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INFÂNCIA NEGADA: ANÁLISE ACERCA DAS CRIANÇAS OPERÁRIAS NA
REGIÃO SUDESTE DO BRASIL NOS PRIMÓRDIOS DO SÉCULO XX
Larissa Diniz Felizola Gomes1
1Graduanda em História pela Universidade do Sagrado Coração – Bauru/SP. Artigo apresentado sob orientação
dos professores Dra. Lourdes Madalena Gazarini Conde Feitosa e M.e Roger Marcelo Martins Gomes.
RESUMO
A história da criança, possuindo esta como um personagem merecedor da particularidade em
seu estudo, ainda é um campo muito recente, plausível e necessitado de novas abordagens e
discussões. O estudo sobre as crianças operárias do Brasil nas primeiras décadas do século XX reforça
a ideia do quanto o conceito de trabalho infantil - e da própria infância-ainda deve ser avaliado nos
vários significados que já recebeu, bem como, facilita a compreensão do quanto a prática do trabalho
infantil em ambiente fabril reforçou ainda mais o caos vivido pelos menos abastados durante o
princípio da industrialização. Através da análise e discussão historiográfica a partir do embasamento
teórico em obras e artigos referentes à temática, o presente trabalho busca elucidar a forma como estes
pequenos eram inseridos na realidade fabril, causas e motivos, bem como, a maneira como a realidade
infantil se moldava a este novo ambiente.
Palavras-chave: Crianças operárias. Trabalho infantil. Industrialização.
“As crianças brasileiras estão em toda parte. Nas
ruas, à saída das escolas, nas praças, nas praias.
Sabemos que seu destino é variado. Há aquelas que
estudam, as que trabalham, as que cheiram cola, as
que brincam, as que roubam. Há aquelas que são
amadas e, outras, simplesmente usadas.”
(Mary Del Priore)
INTRODUÇÃO
Em uma manhã paulistana de novembro de 1913, Arnaldo Dias morria
instantaneamente, em plena adolescência, antes mesmo de iniciar o trabalho
em uma fábrica de tecidos de juta. Um dos fios elétricos teria se rompido
durante a madrugada, caindo sobre um telhado de zinco que se comunicava
com o cano de esgoto do estabelecimento. Arnaldo estava ente um grupo de
pequenos trabalhadores, esperando para entrar na fábrica e recebeu violento
choque ao tocar no cano que, junto ao portão, havia se transformado em
perigo eminente. (MOURA, 2004, p. 259).
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O trecho acima foi retirado do texto “Crianças operárias na recém-industrializada São
Paulo”, de Esmeralda Moura, que possui, assim como este, vários outros trágicos exemplos de
como a industrialização brasileira, do início do século, afetou não somente a classe
trabalhadora, não somente alguns grupos de empresários, mas sim toda uma geração
brasileira, que passaria a deter vínculos cada vez mais precoces com a fábrica e seu duro
cotidiano. Neste trecho, Moura conta a história de um jovem que fora apenas mais uma das
vítimas fatais da displicência com a qual a classe operária, em especial as crianças que a ela
pertenciam, fora tratada durante o início do século nas indústrias paulistanas.
Ainda que sua revolução industrial fosse ocorrer apenas na década de 30, após o
estabelecimento da liderança de Getúlio Vargas, logo no início do século XX o Brasil já
possuía operantes suas primeiras indústrias.
As duas primeiras décadas do século XX foram marcadas por uma nova vertente
econômica que surgia no Brasil: a industrialização. Esta era concretizada através do lucro
alcançado com a exportação do café (possibilitando o investimento nas fábricas), com base
nos imigrantes que aqui chegavam trazendo juntamente os conhecimentos das diversas
técnicas de fabricação, e ainda, pelas dificuldades de importação de produtos industrializados
sob as quais o país se encontrava por decorrência da Primeira Guerra Mundial.
