imobilidade e contradicoes de brasilia

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(I)mobilidade e contradições de Brasília Texto e imagens: Uirá Lourenço Usuário de bicicleta no dia a dia, membro da diretoria da União de Ciclistas do Brasil (UCB), ex- presidente da ONG Rodas da Paz O simbolismo de ser capital federal e o generoso sistema viário poderiam contribuir para Brasília ser referência em mobilidade urbana. Ao contrário de outras capitais, não há grandes restrições de espaço para intervenções viárias. Mas os projetos e as obras costumam favorecer o transporte individual motorizado, em detrimento dos modos coletivos e saudáveis. Há poucos anos, prometeu-se uma revolução na mobilidade, que tornaria Brasília referência no transporte por bicicleta. O plano ambicioso de construir a maior malha cicloviária do país até 2014 começou a sair do papel, mas as incoerências da proposta são nítidas mesmo para quem não pedala. - Cultura da mobilidade saudável x Cultura motorizada A dependência do carro é uma realidade em Brasília, impulsionada pelo péssimo transporte coletivo, pelas longas distâncias e pelos incentivos à compra de automóvel. A frota automotiva – de cerca de 1 milhão e 500 mil – cresce continuamente e boa parte dos carros transporta apenas o próprio motorista. Além de ser uma das poucas capitais sem estacionamento rotativo pago (motoristas estacionam gratuitamente nas vagas públicas), muitos estacionamentos informais são criados. Áreas públicas com potencial para atividades de lazer transformam-se em espaços privados, para estacionamento. E o estacionamento irregular faz parte da cultura brasiliense: estaciona-se em locais proibidos, sobre calçadas, em frente a pontos de ônibus, e bloqueando ciclovias e rampas de acessibilidade. Até mesmo carros oficiais ou veículos que prestam serviço ao governo são vistos em calçadas e outros locais proibidos.

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Imobilidade e Contradicoes de Brasilia

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  • (I)mobilidade e contradies de Braslia

    Texto e imagens: Uir Loureno

    Usurio de bicicleta no dia a dia, membro da diretoria da Unio de Ciclistas do Brasil (UCB), ex-presidente da ONG Rodas da Paz

    O simbolismo de ser capital federal e o generoso sistema virio poderiam contribuir para Braslia ser referncia em mobilidade urbana. Ao contrrio de outras capitais, no h grandes restries de espao para intervenes virias. Mas os projetos e as obras costumam favorecer o transporte individual motorizado, em detrimento dos modos coletivos e saudveis.

    H poucos anos, prometeu-se uma revoluo na mobilidade, que tornaria Braslia referncia no transporte por bicicleta. O plano ambicioso de construir a maior malha cicloviria do pas at 2014 comeou a sair do papel, mas as incoerncias da proposta so ntidas mesmo para quem no pedala.

    - Cultura da mobilidade saudvel x Cultura motorizada

    A dependncia do carro uma realidade em Braslia, impulsionada pelo pssimo transporte coletivo, pelas longas distncias e pelos incentivos compra de automvel. A frota automotiva de cerca de 1 milho e 500 mil cresce continuamente e boa parte dos carros transporta apenas o prprio motorista.

    Alm de ser uma das poucas capitais sem estacionamento rotativo pago (motoristas estacionam gratuitamente nas vagas pblicas), muitos estacionamentos informais so criados. reas pblicas com potencial para atividades de lazer transformam-se em espaos privados, para estacionamento. E o estacionamento irregular faz parte da cultura brasiliense: estaciona-se em locais proibidos, sobre caladas, em frente a pontos de nibus, e bloqueando ciclovias e rampas de acessibilidade. At mesmo carros oficiais ou veculos que prestam servio ao governo so vistos em caladas e outros locais proibidos.

  • rea pblica convertida em estacionamento

    Estacionamento sobre rea de pedestres: cena comum em Braslia

    H algumas dcadas, capitais europeias vm restringindo a circulao e o estacionamento de carros, especialmente nas regies centrais, para evitar poluio e congestionamento e estimular os modos coletivos e saudveis de transporte. Em Braslia, a lgica ainda consiste em garantir vaga a quem opta pelo transporte individual motorizado. O maior exemplo dessa poltica equivocada a proposta de megaestacionamento subterrneo na Esplanada dos Ministrios. Com capacidade para 10 mil carros, a proposta j nasce obsoleta. O novo estacionamento apenas levaria mais poluio, congestionamento e estresse para o centro tombado.

