-me

    de atalaia sada da loja de esfregonas.Fechei os olhos e quando ouvi barulhode passos lancei uma rede de pesca que

    era do meu av. Que os deuses o tenhamem descanso. Ele muitas vezes me expli-cava sombra da lareira como se apa-nhavam abelhas para a apicultura coma rede de pesca.

    exquisidor estevoExcelente jeremias. Saste um carras-

    co competente.(D-lhe uma galheta.)Tudo em condies perfeitas assim

    sendo.(Olha em redor.)Ento vai-me buscar uma cadeira

    para me sentar. Vou vestir o traje ocial.A ver se comeamos isto.

    (O carrasco jeremias sai. O exquisi-dor estevo abre a mochila e retira o trajede exquisidor. Veste-o.)

    carrasco jermias(Entra a gemer.)S consegui arranjar esta bilha de

    gs. Esvaziei-a porque pesava muito epara alm disso podia ser perigoso an-dar por a com a bilha cheia de um ladopara o outro.

    (Pousa a bilha junto ameixeira.)

    exquisidor estevoServe.(Senta-se.)

    carrasco jermiasMas que traje estevo! Pinduricalhos

    dourados e tudo. Onde o arranjaste?

    exquisidor estevoSaiu-me de oferta numa caixa de ce-

    reais. Adiante... Carrasco, traz o cartazdo santo orifcio.

    (O carrasco jeremias sai.)

    exquisidor estevo(Pigarreia.)Declaro o incio da cerimnia do

    santo orifcio perante a testemunha da

    Ameixeira de ramos possantes e l-cidos, s a testemunha da nossa quimerade justia.

    (Ergue os braos aos cus.)Comunica-a pelos teus galhos que

    se enrazam no cu at ao paradeiro dosdeuses nas alturas. Para que eles se re-gozijem com as nossas demandas e nosalentem o esprito para a necessidade decastigar os ultrajes.

    (Entra o exquisidor estevo de mo-chila s costas.)

    carrasco jeremias(Sem notar a presena do exquisidor

    estevo.)Implora-lhes que nos forneam a luz

    das suas sabedorias. Para que com elasnos achemos homens de bem. Para quecom ela invoquemos a clera divina ne-cessria excomunho dos pecados deentre ns. E que...

    exquisidor estevoQue ests a fazer?

    carrasco jeremias(Sobressaltado.)O qu?

    exquisidor estevo

    Que raio ests tu a fazer?carrasco jeremias(Levanta-se.)Era um prlogo...

    exquisidor estevoUm prlogo? Para quem?

    carrasco jeremiasPara a ameixeira.

    exquisidor estevo(Olhando para a tabuleta.)

    E ela ouviu?

    carrasco jeremiasAcho que sim.

    (Silncio.)

    carrasco jeremiasEstevo, desculpa a pergunta... Mas

    o que uma ameixeira?

    exquisidor estevo(Pega num cigarro e mete-o boca.) uma meixeira que deixou de ser.(Olha o carrasco jeremias de alto a

    baixo.)Bela farpela tu arranjaste. suposto

    dar-te ares de carrasco?

    carrasco jeremiasNo encontrei melhor. o fato de

    Ele muitas vezes me

    explicava sombra dalareira como se apan-

    havam abelhas para a

    apicultura com a rede

    de pesca.

  • 7/27/2019 Infernus 027 SOL2 X

    22/4222 ~ Infernus XXVII

    Santo Orifcio

    ameixeira, cujos galhos se estendems alturas do paradeiro dos deuses aosquais obedecemos com toda a submis-so e ardor e assim por diante...

    carrasco jeremias(Entra com um cartaz enome con-

    tendo uma fotograa de um rabo com onus arreganhado.)

    Onde ponho o cartaz magnnimojuiz?

    exquisidor estevoAo lado da ameixeira mas no mui-

    to junto para no confundir. De formaa dar a entender que o santo orifcio atudo assiste e a tudo julga.

    (Olha em redor.)

