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    Incluso

    no rima com solido

    Jos Pacheco

    Curitiba, Setembro de 2011

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    Introduo

    Nunca ser demais voltar ao assunto, para lembrar que, apesar da teoria e

    contra ela, a realidade nos diz que, desde h sculos, tudo est escrito e tudocontinua por concretizar. Nunca ser demais falar de incluso. Nunca ser

    demais lembrar que os projectos humanos carecem de um novo sistema tico

    e de uma matriz axiolgica clara, baseada no saber cuidar, conviver com a

    diversidade.

    A chamada Educao Inclusiva no surgiu por acaso, nem misso exclusiva

    da Escola. um produto histrico de uma poca e de realidades educacionais

    contemporneas, uma poca que requer que abandonemos muitos dos nossosesteretipos e preconceitos, que exige que se transforme a escola estatal em

    escola pblica uma escola que a todos acolha e a cada qual d

    oportunidades de ser e de aprender.

    Os obstculos que uma escola encontra, quando aspira a prticas de incluso,

    so problemas de relao. As escolas carecem de espaos de

    convivencialidade reflexiva, de procurar compreender que pessoas so aquelas

    com quem partilhamos os dias, quais so as suas necessidades (educativas e

    outras), cuidar da pessoa do professor, para que se veja na dignidade de

    pessoa humana e veja outros educadores como pessoas. Sempre que um

    professor se assume individualmente responsvel pelos atos do seu coletivo,

    reelabora a sua cultura pessoal e profissional... inclui-se. Como no se

    transmite aquilo que se diz, mas aquilo que se , os professores inclusos numa

    equipe com projecto promovem incluso.

    Aos adeptos do pensamento nico (que ainda encontro por a...) direi ser

    preciso saber fazer silncio escutatrio, fundamento do reconhecimento do

    outro. Que precisamos rever nossa necessidade de desejar o outro conforme

    nossa imagem, mas respeit-lo numa perspectiva no-narcsica, ou seja,

    aquela que respeita o outro, o no-eu, o diferente de mim, aquela que no quer

    catequizar ningum, que defende a liberdade de idias e crenas, como nos

    avisaria Freud. Isso tambm caminho para a incluso.

    Aos cnicos (que ainda encontro por a...) direi que, onde houver turmas de

    alunos enfileirados em salas-celas, no haver incluso. Onde houver sries e

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    aulas assentes na crena de ser possvel ensinar a todos como se de um s se

    tratasse, no haver incluso. Direi que, enquanto o professor estiver sozinho,

    no haver incluso. Insisto na necessidade da metamorfose do professor, que

    deve sair de si (necessidade de se conhecer); sair da sala de aula

    (necessidade de reconhecer o outro); sair da escola (necessidade de

    compreender o mundo). O ethos organizacional de uma escola depende da sua

    insero social, de relaes de proximidade com outros atores sociais.

    Tambm requisito de incluso o reconhecimento da imprevisibilidade de que

    se reveste todo o acto educativo. Enquanto acto de relao, ele nico,

    irrepetvel, impossvel de prever (de planejar) e de um-para-um (questionando

    abstraes como turma ou grupo homogneo), nas dimenses cognitiva,

    afetiva, emocional, fsica, moral... As escolas que reconhecem tais requisitos

    estaro a caminho da incluso.

    Na solido do professor em sala de aula no h incluso. Nem do aluno,

    metade do dia enfileirado, vigiado, impedido de dialogar com o colega do lado,

    e a outra metade, frente a um televisor, a uma tela de computador ou de

    telemvel... sozinho. A incluso depende da solidariedade exercida em equipes

    educativas. Um projecto de incluso um acto coletivo e s tem sentido no

    quadro de um projecto local de desenvolvimento consubstanciado numa lgica

    comunitria, algo que pressupe uma profunda transformao cultural.

    Partillho curtos dilogos que aconteceram na Escola da Ponte, a par de

    algumas crnicas. Sob a forma de lies-metforas, cada leitor, na

    subjetividade da reinterpretao destas linhas, saber ler nas entrelinhas

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    "I am beginning to suspect all elaborate and special

    systems of education. They seem to me to be built upon the

    supposition that every child is a kind of idiot who must be

    taught to think. Whereas if the child is left to himself, he will

    think more and better if less showily. Let him go and come

    freely, let him touch real things and combine his

    impressions for himself, instead of sitting indoors at a little

    round table, while a sweet-voiced teacher suggests that he

    build a stone wall with his wooden blocks, or make a

    rainbow out of strips of coloured paper, or plant straw trees

    in bead flower-pots. Such teaching fills the mind with

    artificial associations that must be got rid of, before the child

    can develop independent ideas out of actual experience."

    Anne Sullivan

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    Ser que es to u e rrada de pens ar q ue a i ncl uso no

    tem q ue acon tecer a qualquer preo? Tem professo res

    que no c ons eguem olhar p ara o ser humano que est

    a sua f rente, querem um diagnst ico conf i rmando a

    deficincia, para ju st if ic ar a falta d a aprendizagem .

    Com o iss o po de s er m udado? A Declarao de

    Salamanc a com pleto u 17 ano s. Foi e ser s no papel

    para brasi leiros?

    Perdoa o tom que utilizo para concordar contigo. Mas

    apetece-me dizer que, infelizmente, a "incluso" um

    termo fabricado em Salamanca, mas que, at hoje,

    somente serviu para enfeitar teses de doutoramento. Como

    referes, h muitas "pessoas conceituadas" a produzir teoria

    intil (no MEC, nas universidades e em outras torres

    bizantinas) e h muito faz-de-conta "inclusivo" nas escolas.

    Devo acrescentar que tambm h gente sria nas

    universidades e no MEC. No generalizemos...

    As escolas tero de reconfigurar as suas prticas, para que

    a incluso (que j um termo excludente...) acontea. A

    "incluso ao contrrio" de que me falas um dos caminhos,

    como j referi. A integrao de especialistas no contexto de

    equipes com projeto outro.

    (Orientador Educativo da Escola da Ponte)

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    Primeira lio

    Contra a solido, lies de humanidade

    No v por a, que tem assaltante esperando!

    Arrepiei caminho, com um sorriso de agradecimento para o moo que me

    lanara o aviso, e que afagava um vira-lata esqulido, que retribua lambendo-

    lhe o rosto. Mais adiante, um menino da rua remexia num caixote de lixo e

    retirava dele um pedao de carne suja e infecta. Sacudiu-o, para solt-lo de

    pedaos de guardanapo de papel. Quando j abria a boca para engoli-lo, um

    transeunte foi junto do moo e deu-lhe uma nota de vinte reais. E, em silncio,

    se afastou... Cheguei, por fim, escola que pretendia visitar.

    Retirante baiana, a Antnia chegou grande cidade s com os andrajos que

    lhe cobriam o magro corpo. No foi o amor, mas a fome, que a fez parir dez

    filhos, a juntar aos oito que o seu homem j fizera em outra mulher. Vai fazer

    cinqenta anos, mas tem no rosto as marcas de sculos de provaes mais

    de um sculo decorrido sobre a Lei urea, ainda existe uma cidadania que

    conhece, possui e tem poder e uma cidadania que nada possui, pouco conhece

    e nada pode. H dez anos, o seu homem sofreu trs derrames e caiu na cama

    para no mais se levantar. A Antnia cuida-o com o mesmo desvelo que dedica

    a um menino que uma jovem nordestina lhe confiou, antes de se perder nos

    atalhos da vida e da prostituio.

    O meu menino como o meu homem, no fala nem consegue andar dois

    passos, mas eu peo senhora que o deixe vir para a sua escola. Vai ver que

    ele ainda assim consegue aprender...

    Comovida, a directora da escola abraou a Antnia e a garantiu-lhe que o

    Edilson seria bem tratado e aprenderia tudo o que pudesse aprender. AAntnia abriu no rosto um sorriso terno e desdentado e l se foi de bem com a

    vida. E eu ali fiquei, num canto da sala, a voz amordaada pela emoo,

    incapaz de responder directora, quando me dirigiu a palavra: como canta o

    Milton, professor, h que se cuidar do broto, para que a vida nos d flor...

    Dizia o mestre Agostinho da Silva que no existem s poetas de verso. A idia

    de que a pessoa tem de se dizer poeta porque faz verso, no verdade. Poeta

    aquele que cria na vida alguma coisa que na vida no existia. Na minhaperegrinao pelo Brasil das escolas, encontro poesia nos gestos mais

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    simples, aprendo humanidade, deparo com beleza a todo o momento. E, no dia

    em que conheci a Antnia, aconteceu uma overdose... A Tatiane deixou uma

    mensagem no meu computador:

    O que me move o amor, pela vida, pelo outro e por acreditar nisto trao meu

    percurso enquanto educadora na emoo e no sentimento. No posso basear

    minha ao pedaggica no sistema falho, devo base-la no ato vivo na emoo

    e na relao que estabeleo a cada dia. Para resgatar este outro que foi

    julgado, descriminado e rotulado...

    Comenius, na Pampaedia, diz-nos: Nosso primeiro desejo que todos os

    homens sejam educados plenamente em sua plena humanidade, no apenas

    um indivduo, no alguns poucos, nem mesmo muitos, mas todos os homens,

    reunidos e individualmente, jovens e velhos, ricos e pobres, de nascimento

    elevado e humilde. Infelizmente, no parece que vamos nesse sentido. E,

    como algum j disse, quando falha a educao, sobe cena o polcia e o

    juiz... No v por a, que tem assaltante esperando!

    Mas, nas minhas peregrinaes pelo Brasil das escolas, encontro muita e

    maravilhosa gente que busca realizar o desiderato de Comenius. A esperana

    aquela que Pandora no deixou que sasse da sua caixa e cuja etimologia

    nos remete para a f na bondade da natureza manifesta-se em discretos

    gestos de educadores, que nos do lies de humanidade.

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    No B rasil, toda criana agitada, que prefere ativid ades

    mais prticas , as in tim ist as, aquelas qu e tm

    hip erat ivism o, as qu e so co ns ideradas com

    prob lemas psico lgico s, so encaminh adas p ara

    tratamen to ps ico lgico . Isso o co rre com freqnc ia, ou

    no, na Esc ol a da Pont e? O qu e ser avaliad o, para que

    um a criana seja encam inhada para tratamentos

    ps ico lgicos?

    Mesmo sendo um ser incompleto, como diria Paulo Freire,

    dou a minha contribuio para melhorar alguma coisa... A

    criana que chega na Ponte tem um historial familiar e

    pedaggico, que vem descrito no processo pedaggico da

    escola em que a criana estava matriculada. Isto j um

    dado muito importante a considerar em futuras decises.