A industrialização adentrava ao sudeste do país trazendo consigo a sensação de
progresso e modernização a qual os brasileiros abastados gostariam de se equiparar aos
padrões da Europa e Estados Unidos já industrializados, “Esse período abrangeria, grosso
modo, de 1900 a 1920 e assinala a introdução no país de novos padrões de consumo [...]”.
(SEVCENKO, 1998, p. 34).
É nesta nova realidade econômica e social, que, consequentemente, surgirão os
personagens tratados neste estudo, pois com a industrialização nasce a necessidade de uma
mão de obra diferente das existentes nas plantações cafeeiras. Bem como, também, uma nova
realidade a este novo grupo que sustentará pela base todo processo de “modernização” do
país, a classe operária.
Em geral, esta classe refere-se à aqueles que são parte do corpo de funcionários da
indústria, naquela época formado principalmente por imigrantes, mulheres e crianças de
famílias menos abastadas. Na década de 20 a estes trabalhadores era oferecida uma realidade
cruel. Ambientes de trabalho completamente insalubres e sem qualquer resquício de
segurança faziam parte do cotidiano industrial, conforme se refere Ribeiro (1988, p. 116):
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Ao entrar na fábrica de fiação e tecelagem de algodão, na opinião dos
observadores, três aspectos de seu ambiente se sobressaíam: a espessa
camada de poeira, a umidade combinada com calor abafado e o barulho
ensurdecedor das batidas compassadas dos teares. Nesse ambiente, estavam
mergulhados numerosos operários, compondo fileiras lado a lado das
máquinas. O ambiente da fábrica não se diferenciava muito nas inúmeras
indústrias paulistas. Espaço diminuto encerrando uma enorme quantidade de
trabalhadores, ausência de ventilação, iluminação irregular, instalações
sanitárias fétidas. (RIBEIRO, 1988, p.116).
Além destes fatores correspondentes ao espaço físico das fábricas, a carga-horária
exaustiva e a completa deflagração moral causada pelo autoritarismo com o qual eram
tratados pelos patrões, dentre outros agravantes, pioravam ainda mais a realidade dos
operários.
Neste contexto, é possível concluir que, deste grupo,as crianças eram as que mais
sofriam, dada a fragilidade das mesmas. Ainda assim, será possível nos tópicos posteriores
confirmar tal percepção através do estudo detalhado de como era o cotidiano dos menores que
também eram sujeitos a estas jornadas exaustivas, assim como as principais causas para seu
ingresso nesta dura realidade.
A RAZÃO DA MÃO DE OBRA INFANTIL NA INDÚSTRIA DO SÉCULO XX
No Brasil, é um tanto antiga a utilização da mão de obra infantil e sua abrangência, ao
menos é assim que Rizzini descreve:
As crianças pobres sempre trabalharam. Para quem? Para seus donos no caso
das crianças escravas da Colônia e do Império; para os ‘capitalistas’ do
início da industrialização, como ocorreu com as crianças órfãs, abandonadas
ou desvalidas a partir do final do século XIX; para os grandes proprietários
de terras como boias-frias; nas unidades domésticas de produção artesanal
ou agrícola; nas casas de família; e finalmente nas ruas, para manterem a si e
as suas famílias (RIZZINI, 2004, p.376).
Entretanto, alguns autores defendem que a maior demanda de trabalho infantil seja
uma característica mais expressa no país apenas com sua industrialização.
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A implantação da indústria e sua consequente expansão norteou o destino de
parcelas significativas de crianças e também de adolescentes das camadas
economicamente oprimidas em São Paulo, como havia norteado em outras
partes do mundo. (MOURA, 2004, p. 260).