    Carrasco, depois chega-me um pau-zinho.

    carrasco jeremias(Pousa o cartaz entre a ameixeira e

    as aucenas. Afasta-se e analisa o enqua-dramento. D-se por satisfeito.)

    Com certeza excelentssimo exquisi-dor.

    (Apanha um pauzinho do cho.)Este serve dignssima alteza?

    exquisidor estevoServe.

    (Bate trs vezes na bilha.)Se calhar era melhor ter feito o dis-curso depois de bater na bilha. E depoisde o santo orifcio estar presente...

    (Silncio.)Adiante. Ia dar no mesmo. Vai bus-

    car o primeiro arguido carrasco.

    carrasco jeremiasCom certeza excelso exquisidor.

    exquisidor estevoEspera! Falta-te um garamio a ti

    tambm. importante para dar maisares de autoridade. Um que condigacom a tua fatiota.

    carrasco jeremiasHum... Este no... Este tambm no...

    Ah! Este serve.(Pega no garamio e sai.)

    exquisidor estevo(Canta agitando o pauzinho como se

    fosse uma batuta.)se no rabo sentes uma traa porque algo se passa porque algo se passa porque algo se passa

    se no olho sentes um mosquitoespeta-lhe um palitoespeta-lhe um palitoespeta-lhe um palito

    (Entra o carrasco jeremias trazendohorcio, o defecador preso por correntesnuma cadeira de rodas.)

    carrasco jeremiasHorcio, o defecador, comparece por

    ordens divinas e perante testemunho daameixeira, ao tribunal do santssimo ori-

    fcio. Filho do seu pai e da sua me, netodos seus avs e assim por diante. Que ocajado da justia lhe seja pesado.

    exquisidor estevoQue!

    eco das hienas de amonacoQue! Que! Que! Que! Que!

    exquisidor estevo

    Que...(Pensa.)Carrasco, anda c. Horcio, vai dar

    um beijinho ao santo orifcio.(O carrasco jeremias aproxima-se do

    exquisidor estevo que lhe segreda aoouvido, o carrasco jeremias tambm lhesegreda ao ouvido. Horcio, o defecadorbeijo o nus do cartaz. O exquisidor es-tevo come um cigarro.)

    Que est acusado de limpar o rabosem dar quatro voltas ao papel higini-co.

    horcio, o defecador(Indignado.)Mas...

    exquisidor estevoNo! No adianta dizer que no fezaquilo que fez defendendo-se com a teo-ria de que fazia outra coisa caso algumavez ousasse pensar em fazer aquilo quefez. E assim por diante.

    horcio, o defecador(Indignado.)Mas...

    exquisidor estevoShiu! Como se declara?

    horcio, o defecadorInocente.

    exquisidor estevoEle diz que se declara inocente!(Ri.)

    eco das hienas de amonacoQue! Que! Que! Que! Que!

    exquisidor estevoSe se declarar culpado a justia divi-

    na ser mais branda. Como se declara?

    horcio, o defecadorInocente.

    exquisidor estevoEle diz que se declara inocente!(Ri.)

    eco das hienas de amonacoQue! Que! Que! Que! Que!

    exquisidor estevoltima hiptese de apaziguar a ira

    dos deuses com a sua declarao de cul-pa. Como se declara?

    horcio, o defecadorAh... Hum... Culpado...

    exquisidor estevoBoa escolha caro arguido. Carrasco!

    Leva-o para os calabouos.

  • 7/27/2019 Infernus 027 SOL2 X

    23/4223 ~ Infernus XXVII

    BM Resende

    carrasco jeremiasHum... Dignssimo exquisidor, te-

    nho uma questo.

    exquisidor estevoSim carrasco.

    carrasco jermiasOnde so os calabouos?

    exquisidor estevoIdiota.(Levanta-se e prega-lhe uma galhe-

    ta.)So ali atrs daquelas aucenas.

    carrasco jeremiasAh! As sucenas que deixaram de ser!

    exquisidor estevoExacto.