    No trabalho dirio, vamos fazendo um diagnstico dessas

    crianas, ditas mais problemticas. Juntamos os

    documentos burocrticos com diagnsticos e vamos

    tomando decises. A deciso de encaminhar estes alunos

    para consultas de desenvolvimento passa por uma deciso

    dos orientadores educativos, tendo sempre por base

    relatrios elaborados pela equipa multidisciplinar.

    Os encarregados de educao participam nesta discussoe fazem tambm parte desta equipa.

    Definimos estratgias de trabalho adequadas a cada um

    dos alunos, para que tenham direito a um trajeto escolar

    adaptado s suas caractersticas.

    (Orientador educativo da Escola da Ponte)

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    Segunda lio

    Abraar para incluiri

    H muitos, mesmo muitos anos, conheci um professor que me afianou nunca

    ter defrontado problemas de indisciplina. Confidenciou-me que, no primeiro dia

    de aulas de cada ano lectivo, dava toda a corda turma, esperava que a

    desordem se instalasse e que o lder da desordem se revelasse. Ento,

    parava a romaria e aplicava no mariola uma sova monumental, que era

    remdio santo para todo o ano(sic).

    Recentemente, foi-me concedido o privilgio de reconhecer a distncia que vai

    da violncia disciplinadora desse professor de antanho ternura dos braos

    de uma Ana (Joana de nome prprio, mas esse um segredo que fica entre

    ns...).

    A Ana viveu por dentro o quotidiano de um bairro degradado. Entre outros

    dramas, conheceu o de uma criana por todos considerada violenta, hspede

    quase permanente de um quarto escuro, onde cumpria longas horas de

    castigo. Porm, nem o negro isolamento domava a juvenil fria. Em

    sucessivas vagas, a soco, a pontap, dentada, forava a fuga das

    companheiras, e abreviava o regresso ao quarto escuro.

    Recm-chegada, a Ana depressa se apercebeu daquele crculo vicioso de

    violncia, crime e castigo. Poucos dias decorridos, aproveitando um momento

    de distraco da endiabrada rapariga, prendeu-a nos seus braos. A pequena

    ainda esperneou, mas sem conseguir escapar ao amplexo. Resignada, julgou

    chegado mais um momento de recolher punitiva escurido. Tremeu quando a

    Ana a beijou na face. Correu para novas tropelias, logo que a Ana a largou.

    No levou muito tempo a regressar. Ia direita ao quarto escuro, de orelhapendurada, quase arrastada pela vigilante que a surpreendera em flagrante

    delito. De novo, a Ana intercedeu por ela. A vigilante largou-a nos seus braos.

    A pequena j quase no ops resistncia. Sentiu o abrao como abrao e

    recebeu o beijo sem frmito aparente. Mas, sem demora, foi procurar mais

    sarilhos e voltou qual pssaro h muito sem ninho ao aconchego dos

    braos e ao afago dos lbios da paciente Ana. Algumas idas e vindas depois, o

    man do afecto prendeu-a definitivamente. A pedagogia do abrao vencera a dapunio.

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    A vida dos professores est recheada de acontecimentos dignos de narrar e,

    como no h duas sem trs, aqui deixo registo de outra peculiar experincia.

    O primeiro dia de escola comeou num vaivm entre vinte e tal fedelhos a

    chorar baba e ranho e meia dzia de ansiosas e renitentes mes, coladas ao

    umbral da porta, ora espreitando a descendncia pelos interstcios, ora

    penetrando para assoar o nariz do herdeiro ou dar-lhe um beijo de despedida.

    Respeitosamente, o professor encaminhou as ansiosas progenitoras no sentido

    da sada. Ao cabo de uma longussima meia hora, logrou encostar a porta:

    com licena, desculpe, faz favor, minha senhora, sim, sim, pode ficar

    descansada, claro, pois, natural, coitaditos, no ? As gotas, pois, no me

    esquecerei, pois, d-me licena, se fazem favor, no custa nada, daqui a pouco

    j vo ao recreio, sim, minha senhora, no me esquecerei, concerteza...Com

    mo firme e jeitinho conseguiu fazer descolar da porta os dedos da ltima mo

    da ltima me, deitou um olhar quela que seria a sua primeira primeira

    classe e respirou to profundamente quanto a ansiedade lho permitia.

    Cuidou de acalmar os pequenitos que, a todo o momento, ameaavam retomar

    o choro. Depois da tempestade, parecia ter chegado o merecido sossego.

    Contou os gaiatos. Faltava um.

    - O senhor professor d licena? - e logo algumas das j aquietadas mes

    aproveitaram para ensaiar um retorno e lanar ansiosos olhares sobre a

    prole, que retomava o ritmo do soluar e desembocava numa nova e

    ruidosa choradeira.

    Apercebendo-se de que a frente de batalha no se encontrava l dentro mas

    fora de muros, o professor alterou a estratgia. Saiu da sala, fechou a porta

    atrs de si e a ela resolutamente se encostou. O que viu fez com que o seu

    semblante no reflectisse tanta amabilidade como h meia hora atrs. Umasuposta me debatia-se impotente perante investidas e pontaps do seu

    rebento, acompanhadas de tais imprecaes que fariam corar de vergonha um

    surdo.

    - O senhor doutor do posto disse-me que ele tem sistema nervoso. O meu

    marido at ouviu no foi, Quim? que a gente no o pode contrariar.

    Eu ainda pensei em lev-lo ao especialista dos nervos, mas tenho l

    posses! Inda se a Caixa me desse um suicdio! J entreguei a papeladah que tempos... e nada!

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    - O garoto levado do diabo comentavam, entre dentes, alguns dos

    presentes.

    Met-lo assim na sala, nem pensar! pensou o professor. Pegou no aluno ao

    colo e, a custo, foi com ele at ao alpendre das traseiras.

    Quando se encontrou a ss com o mido, sentou-o na beira do muro e falou-

    lhe baixinho e ao corao. Disse-lhe tudo o que possvel dizer-se para

    sossegar o esprito de uma criana. E o infante presenteou-o com um chorrilho

    de improprios:

    - Deixa-me, filho da p...! Deixa-me!

    O professor respirou fundo, contou at vinte, voltou a respirar mais fundo e

    contou mais uma vez. O professor no era dos que acreditava no ditado

    popular que diz que moo que no castigado no ser corteso nem

    letrado, mas j comeava a desesperar. O fedelho esperneava e gritava:

    - Deixa-me, filho da p...! Larga-me!

    A mo do professor foi mais lesta que o pensamento e s parou na face do

    pequeno. Mas foi a mesma mo que a acariciou e enxugou as ltimas lgrimas,

    enquanto os seus braos envolveram a criana num abrao penitente.

    O mido percebeu que a sua performance tinha acabado e que com aquele

    adulto a seus olhos bruto e terno a cena do grito e da canelada no surtia

    efeito. Por receio de nova palmada, ou por razes que a razo desconhece, o

    pequeno l foi, a par do novo mestre, sala adentro, como se nada de especial

    tivesse sucedido.

    sua passagem, uma me ainda comentou:

    - Este professor que tem jeito para as crianas!

    Equidistante dos outros dois episdios, este confirma o que j dizia um poeta:

    as mos so a guerra e so a paz.Juntarei ao texto algumas palavras por detrs das palavras. Naquele tempo,

    ainda no tinha sido inventado o TDAH. E, se verdade que bater numa

    criana um acto de cobardia, tambm sabemos o que Anton Makarenko

    escreveu no seu Poema Pedaggico. Quem ainda o no leu, no sabe o que

    perde. Est l tudo.

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    Como se d a recepo dos alu nos em s it uao de

    r isco po r par te dos colegas?

    O trabalho com os grupos heterogneos permite uma

    configurao interessante. As crianas so agrupadas de

    maneira a conviver com outras crianas que possuam

    capacidades e vivncias diferentes. Por isso, era possvel

    perceber em alguns grupos a preocupao com o outro e o

    respeito diferena. A integrao era fundamentada no

    apoio grupal, sendo sempre ressaltado que todos tinham os

    mesmos direitos. Mas claro que nem sempre isso ocorria

    de maneira ideal. Muitas vezes, era necessria uma

    interveno do professor tutor, principalmente em casos de

    agressividade.

    (Pesquisadora brasileira)

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    Como essa menina (aluna com necessidades

    espec ia is ) fo i para o s eu grup o? Melhor p erguntando:

    com o so arranjados os grup os de trabalho?

    Tentarei dar o meu melhor para responder pergunta por si

    colocada, uma vez que j no freqento a Escola da Ponte

    e, com o passar dos anos, alteraes devem ter sido feitas.

    Normalmente, os grupos eram constitudos por alunos de

    diferentes anos de escolaridade ou, ento, com diferentes

    nveis de aprendizagem. Isto , num grupo de quatro

    elementos, as idades poderiam ser diferentes (os meninos

    da primeira vez, ou primeira srie como costumam dizer,

    no faziam parte dos grupos). Ou, ento, tendo a mesma

    idade, apenas havia um aluno com mais facilidade de

    aprendizagem em relao aos outros.

    No incio de cada ano. eram atribudas cores aos alunos,

    para que fizessem o jogo da organizao de grupos. Vim a

    descobrir, mais tarde, que cada cor estava de acordo com

    as nossas capacidades cognitivas e esprito de entre-ajuda.

    Esta distribuio acontecida de forma a haver um equilbrio

    entre grupos. Depois era-nos dado tempo para formarmos

    um quarteto, e tnhamos de respeitar certos critrios: um

    aluno com cor amarela, por exemplo, no podia fazer par

    com outro da mesma cor, mas sim com um de cor vermelha

    e assim sucessivamente, at o grupo ter o nmero demembros necessrios ao seu funcionamento.

    Essa menina veio a formar o meu grupo de trabalho por

    minha escolha e dos restantes elementos, e fico muito

    contente por a ter aceite! Estudar com pessoas como a

    Martinha fez-me crescer muito e ver que ainda h muito

    para aprender quanto a estas pessoas maravilhosas.

    (Ex-aluna da Escola da Ponte)

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    Terceira lio

    Professores includos

    H muitos anos, quando ouvia algum referir-se com desdm a uma qualquer

    escola ou a classificar um qualquer professor de lrico ou de luntico (s

    para referir as mais gentis e eufemsticas classificaes...), eu inquiria,

    discretamente e sem manifestar excessiva curiosidade (para no levantar

    suspeitas), de que escola ou professor se tratava. Recolhida a informao, logo

    preparava a viagem.

    vido de prodgios, pesquisador de almas inquietas, fui num distante dia de

    Outubro em demanda da professora Lcia e da sua to comentada escola de

    lugar nico, escondida num vale, para alm do Maro. Depois de muitas voltas

    por estreitas estradas com alguns vestgios de alcatro, estava quase decidido

    a voltar para trs, quando deparei com uma placa indicando a proximidade da

    aldeia. Segui por um caminho de terra onde mal passava um carro. O receio de

    encontrar alguma viatura em sentido contrrio foi-se esvaindo medida que me

    aproximava da aldeia e talvez por efeito do sossegado silncio entre

    montanhas, pontuado pelo chilrear dos pssaros. Ia to distrado que, no

    desfazer de uma curva, por pouco no fui de encontro a uns cornos fora de

    mo.