Os fatores que se tornam pontos de fusão entre os diferentes estudos que abordam a
temática, são as razões pelas quais os empresários buscavam a mão de obra infantil, sendo
estes seu baixo custo aos empresários fabris – pois os salários em muito se diferenciavam dos
salários recebidos pelos homens adultos, estando mais próximo, ainda que menor, dos salários
recebidos pelas mulheres, que também eram discriminadas no operariado mesmo possuindo,
estes três grupos, a mesma quantidade de trabalho e carga horária - e a mansidão, dado ao fato
que eram os que menos demonstravam rebeldia às atitudes hierárquicas dos patrões e
superiores. Este segundo fator, por sua vez, era nada menos que um reflexo da pouca idade
destes menores, dado que os mesmos não conseguiam em muitos episódios desvencilhar o
papel de arbitrariedade dos pais a aquele em que era vítima na indústria.
Vale destacar que a mão de obra infantil feminina era a mais recorrente em diversos
setores (principalmente o da indústria têxtil) e ainda mais lucrativa, tendo em vista que unia
dois fatores vítimas de desvalorização e preconceito: faixa etária e gênero.
Entretanto, como se deve esperar, é clara a busca por grande parte das crianças por tais
empregos, pois, “Perspectiva de maiores lucros para o empresariado, o trabalho industrial [...]
da criança não deixa de ter para a família operária significado igualmente importante: é, sem
dúvida, a alternativa para [evitar] mais fome e mais miséria em casa”. (DIAS, 1962, p. 45).
Ainda reforçando tal motivação financeira já citada através de Dias, fica claro através
do seguinte trecho, que esta motivação não recorria apenas do período inicial da
industrialização “para as filhas e filhos das famílias pobres, da mesma forma que no período
histórico anterior, continuava a ser necessário trabalhar para garantir o sustento”. (AREND,
2013, p. 73).
Era existente ainda outro fator que levava as crianças até as indústrias: o discurso de
proteção aos menores. Dentre empresários e autoridades, não eram poucos os que defendiam
(claramente por interesses particulares) o trabalho infantil nas indústrias durante as décadas de
10 e 20, como uma maneira de mantê-las fora das ruas. Utilizavam como argumento que o
tempo utilizado na aprendizagem de uma função que poderia lhes garantir o futuro era muito
melhor gasto do que fazendo “arruaças” ou disponível a vícios e perigos nas ruas da cidade.
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Este último argumento fora tão utilizado que, não raramente eram vistas notícias
circulando nos jornais, citando a maneira como projetos recolhiam e encaminhar menores
infratores a fábricas da cidade, onde teriam a chance de reaverem os valores da infância e
oportunidades de cidadania. Contudo, o constante número de fugas e reincidência de atos
inflacionários demonstrava que os projetos estavam ainda distantes de conseguir eficácia nas
reabilitações.
Resultante da união dos referidos fomentos, fora o trabalho infantil no início do século
XX tão enraizado nos conjuntos industriais da capital, que o cenário observado na cidade de
São Paulo demonstrava que o mesmo chegava a compor, segundo o Departamento Estadual
do Trabalho, 37% do total dos trabalhadores de seu setor têxtil. Enquanto, em parâmetros
gerais composto também pelos demais departamentos fabris chegava a ser 40% a quantidade
de mão de obra provinda dos pequenos no contingente operariado.
A PLURALIDADE TRANSFORMADA ETARIAMENTE EM UNIDADE
Mas, afinal, a utilização da mão de obra infantil fora tão demasiada que abrangia a
todas as crianças do sudeste do país?
É através de relatos sobre o cotidiano destas que crianças que se tornou possível a
verificação de onde estavam os grupos infantis que compunham em peso esta mão de obra
específica tão requisitada.
De fato, aproveitando a colocação já citada de Rizzini, em geral, apenas as crianças
menos abastadas eram as empregadas nas fábricas, isto pelos fatores já referidos, como a
necessidade de uma maior renda na família e força dos órgãos públicos em tentar diminuir a
delinquência nas ruas das cidades, que, em significativa parte das vezes, provinham destes
mesmos jovens.