    Nos grandes veculos de comunicao, com certa frequncia se noticia um suposto dficit de vagas na regio central, com motoristas indignados em ter que passar mais de meia hora em busca de local para estacionar. Esquecem de mencionar as dificuldades de acesso a quem no vai de carro regio central, com caladas destrudas ou inexistentes e escassos pontos de travessia. No ritmo em que cresce a frota motorizada, nunca haver espao suficiente para acomodar tantos carros, justificando-se cada vez mais as formas alternativas ao carro.

    Os dados revelam o descompasso entre os gastos com o transporte individual motorizado e os investimentos no transporte coletivo. O Departamento de Estradas de Rodagem (DER) do Distrito Federal gastou, de 2001 a 2010, R$ 774,5 milhes em obras de duplicao de rodovias, construo de viadutos e pavimentao, valor quatro vezes superior aos recursos destinados ao metr. 1

    Enquanto se ampliam os estacionamentos para carros, as vagas pblicas para bicicletas (mais baratas e fceis de criar) ainda so escassas, mesmo nos pontos tursticos, o que dificulta o necessrio impulso na disseminao do uso de bicicleta.

    1 Correio Braziliense. 14-2-2011. Na ltima dcada, governo incentivou o uso de carros. Disponvel em: http://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/cidades/2011/02/14/interna_cidadesdf,237597/na-ultima-decada-governo-incentivou-o-uso-de-carros.shtml

  • Estacionamento improvisado na Catedral

    Improviso para estacionar bicicleta na Torre de TV

    Apesar de alguns avanos no transporte coletivo licitao do sistema de nibus, criao de algumas faixas exclusivas para nibus e incio das obras de um eixo de BRT , muito ainda precisa ser feito: ampla integrao fsica e tarifria; ampla oferta de linhas (inclusive aos sbados e domingos); oferta de informaes ao usurio; treinamento dos motoristas; boas condies de acesso, abrigo e iluminao nas paradas.

    Passageiros ao relento conforto nulo

    Pssimas condies em ponto de nibus

    lbum 1 mais fotos do transporte por nibus no Distrito Federal

    - Fluidez motorizada, segurana e legislao

    A priorizao da fluidez motorizada, em detrimento da segurana, faz parte das aes governamentais. Como exemplos, a manuteno de altos limites de velocidade nas vias, a converso de acostamentos em terceira pista para carros e as ampliaes que desconsideram a existncia de pedestres e ciclistas.

    Em vez de contrapor o modelo centrado no automvel, constata-se ao governamental no sentido de ampliar o espao nas vias e nos estacionamentos, alm da construo de tneis e viadutos, buscando-se a fluidez motorizada. As milionrias ampliaes virias (com destaque para a EPTG Linha Verde) logo se tornam incuas, saturadas.

    Mesmo com os inmeros gastos em ampliao viria e fluidez motorizada, os congestionamentos aumentam. H poucos anos, imaginava-se que a cidade com amplas vias jamais pararia; atualmente,

  • a fila de carros parados cena constante em muitos horrios, em todo o DF. O crculo vicioso resultante do incentivo ao automvel se confirma claramente.

    Vale lembrar que o cdigo de trnsito, de 1997, determina que rgos de trnsito invistam na segurana do ciclista. E h o princpio de proteo dos veculos menores e dos no motorizados, com preferncia a pedestres e ciclistas. A Poltica Nacional de Mobilidade Urbana, de 2012, estabelece a prioridade aos modos coletivos e saudveis (no motorizados) em relao ao transporte individual motorizado.