    - Ei! Ei, Bonita! Arreda! gritou uma velhinha, de aguilho em punho,

    empurrando a vaca para o rego de gua que bordejava o caminho.

    Pedi desculpa pela perturbao gerada e perguntei senhora se conhecia a

    escola e se ainda ficava longe dali.

    - No senhor, meu senhor, mesmo aqui pertinho. No tem nada que

    enganar. O senhor vai por aqui, sempre neste correr. Quando der com acasa do meu filho, meta a descer para o lado esquerdo. A escola logo

    ali beirinha...

    Quando der com a casa do meu filho... Retomei a marcha com o mesmo

    pressentimento de me haver perdido, mas a desconfiana desvaneceu-se ao

    deparar com a casa do filho. Era a nica, ao fundo do caminho. E l estava,

    efectivamente, a azinhaga, do lado esquerdo, envolta numa latada, uma

    espcie de tnel, ao fundo do qual vi a luz.A singela construo do plano doscentenrios iluminava-se com o riso das crianas. A glida sala de aula

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    amornava-se com o calor de gestos sbios e transbordava de doce ternura.

    Havia mais pedagogia naquele lugar ermo do que em todos os compndios

    que eu j tinha lido. Em escassas horas, aprendi mais das crianas e dos

    professores do que nos cursos de formao.

    Compreendi por que razo certos docentes recorriam a uma abundante

    adjectivao lricos, lunticos, utpicos e outros eptetos bem menos

    lisonjeiros... quando se referiam a professores como a minha amiga Lcia, a

    Georgina, o Lobo, a Anglica e muitos outros, que sinto orgulho de ter

    conhecido e at de contar entre os amigos. Alguns j faleceram, outros esto

    espera que algum os descubra. E eu insisto numa busca que no cessa, por

    ter sido nessa busca que me encontrei e encontrei razes para me manter

    professor. A esses utpicos devo quase tudo o que de bom possa ter e ser.

    Voltei da escolinha da minha amiga Lcia com mais alento e vontade de no

    desistir. Voltei mais consciente do muito que teria de me melhorar e do quanto

    teria de aperfeioar a minha prtica.

    Voltei minha escola com uma f pedaggica mais fortalecida. Porque,

    semelhana dos magos que se deixaram guiar por uma estrela at uma

    claridade que rompia as trevas de uma gruta ou casebre, eu mantivera a

    crena de encontrar a casa de um filho de uma velhinha, marco de referncia

    de uma escola que irradiava uma luz perturbadora das trevas em que todo um

    sistema estava imerso. A analogia talvez resulte da proximidade da quadra

    natalcia e do facto de estas fugazes iluminaes se assemelharem a estrelas

    cadentes que, por desistncia ou desaparecimento dos autores, se

    transformam em buracos negros. Trgica sina de um sistema que no merece

    os professores que tem e que permite que os raros focos de orientao se

    apaguem.No h semana em que no receba uma ou outra mensagem de esperana ou

    de desespero de professores que se recusam a deixar de o ser, ou resistem a

    ser como todos os outros. semelhana da Lcia e de outros lricos e

    utpicos, so depreciados, caluniados, perseguidos, ou ignorados e

    remetidos para uma solido compulsiva, em escolas de lugar nico como em

    escolas habitadas por dezenas de professores.

    Quero dar a palavra a uma Liliana, generosa professora de nova gerao, queresiste aos convites do fcil e do cmodo. Tem a palavra a Liliana: As

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    incertezas, as dvidas e as lgrimas ainda me perseguem. Os dias passam de

    uma forma alucinante e sinto-me cada vez mais infeliz. Nalguns dias chego

    mesmo a duvidar se esta ser a minha vocao... Sinto-me to insegura que

    na escola aparento ser mais uma "professora" (daquelas que tanto criticava).

    s vezes, no sei o que fazer: no quero continuar assim, mas tambm no sei

    como alcanar a escola dos meus sonhos. Mas no se preocupe, no serei

    daquelas professoras que lhe provocam pesadelos. O que me irrita

    profundamente saber que no estou a agir da melhor forma ou como gostaria

    e no conseguir fazer nada para o evitar. Bem, acho que ter conscincia

    "meio caminho andado". Para alcanar o sonho, basta-me ser forte, escutar o

    meu corao e sobretudo o corao dos meus meninos, no ? Obrigada por

    receber este desabafo. Espero que o prximo seja mais sorridente!

    Tem a palavra um Carlos que se espanta e alegra com o milagre da poesia a

    todo o instante: Estou vaidoso. Aqui vai um texto de uma criana sobre o que

    ser criana. por isso que vale a pena esta arte de educar. Para todos os dias

    sermos surpreendidos. E pensar que posso ter contribudo, nem que seja um

    pouco, para este poema...

    Tem a palavra ainda uma das muitas Lilianas cuja incerteza justifica estes

    meus exerccios de escrita penitencial: Sei que uma pessoa ocupada.

    Apenas lhe escrevo como desabafo, tal como escreve as suas histrias. No

    sei se, quando me conheceu, achou que eu seria uma boa dadora de aulas ou

    uma aspirante a professora. A verdade que cada palavra das suas histrias

    me faz chorar. No consigo fazer as minhas crianas felizes, no estou feliz

    com a professora que sou e no sei o que fazer. Professor, a realidade aqui

    to feia. O ano mal comeou e j me sinto "sufocada". Mas, graas s suas

    histrias, e juntamente com as lgrimas, surge a esperana e a vontade defazer e ser melhor.

    Suspendo as citaes para concluir num registo que mais um solstcio de

    Inverno me inspira. Para redeno do sistema, no se pense que o caminho

    para a Salvao da Escola est feito, se o processo de converso em cada

    professor no se realiza. Neste Natal, considerai que no ser fcil a um

    professor alcanar a casa do Pai se, pelos caminhos ou descaminhos do

    exerccio da profisso, o professor no cuidar de procurar a casa do Filho...

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    Fale um po uco m ais sobre o papel da psicloga. Como

    ela part ic ipa de tod o o proc esso? Os p rofessores so

    gr and es c ui dad or es. Cuid am do SER, h tambm um a

    polt ica em tod o o proc esso, com o in tui to d e cuidar d o

    cuidador?

    O que se observa que os alunos d a Ponte

    aprend eram qu e eles so os res po nsveis pelo

    aprendizado. Como se deu esse processo? Como

    aconteceo planejamentona escola da Ponte? Todo s

    os pro f iss ionais se renem em um mesmo tempo e

    espao? Em que perod o? Quando os pro fesso res se

    renem, com q uem f icam o s alunos ?

    A psicloga que acompanhei mais de perto estava no seu

    segundo ano na escola. Vi que ela estava tentando

    organizar o seu trabalho. Falou que, no primeiro ano,

    praticamente ficou nos espaos, tentando compreender a

    dinmica da escola e perceber a forma de trabalhar dos

    professores e alunos.

    Agora, ela j estava tentando sistematizar uma prtica mais

    preventiva. Mas ainda estava no incio. Tinha vontade de

    organizar grupo de pais e funcionrios e j estava

    trabalhando com alguns alunos um grupo de formao

    pessoal e social.

    Sua principal inquietao era esta: como poderia ser dado

    um acompanhamento mais individualizado para algumascrianas com dificuldades especficas e como poderia

    realizar a avaliao psicolgica na escola? Mas claro

    que, em muitos casos, era chamada como "bombeira", para

    apagar alguns fogos...

    Tambm se preocupava em cuidar um pouco dos

    educadores, mas no percebi o trabalho nesse sentido.

    (Pesquisadora brasileira)

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    Quarta lio

    Incluso processo

    Foi considerado aluno incapaz de se adaptar escola. O relatrio avisava:

    um aluno que apresenta dificuldades de controlo dos impulsos agressivos e

    manifesta o maior desinteresse pelas aprendizagens escolares, para alm de

    uma j evidente tendncia para a aproximao ao lcool.

    Pudera! O Bino fizera o tirocnio com a av. E afianava-me, muito tempo

    depois, que aquilo nem era vinho, era uma zurrapa, porque a av Zefa j tinha

    uma grande conta de assentar na mercearia, e na tasca j nem a podiam ver e

    muito menos lho vendiam.

    Relutante s aprendizagens escolares, o Bino aprendeu a vida na busca de

    mantimento, que a reforma da av no chegava sequer para a pinga.

    Especializara-se em assaltos a hortas e pomares. Aos quatro anos, era hbil

    na fisgada certeira e na ferradela pronta no brao do hortelo que o

    surpreendesse em flagrante.

    O Bino no conheceu pai nem me. Consumada a pario, a progenitora

    abalou para Frana, no rasto do presumvel pai. Nunca mais deu notcia. Uma

    av o acolheu num tugrio de cho de terra batida.

    O Bino cresceu entre maus-tratos e fomes de dias. Ao fim da tarde, engolia

    uma malga de sopas de cavalo cansado, enquanto aguardava a chegada da

    av. Vinha, invariavelmente, embriagada e de tero na mo. Avistando-a, o

    Bino descalava as botas de surrobeco herdadas do falecido av e atirava-se

    para debaixo das mantas.

    Ao cabo do primeiro mistrio, a av j cabeceava, arrastava a voz na ave-maria

    e acabava por sucumbir aos alcolicos eflvios, adormecendo encostada aoseu ombro. O Bino deixava-se anestesiar pela respirao da velha e afundava-

    se num suave torpor at de madrugada.

    A pequena leira em redor do casebre era pedregosa. Quase nem ervas

    cresciam, muito menos coisa semeada. De modo que o sustento e o

    aquecimento centraldo Bino, da av Zefa e do Malhado eram as ovelhas do

    pequeno rebanho que com eles coabitava.

    Sabemos que o brincar e o jogar so caractersticos de um tempo de expansodo conhecimento de si mesmo, do mundo e dos sistemas de comunicao. E

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    que a infncia acaba quando algum reconhece que a sua vida deixou de ser

    um jogo maravilhoso, ou quando algum probe outro algum de brincar. O

    Bino soube-o quando a av Zefa o fez levantar da cama, numa frgida

    madrugada, aos quatro anos mal feitos.

    - Hoje, s tu quem leva as mequinhas ao monte, que eu no me tenho de p.

    Deixa-te levar pelo Malhado, que l chegas.

    E chegou. Pelo meio da tarde, o co guiou o pequeno rebanho no regresso a

    casa, com o Bino a reboque, esfomeado e com os ps descalos fustigados

    pelos cardos. Nunca mais ficaria no aconchego das mantas para alm do

    nascer do sol, e o Malhado viria a ser seu mestre e nica companhia at aos

    sete anos de idade.