[...] em São Paulo, [...] entre 1900 e 1916, o coeficiente de prisões por dez
mil habitantes era distribuído da seguinte forma: 307,32 maiores e 275,14
menores. A natureza dos crimes cometidos pelos menores era muito diversa
daqueles cometidos por adultos, de modo que entre 1904 e 1906, 40% das
prisões de menores foram motivadas por ‘desordens’, 20% por ‘vadiagem’,
17% por embriaguez e 16% por furto ou roubo. Se compararmos com os
índices de criminalidade adulta, teremos: 93,1% dos homicídios foram
cometidos por adultos, e somente 6,9% por menores, indicando a diversidade
do tipo de atividades ilícitas entre ambas as faixas etárias. [...] Estes dados
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indicam a menor agressividade nos delitos envolvendo menores, que tinham
na malícia e na esperteza suas principais ferramentas de ação; e nas ruas da
cidade, o local perfeito para pôr em prática as artimanhas que garantiriam
sua sobrevivência. (SANTOS, 2004, p. 214).
Através da exposição de Santos, é possível verificar, também, que o fator
socioeconômico está intimamente ligado ao trabalho infantil do período. Neste caso, os
grupos de imigrantes que vinham para o país em busca de melhores condições de vida,
fugindo da imensa pobreza que assolava a pátria de origem, estão intimamente inclusos,
principalmente italianos. Segundo Moura (2004), a classe operária em São Paulo era formada
por 50% de imigrantes, e até mais, se fosse levada em conta a descendência da parcela
restante. Dentre esta mão de obra estrangeira, famílias inteiras eram conduzidas ao serviço
fabril, incluído as crianças.
Para famílias imigrantes inteiras, o sonho de fazer a América reduzira-se ao
cotidiano exaustivo, violento e nada saudável das fábricas e oficinas e aos
cortiços dos bairros operários paulistanos. [...] A presença de
crianças e de adolescentes no trabalho industrial tornou-se, talvez, o
referencial mais importante de que a pobreza não deixava de rondar as
famílias de muitos e muitos imigrantes, cuja precária sobrevivência dependia
em parte do trabalho dos próprios filhos. (MOURA, 2004, p. 262).
A obra abaixo, forjada em óleo sobre tela “Os emigrantes” de Antônio Rocco é
comumente utilizada como referencial imagético à estas famílias que vieram, conforme
referenciado por Moura, “fazer a América” (Figura 1).
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Figura 1 - Os emigrantes, 1910
Fonte: Acervo... ([1918?]).
Torna-se esta ainda mais rica para a elucidação da temática do trabalho infantil, ao ser
verificado na mesma, a presença numerosa de crianças que costumavam acompanhar os pais
no processo de chegada ao novo mundo, tendo estas, que adequarem-se assim como os pais ao
cotidiano aqui imposto, fosse no ambiente rural, trabalhando em plantações cafeeiras, ou,
como na maioria, no ambiente fabril, compondo o operariado industrial.
Dentre os pequenos já pertencentes à nação, apresentavam-se como parte desta
composição operária as crianças pobres, órfãs e “delinquentes”. As crianças operárias pobres
eram muitas vezes provindas das famílias que chegaram à região urbana do sudeste através do
êxodo rural que, apesar de ser maior a partir da década de 30, com a crise do café em 1929,
era bastante recorrente também nos séculos 10 e 20. Para estes menores, o impacto disciplinar
e do novo modo de vida costumava ser ainda mais intenso, uma vez que a vida rural até então
levada em muito pouco se assemelhava à nova realidade. A respeito dos órfãos, estes eram
recrutados de asilos de caridade, sob o mesmo discurso utilizado para o recrutamento dos
delinquentes, “proporciona-lhes uma ocupação mais útil, capaz de combater a vagabundagem
e a criminalidade”. (RIZZINI, 2004, p. 377).