    horcio, o defecadorMas...(O carrasco jeremias acerta-lhe com

    o garamio numa orelha e dirigi-o paraa tabuleta que diz aucenas.)

    exquisidor estevoEste j l mora. Vai buscar o segundo

    arguido carrasco.(O carrasco jeremias sai.)

    exquisidor estevo(Canta agitando o pauzinho como se

    fosse uma batuta.)com a lngua de molhofao sopa de justiae se me olham de ladometo-os logo na carria

    no fundos dos calabouospedem clemncia e polevam grandes galhetasat gemerem de satisfao

    (Entra o carrasco jeremias trazendoestefnia, a gemideira presa por corren-tes numa cadeira de rodas.)

    carrasco jeremiasEstefnia, a gemideira, comparece

    por ordens divinas e perante testemu-nho da ameixeira, ao tribunal do sants-simo orifcio. Filha do seu pai e da suame, neta dos seus avs e assim pordiante. Que o cajado da justia lhe sejapesado.

    exquisidor estevo

    Que!

    eco das hienas de amonacoQue! Que! Que! Que! Que!

    exquisidor estevoQue...

    (Pensa.)Carrasco, anda c. Estefnia, beija o

    nus divino.(O carrasco jeremias aproxima-se do

    exquisidor estevo que lhe segreda aoouvido, o carrasco jeremias tambm lhesegreda ao ouvido. Estefnia, a gemidei-ra beija o nus do cartaz.O exquisidorestevo come um cigarro.)

    Que est acusada de se masturbarcom um crucixo invertido.

    estefnia, a gemideira(Indignada.)Mas...

    exquisidor estevoNo! No adianta dizer que no fez

    aquilo que fez defendendo-se com a teo-ria de que fazia outra coisa caso algumavez ousasse pensar em fazer aquilo quefez. E ans.

    estefnia, a gemideira(Indignada.)Mas...

    exquisidor estevoCaluda! Como se declara?

    estefnia, a gemideiraInocente.

    exquisidor estevoEla diz que se declara inocente!(Ri.)

    eco das hienas de amonacoQue! Que! Que! Que! Que!

    exquisidor estevoSe se declarar culpado a justia divi-

    na ser mais branda. Como se declara?

    estefnia, a gemideiraAssim sendo... Culpada.

    exquisidor estevoBoa escolha cara arguida. Carrasco!

    Leva-a para os calabouos.

    estefnia, a gemideiraMas...(O carrasco jeremias acerta-lhe com

    o garamio numa orelha e dirigi-a para atabuleta que diz aucenas.)

    exquisidor estevoEsta tambm j l canta. Vai buscar

    outro.(O carrasco jeremias sai.)

    exquisidor estevo(Canta agitando o pauzinho como se

    fosse uma batuta.)

    gemem aos ventoscontorcem-se no leitoarranham os crucixosat o clmax ser feitomas de orgasmos divinosest o mundo cheioe para aprenderem a leicam com eles a meio

    (Entra o carrasco jeremias trazendo oco com cinco cabeas preso por corren-tes numa cadeira de rodas.)

    carrasco jeremias

    Este co com cinco cabeas, compa-rece por ordens divinas e perante tes-temunho da ameixeira, ao tribunal dosantssimo orifcio. So eles, da esquer-da para a direita dependendo de se es-tar de frente ou de costas... ou ans... osseguintes! Fuso, o co fuso. Creto, oco creto. Nbal, o co nbal. Tgio, o cotgio. E gruncia, o co gruncia. Filhosdos seus ces e das suas cadelas, netos...e assim por diante. Que o cajado da jus-tia lhe seja pesado.

    exquisidor estevo

    Que!

    eco das hienas de amonacoQue! Que! Que! Que! Que!

    exquisidor estevoQue...(Pensa.)Carrasco, anda c. Canitos, beijem o

    nus vez e sem lamber.(O carrasco jeremias aproxima-se do

    exquisidor estevo que lhe segreda aoouvido, o carrasco jeremias tambm lhesegreda ao ouvido. O co com cinco ca-beas lambem o nus do cartaz.)