    Um dia, uma senhora bem vestida, bem cheirosa e aprumada(palavras que o

    Bino me ditou) espreitou para dentro daquele tugrio partilhado por animais e

    gente, e perguntou se a av se chamava Josefa da Conceio. Disse vir da

    parte das autoridades e que as autoridades tinham mandado uma carta av

    do neto que a escola reclamava. A av retorquiu que no senhor, que no tinha

    recebido carta coisa nenhuma e que, ainda que tal cousa lhe chegasse,

    nenhuma serventia teria por das letras nada saber.

    De nada valeu a ladainha av que das letras nada sabia. O nico proveito

    que a av Zefa obteve da senhora bem vestida, bem cheirosa e aprumadafoi

    uma magra penso de sobrevivncia, to magra que mal dava para

    encomendar meia dzia de garrafes. Sem pastor, o que restava do rebanho

    foi arrematado pelo Lus Vendeiro. O Malhado foi servir outros senhores e o

    Bino transformou-se num degredado de fundo de sala. No dizer da mestra, o

    moo era coisa ruim e insubmissa e nem com porrada l ia. Entremeava

    sesses de palmatoada com fugas para o monte e para junto do Malhado,fugas invariavelmente interrompidas pelas frequentes visitas da senhora bem

    cheirosa.

    O Bino acabou por ser internado numa instituio da cidade. E, se a guarda

    conseguia surpreend-lo nos montes que ele to bem conhecia, mais

    facilmente os agentes da autoridade o capturavam na cidade em que se perdia

    em tantos lugares de se ocultar.

    Com dez anos feitos, foi transferido para uma escola de ltima oportunidade. semelhana de muitos outros casos de insucesso que a essa escola

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    aportaram, o Bino Bouas vinha recomendado por psiclogos e acompanhado

    por um grosso relatrio de pedopsiquiatria.

    Apesar dos dez anos feitos, o Bino aparentava no ter mais de seis ou sete.

    Marcado pelo raquitismo, baixo, franzino, atarracado, parecendo no ter

    pescoo (como diziam alguns dos seus companheiros), juntou-se aos

    pequenos que vinham escola pela primeira vez. Caminhava bamboleando-se,

    olhando de soslaio para tudo e para todos. A certa altura, um professor pensou

    que aquele mido de aparncia frgil estava em apertos e procura de uma

    casa de banho. Aproximou-se e, com extrema delicadeza, inquiriu:

    - Precisas de alguma coisa?

    A resposta, numa voz grossa e zangada, deixou o professor estupefacto:

    - chefe, onde que se mija?

    Nos primeiros dias passados naquele novo e estranho mundo de aprender,

    ainda que o no soubesse, o Bino enfatizava o sentido ldico da escola o

    termo schola tem o significado etimolgico de cio... embora fosse notado na

    hora do recreio pelo exagero na distribuio de pontaps e cuspo.

    O seu reportrio de insultos era vasto. O improprio aplicado a preceito, na

    ponta da lngua e da caneta, era uma das suas competncias mais notadas,

    ainda que no constasse do currculo formal. Mas essa competncia foi

    abalada numa assembleia em que se provou que os palavres usados pelo

    Bino no constavam do dicionrio. E, se no constavam, no existiam, pelo

    que a Assembleia deliberou que o Bino teria de repensar o seu discurso e

    refazer o repertrio. O Bino esmerou-se. Passou por um processo de profunda

    reelaborao cultural e amide recorria sinonmia, para gudio dos

    companheiros e satisfao dos professores.

    Para que se perceba o trajecto de reparao dos danos por que o Bino passounaquela escola, transcrevo, a ttulo de exemplo e entre muitos que poderia

    citar, um depoimento deixado pelo Bino Bouas na folha afixada no mural do

    Acho Mal: Eu acho mal que os meninos vo casa de banho defecar, que

    faam as necessidades e depois deixem o vaso todo cagado.

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    Ao falar so bre m otiv ao d o pro fesso r, um dos

    trabalhos que procuramos real izar o de se cr iar

    di ferentes espaos de escuta, onde o professo r po ssa

    co lo car s uas aflies e p reoc up aes, sem pas sar p or

    pr-julgam ento s. Visto qu e a Pon te lida com alun os que

    apresentam dif iculdades emocionais, que t ipo de

    supor te recebe o p rof iss ional que l ida com tudo isso?

    Bastam os conselhos e di ferentes encon t ros de equipe,

    ou prec iso algo a mais?

    O trabalho cooperativo de professores (h sempre mais

    que dois em cada espao, em cada momento), a auto-

    formao e a formao em crculo de estudo so suportes

    que permitem a todos e a cada um dos orientadores

    educativos dar resposta a todos e a cada caso.

    Nos ltimos anos, integramos duas psiclogas na equipa

    de projeto. Mas elas tendem a agir de modo clnico, quase

    supletivamente, dentro dos modelos de interveno em que

    foram formadas. Espero que venham a ter tempo

    e disponibilidade para entender como se deve trabalhar na

    Ponte. Elas so pessoas capazes de entender e de mudar.

    Creio ser necessrio integrar novas valncias na equipa de

    projeto (educadores sociais, animadores scio-educativos,

    socilogos, antroplogos, especialistas em diversas

    reas das chamadas "necessidades educativas especiais"etc.), que sejam capazes de trabalhar em espaos comuns,

    cooperativamente. Conselhos e encontros no bastam.

    preciso predisposio pessoal para aceitar, estudar, mudar.

    (Orientador Educativo da Escola da Ponte)

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    Quinta lio

    Reconhecimento das diferenas

    O decrpito edifcio tinha sido reinaugurado no consulado de Sidnio Pais,

    conforme atestava a lpide afixada na parede de estuque esburacado, de onde

    despontavam as ervas todo o ano e formigas de asas pela Primavera. O

    caruncho apostava em acabar com o que restava das velhas carteiras. O

    soalho, tambm de madeira, era como um campo de golfe mas com mais

    buracos. No anexo ainda pairava o odor ao queijo da caritas. S no havia

    quarto de banho digno do nome, mas no se pode pedir tudo...

    Na quarta classe de 76 que a velha escola albergava, a variedade das origens

    sociais correspondia variedade dos odores. O Simo exalava a suave

    fragrncia a gua de colnia. O T, o aroma da alfazema. O Jorge, o perfume

    barato do fixador que lhe domava as irreverentes melenas. Nas manhs frias, o

    Arnaldo tresandava a aguardente. A maioria, criada na boua e na rua, trazia

    entranhado nas pobres vestes um intenso cheiro a terra e suor que, na fora do

    Estio, se confundia com o da decomposio dos cadveres das ratazanas e de

    outros bichos que coabitavam o desvo do telhado. Mas a aparncia rude

    escondia a doura das almas.

    O Z Antnio era um mido franzino e tmido. Contava dez anitos num corpo

    frgil que aparentava seis ou sete. S tinha a seu favor uma prodigiosa

    imaginao. Era o s do texto livre. O novo professor no era adepto das

    enfadonhas redaces com tema e nmero de linhas pr-fixados. E, pela

    primeira vez na sua curta vida de estudante, o Z Antnio soltava amarras e

    partia aventura:

    Eu fui com o meu irmo a uma mina perigosa (...) encontrei uns anezinhosmuito aflitos, quase a morrer. Agasalhei-os muito quentinhos, dei-lhes roupa

    nova. Tambm vi uma abelha a tentar voar (...) estava a rir e ela pregou-me

    com o ferroto. Vedes para que foi a pndega?

    Ou mesclava desejos com a nostalgia de sonhos perdidos:

    Se eu fosse um passarinho. No. Esta histria acabou porque eu j no sei

    mais. O que eu gostava de ter era uma andorinha. Mas, quando chegasse o

    Inverno, ela partia e eu tinha um desgosto muito grande.

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    Num dos seus muitos escritos, deixou escapar um secreto e jamais confessado

    remorso colectivo:

    Eu sinto um segredo em mim... O nosso professor muito bom para ns. Ns

    tambm podamos ser bons para ele...

    Infantil remorso, talvez, pois aqueles trinta mafarricos infernizavam a vida das

    professoras que por l passavam. O Domingos, que nos seus quinze anos era

    o decano da turma, s sua conta tinha conhecido doze. Umas despachavam

    os malfadados para o ltimo professor agregado que l casse no ano

    seguinte. Outras agarravam-se ao atestado como o nufrago bia salvadora

    e desapareciam para nunca mais.

    Nas manhs de invernia, quando algum puto se deixava ficar no aconchegodos lenis, era menos um para aturar. Nas manhs primaveris, quando

    outros se perdiam pelo caminho, a jogar bola ou na caa aos girinos dos

    charcos, era um alvio.

    Quase todos acumulavam vrias reprovaes. O Z Antnio vinha de uma

    famlia humilde, mas era dos poucos que nunca tinham levado bomba.

    chegada, avisaram o novo professor de que aquela era a turma do lixo,o

    refugo da escola, o que ningum queria apanhar e que (mas, senhor

    professor, isto que no saia daqui!...) o apartar das guas comeava logo na

    primeira classe:

    - Dona Florinda, de quem filho este mido?

    - neto do senhor engenheiro, minha senhora.

    - Ento fica nesta lista. E este aqui?

    - Esse, minha senhora, filho da Maria Morcega, a que foi para fiandeira.

    Nem a terceira acabou...

    - Ento, vai para a outra turma.

    A Maria Balota, vizinha e conselheira, aproveitou o intervalo do primeiro dia e

    atirou do portelo:

    - senhor, eles so todos uns gandulos. Desta massa no se espere

    milagres.

    Depois, num tom mais condescendente, ainda acrescentaria:

    - Eles no vo a bem. Mas, coitados, nem todos tiveram uns pais como o

    senhor professor...

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    O Bordieu ainda levaria um bom par de anos at descobrir o sbio e

    naturalizado equilbrio da reproduo. De um lado, os nascidos em bero de

    oiro; do outro, osputos ranhosos, as pestes. E, entre uma turma e outra turma,

    nada de misturas. A famlia os engendrava, a escola os confirmava, a

    sociedade os exclua. Por mais inverosmil que hoje nos parea, era assim

    naquele tempo.

    O Z Antnio fez a quarta classe com dez anos. O professor perdeu-lhe o rasto

    nos atalhos da vida e nas teias do trabalho infantil. Voltou a encontr-lo aos

    dezoito, esqulido, minado pela misria. Leu naqueles olhos despojados do

    brilho e candura da infncia a profunda humilhao de pedir Prefeitura um

    atestado de pobreza por no ter maneira de pagar custas ao tribunal.

    O Z Antnio conheceu a priso, a solido e o desprezo. perdeu o direito a

    nome prprio, ganhou fama de ladro e drogado. Um dia, enquanto se chutava,

    quis a sorte que a AIDS lhe penetrasse as veias. O calvrio chegava ao fim.