Faz-se necessário saber, no entanto, que apesar das diferentes origens dos pequenos
operários, todos eram igualados quando observada a interferência que os precários e sofridos
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cotidianos possuíam em suas vidas. O trabalho infantil, durante a república velha, tornava-se
o perfeito referencial para a análise do baixo padrão e qualidade de vida dos operários
industriais. Para estas crianças, muitas vezes, apenas o que era ofertado, além da baixíssima
remuneração, era o risco eminente de morte e o autoritarismo do qual eram vítimas, que as
acompanhavam por todo o tempo em que se encontravam no ambiente fabril.
O DURO COTIDIANO
Como já dito anteriormente, se para os adultos inseridos no inóspito ambiente fabril o
cotidiano já era sofrido, para os infantes, as dificuldades tornavam-se ao mínimo duplicadas.
Primeiramente pela estrutura física ainda mais sensível, colocando, segundo Arend (2013),
“em risco o bom desenvolvimento do corpo das crianças”, e, dificultando muito mais as
tarefas que exigissem força e destreza, agregando, ainda, a fragilidade psicológica que a
pouca idade os possibilitava, sendo a pressão e autoritarismo outro mecanismo diariamente
utilizado para o controle dos pequenos naquela lastimável realidade. Tal controle era imposto
de diversas maneiras, fosse com o abuso de ordens e dizeres ríspidos, ou com deflagrações
morais, e físicas. Quanto a esta última e brutal forma de controle, Moura (2004, p.266)
exemplifica com alguns casos:
Este é o caso do menino Vitto Lindolpho, de dez anos de idade, empregado
em uma sapataria, brutalmente espancado pelo patrão em outubro de 1904. O
patrão dera pela falta de cinquenta mil réis na gaveta, pedira satisfações ao
menino, e este alegara não haver furtado, de nada saber, e a conversa
evoluíra para surra. […] Exemplar o caso do adolescente Francisco Afonso
da Fonseca, aprendiz em uma fábrica de chinelos, castigado pelo mestre em
março de 1902, com várias chineladas no rosto pois, segundo consta, não
fizera com cuidado o serviço de que fora incumbido.
Ao que se refere à capacidade física reduzida, esta refletia diretamente na grande
quantidade de menores acidentados durante os expedientes, estando, segundo índices
verificados em São Paulo no início do século, diariamente vitimados nas fábricas e oficinas.
Ao ilustrar tais casos, Moura (2004, p. 266) exemplifica um em que o manejo de perigosos
instrumentos por pequeninas e inexperientes mãos, resultou em um acidente drástico “[…] o
caso da menina Antônia de Lima, de 12 anos de idade que, em março de 1904, trabalhando
em uma máquina de cortar fumo, […] foi atingida pela faca e perdeu parte do braço direito”.
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A saúde dos trabalhadores do início da industrialização, que não viera acompanhada
de ornamentos que exigissem o mínimo de salubridade nas fábricas, também encontrava-se
sempre propensa à incontáveis riscos de contaminação. Até mesmo o ar de tais espaços
encontrava-se frequentemente impregnado de partículas nocivas que minavam dia após dia, a
saúde dos ali empregados. As crianças, detentoras de um sistema imunológico ainda frágil,
tornavam-se as mais fáceis vítimas de tais contaminações. Contaminações estas que
provinham não apenas do ar, mas de variadas possibilidades. Nenhum tipo de produto ou
material era restringido aos pequenos, que possuíam continuamente o contato com uma
nociva e ampla diversidade de itens. Ao realizarem visitas aos ambientes que abrigavam
grande parte do contingente operariado por 12 ou 14 horas diárias, a Liga paulista Contra a
Tuberculose definia os mesmos como o “uma série de delitos contra a higiene, uma cadeia de
atentados contra a saúde”. (Moura, 2004, p. 270).
Alimentos e bebidas, tecidos e chapéus, cigarros e charutos, vidros e metais,
tijolos e móveis, entre uma série de outros produtos […] passavam por mãos
pequeninas, trazendo na sua esteira a indiferença às particularidades e às
necessidades da infância e adolescência. (MOURA, 2004, p. 264).