    A legislao local tambm bastante favorvel aos modos coletivos e saudveis de locomoo. Nas dez leis que tratam da mobilidade saudvel, podem-se destacar muitos pontos positivos: viabilizar os deslocamentos por bicicleta com segurana, eficincia e conforto; reduzir a participao relativa dos modos motorizados individuais; desenvolver e estimular os meios no motorizados de transporte; reconhecer a importncia dos deslocamentos de pedestres e ciclistas; criar e adequar espao virio seguro e confortvel para o pedestre, o ciclista e a pessoa com deficincia ou mobilidade reduzida; realizar campanhas educativas. E, ainda, o sistema ciclovirio estabelece que as novas vias pblicas, incluindo pontes, viadutos e tneis, devem prever espaos destinados ao acesso e circulao de bicicletas. 2

    Mas a vasta legislao ainda no se reflete na realidade. Um exemplo evidente da inobservncia das leis: as pontes sobre o lago Parano so hostis aos ciclistas. A ponte JK exaltada pela beleza arquitetnica exibe placa com exigncia que o ciclista atravesse sem pedalar. Por razes bvias, nunca se v algum passar pela ponte empurrando a bicicleta. A ponte do Bragueto e as demais

    2 A compilao das dez leis distritais que tratam da mobilidade saudvel encontra-se anexa.

  • pontes no possuem proibio explcita de se pedalar, mas afugentam, da mesma forma, qualquer ser no motorizado, diante da falta de espao seguro e do intenso fluxo motorizado, em alta velocidade.

    Ponte JK exuberncia arquitetnica e placa anti-ciclista

    Ponte do Bragueto fluxo intenso e veloz de carros; ausncia de estrutura a pedestres e ciclistas

    - 600 km de ciclovias a iluso dos nmeros e a realidade prtica

    O atual governo iniciou amplo programa de construo de ciclovias. A promessa de entregar 600 km de ciclovias at 2014. Segundo dados do governo, esto concludos 161 km de ciclovias e 80 km de ciclofaixas. Os dados quantitativos contrastam com a pssima qualidade da infraestrutura voltada aos ciclistas e com a falta de uma poltica integrada e coerente de mobilidade urbana.

    A descontinuidade no trajeto dos ciclistas tornou-se regra. No h interligao entre os diversos fragmentos de ciclovias. Sem continuidade no caminho, nem segurana na travessia, difcil crer na ampla disseminao no uso de bicicleta como meio de transporte. H estacionamentos para carros que interrompem as ciclovias, alm de muitos motoristas que circulam e estacionam sobre os locais reservados aos ciclistas.

    Trmino abrupto de ciclovia

    Descontinuidade em razo de estacionamento para carros

    lbum 2 mais fotos das condies aos ciclistas no Distrito Federal

    s falhas na execuo da infraestrutura soma-se a escassez de aes educativas e de fiscalizao. Alm da infraestrutura, so necessrias aes de conscientizao de motoristas sobre o necessrio

  • respeito ao ciclista e aes voltadas aos ciclistas sobre boa postura no trnsito. Seriam tambm muito relevantes aes que disseminassem as vantagens do uso de bicicleta. E a fiscalizao do poder pblico para garantir a segurana dos que optam por caminhar ou pedalar.

    Tem-se a sensao de que, justamente onde mais se precisa, as vias para os ciclistas terminam de forma abrupta. Quando h estacionamento no meio do percurso, o jeito se virar em meio aos carros, sem qualquer garantia de segurana. Nos cruzamentos com carros, ou no h qualquer sinalizao (pintura ou placas de alerta aos motoristas), ou a sinalizao se volta aos ciclistas, que devem parar e precisam de muita pacincia para conseguir atravessar em locais com intenso fluxo de carros.

    Para tentar contornar a falta de fiscalizao e conter as infraes motorizadas, que ocorrem diariamente, os usurios de bicicleta vm afixando avisos nos carros que bloqueiam a ciclovia e as rampas e invadem caladas. Apesar da louvvel iniciativa, as multas cidads no tm sensibilizado os infratores.

    Multas cidads tornaram-se comuns na tentativa de sensibilizao dos motoristas

    lbum 3 mais exemplos da ao cidad contra motoristas infratores

    Curiosamente, ciclofaixas (localmente chamadas de acostamentos ciclveis) foram pintadas em vias de alta velocidade com limite terico de 70 e 80km/h. A mera pintura das ciclofaixas em vias rpidas e com alto fluxo de automveis altamente desaconselhvel tecnicamente. E, para piorar, a exemplo das ciclovias, tais ciclofaixas carecem de continuidade.