    O Z Antnio foi hoje a sepultar.

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    Quais os pro blemas que a Ponte enfrenta? Gos tar ia de

    saber se existe um nmero l imite de alunos

    com "necessid ade edu cat iva especial" aceito em cad a

    gr up o? Exi ste alg um a snd rome no aceita na es co la?

    Exis te alguma dif ic uld ade d e adap tao dess es alu no s,

    qu ando vo para ou tras esc olas?

    A escola tem seus problemas, decorrentes de um momento

    muito especial, em que ela deixa de ser uma pequena

    escola e passa a ser uma escola de fundamental completo,

    ao mesmo tempo em que sua principal liderana se

    aposenta aps mais de trinta anos de atuao na

    escola. Isto no deve constituir surpresa para ningum.

    Surpresa mesmo seria se problemas no existissem. Esta

    "escola dos sonhos" tambm uma escola real com

    problemas reais. No uma escola "de mentirinha", que

    no convive com problemas de nenhuma espcie. Mas no

    gostaria que o tempo que temos para conhecer mais de

    perto como funciona a Escola da Ponte fosse consumido

    em demasia em torno dos seus problemas...

    Sei que a escola se orgulha de nunca ter rejeitado

    um aluno, nunca ter dito "este, aqui, no". Todas as

    crianas so acolhidas. No sei dizer como portadores denecessidades especiais so tratados nas outras escolas

    depois que saem da Ponte.

    (Pai de aluna da Escola da Ponte)

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    Nos m ais de tr in ta anos d o p rojeto d a Ponte, j hou ve

    agresses a p rofesso res?

    A atitude que vamos tendo continua a ser a mesma:

    carinho aliado a alguma autoridade (costumo chamar de

    autoridade carinhosa). Recebemos jovens com 15 e mais

    anos, que nao sabem ler, expulsos de escolas onde se

    envolveram em graves problemas disciplinares e violncia.

    Um deles no conseguia fazer outra coisa a no ser dar

    socos e pontaps em quem chegasse perto. Numa ocasio

    foi parar no chao e no deixava ningum se aproximar. Um

    se ajoelhou ao lado do menino e, claro, comecou a ser

    fisicamente agredido por ele. Foi atingido por alguns socos

    e pontaps, que deixaram marcas em suas canelas. Mas

    ele no revidou, no gritou com ele, no se afastou.

    Debruou-se sobre o menino e o abraou. No suspendeu

    este abraco at que o menino parou de esmurr'-lo e

    chut-lo e comeou a chorar.

    Soube, depois, que o pai do menino tinha morrido de

    overdose e a me cumpria pena por trfico de drogas.

    Aquele abrao dever ter sido o primeiro que ele recebeu

    em muitos anos. A origem da violncia naquele menino

    estava sendo ali, finalmente, atingida.Uma professora da Ponte trabalha com arte-educacao e fez

    com um grupo de crianas e adolescentes um trabalho de

    sensibilizao e expresso corporal que, com alguma

    frequncia terminava com algum "marmanjo" em lgrimas,

    deitado no cho, numa catarse sem fim. Eram criancas e

    jovens em profundo sofrimento, vindos de lares destrudos

    e que tinham na violncia uma via tortuosa de expressoda dor e da revolta que sentiam.

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    Depois de anos e anos de vida escolar, era a primeira vez

    que algum lhes dava alguma ateno. A Ponte era a

    primeira escola em que no havia uma sala onde se sentar

    ao fundo e ser ignorado, como costumava acontecer nas

    escolas das quais tinham sido expulsos.

    A maneira como a escola da Ponte se organiza conspira

    contra a violncia. Um aluno no consegue passar muito

    tempo sem ser confrontado consigo mesmo e com a fonte

    de sua violncia. Mas isso no significa que seja uma

    cultura "frouxa": os professores podem ser bem incisivos e

    enrgicos em algumas ocasies. Os fundamentos desta

    cultura, expressos nos diversos dispositivos e prticas da

    escola diariamente se opem violncia.

    (Visitante da Escola da Ponte)

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    Sexta lio

    A reelaborao da cultura profissional

    Como costume, poderemos dar-lhe um nome e o nome poder ser Pedro.

    Finalista de um curso de formao de professores, personagem de fico ou

    actor de um drama real, o Pedro desta histria tinha conscincia de que,

    ressalvado o diploma que lhe dava acesso ao exerccio de uma profisso, tinha

    desperdiado quatro preciosos anos a copiar acetatos e a memorizar

    inutilidades que, depois de debitadas num exame, rapidamente esquecia:

    Chegou o fim da tormenta de quatro anos, em especial o ltimo.

    Incompreensvel estupidificao! Somos obrigados a saber tudo o que nos

    querem ensinar sobre o segundo ciclo do Bsico num s ano. Como obvio, o

    grau de exigncia mediado pela conscincia de quem ensina, que tenta, num

    ano reduzido a apenas alguns meses, dotar os seus alunos de todas as

    capacidades possveis para enfrentar... o qu? Sero os professores capazes

    de abandonar as sebentas e um palavreado com sabor a bolor? Quantas

    escolas inovadoras, quantos professores inovadores tivemos oportunidade de

    conhecer? O que mais me perturbou o esprito, nestes quatro anos, foi a

    repetio levada ao exagero de acetatos de livros. Dei comigo a pensar

    porque teremos ns de copiar fotocpias de livros, quando poderamos

    simplesmente ler os livros? Certamente, essa leitura nos diria mais da teoria do

    que as aulas papagueadas.

    Entre a desiluso da (de)formao e a angstia da proximidade do exerccio de

    uma docncia para que no fora minimamente preparado, o Pedro apercebe-se

    de outra dura realidade: a de que os seus colegas de curso (futuros

    professores) so considerados pelos seus mestres como potenciaistrapaceiros. Vejamos.

    Quem copia nos testes, quem d graxa aos docentes, ou quem copia os

    trabalhos de anos anteriores, saca uma mdia de curso que lhe permitir um

    emprego como professor... e perto de casa. Num destes dias, passei por uma

    sala. Vi alunos serem obrigados a prostrar os seus pertences no cho, debaixo

    do quadro. Ao que parece, porque poderiam copiar no teste que se iria

    realizar. Sero estes alunos considerados desonestos pelos seusprofessoresos professores do amanh?

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    Porque (para seu infortnio) foi capaz de no ceder tentao de andar de

    ccoras ou de rastejar para sobreviver, o Pedro lamenta: Para meu infortnio,

    rendi-me a outras causas que no estas. Conclu o meu curso com uma mdia

    baixa e a conscincia tranquila, num equilbrio tnue entre o desconforto da

    perspectiva de meses de desemprego e a satisfao de ter ido mais alm.

    E admite contenes e fraquezas: E a auto-censura que me impus! Por vezes,

    tive de me baixar ao nvel rasteiro adoptado pela maioria dos meus colegas,

    com o nico objectivo de chegar ao fim do curso. Se no fosse assim, no

    poderia estar a escrever estas linhas. Da nota final dependia a minha

    sobrevivncia. Malditas notas, que nem sequer so musicais!

    O Pedro elegeu-me como confidente. No me atreverei a contar-vos tudo o que

    me disse. Mas, juntando um ltimo alinhavo, no resisto a transcrever um

    registo de impresses de uma das suas traumticas experincias de estgio: A

    estria que gostaria de partilhar , como tantas outras, passada numa caixa de

    beto conhecida por escola, por sinal, considerada uma das melhores do

    pas. Possuidor de um trao que poucos tm a sorte de possuir fazia antever

    um futuro promissor quele aluno. Mas, os nmeros, o diabo dos nmeros!... O

    Carlos manifestava indiferena face aos nmeros. Coisa grave!... Remetido

    ltima carteira da sala, continuava a desenhar, recusando tentar, sequer,

    compreender a importncia dos nmeros.

    Com a Pscoa porta, chegada a altura das notas quase finais: as notas

    que damos no segundo perodo so praticamente as mesmas do ltimo,

    diziam os nossos professores. A angstia do Carlos era disfarada por um

    sorriso tmido, que fazia dele um dos alunos com melhor comportamento da

    turma. O segundo perodo at tinha corrido bem. Com os estagirios por perto,

    vieram as positivas e um maior -vontade do Carlos. Com o segundo perodoveio tambm uma matria diferente, algo de que o Carlos gostava e fazia to

    bem ou melhor que os restantes elementos da turma: geometria. Os testes

    foram animadores. Mas o dia de dar as notas foi de imensa tristeza para o

    Carlos (que j estava habituado) e para ns, estagirios.

    A memria de um 1 bem assente na pauta povoou-me os sonhos de noites

    mal passadas. Afinal, eu era s um estagirio. Seno!... Contudo, esta minha

    opo arrastou consigo um sentimento de impotncia que ainda no meabandonou. Quando da ltima vez que falei com Carlos, o fantasma da

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    reprovao levava-o a considerar a hiptese do abandono da escola...

    Este Pedro apercebeu-se da tragdia. Mas quantos milhares de Pedros

    passam insensveis ao largo dos pequenos dramas que compem o imenso

    drama de uma carreira feita de indiferena? Quantos milhares de Pedros

    morrem, profissionalmente, aos vinte e cinco e apenas so enterrados quando

    chegam aos cinquenta e cinco?

    E agora, Pedro? Foram muitos os novos professores a quem a vida roubou os

    sonhos. Foram muitos mais aqueles que, desfeito o idlio e o enamoramento

    dos incios, desertaram.

    Se algum cr que eu pretendo afirmar a falncia da formao inicial, se

    houver quem pense que eu insinuo vivermos uma tragdia criminosamente

    silenciada, engana-se. Eu no insinuo, eu afirmo.

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    Sou pro fesso ra de Educ ao Espec ial no cu rso de

    Pedagogia de uma Univers idade Pbl ica no Brasi l .

    Gostar ia de saber como pais e alunos vivenciam a

    inc luso de c rianas e ad olesc entes c om neces sid ades

    educacio nais n a Escola d a Ponte. Quem so ess as

    cr ianas e c omo so feitas as adapt aes p ara el as?

    Falo como aluna, melhor dizendo, ex-aluna da Escola da

    Ponte, que partilhou grande parte dos seus anos de

    estudante nessa escola com pessoas com necessidades

    educacionais especficas. Eu trabalhei num grupo com uma

    menina com trissomia 21, e partillhei a escola com crianas

    com outro tipo de problemas de aprendizagem. Sinto-me

    mais -vontade para falar da menina que inclua o meu

    grupo de trabalho, uma vez que grande parte do dia era

    passada com ela.