A alimentação inadequada perante a clara pobreza que afligia as famílias dos pequenos
inclusos no cotidiano das fábricas, unida à resultante fraqueza de defesa que proporcionava
aos corpos já sensíveis, acentuava os riscos de contaminação que o ambiente propiciava sobre
uma gama diversificada de doenças.
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Figura 2 - Meninos na seção de fornos de uma vidraçaria
Fonte: Moura (2008, p. 269).
Na imagem acima fica clara a exemplificação dos vários riscos e irregularidades
citados. Crianças e adolescentes acompanham de perto a produção de vidros próximos à
ferramentas e materiais de manuseio altamente nocivos se utilizados sem as adequadas (e em
maioria inexistentes) precauções. Além disso, é possível notar também a falta de espaço
adequado, lembrando que, a grande concentração de operários em pequenos espaçamentos era
uma das principais causas da má circulação do ar e proliferação de doenças nas indústrias do
referido período.
Além das já evidenciadas complicações que o trabalho industrial trazia às crianças
operárias em sua saúde física e bem estar social, estando nestes inclusos os resultados que a
deflagração moral passava a trazer em dificuldades de convivência e relacionamentos dentro e
fora do ambiente fabril, - como no caso das meninas que eram comumente destratadas e tidas
como imorais em sociedade por trabalharem nas industrias - outro fator altamente
comprometido era a educação destes pequenos trabalhadores, que, ao passar maior parte de
seus dias nos ambientes de trabalho, não iam à escola, tornando esta um fator muito distante
de suas prioridades.
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DAS RESISTÊNCIAS
Ainda que o contexto do trabalho infantil sempre remeta a injustiças e privações para
as crianças submetidas à ele, é possível notar que, tal hábito não fora sempre negligenciado e
aceito de maneira simples no país, no início do século XX. Muito contrário a esta possível
percepção, os movimentos de resistência a tais práticas encontravam uma crescente
fomentação no período, através dos quais diversos grupos e vertentes, que logo serão aqui
citados, agiram em defesa dos direitos mais básicos à estes infantes.
Além do mais, a relutância ao trabalho infantil não fora algo que partira
exclusivamente de fora para o interior da fábrica, uma vez que, as próprias crianças,
naturalmente adversas a situação não condizente com a maturidade que obtinham,
inocentemente traziam em si uma forma peculiar de resistência. Tal resistência tão singular
partia dos comportamentos que as crianças possuíam naturalmente as suas condições da pouca
idade, sendo destes a desobediência, a mal criação, e a realização de brincadeiras as que mais
acentuavam o quanto a realidade da infância se sobrepunha a realidade laboral. Ainda sobre
tais episódios, tão comuns nos chãos de fábrica pisados por pés pequeninos, Moura (2004)
cita um ao qual, mais uma vez, a temporalidade da infância era barrada pelo cenário não
condizente a esta, já que os pequenos muitas vezes acabavam transformando aquilo que havia
próximo, ao alcance das mãos, em brinquedos nocivos, se não, fatais.
Em julho de 1904, Domingos Calabreze, aos 16 anos empregado em uma
oficina de armeiro, brincando com a arma de um freguês, acabou por feri-lo.
A vítima viria a falecer, cerca de 15 dias depois. As dependências das
fábricas e oficinas, em função das longas jornadas de trabalho, acabaram
sendo, assim, o espaço no qual as crianças e adolescentes entregavam-se às
brincadeiras da própria idade […]. (MOURA, 2004, p. 269).