    Sentados e pouca baba!(O co com cinco cabeas senta-se. O

    exquisidor estevo come um cigarro.)Que tu, tu, tu, tu e tu esto acusados

    de comerem os biscoitos aos gatos.

    Este co com cinco

    cabeas, comparecepor ordens divinas e

    perante testemunho

    da ameixeira, ao tri-

    bunal do santssimo

    orifcio.

  • 7/27/2019 Infernus 027 SOL2 X

    24/4224 ~ Infernus XXVII

    Santo Orifcio

    um co com cinco cabeasRouf... Rouf... Rouf... Rouf... Rouf...

    exquisidor estevoNo! No adianta dizer que no -

    zeram aquilo que zeram e assim pordiante...

    um co com cinco cabeasRouf... Rouf... Rouf... Rouf... Rouf...

    exquisidor estevoComo se declaram?

    um co com cinco cabeasRouf... Rouf... Rouf... Rouf... Rouf...

    exquisidor estevo

    Eles dizem que se declaram inocen-tes!(Ri.)

    eco das hienas de amonacoQue! Que! Que! Que! Que!

    carrasco jeremiasCaro exquisidor, por acaso declara-

    ram-se culpados.

    um co com cinco cabeas(Olham demoradamente uns para os

    outros.)

    Rouf... Rouf... Rouf... Rouf... Rouf...

    exquisidor estevoAh bom.... Boa escolha caros argui-

    dos. Carrasco! Leva-os para os calabou-os.

    um co com cinco cabeasRouf... Rouf... Rouf... Rouf... Rouf...(O carrasco jeremias acerta-lhes com

    o garamio nas orelhas e dirige-os para atabuleta que diz aucenas.)

    exquisidor estevo

    Estes tambm j esto. Seguinte.(O carrasco jeremias sai.)

    exquisidor estevo(Parece ir comear a cantar agitando

    o pauzinho como se fosse uma batutamas no. Soletra palavras e onomato-peias soltas.)

    (Entra o carrasco jeremias trazendoalmerinda, a assoadeira presa por cor-rentes numa cadeira de rodas.)

    carrasco jeremias

    Almerinda, a assoadeira, comparecepor ordens divinas e perante testemu-nho da ameixeira, ao tribunal do sants-simo orifcio. Filha de tal e tal e assim pordiante. Que o cajado da justia lhe sejapesado.

    exquisidor estevoQue!

    eco das hienas de amonacoQue! Que! Que! Que! Que!

    exquisidor estevoQue...(Pensa.)Carrasco, anda c. Almerinda, beija o

    rabo divino.(O carrasco jeremias aproxima-se do

    exquisidor estevo que lhe segreda aoouvido, o carrasco jeremias tambm lhe

    segreda ao ouvido. Almerinda, a assoa-deira beija o nus demoradamente.)Chega! Senta-se.(Almerinda, a assoadeira senta-se.)Que ests acusada de assoar as mon-

    cas s pginas dos livros sagrados.

    almerinda, a assoadeira verdade excelentssimo exquisi-

    dor.

    exquisidor estevoNo! No adianta dizer que...

    eco das hienas de amonacoQue! Que! Que! Que! Que!

    exquisidor estevoShiu!(Admirado.) verdade?

    almerinda, a assoadeiraSim dignssimo juiz.

    exquisidor particularHum... Declara-se culpada assim

    sem mais nem menos?

    almerinda, a assoadeiraCulpadssima excelso exquisidor.

    exquisidor estevoEstranho...

    almerinda, a assoadeiraFiz isso inmeras vezes ilustre juiz.

    Alis, nem me lembro de algum dia terassoado as moncas a algo que no fossea pginas de um livro sagrado.

    exquisidor estevoAssim sendo condeno-a pena capi-

    tal!(Ri.)

    eco das hienas de amonacoQue! Que! Que! Que! Que!

    exquisidor estevos condenada a...(Pensa.)Carrasco, qual a pena capital? Tive

    uma branca.carrasco jeremiasNo sei meritssimo juiz.

    exquisidor estevoSabes almerinda?

    almerinda, a assoadeiraNo ilustre reverncia. Sou apenas

    uma vassala das ordens divinas.

    exquisidor estevo(Pensa.)