    Antes de mais, no havia qualquer tipo de distino por

    parte dos colegas, pois sempre a vimos como um ser

    humano, tal como todos ns, que tinha nascido um pouco

    diferente, mas que, em tudo o resto, nos era igual, se no

    superior, sendo assim merecedora do nosso respeito e

    apoio. A sua incluso foi muito fcil, no sei explicar como

    aconteceu, porque simplesmente aconteceu! incrvel,

    mas, quando nos deparamos com pessoas com este

    sndrome, desenvolvemos imediatamente um lao de

    amizade e afeto difcil de expressar. Penso que talvez sedeva ao fato de se abstrarem do superficial, dando apenas

    importncia ao interior. Trabalhar com ela tinha os seus

    altos e baixos, pois tente convencer algum que fantico

    por revistas cor-de-rosa, que fala dos seus cantores

    favoritos, a trocar por uma ficha de portugus... Ver que

    tem o seu grau de dificuldade!...

    (Ex-aluna da Escola da Ponte)

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    A incluso das crianas com necessidades educativas

    especiais feita com a maior naturalidade possvel. A

    maioria delas vem parar Ponte, por verem esta escola

    como ltima esperana de integrao, recuperao, ou

    aceitao, para freqncia da escola em idade escolar.

    Chegam Ponte crianas institucionalizadas, "rfos de

    pais vivos" (famlias desestruturadas), portadores de

    Sndrome de Down, com paralisia cerebral e outras. A

    todas elas dada, individualmente, a melhor resposta

    possvel, mesmo que, s vezes, resulte em algum

    "prejuzo" para o coletivo.

    Os pais lidam com essas crianas com compreenso, com

    humanismo. Os nossos filhos chamam-nos ateno,

    quando nos referimos aos "deficientes", dizendo-nos que

    no so deficientes, mas... "diferentes".

    Afinal, o que todas as crianas precisam de ateno,

    carinho, quanto mais aquelas que se vem privadas destas

    e de outras coisas mais tangveis!

    (Pai de aluno da Escola da Ponte).

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    Stima lio

    Recusa da solido

    O Miro (pode ser este o fictcio nome do jovem) percorreu a via-sacra de vrias

    escolas, at chegar quela, por recomendao de uma tcnica de servio

    social e de uma psicloga. O seu calvrio acadmico inclua vrias passagens

    pelo ensino especiale por outros padecimentos.

    Um professor aproximou-se do jovem recm-chegado e props-lhe que

    escrevesse as suas primeiras impresses da nova escola.

    - No sei, no sou capaz, no fao. E voc no me pode obrigar!

    O professor insistiu com jeitinho. Mas

    - Mas eu no sou obrigado a fazer. Voc num manda em mim. Voc

    no meu pai!

    O professor era dos teimosos, mas logo ouviu a sugesto:

    - Ponha-me l fora. Na outra escola, quando me portava mal, os setres

    punham-me l fora. Marque-me uma falta e pronto!

    O Miro no sabia que s estava carente de firmeza e carinho. O pai no

    poderia dar-lho porque, h muito abandonara a famlia. A me j no tinha

    mo nele e que nem pensasse tocar-lhe. Professores, a julgar pelo

    condicionamento que nele se tinha operado, poucos teria encontrado pelo

    caminho. O Miro tinha passado sete anos sozinho em casa e outros tantos na

    escola, e deixara de acreditar ser possvel aprender:

    - setr, voc num sabe que eu, na outra escola, s tinha aulas de Educao

    Fsica, EVT e Moral?

    quarta tentativa de persuaso, quando lhe pediram que fizesse algo de que

    ainda se lembrasse, o Miro pediu-lhe que o dispensassem da tortura da escrita

    e lhe ditassem umas contas, mas s de dois nmeros, pois apenas serecordava (e mal) das contas de somar e de diminuir.

    - Eu sou assim, setr. No hospital, a psiclica at disse minha me que eu

    sou atrasado da cabea pra uns cinco anos.

    Todas as escolas deveriam ser espaos produtores de culturas singulares, mas

    tambm espaos de mltiplas interaces, comunicao, cooperao,

    partilha... Sabemos que no bem assim. As escolas so, quase sempre,

    espaos de solido. O trabalho dos professores um trabalho feito de solido ea solido dos professores da mesma natureza da solido dos alunos

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    professores e alunos esto sozinhos nas escolas.

    Decorridos dois meses, o Miro j escrevia algumas frases, j fazia as suas

    preparaes no laboratrio das Cincias, at j lia palavras em Ingls! E foi a

    professora de Ingls que protagonizou um episdio que viria a influenciar o

    curso da recuperao do Miro.

    Perante uma atitude menos correcta do Miro, a professora repreendeu-o.

    Porm, apercebendo-se das nefastas consequncias da reprimenda num

    momento ainda to frgil da reciclagem dos afectos, emendou a mo como

    pde, explicou-lhe o essencial da asneira, e pediu desculpa ao Miro pelo

    exagero posto na repreenso.

    - Aqui, os professores pedem desculpa? inquiriu o Miro, estupefacto.

    - Claro respondeu a professora de Ingls.

    O Miro reagiu com um esgar de espanto, deu uma volta e seguiu viagem, para

    que a professora no visse que pela sua cara de traquina inveterado passeava

    a manga da camisola com que limpava uma lgrima teimosa.

    Em todos os anos lectivos, h alunos que mudam de escola, por qualquer

    razo. Se aos pais assiste o direito constitucional de escolher a escola que

    consideram mais adequada aos seus filhos, ainda bem que tal acontece. Mas

    disse-me uma amiga que algum lhe disse que outro algum lhe dissera que

    algum ter dito que a escola que acolheu o Miro no aceita qualquer aluno,

    que os selecciona.

    Este e outros malfazejos disparates visam denegrir a imagem dessa escola,

    pelo que se justifica divulgar o exemplo do Miro. Por mais inverosmil que

    possa parecer, bem real. E no se pense ser um caso isolado. Poderia aqui

    trazer dezenas de casos semelhantes, que tm por centro os tais alunos

    seleccionados. Poderia contar-vos muitas histrias de crianas recuperadasnesta escola de ltima oportunidade. A histria da Ana liberta de quatro anos de

    degredo num fundo de sala, rotulada de burra. A do Francisco, que, chegado

    nova escola, desatou aos pontaps nos novos colegas, a cuspir e a insultar,

    por ser a gramtica que secretamente aprendera em trs anos de insultos e

    humilhaes. O Eduardo, aps meses de privao de recreio, s porque o seu

    brao doente o impedia de acompanhar a turma na escrita de carreirinhas de

    letras. O Joaquim, que se gabava de, na outra escola, ter posto um professorno hospital. O Pedro, o choro em forma de criana nos primeiros dias na nova

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    escola, porque, se j sabia ler quando entrou para a antiga, foi forado a

    esquec-lo e a acompanhar o resto da classe, acumulando cansaos e

    desgostos que, face ao estado em que chegou, quase diramos ser possvel a

    uma criana odiar. Do rfo ao maltratado, chegam encaminhados por

    instituies de reinsero social, chegam de lugares distantes, com marcas de

    violncia e experincias de indiferena, que a pior forma de abandono.

    Estavam sozinhos na escola. Deixaram de estar sozinhos na escola dos alunos

    seleccionados, escolhidos, apartados, rejeitados noutros lugares. Dentro

    dos seus humanos limites, a escola de que vos falo a todos acolhe, a todos

    ajuda na recuperao da auto-estima, do respeito por si prprios. Diro alguns

    leitores que todas as escolas tm este tipo de alunos. A diferena est em que

    a nova escola do Miro tem mais. Tem os que lhe cabe em sorte e os que outras

    rejeitam.

    Os habituais crticos da escola que acolheu o Miro tero aqui matria para

    reflexo. J algum desses crticos se ter lembrado de denunciar esta

    seleco.

    Mas recordei-me de outro textinho. Aqui vai um texto que resulta da

    reunio de notas de campo com algumas entrevistas que (por acaso?) eu e a

    minha amiga Sofia encontrmos perdidas. Ningum ainda as reclamou No

    sabemos se vieram parar a boas mos, mas depomo-las nas vossas.

    Na primeira pessoa: No sei se j ouviram falar de mim. Da minha me, j nem

    as feies eu recordo. Cedo lhe perdi o rasto. E, s agora percebi o que todos

    vinham tentando dizer-me: que eu nem sequer deveria ter nascido. Pensei que,

    na escola, ainda poderia vir a ser gente, que teria direitos, poderia ser criana.

    Enganei-me, porque foi como em casa, sem afecto, sem cuidados. Mas a

    escola tambm no tem culpa. O que poderia fazer, se eu no tinha cabeapara aquilo?

    Pensando bem, a escola at foi a me que eu no tive. No me acariciava,

    mas tambm no me batia. No me olhava, mas tambm nada me pedia. No

    me negava o tecto, ainda que nem um banco me desse onde pudesse sentar-

    me, ou poisar as minhas coisas. Mas que coisas? Tinha-me esquecido de que

    a professora, talvez para me poupar vergonha de pouco ou nada aprender,

    nunca me deu um livro ou um caderno.Deixou-nos porta de uma escola igual a tantas outras. Contornmos um

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    recreio onde algumas crianas se empurravam e gritavam. Fomos ao encontro

    de um grupo de professoras, para saber como viram o Paulo os olhos das que

    o conheceram.

    - Paulo? Paulo qu? Temos muitos...

    Explicado de quem se tratava um antigo aluno, sado h dois ou trs anos

    uma a uma, disseram:

    - No, nunca ouvi falar!... Tm a certeza de que esse Paulo andou aqui?

    Tiveram a amabilidade de chamar a senhora directora:

    - Espere l! Estou recordada de um Paulo... S um momento...

    Vimo-la vasculhar os armrios e retirar de um deles um livro de matrculas.

    - J no bem do meu tempo. S me lembro vagamente de um aluno

    franzino, calado, sem histria. O que tenho aqui no livro apenas a sua

    primeira matrcula. Passados seis anos, s c tem escrita uma

    passagem da segunda para a primeira classe. Mais nada.

    Pedimos que nos deixasse consultar os livros de registo de frequncia, as listas

    de constituio das turmas. Com alguma relutncia, acedeu. Se era para um

    estudo...

    Dos oito anos que o Paulo havia frequentado a escola, o seu nome somente

    constava de duas turmas, ambas do primeiro ano e separadas por um h iato

    de sete anos. Nunca tivera lugar certo onde se sentar, caderno que no

    perdesse em poucos dias. O Paulo foi o exemplo tpico de aluno fantasma.

    Para todos os efeitos, o Paulo nunca existiu.

    - No admira que no aprendesse. Era um caso perdido, um cbula que

    passava o tempo todo a dormir ao fundo da sala. Tal e qual os irmos

    dele!

    Decorridos alguns anos, voltmos ao bairro, mesma escola, em tempo derecreio. A senhora directora era outra. Das professoras que encontrmos na

    anterior visita, apenas uma restava. Confidenciou-nos que at tinha tentado a a

    dispensa de componente lectiva por desgaste nervoso. E nada...

    sada, chegmos fala com um moo, de entre os que no tinham voltado

    para dentro quando o recreio acabara. Perguntmos pelo Paulo.