Fora a este contexto de resistência presente no dia-a-dia das crianças e formado
naturalmente pelas mesmas, já em 1910 as leis que regulamentavam o trabalho infantil
existiam, contendo estas especificações referentes às jornadas de trabalho máximas permitidas
a cada faixa etária, regulamentações sobre os intervalos de descanso e alimentação e a
proibição de cargos noturnos à menores de 18 anos de idade. A regulamentação entre os
setores que poderiam abranger as diferentes faixas etárias dos menores também já estava
presente desde o fim da década de 1910. Em meados de 1917 e 1918 até mesmo leis de defesa
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aos direitos estudantis e de saúde dos menores trabalhadores tornavam-se presentes na
legislação estadual, prevendo que um certificado de frequência na escola e de capacidade
física deveriam ser apresentados anteriormente ao ingresso profissional.
Claramente, apesar das regulamentações realizadas, o estado continuou por muito
tempo com uma efetivação inconsistente das mesmas, com mecanismos fracos ou até mesmo
inoperantes de fiscalização, e uma política falha nas brechas encontradas pelo empresariado
para burlar as especificações presentes nas leis, tanto no que refere à mão-de-obra infantil,
quanto dos trabalhadores fabris em geral.
Como resposta á falta de vigilância e aplicação das leis por parte do estado, a classe
operária começa, ainda nas primeiras décadas do século, a obter a criança, o trabalhador
infantil, como um dos argumentos principais de suas causas de luta. O sentimentalismo capaz
de fazer surgir a infância passa a fomentar ainda mais os movimentos operários, bem como a
circulação de exemplares com esta temática provenientes da imprensa da época. Incitações em
busca da atenção ao estado crítico dos menores nas fábricas eram feitas através dos matérias
publicados, levando juntos a este todas as demais reivindicações provenientes da classe
trabalhista em geral, como remunerações mais adequadas, melhores condições de higiene nas
indústrias, igualdade salarial entre homens e mulheres, dentre outras. Vários movimentos
grevistas operários também obtiveram fundamentos na questão infantil, como pode ser
exemplificado através da greve de 1917, na qual os “operários de uma fábrica de tecidos e
bordados na Lapa, apresentavam dentre as reivindicações a exigência de que fosse dispensada
uma mestra que puxava as orelhas das meninas, além de espancá-las.” (MOURA, 2004, p.
282).
Já ao que se refere aos grupos de tendência anarquistas, estes também obtiveram
importante papel de resistência à prática do trabalho infantil uma vez que ocorre através deste
grupo a formação de um movimento específico a lutar pela causa infantil, em 1917, tratando-
se do “Comitê Popular de Agitação e contra a Exploração dos menores nas Fábricas”. Fora a
partir desta organização que as foram comandadas as mais intensas greves e movimentos que
buscavam dar visibilidade ao trabalhador infantil, e, claramente, o operariado em geral. Ainda
que sem grandes resultados obtidos em prol da mudança da situação, pelas agitações dos
movimentos de tendências anarquistas houve, a partir destes, consideráveis acontecimentos no
âmbito social e político dos envolvidos.
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O século XX trouxe a tensão provocada por um redimensionamento
econômico próspero cujo custo social foi, por um lado, a politização dos
trabalhadores urbanos pelos anarquistas e, por outro, a prisão ou importação
de suas principais lideranças acusadas de subversão. Num país de tradição
escravocrata as críticas à situação de vida das crianças (sem escola, com
trabalho não regulamentado e regulamentos desrespeitados, habitando em
condições desumanas) abriram frentes para reivindicações políticas de
direitos e contestações às desigualdades. (PASSETTI, 2004, p. 347).
Após os avanços que partem deste momento da reação operária, o movimento torna-se
um marco para a atitude seguinte que viria das políticas públicas para uma defesa mais sólida
dos menores. Estas, ainda que caminhando a curtos passos, irão resultar futuramente na
parcela oferecida a causa da Constituição de 1934, na qual se determina a proibição ao
trabalho dos menores de 14 anos, de trabalhos noturnos aos menores de 16 anos e em
indústrias insalubres a menores de 18 anos de idade. Além disso, aos pequenos, em geral,
passava a ser de direito pleno a educação primária gratuita, sendo este um dos mais
importantes fatores para a transformação da realidade social.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Infelizmente, com o explodir das reivindicações operárias de 1917 não foram
assegurados a todos os trabalhadores infantis os direitos básicos que toda a criança deve ter.