    As pessoas que usam bicicleta como meio de transporte se queixam das condies das novas ciclovias. So facilmente observados os inmeros problemas de insegurana nos cruzamentos; descontinuidade; falta de sinalizao e de iluminao; conflitos com pedestres; ausncia de pontos de acesso ciclovia; desrespeito de motoristas. E as antigas ciclovias sofrem dos mesmos problemas, com o adicional da falta de manuteno.

  • Ciclofaixa em via com alto limite de velocidade

    Trmino repentino de ciclofaixa, sem opo de continuidade

    Vdeo revela o total desrespeito de motoristas por ciclofaixa em Braslia: https://www.youtube.com/watch?v=LIy-_ho_TB4

    - EPTG Linha Verde

    Numa obra que custou mais de R$ 300 milhes, a Estrada Parque Taguatinga (EPTG) foi ampliada. A via, curiosamente chamada de Linha Verde, ficou completamente cinza com as cinco pistas em cada sentido, alm da faixa de nibus e do acostamento, invadidos pelos carros. A ciclovia prometida jamais saiu do papel, tampouco os pedestres contam com calada. O corredor de nibus no opera como deveria, em razo de os nibus no estarem adaptados com portas do lado esquerdo.

    A pergunta pintada numa passarela da EPTG expressa indignao

  • Apesar da ausncia de espaos seguros a pedestres e ciclistas, do alto limite de velocidade e da invaso do acostamento, muitas pessoas caminham e pedalam pela via e alcanam velocidade superior aos carros nos horrios de pico de congestionamento.

    Passados trs anos da concluso da obra, os usurios de nibus ficam presos no congestionamento, enquanto alguns motoristas solitrios usufruem da faixa exclusiva de nibus. Os ciclistas continuam sem espao segregado (fundamental numa via com limite de 80 km/h) e os pedestres se sujeitam ao barro e lama nas laterais da via.

    Para a populao fica o mistrio acerca da efetiva melhoria na mobilidade. No se sabe quando o corredor de nibus e os espaos para circulao segura de ciclistas e pedestres passaro a ser realidade. Resta apenas uma certeza: de verde a via no tem nada.

    Mega ampliao esqueceu pedestres e ciclistas

    lbum 4 fotos de pedestres e ciclistas na EPTG

    Vdeo mostra o caos motorizado na EPTG, mesmo aps ampliao viria: http://www.youtube.com/watch?v=uh_2eJyqUPs

    - Gastos para a Copa

    Muito se alardeou sobre os benefcios que seriam advindos da Copa. O evento deixaria como legado avanos na mobilidade. A depender das obras vistas na cidade, teremos mais do mesmo: ampliaes virias e foco na fluidez motorizada.

    A grande obra em execuo em Braslia amplia a Estrada Parque Aeroporto (EPAR), a mesma via cujo acostamento fora anteriormente suprimido para criar faixa adicional aos carros. E nas demais cidades-sede a situao no deve ser diferente, considerando as notcias sobre cancelamento de projetos e atraso nas obras voltadas ao transporte pblico. Os recursos destinados construo dos

  • estdios cerca de R$ 8 bilhes superam o valor destinado mobilidade urbana cerca de R$ 7 bilhes. 3, 4

    No entorno do bilionrio estdio em Braslia, as caladas (quando existentes) esto em pssimo estado e a iluminao precria. As vias largas e rpidas prximas ao estdio, com poucos pontos de travessia, geram insegurana a pedestres e ciclistas.

    A cratera em frente ao estdio durou muitos meses.

    As caladas existentes esto em pssimo estado, contraste com as pistas recapeadas

    A nova ciclovia da asa norte termina de forma repentina, sem qualquer aviso ou alternativa de caminho, a cerca de um quilmetro do novo estdio. Em razo da descontinuidade da ciclovia, os usurios de bicicleta ficam sem acesso seguro a outros locais, como a torre de TV, o centro de convenes e o parque da cidade.