    Os tiras apanharam-no! Apanhou dez anos de priso. Mas, se voc quiser,

    arranjo-lhe dois ou trs panfletos de maconha. s cinco minutos...

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    H alg um in st rumen to esp ecfic o de avaliao so bre o

    perf i l do aluno portador de necessidades especiais na

    tr an s io da In ic iao para a Co nso li dao?

    No cheguei a conhecer nenhum tipo de instrumento

    especfico, mas poderemos investigar melhor. Pelo que

    acompanhei das atividades da psicloga, ela ainda

    investigava melhores formas de realizar uma avaliao

    psicolgica mais precisa, principalmente nos casos de

    alunos portadores de necessidades especiais. Ela percebia

    a necessidade da utilizao de instrumentos como o WISC

    e o DFH III, por exemplo, mas ainda se debatia com a falta

    de um espao especfico voltado para esse tipo de

    avaliao. Quando sa da escola, a sala da psicloga j

    estava delimitada, mas no sei por quanto tempo, pois era

    estranha, no meio de tantos espaos "abertos", a

    manuteno de um espao isolado por quatro paredes. O

    prprio Pacheco seria o primeiro a querer derrub-las... Eis

    o desafio para o psiclogo escolar: Como realizar a

    avaliao psicolgica integrada ao trabalho escolar?

    De uma maneira geral, a passagem da iniciao para a

    consolidao se dava atravs da conquista da autonomia

    de planificao, pesquisa e trabalho em grupo.

    (Pesquisadora brasileira)

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    Oitava lio

    Made in China

    Poderemos chamar-lhe Marta. Era uma jovem candidata a professora como

    tantas outras e j ia no seu terceiro ms de estagio.

    No dia da Festa do Natal, as crianas mostravam eufricas os seus

    presentes. Todas... excepto uma. A jovem estagiria descreve a aluna

    postada no fundo da sala, de rosto srio, sem sorriso, expresso neutra, de

    olhos aguados e cabelo negro, calada, a observar. Era uma adolescente (que,

    soube depois, tinha catorze anos) de origem chinesa.

    O primeiro contacto premonitrio do que mais adiante viria a acontecer: Os

    nossos olhares cruzaram-se e eu sorri. Hesitei em falar, melhor dizendo,

    gesticular, hesitei em tornar a olhar. Depois de breves segundos, desisti de

    comunicar com a nova aluna.

    Os pais da jovem chinesa tinham encontrado num restaurante da cidade o

    destino feliz da sua saga migratria. Na cozinha e na sala de jantar, o

    mandarim era a lngua oficial. O patro recomendava que conservassem, nas

    falas e nos gestos, o exotismo e a graciosidade, clichs ou veros atributos dos

    orientais que os clientes muito apreciavam. Na rua e no mercado, a conversa

    era outra e a comunicao mais exigente. A, o dedo indicador e alguns

    esgares compensavam a elementaridade do vocabulrio.

    Mas a rua havia ensinado s filhas um vasto repertrio, onde pontificava o

    vernculo. As midas, que eram umas ignorantes da lngua de Cames mas

    no eram parvas, adivinhavam nas palavras captadas nas brincadeiras e

    zaragatas uma carga pejorativa pouco abonatria e de utilizao pouco

    recomendvel no meio acadmico. No , pois, de espantar que seremetessem para um total mutismo na sala de aula. E l sossegadinhas eram,

    nada que se comparasse queles vndalos do bairro...

    A estagiria deixou passar as frias de Natal, deixou que decorresse mais de

    um ms, e, por alturas do Carnaval, reuniu toda a coragem necessria e

    avanou para o fundo da sala, ao encontro do desafio. Meteu conversa com a

    chinesa, mas obteve uma resposta negativa. No dialecto do bairro, como no

    mais puro mandarim, este eufemismo equivale, no mnimo, expresso vaidar uma volta, a ver se chove(e o leitor j percebeu que tambm o narrador

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    no escapa ao recurso a figuras de estilo, para no ter que enxamear a escrita

    com reticncias).

    A estagiria no se deu por achada com a resposta negativa, habituada j a

    outros e bem mais contundentes mimos que os vndalos do bairro

    costumavam dispensar s estagirias. Fazendo-se desentendida, a Marta leu

    no olhar da aluna qualquer parecida com um pedido de ateno. E passou a

    entrecortar o seu af de estagiria com momentos de encontro com a aluna do

    fundo da sala, o que parecia satisfazer a professora cooperante:

    - Mas a menina no se iluda! No sei o que fazer dessa aluna. Est -me

    desde Janeiro no pa, pe, pi, po, pu e no ta, te, ti, to, tu. E da no

    passa...

    Efectivamente, a Li Yan (assim se chamava a pequena) dali no passava. Mas,

    sentada a seu lado, com montanhas de imagens e objectos, a estagiria

    Marta trabalhava arduamente em todos os dias de estgio e sempre que era

    permitido.Tinha prescindido do pa, do pee do pu. A Li Yan interessou-se

    pelos jogos de identificao de palavras, construa pequenas frases como A

    Li tem os olhos pretos e a Marta at j tinha conseguido obter da aluna

    chinesa um sorriso e um Ol.

    Um ms mais tarde, a estagiria arriscou fazer um teste. A Marta apontou para

    a mesa e disse mesa. A jovem chinesa apontou para a mesa e disse a

    palavra mesa. A Marta apontou para o livro e disse livro. A aluna apontou

    para o livro e repetiu: livro. A Marta apontou para o lpis e disse lpis.

    Porm, quando a mida apontou para o lpis, respondeu: made in China. E,

    com sotaque muito british, acrescentou:

    - China! Thats my country!

    A surpresa da Marta seria ainda maior. Aproveitando-se das liberdadesconferidas pelos tempos mortos dos intervalos, descobriu que, para alm de

    bem falar ingls, a Li Yan nunca errava contas de trs e mais algarismos no

    divisor, que possua um absoluto domnio de conceitos na rea das cincias

    naturais, e que no era despicienda a sua mestria na expresso plstica.

    Nenhumas destas competncias pareciam relevantes para a professora

    cooperante. Em abono da verdade, digamos que a professora nem suspeitava

    da existncia destes dons naquela aluna do fundo da sala. O tempo eraescasso para dar o programa turma, no sobrava tempo para chinesices.

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    Nem o facto de a Li Yan ser dotada de um profundo conhecimento do

    patrimnio literrio universal impressionou os soberanos avaliadores. Foi de

    riquex para a sala da primeira Onde que se havia de meter uma

    jovenzinha de catorze anitos que no percebia uma palavra de portugus? Na

    primeira classe, como bom de ver!

    A culpa do inevitvel atrasoera da pequena, por ser made in China, como

    acontece com os lpis e as porcelanas. A culpa era toda da gaiata de olhos

    rasgados que perturbavam a normal fisionomia. Quem a mandou vir de um

    lugar que os etnocntricos europeus designam por Extremo Oriente para o

    Extremo Ocidente do Extremo Oriente ?

    Porm, a jovem estagiria nem sonhava quantos chineses a rodeavam,

    naquela sala de aula. Nem ela, nem a professora cooperante, a qual, s

    provindos do bairro, contava cinco ou seis chineses na turma. Chineses

    seriam, pois no acompanhavam os outros, nem pareciam compreender o que

    se dizia.

    A futura professora tambm no imaginava quantos chineses iriam passar ao

    largo das suas futuras aulas. E as recomendaes de uma pragmtica

    supervisora apaziguavam as dvidas que, por vezes, assomam aos jovens

    espritos:

    - Enquanto for aluna estagiria, a menina ter de fazer planos para

    alunos diferentes, quando lho for pedido. Depois, quando j for

    professora e tiver a sua turma, segue os alunos normais e faz como v

    agora a sua professora cooperante fazer.

    Se bem que no captasse toda a lgica da sbia recomendao, a Marta no

    ousava arriscar uma m nota no estgio a troco do bem-estar de meia dzia de

    chineses. A argumentao com que pretendia legitimar a cnica atitude era amesma que se podia ouvir da boca de todos os seus colegas de curso:

    - Quando tiver uma turma s minha, dou uma ficha turma e assim j

    posso dedicar-me a crianas como a Li Yan. Agora, tenho de me sujeitar,

    no ? Se eu sou obrigada a apresentar planos e a cumpri-los risca!...

    Que que eu posso fazer?

    - Pois ... sublinheios chineses no entram nos teus planos.

    A Marta no tardou a compreender a ironia (e matreirice) do meu comentrioporque, em alguns estgios, incidentes crticos ajudam a reescrever os

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    insondveis desgnios de uma profisso. Em meados de Abril, chegou a vez de

    a Marta dara sua aula. Contava e muito para a avaliao, pelo que cumpriu

    risca o plano. Como mandam as regras de bem planificar, os primeiros trs

    minutos e quarenta e cinco segundos foram despendidos na motivao. Ia j

    a passar exposio do tema, quando o seu olhar se cruzou com o petrificado

    olhar da Li Yan. Parecia dizer-lhe vem sentar-te junto de mim! Sentiu que

    aquele olhar implorava, mas nada podia fazer. A Li passou aquele manh a

    olhar para a sua amiga, como a dizer vem ter comigo,

    A Marta confessou-me o desconforto: Senti-me to mal que, sempre que

    olhava para ela, desviava o olhar, para no me sentir ainda pior.Aquele olhar

    incomodava-me e eu desisti de olhar para ela. Foi o que me valeu!Felizmente,

    a professora cooperante e a supervisora no se aperceberam das hesitaes,

    e a Marta passou, com xito, s etapas seguintes do plano de aula para os

    no-chineses.

    Talvez porque a conscincia a acusava de algo que ela apenas pressentia,

    aproveitou uma das nossas conversas de fim de tarde para desabafar. Na

    idade da Marta, ainda so comuns estas crises, rapidamente debeladas no

    salve-se quem puderdos dias probatrios.

    O episdio da aula dada pelo planoparece no ter afectado a relao. Se a

    Marta ganhara conscincia de que nada sabia de ensinar, compreendera que o

    que melhor para os alunos ter de ser o melhor para os professores.

    Crescera como pessoa e aprendera que s havendo pessoa nela se pode

    plantar um professor. Por sua vez, Li Yan ficara algo confusa, mas a sua

    sensibilidade dizia-lhe que continuariam amigas. Sinal seguro da existncia do

    vnculo afectivo foi o facto de Li Yan ter passado a tratar a estagiria por

    Professora Marta, no que diferia dos colegas da turma, que no abdicavamdo tradicional tratamento por estagiria imposto por uma professora

    cooperante pouco dada a confuses ou a faltas de respeito.

    No dia do aniversrio da professora Marta, a Li Yan presenteou-a com um

    estupendo desenho (nas palavras de uma Marta visivelmente comovida)

    acompanhado de quatro pequenas grandes frases:

    A escola bonita e grande.