Aliás, tal fato não seria alcançado nem mesmo com a Constituição de 1934, apesar do texto
inspirador que a mesma possui. A realidade é que o trabalhador infantil fixou-se ao contexto
social nacional, ainda que com divergências sobre seu momento inicial, tornando-se uma dos
fatores mais negativos e marcantes principalmente ao se tratar do início da industrialização
tão almejada pelo país. Junto às fábricas e grandes galpões que compunham os também
nascentes centros urbanos de São Paulo, e outras capitais da região Sudeste, o Brasil
observava a emersão de uma nova classe social, composta por homens, mulheres e crianças,
envoltas constantemente em dificuldades e ausência de direitos, por entre as máquinas e
ferramentas que tornavam-se à estes, muitas vezes, a mais presente companhia de mínimas 12
horas diárias.
Fossem as crianças operárias provindas do dito “combate à vadiagem”, da necessidade
de sobrevivência das famílias imigrantes, ou das famílias pobres já pertencentes à nação, o
trabalho imposto a estas resultava sempre em um denominador comum, resumido em riscos e
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injustiças. Riscos provindos da insalubre realidade que os ambiente de trabalho à elas fornecia
e da grande quantidade de agressões morais a quais eram diariamente submetidas. Já as
injustiças, tanto por toda uma gama de possibilidades que lhes eram descartadas com a falta
de acesso à educação, quanto pelo pagamento oferecido ao fim do expediente, sem
reconhecimento ou valorização alguma de seu sacrifício em estar trabalhando por períodos
exaustivos ali, assim como os demais operários.
Através das análises sobre a utilização da mão de obra infantil, pôde-se notar que a
linearidade da prática percorre-nos até os dias atuais, que, sem dúvida, estudar os primórdios
de sua exploração se torna de extrema importância para compreendê-la e combatê-la. Elucidar
a sociedade com exemplos que remetem á realidade passada é uma forma de conscientizá-la
para reações contra esta que ainda coexiste em nosso país, incentivando o pensamento crítico
e a consciência social necessária a uma nação em seu desenvolvimento. Desta forma, a
temática torna-se ainda mais abrangente, e, claramente passível e necessária de outros estudos
e abordagens que possam enriquecê-la visando o fortalecimento de sua importância no
contexto social, econômico, cultural e político do país.
Por fim, o fato de ser uma análise acerca de um assunto que permeia conceitos e
temporalidades exclusivos ao tema da infância no determinado cenário nacional, ainda
possibilita a verificação do quanto os conceitos de infância e trabalho infantil podem possuir
características dinâmicas através de seus momentos de análise e vivência, sendo de extrema
importância a realização de estudos que contemplem toda esta diversidade possível, para uma
melhor compreensão historiográfica.
CHILDHOOD DENIED: AN ANALYSIS ABOUT CHILDREN LABORERS IN
BRAZIL’S SOUTHEAST REGION AT THE BEGINNING OF THE TWENTIETH
CENTURY
ABSTRACT
The history about children, having them as worthy of being studied, is an area that is very
recent, plausible and in need of new approaches and discussions. The study on Brazilian children
laborers in the first decades of the twentieth century reinforces the idea of how much the concept of
child labor – and the own concept of childhood – still must be evaluated in the various meanings it has
received. It also facilitates the comprehension of how much the practice of child labor in the
manufacturing environment enhanced even more the chaos lived by the less affluent individuals
during the early industrialization. Through the analysis and historiographical discussion based on the
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theoretical foundation found in the literature related to the topic, this study aims to clarify how these
children were inserted in the manufacturing reality, causes and reasons, and how the child reality was
molded to this new environment.
Keywords: Child work. Child labor. Industrialization.
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