    Foi instalado um bicicletrio no canteiro em frente ao estdio, que atenderia aos torcedores ciclistas. bastante evidente o contraste entre o custo do Estdio Nacional (R$ 1,4 bilho) e a simplicidade dos suportes instalados no local. No h qualquer sinalizao, iluminao ou controle de acesso no espao aos ciclistas. Para acrescentar, muitos dos suportes instalados j esto danificados. O resultado do pssimo espao reservado aos usurios de bicicleta: em dias de jogo ou show no estdio, pouqussimos se arriscam a ir de bicicleta.

    lbum 5 mais imagens do entorno do estdio

    Vdeo de torcedor em busca de vaga para bicicleta no estdio: http://www.youtube.com/watch?v=62AUmg5bly0

    Ainda referente Copa, interessante notar que o Eixo do Lazer h 22 anos, o Eixo fica fechado para os carros, aos domingos e feriados, e cede espao a milhares de pessoas foi sacrificado em dia de jogo no estdio, com a justificativa de que seria um teste para a Copa do Mundo. Apesar de todo

    3 UOL. 25-11-2013. Custo de arenas da Copa sobe R$ 1 bi e supera investimento em mobilidade. Disponvel em: http://copadomundo.uol.com.br/noticias/redacao/2013/11/25/custo-de-estadios-da-copa-sobe-r-1-bi-e-supera-investimento-em-mobilidade.htm

    4 BBC Brasil. 13-6-2013. Atrasos e obras canceladas reduzem legado da Copa em transporte. Disponvel em: http://www.bbc.co.uk/portuguese/noticias/2013/06/130613_legado_mobilidade_copa_jp_jf.shtml

  • o discurso governamental pr-bicicleta, pr-sustentabilidade, sacrificou-se o tradicional espao de lazer para proporcionar fluidez aos torcedores que optassem por ir de carro ao estdio. Com o agravante de que h inmeras vias alternativas para se chegar ao estdio, inclusive os Eixinhos, vias paralelas ao Eixo que permanecem abertas ao trfego motorizado.

    Assim como o Eixo do Lazer, a Ciclofaixa do Lazer uma faixa das seis existentes no Eixo Monumental fica reservada aos ciclistas das 7 s 16h, apenas aos domingos j foi sacrificada em nome da fluidez motorizada, em dia de jogo. O argumento da realizao da Copa e seu legado positivo para a mobilidade deveria servir para consolidar e ampliar os espaos para os modos saudveis de transporte, e no para restringi-los.

    Eixo do Lazer num domingo normal, com muitas pessoas caminhando e pedalando.

    Ciclofaixa do Lazer espao sacrificado em nome da fluidez motorizada.

    - Caminhos inacessveis e Asfalto Novo

    A despeito da legislao federal e distrital que impe a acessibilidade, os caminhos dos pedestres ainda so tortuosos no Distrito Federal. Tanto nas regies perifricas, quanto na rea central da capital, o estado das caladas deplorvel. Muitas vezes, sequer existe calada.

    A situao ruim para os seres com plenas condies fsicas torna-se ainda pior para cadeirantes e pessoas com restrio na mobilidade. Os obstculos intransponveis e a ausncia de caminhos seguros os obrigam a circularem na via, no meio dos carros.

    Caladas inexistentes ou abandonadas fazem contraste com as vias recapeadas. Recentemente, o governo iniciou amplo programa de recapeamento. Com o custo de R$ 770 milhes, o Asfalto Novo pretende recuperar inmeras vias em todo o Distrito Federal.

  • Cratera em calada contraste com o recapeamento das pistas

    lbum 6 mais imagens das condies aos pedestres no DF

    lbum 7 cenas da inacessibilidade no DF

    Vdeo da inacessibilidade em Braslia. Invaso dos espaos pblicos pelos motoristas: http://www.youtube.com/watch?v=xbrrETtUEVY

    Assim como as ciclovias e ciclofaixas, as caladas carecem de continuidade. Apesar da ntida precariedade do espao para os pedestres, no se tem conhecimento de programa similar de amplo recapeamento das caladas, ou de amplo programa de construo de caladas, nos locais em que elas ainda no existem.