    O recreio grande.A Marta muito boa e muito bonita.

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    Eu muito gosto Marta

    E nica professora que lhe prestava ateno a Li Yan conferiu o privilgio

    do acesso aos segredos de um Dirio, se bem que (como me confidenciou a

    Marta) estivesse escrito em chins e no se percebia nada. A jovem chinesa

    estava tenta s dificuldades de leitura da professora. Por isso, os dias que se

    seguiram foram de docncia a meias: se a Marta ajudava a Li Yan a alargar o

    seu conhecimento do portugus, a Li Yan ensinava Marta rudimentos de

    escrita chinesa.

    Numa entrevista concedida a um jornal dirio, a presidente de Conselho

    Directivo de uma instituio de formao inicial dizia que os professores no

    tm formao para dar aulas s crianas que esto fora dos padres normais

    e que ser necessrio empreender uma profunda alterao na sua preparao

    cientfica e pedaggica, j que, muitas vezes, as coisas que se ensinam no

    so as mais importantes. Como no duvido da bondade da afirmao, subsiste

    o paradoxo.

    Mais chineses

    Ainda era um jovem professor e j a dvida o atormentava

    Talvez por ser o mais jovem e considerado inexperiente confiaram-lhe a

    turma mais pequena da escola. Porm, certo dia, recebeu a visita da senhora

    diretora. Vinha acompanhada por um moo, que andaria a pelos treze anos. E

    logo disse:

    O senhor professor um privilegiado! A sua turma s tem quarenta e oito

    alunos, mas trago-lhe mais um e j o aviso: o moo autista e perigoso.

    Naquele tempo, ningum usava o termo incluso, nem expresses como

    aluno com necessidades especiais. Muito menos tinha sido inventado o TDA,o DDA, o TDA-H, ou se reconhecia haver o que, hoje, se designa por

    hipercintico Naquele tempo, o moo era deficiente. E pronto!

    Naquele tempo, em plena ditadura de Direita, ningum ouvira falar de um russo

    chamado Vigotsky, que discordava de um tal de Piaget, porque esse tal de

    Piaget dizia que o desenvolvimento do pensamento na criana "parte do

    pensamento autstico no-verbal fala socializada e ao pensamento lgico,

    atravs do pensamento e da fala egocntricos. Vivamos na mais escura trevaterica.

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    O jovem professor recorreu ao dicionrio: autismo uma disfuno global do

    desenvolvimento. Ficou a perceber o mesmo Agarrou-se tbua salvadora

    do processo que acompanhava o aluno. Nele dizia que o autista havia

    arrancado os brincos da professora e que, nesse violento gesto, tinha rasgado

    as orelhas da mestra, que fora recebere tratamento hospitalar. O processo s

    no dizia por que razo o autista arriscara o tresloucado gesto. Somente

    acrescentava que, consumado o delito, o aluno fora expulso.

    Aquele jovem professor no era daqueles que cedo desistem de aprender.

    Com a informao de que dispunha (nenhuma), meteu mos obra. No dia

    seguinte, dividiu o quadro negro em quatro partes e em cada uma delas

    escreveu tarefas para cada srie. Coisa de demorar uma meia hora a fazer.

    Posta a classe em ao, dirigiu-se para o fundo da sala, onde o autista se

    instalara. Quando j estava a menos de alguns passos do novo aluno,

    prudentemente, deteve-se. O autista balanava a cabea e isso talvez no

    augurasse algo bom Recordou o aviso da senhora diretora: este aluno

    autista e perigoso. O jovem professor recuou.

    A situao repetiu-se, vezes sem conta, ao longo desse dia. A cada

    aproximao, novo movimento pendular da cabea do autista. A cada

    arremetida, novo estratgico recuo. E o professor regressou a casa, pensativo,

    preocupado. No conseguira chegar sequer fala com o autista. Muito menos

    conseguiu ensinar-lhe algo, enquanto durou o que restava daquele ano letivo.

    Muitos anos decorridos sobre este incidente, o professor, j menos jovem e

    com algumas noes de prtica teorizada, compreendeu que aquele aluno

    nunca tinha sido autista. Apenas lhe puseram um rtulo. Alis, compreendeu

    algo bem mais importante e decisivo para a tomada de decises que, alguns

    anos depois, o induziram numa profunda mudana da sua prrica. Naqueletempo, na sua sala, no havia um autista havia tido quarenta e nove. Ou

    melhor: seriam cinquenta os autistas. Naquele distante ano letivo, na sua

    sala de aula, todos estavam sozinhos.

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    Gos taria de sab er mais a respeito da Inclu so dos

    Portadores de Necessidades Educ at ivas Especiais na

    Esc ola da Pon te. Eles es to r ealmente inc ludo s? H

    adap taes no c u rrcu lo ? O esp ao arqu itetn ic o

    adeq uad o? Com o a in terao d estes com as o utr as

    crianas? Quais os tipo s de d eficinc ias m ais

    encont rados? Quais as di f icu ldades m ais encont radas

    por eles e pelos pro fessores?

    Em relao socializao com as demais crianas, eu diria

    que esto includos. A interao com as outras crianas

    muito tranqila.

    Podemos entender que, de certa forma, o currculo

    adaptado para cada criana que estuda na Ponte. A gesto

    do currculo acontece para atender a cada caso. O espao

    arquitetnico no adequado. H, por exemplo, somente

    escadas para acesso ao pavimento superior e degraus em

    algumas portas de acesso. Mas tal limitao no acontece

    por falta de viso da equipe, mas pelo fato de a luta pelas

    melhorias nas instalaes fsicas ser um desafio que a

    comunidade acredita ser concretizado proximamente.

    Os tipos de deficincias mais encontrados na Escola da

    Ponte so: sndrome de Down, deficincia fsica decorrente

    de um tipo de paralisia, alguns casos de comprometimento

    neurolgico. Na verdade, h menos casos de "deficincias"

    e muito mais de problemas psico-sociais.Por mais que a Ponte entenda que se deve trabalhar com

    essas crianas como se trabalha com as outras, sabemos

    que no to simples assim. Compreendo que no tocante

    s aprendizagens seria necessrio fazer mais. Quanto

    socializao, perfeito o trabalho que fazem na Ponte.

    (Pesquisadora brasileira)

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    Nona lio

    Esperana em tempos sombrios

    Um homem faz o que deve fazer apesar das consequncias

    pessoais, apesar dos obstculos, perigos e presses e

    essa a base de toda a moralidade humana

    (John F. Kennedy)

    Conheci o Miguel num congresso de professores to fraterno e participado como

    h muito no via. Este exmio contador de histrias falou de um navio deriva,

    cuja tripulao adoecera por falta de gua potvel. O telegrafista lanava

    sucessivos apelos:S.O.S., precisamos de gua! S.O.S.,precisamos de gua!Atque um outro navio lhe respondeu: Enchei os tanques com gua! Sequioso e

    angustiado, o telegrafista repetiu o lancinante apelo: S.O.S., precisamos de gua!

    Ento, a tripulao do outro navio completou a mensagem: Enchei os tanques

    com gua!... Estais a navegar em gua doce.

    Enquanto o Miguel aludia metaforicamente aos que adoptaram o manual da

    sobrevivncia digna o manual dos que sabem que navegar preciso e dos que

    no se deixam morrer de sede beira da gua dei por mim a evocar viajantes

    solidrios que, numa certa escola, navegam o sonho de ajudar as crianas a

    serem pessoas mais sbias e felizes. Quase a desembarcar num porto de

    saudade, estou convicto de que a viagem valeu a pena. E de que a nova tripulao

    h-de manter o rumo, h-de segurar o leme, sempre que os ventos no soprem de

    feio.

    Os novos navegantes protegem as crianas do naufrgio nas mars da ignorncia.

    Ajudam-nas a decifrar o ABC da guerra e da paz. Na Geografia, as crianas

    aprendem que a palavra assassnio tanto pode ser escrita com um A de

    Afeganisto como com um A de Amrica. Na Lngua Inglesa, as crianas

    aprenderam que o adjectivo badpode ser escrito com um b de Bin Laden, mas

    tambm com um b de Bush. E, num re-ligare curricular essencial, as crianas

    aprendem que a palavra cultura comea com um c de Cristo e de Coro.

    (Subitamente, percebi que tenho no computador um autocorrector fundamentalista.

    No reagiu ao termo Cristo. Mas, logo que digitei a palavra Coro, sublinhou-a a

    vermelho.)

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    Vivemos tempos sombrios, tempos de intolerncia, de fundamentalismos.

    Aproveitando mars de ignorncia e despeito, os fundamentalistas do dito

    ensino tradicional retomam as tentativas de assassinar o sonho. Atiram-se com

    inquisitorial fria contra o que no conseguem entender, mas que os perturba.

    Em tempos sombrios, a sanha fundamentalista encontra eco numa certa

    comunicao social sedenta de escndalos e que d guarida a processos de

    difamao. Sempre foi assim. Os projectos esto sujeitos eroso do tempo e das

    conjunturas. Desde que me lembro de ser professor, assisti a dois ciclos de

    ignomnia e confuso. E, como no h duas sem trs...

    Os adeptos do chamado ensino tradicional ainda no tero entendido que h

    mais que um modo de aprender e ensinar? Ainda no perceberam que, se do

    Mdio Oriente Amrica do Sul, a intolerncia, a guerra e a fome assassinam

    milhes de Einsteins de tenra idade, no mundo dito civilizado, a Escola mata

    prematuramente outros tantos? Ainda haver quem insista em estreis processo

    de adestramento cognitivo, no acumular de aprendizagens desconexas e

    abstractas coladas com cuspe e mnemnicas? Ainda haver quem transforme o

    acto educativo numa corrida de obstculos vencida fora de colar nos testes e

    da parasitagem de trabalhos de grupo?

    Sabemos ao que nos conduziu um ensino tradicional unicamente centrado no

    ensino da Lngua e na Matemtica. As escolas tradicionais (quase todas?!) j

    nem os programas de Lngua Portuguesa e Matemtica ensinam. O modelo moral

    da escola dita tradicional aliena o aluno e produz efeitos negativos na

    personalidade e no desenvolvimento das crianas. Mas a falncia do modelo no

    significa que seja necessrio o seu total abandono. O tradicional tem as suas

    virtudes. No se poder descurar, por exemplo, o papel da repetio e da

    memria. Nem se estabelea falsas dicotomias entre tradicional e moderno, entreconservador e inovador, pois o aprender a ler, escrever e contar no

    incompatvel com o aprender a pensar, com o aprender a ser, nem com o aprender

    a aprender os outros.

    Algum escreveu (no me lembro onde li...) que os engenheiros que conceberam

    as cmaras de gs e os mdicos que coordenavam o genocdio nos campos da

    morte nazis andaram na escola tradicional e foram bons al