    Carrasco, vai perguntar aos outros sesabem.

    carrasco jeremiasCom certeza magnco exquisidor.(Aproxima-se das aucenas.)Algum sabe qual a pena capital?

    horcio, o defecadorNunca ouvi falar de tal coisa.

    estefnia, a gemideiraTais termos so estranhos s minhas

    orelhas.

    um co com cinco cabeasRouf... Rouf... Rouf... Rouf... Rouf...

    carrasco jeremiasIlustre juiz, ningum faz a mnima

    ideia do que isso seja.

    exquisidor estevoBem. No interessa. Irei lembrar-me

    de algo.(Pensa e vasculha nos bolsos.)Ah ah! J sei. s condenada pelo su-

    premo e santssimo orifcio a podar estaameixeira com este corta-unhas!

    carrasco jeremiasIminncia, isso um agrafador.

    exquisidor estevo(Olha atentamente.)

    o carrasco jeremias

    tambm lhe segredaao ouvido. Almerinda,

    a assoadeira beija

    o nus demorada-

    mente.

  • 7/27/2019 Infernus 027 SOL2 X

    25/4225 ~ Infernus XXVII

    BM Resende

    Tens razo.(Vasculha nos bolsos.)Ah ah! Bem me parecia que o tinha

    trazido. Carrasco, solta-a.

    (O carrasco jeremias solta almerin-da, a assoadeira. O exquisidor estevoaproveita a cadeira de rodas livre parase sentar. Almerinda, a assoadeira iniciaa poda da ameixeira cabisbaixa.)

    exquisidor estevoIrra. Que j estava a car com o rabo

    em forma de bilha.

    eco das hienas de amonacoQue! Que! Que! Que! Que!

    exquisidor estevoShiu!(Comea a enxotar as hienas de amo-

    naco com o pauzinho.)Ide pregar para o cemitrio dos vos-

    sos pais seus guinchos de urina! Esto

    ocialmente despedidas suas crostas decarrapato arrancadas chinelada! Idepara o m do mundo para l do m domundo suas escarradelas de tumbas!Andor! Andor!

    (Senta-se exausto.)Irra. Isto de ser exquisidor cansa.(Pega num cigarro e mete-o boca.)Jeremias? Onde andas?

    carrasco jeremias(Entra a chupar os dedos.)Os arguidos chamaram. Queriam

    comida.

    exquisidor estevoE deste-lhes?

    carrasco jeremiasClaro. Agries para todos. Os gries

    que deixaram de ser. Bem bons.

    exquisidor estevoMuito bem. Podes descansar se qui-

    seres. Alapa-te a sombra da ameixeira.

    carrasco jeremias(Senta-se na bilha e suspira.)J no trabalhava tanto desde que o

    meu av morreu. Quando andava comele a apanhar abelhas com redes de pes-

    ca chegava a casa estafado. At ador-mecia a comer a sopa de salamandras.Geralmente sonhava que estava a nadarnum rio tropical bem escaldado pelo sol.Acordava com as galhetas da minha avquando queria lavar a loua. Bons tem-pos estevo... Bons tempos...

    exquisidor estevoTodos os dias cheiravas a sopa na

    sala de aula.(Ri.)Olha l, podias ir ver se algum dos

    arguidos tem lume? Estou farto de co-

    mer cigarros.

    carrasco jeremias(Atira-lhe um isqueiro.)

    Consquei-o a um dos ces. Usava-opara cozinhar os biscoitos dos gatos.

    exquisidor estevoBem lembrado jeremias.(Pega no isqueiro e acende o cigarro.

    Saboreia a primeira lufada com imensoprazer.)

    Olha l. Sabes o que um biscoito?

    carrasco jeremiasAgora que perguntas acho que no.

    exquisidor estevoUm biscoito um coito duplo.