    E o respeito ao pedestre na faixa de travessia, algo de que Braslia pode se orgulhar, vem perdendo fora. Em 2012, oito pedestres morreram na faixa, o dobro de mortes em relao ao ano anterior. Os dados indicam que algo vai mal no que diz respeito educao e fiscalizao de trnsito, sacrificando justamente os mais vulnerveis.

    - Cultura ciclstica e integrao no metr

    A despeito dos muitos recursos gastos no transporte individual motorizado, a cultura da bicicleta est presente no Distrito Federal, especialmente em cidades satlites como Parano, Estrutural e Recanto das Emas.

  • Bicicletas com som so muito utilizadas no Parano

    Bicicletrio lotado em supermercado do Recanto das Emas

    Nas regies atendidas pelo metr, como Ceilndia e Samambaia, observa-se que a populao utiliza bicicleta para ir s estaes. Nas estaes com bicicletrios, h sempre bicicletas estacionadas. E, nas estaes sem espao reservado s bicicletas, os ciclistas improvisam vagas. Tambm h situaes em que o local onde esto instaladas as vagas no oferece segurana, o que leva aos usurios a optarem por locais alternativos, como o corrimo de acesso estao.

    E a integrao da bicicleta ao metr tambm se d por meio do embarque com a bicicleta no ltimo vago. Todos os dias, veem-se muitas bicicletas no interior do metr. De fato a lei criada e cumprida, que permite o embarque da bicicleta, ampliou a cultura ciclstica nas regies atendidas pelo metr. Mas so necessrias melhorias nos acessos, na sinalizao e nas vagas para bicicletas, de forma a facilitar a integrao.

    Vale registrar uma iniciativa positiva de incentivo ao uso de bicicleta, vinda do setor privado. Atualmente, boa parte dos centros comerciais possui bons bicicletrios, com vagas gratuitas e cobertas. H, inclusive, espaos com tomadas para recarga de bicicletas eltricas.

    Com base no bom exemplo da cultura ciclstica, o governo local poderia planejar e executar aes que levassem a cultura ciclstica para dentro do poder pblico. Uma medida barata e eficaz seria a fiscalizao por bicicleta, a ser realizada pela polcia militar e pelos rgos de trnsito. Parques, o Eixo do Lazez (patrulhado por motos e carros do Departamento de Estradas de Rodagem) e o centro da capital so timos locais para estrear a fiscalizao no poluente. Outro servio que poderia ser criado: os ecotxis (triciclos para transporte de passageiros), muito utilizados em capitais europeias.

    Bicicletrio com opo de recarga em centro comercial de Braslia

    Ecotxi sucesso em Berlim

  • - Mobilidade nas cidades

    O exemplo de Braslia serve para refletir sobre os rumos da mobilidade nos centros urbanos do pas. A saturao das vias, em razo da frota crescente de automveis, inquestionvel. Antes, o brasiliense se orgulhava de morar numa cidade com pistas livres, onde se sabia a que horas se chegaria ao compromisso. Hoje, os assuntos das manchetes dos jornais e das conversas no ambiente de trabalho so congestionamentos e dificuldade para estacionar.

    A necessria mudana de modelo de transporte vai alm de infraestrutura, trata-se de mudana de paradigma, que envolve mudanas culturais. No foco do novo paradigma entram as opes coletivas e saudveis de locomoo (integradas entre si), incluindo, alm das caminhadas e pedaladas, as formas ldicas como skate, patins e patinete. Ao sair de casa, o sujeito deve ser levado a repensar o ato automtico de pegar a chave e tirar o carro da garagem. Deve ter que avaliar e tomar a deciso: estresse e congestionamento ou bem-estar e caminho livre. Obviamente, h que se oferecer servio pblico de qualidade, que significa conforto, agilidade, pontualidade e segurana.

    Patinador e ciclista compartilham espao de faixa de nibus em Paris

    Patinete como opo de transporte: realidade na capital francesa

    As necessrias mudanas de hbito para evitar o colapso urbano devem incluir todas as classes, e no apenas os menos favorecidos economicamente. O nibus, o metr e a bicicleta devem ser ressaltados no apenas como formas de transporte, mas principalmente como meios de transformao da cidade, rumo a um nvel superior de qualidade de vida e harmonia. Precisa-se ter em mente o desafio de incluir os gestores pblicos como usurios dos modos desejveis de transporte.

    Nos novos tempos da mobilidade saudvel, elimina-se o carro oficial e se oferecem bilhete nico e bicicleta oficial aos ocupantes de cargo no alto escalo do governo. Alm de economia aos cofres pblicos, a medida representaria uma fonte adicional de presso por melhorias na mobilidade urbana. A queixa de um secretrio de estado ou ministro contra uma linha de nibus ineficiente ou contra uma ciclovia descontnua e insegura certamente teria peso maior que a queixa de um cidado comum.

    Projetos e aes coerentes com o objetivo central desestimular o transporte automotivo e incentivar os modos coletivos e saudveis so de suma importncia. Fica clara a contradio, na capital federal, entre as ciclovias desconectadas e no sinalizadas e as aes de ampliao viria e o projeto de megaestacionamento subterrneo. H inmeras outras contradies que fazem de Braslia um local atrativo para os que desejam conhecer aes voltadas (i)mobilidade urbana.

  • As recentes mobilizaes no pas revelam a necessidade dos gestores pblicos enxergarem alm do para-brisa do automvel. Os governantes e as autoridades de trnsito tm papel fundamental na necessria mudana, com polticas pblicas voltadas qualidade de vida. Prioridade absoluta ao transporte coletivo e garantia de segurana mobilidade saudvel. H que se perceber que pedestres e ciclistas no so seres invisveis. Os governantes podem comear as mudanas com uma simples mudana na rotina: optar pela bicicleta, nibus ou metr na ida ao trabalho.

    Cidades da Holanda e da Dinamarca so referncias na mobilidade saudvel, que ultrapassam os 30% de deslocamentos ao trabalho feitos sobre bicicleta. Essa cifra (inimaginvel para nossos padres carrocntricos) se deve no apenas s centenas de quilmetros de ciclovias, mas principalmente a um ambiente urbano amigvel e respeitoso, onde o mais frgil respeitado, os limites de velocidade so condizentes com a vida e os carros vo perdendo espao.

    A singela bicicleta torna-se cada vez mais uma opo moderna, gil e prtica. Em muitos centros urbanos, a velocidade mdia dos motoristas, nos horrios crticos, fica abaixo de um ciclista comum, sem pressa. No d mais para negligenciar a mobilidade urbana e manter uma poltica que alm da poluio, dos congestionamentos, da perda de produtividade e do estresse causa mais de 40 mil mortes e milhares de feridos com sequelas irreversveis. Novas obras que privilegiam a fluidez motorizada e probem a circulao de pedestres e ciclistas j nascem obsoletas e devem ser abolidas ainda na fase de projeto.

    Exemplos de obras contrrias mobilidade saudvel, em cidades brasileiras

    lbum 8 mais imagens de locais expressamente contrrios a ciclistas e pedestres

    O pas pode continuar ostentando ndices vergonhosos de mutilados no trnsito e familiares destroados emocionalmente. Ou pode, de forma sria e responsvel, adotar uma poltica para reverter o quadro de imobilidade e caos urbano. O cenrio favorvel segunda opo, afinal o pas signatrio da Dcada de Ao pelo Trnsito Seguro (2011 a 2020), da ONU, e sediar a Copa do Mundo e as Olimpadas. Seria de grande valor, no cenrio internacional, tornar-se referncia no s em samba e futebol, mas tambm em mobilidade urbana justa e saudvel.

    O setor governamental em mbito local e federal precisa despertar o quanto antes para a falncia do sistema baseado no automvel. Os exemplos de Bogot e Nova York revelam que restringir o espao do automvel e investir em cidades humanizadas dependem principalmente de efetiva vontade poltica, dependem menos de discursos e mais de aes prticas.

    Fazendo referncia ao ex-prefeito de Bogot Enrique Pealosa, a cidade avanada no aquela onde os pobres andam de carro e, sim, a cidade em que os ricos usam transporte pblico.