    (Silncio.)

    carrasco jeremiasOlha l, como que arranjaste estetrabalho?

    exquisidor estevoAh Ah!(Ri-se. Pega num cigarro e estende-o

    ao carrasco jeremias. Acende-o.)Nem sei bem. Mas vou-te resumir a

    histria.(Vira-se para as aucenas.)Arguidos, tapem as orelhas.

    (Os arguidos tapam as orelhas com

    as mos que anal estavam soltas. Osces tapam as orelhas encostando-se unsaos outros e tapando as orelhas que -caram nas extremidades com as patas.)

    exquisidor estevo(Vira-se para a ameixeira.)Almerinda, tu tambm.

    almerinda, a assoadeiraNo consigo podar a ameixeira com

    o corta-unhas e tapar as orelhas ao mes-mo tempo.

    exquisidor estevoConsegues sim. Jeremias, ena-lhe

    dois cigarros nas orelhas.(Estende-lhe dois cigarros.)

    (O carrasco jeremias ena os cigarrosnas orelhas de almerinda, a assoadeira.Ela continua a podar a ameixeira com ocorta-unhas cabisbaixa.)

    Ide para o fm do

    mundo para l do fm

    do mundo suas escar-

    radelas de tumbas!

    Andor! Andor!

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    Adamastor

    A Morte, o Ato de morrer, o cessa-mento permanente das atividades bio-lgicas necessrias manuteno davida, so inndveis os signicados quepodem ser dados a uma palavra to cur-ta, mas ao mesmo tempo to poderosa eamaldioada.

    Enquanto me debruava sobre toNobre senhora, tentei recordar qual teriasido o meu primeiro contacto com Ela,pus a velha e cansada mquina de pen-sar a trabalhar e depois de ultrapassar oscontactos mais marcantes e traumticos,como um marinheiro depois e ultrapas-sar a pior das intempries descobri-mesob cu azul e lembrei-me da primeiravez que me recordo de falar da Mortecom a minha me, lembro-me da grande

    diculdade que tive em perceber aquiloque me estava a ser dito e principalmen-te guardo comigo a primeira conclusoque tirei sobre Ela... As pessoas morriampara que novas pessoas pudessem viver.Era a nica forma para que Todos pu-dssemos viver, para que Todos pudes-semos Existir.

    Mas o Ato de morrer tem muito maisque se lhe diga, a morte tem que ser vistade longe para que se possa ter a verda-deira noo da sua grandeza. No pode-mos basear a nossa opinio subjugadospor ideias de uns quantos pensadores

    que chamam a si a verdadeira sapincia.O que a morte? Porque tem ela queser algo mais do que simplesmente o mdo nosso tempo, o m da nossa valida-de? Porque so os Homens to obceca-dos com a morte se quando Ns vivemosela no existe e se quando ela acontecedeixamos ns de existir? Se pensarmosbem ns nunca vivemos a nossa morte, amorte traz-nos sofrimentos certo, massofrimento derivado da morte de outros,e quando esses outros morrem, comum-mente nos encontramos a desejar vivera vida da melhor forma, aproveit-la o

    melhor que pudermos, pois depois demortos tudo acabou.

    Mas nem todos podem pensar namorte dessa forma to simples, poisdurante geraes as suas mentes forammoldadas e ensinadas a pensar que de-pois da morte que existe a vida, um ou-tro mundo, um lugar de recompensa, deigualdade e honestidade, em oposioao mundo terreno,onde toda a chamadavida foi vivida a sofrer entre divises edesonestidade... Para essas pessoas amorte o motivo pelo qual viveram. Oprincipal perigo desse destino natural quando o seu desconhecimento, e a nopossibilidade de explicao, fazem comque alguns utilizem o medo do desco-nhecido de forma to hbil quanto umpastor e o seu co na conduo de umrebanho.

    O que realmente a morte? No

    existe uma nica resposta para essapergunta, temos uma resposta em cadaboca pois depende muito da perceo decada um. J houve quem dissesse que omundo est dividido no em crenas re-ligiosas mas entre aqueles que temem amorte e os que no.

    Na minha boca o Morrer tem vriasformas de acontecer, no me cinjo sim-plesmente morte fsica, pois para meuhorror podemos, apesar de vivos, estarmortos. Ser que realmente tem queexistir uma total ausncia de vida paraque estejamos realmente mortos, oupoderemos morrer e ao mesmo tempoo corao bater pujante no nosso peito?Tenho medo de morrer, medo de vivermorto, de existir desprovido de vida...

    Sem aquele brilhozinho nos olhos, semvoltar a sentir o arrepio na espinha,que como um relgio biolgico ocasio-nalmente me relembra que estou vivo.Basta um corao a bombear sanguepara todas as nossas extremidades, serque basta a atividade fsica para que nospossam considerar um ser vivo? Tenhomedo de morrer, tenho medo de me en-contrar vivo mas sem viver, de car pre-so a um corpo moribundo sem conscin-cia de que o meu m chegou. Podemosmorrer vrias vezes durante uma vida,porque vida essa temos realmente s

    uma, mas mortes j essas...Quando me pediram para falar so-bre a Morte, pensei realmente que teriamuito para dizer, muito para consta-tar, mas realmente constato que quantomais penso Nela mais acredito Nelas.No basta um corao a bater no nossopeito, no se no soubermos o que fazercom essa energia, um corao a bombearno signica por si s que estamos vivos,pois quando o homem perde o entusias-mo, at que o recupere,se recuperar, es-tar morto, pois a morte a ausncia devida e quando existimos simplesmente,

    sem pingo de vida em ns, a estamosmortos, pois no vivemos de forma al-guma, existimos apenas, mortos!

    Mas porque passamos tanto tempo atentar decifrar o m e o que ele represen-ta. O m o m, da mesma forma que ovazio vazio e a ausncia do que querque seja. Porque no nos concentramosna vida, porque no tentamos perceberqual a verdadeira essncia da vida, vidaessa que conhecemos, o Ato de viver sermenos misterioso e desinteressante queo seu oposto?

    O que podemos tirar da morte se elano nos d nada,vivemos o ltimo diada nossa vida, mas nunca viveremos oprimeiro dia da nossa morte, esse servivido por outros que no ns.

    E agora se eu dissesse que mesmomortos poderemos estar vivos, no nsliteralmente, mas poderemos viver na

    lembrana de outros que se mantiveremvivos at ao seu prprio m. A nica sal-vao, a nica vida para alm da morteser to longa e to forte, quanto foremos anos da nossa memria e da nossalembrana na vida de outras pessoas.Poderemos ainda ser recordados aps anossa morte e viver para alm do nossom, como um eco, quando gritamos enos ouvirmos depois de j termos dito.Um eco que poder ser ouvido duran-te breves instantes para alm da nossamorte, mas no mais para alm disso.

    Prero car parte do pnico emmassa, fao parte dos que no tememo m, a morte, fao parte dos que noacreditam numa vida de misria, quan-to mais miservel melhor, de forma a

    que possam ter, aps o m, algum tipode recompensa mesmo maneira dosantigos vendedores de banha de cobra.Sempre fui dos que precisei de ver paracrer, e no vendo no creio numa vidapara alm da separao das molculasdo meu corpo.

    Mas a sedutora Senhora sempre farparte dos meus dias, pois vejo m e mor-te minha volta, nossa volta. Ela estomnipresente e sempre estar, pois nin-gum ca para semente, como diriam osantigos, e como o Ser Humano julga quetudo tem que ter uma justicao aceit-

    vel aos ouvidos de cada um, sempre, diaaps dia ser investigada uma forma deexplicar o primeiro dia da nossa morte,aquele que nunca vivemos, que nuncanos dar nada, mas ao mesmo tempoo dia que mais tememos.

    Concentremo-nos na vida, nessa ex-citante e imprevisvel vida, que comodestino tem a morte, mas que ter queultrapassar vrias delas at que a derra-dei