iluminando a escuridão: noite, guarda noturna e vigilância ... · no final do século xix e...
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PUC-RIO, Pós-graduação.
Pedro Guimarães Marques, 8 de setembro de 2017.
Iluminando a escuridão: Noite, guarda noturna e vigilância na capital
no final do século XIX e início do XX
Resumo: esse artigo procura analisar o desenvolvimento da iluminação pública do Rio
de Janeiro e a criação da Guarda Noturna a partir de uma perspectiva transnacional,
durante o século XIX e duas primeiras décadas do século XX. Será estudado como o
desenvolvimento da iluminação pública, fenômeno presente desde o século XVI, que é
traço característico da conversão de cidades em cidades modernas, se liga à formação e
desenvolvimento das guardas noturnas, estas que marcam novas formas de se tentar
controlar a noite. Será revelado aqui a criação do primeiro grupo de guarda noturna da
capital, assim como os deveres que esses grupos tinham ao patrulharem a noite,
apontando-se ao mesmo tempo características da cultura noturna carioca, baseando-se
principalmente na área da Lapa para expô-las.
Palavras-chave: guarda noturna, iluminação pública, vida noturna.
1.Introdução
Walter Benjamin, pouco antes de falecer, reuniu anotações que se encontram
presentes em um famoso e grande livro seu denominado "Passagens", revelando algumas
das visões e opiniões de europeus ao longo do século XIX1. No capítulo sobre tipos de
iluminação, podemos observar uma sociedade que se diferenciava muito da dos séculos
anteriores pela sua relação com a iluminação artificial, reflexo de uma Belle Époque na
qual o desenvolvimento tecnológico se intensificava dramaticamente. A iluminação a gás
representou para a sociedade uma nova forma de se relacionar com a noite - trazia cada
vez mais pessoas à rua em um horário considerado nefasto. A iluminação pública, no
1 BENJAMIN, Walter. Passagens. Minas Gerais: Editora UFMG, 2007.
século XIX, viu a sua passagem de uma iluminação permanente para uma intermitente,
permitindo novos laços de sociabilização na cidade.
A iluminação a gás foi considerada como um dos mais destacados símbolos do
progresso civilizacional. Consideradas representação do domínio do Homem sobre a
natureza, a iluminação pública ajudou a moldar formas de se experimentar a noite que
adquiriram caráter cosmopolita, como idas à teatros, restaurantes, cafés, cinemas. Além
disso, era muito aproximada da representação de soberania e vigilância das autoridades
sobre a população que saia às ruas. Luís XIV já inaugurava essa tradição ainda no século
XVI, ao implementar a primeira iluminação pública parisiense, que simbolizava a
presença do rei Sol pelas ruas da capital. Benjamin destaca que a figura de Napoleão
sempre carregava consigo um lampião. A luz, clareando a escuridão, funcionava como os
olhos das autoridades para a imposição de controle social, tendo relação íntima com a
atuação policial durante o período noturno.
Não obstante, é importante ressaltarmos que a iluminação a gás sofria também
criticas por parte dos contemporâneos dos oitocentos. Era considerada, pela sua forte luz,
como agressiva à visão e até mesmo saúde mental daqueles que estivessem em contato
prolongado com ela por muito tempo. O gás era visto como agressivo a respiração e o
olfato, ao passo em que era gerador de um intenso calor muitas vezes incômodo.
Apresentavam-se receios de sua introdução nas residências particulares pela alta
capacidade inflamável do gás e o medo de possíveis incêndios que poderia gerar enquanto
estivessem dormindo, o que de fato acontecia. Para outros, o gás podia ser utilizado contra
o progresso civilizacional, auxiliando criminosos, como explosivo para ações criminais.
Edouard Founier, ao tecer observações sobre a vida noturna da França do século XIX,
apontava que ela poderia levar o homem trabalhador à rua num período em que ele
poderia estar repousando para ser mais produtivo no trabalho do dia seguinte2. Com a
invenção da lâmpada incandescente por Thomas Edison em 1878, a luz elétrica passaria
a substituir o gás como elemento da iluminação pública, principalmente no século XX,
por ser mais segura.
2 Ibidem. p. 611.
Quando falamos a história da iluminação pública e desenvolvimento de uma vida
noturna local, não devemos dissociá-lo de seu caráter transnacional. Tomemos como
ponto de orientação o conceito de histórias conectadas, que é utilizado para expor as
profundas dependências dos processos históricos de regiões apartadas entre si, que serve
para se criticar a utilização de forma binária de conceitos para a escrita da História, como
"cultura". As histórias conectadas, ao questionarem os limites das culturas nacionais,
restritas às fronteiras do Estado-nação e centradas nele, valorizam a compreensão
transnacional dos processos de formação cultural, procurando interações entre diferentes
agentes a um nível supranacional. Localidade fundamental para se entender essa conexão
entre localidades diversas são os oceanos, que funcionam como área de interligamento
entre regiões e que promovem uma intensa circulação de ideias, pessoas e inovações
tecnológicas. Sendo assim, cidades portuárias, como o Rio de Janeiro devem ser pensadas
como localidades privilegiadas para se pensar as conexões transnacionais que constituem
sua própria formação histórica. Desta forma, ao pensarmos o incremento da iluminação
pública na capital carioca ao longo do século XIX, temos que contemplar a sua inserção
nesse espaço atlântico, onde inovações tecnológicas circulam entre diversas regiões e
impactam a forma das pessoas lidarem com a noite a níveis globais, assim como a
circulação de ideias pela região as faz encontrar novas formas de se controlar a ordem
durante a noite que adquirem similitudes.
A partir dessa ótica, a vida noturna carioca apresentada nesse artigo, assim como
a própria formação da guarda noturna da capital devem ser entendidas como compostas,
como explica o antropólogo Fredrik Barth, por fluxos culturais que advém das conexões
a qual a cidade está submetida3. Isso serve para nos ajudar a enfatizar o caráter de
hibridismo que a cultura noturna carioca apresenta, mais do que sendo meramente produto
de características puramente locais, e a partir dai, podemos estabelecer um vínculo
comum entre problemas que a guarda noturna da capital procurava enfrentar e que eram
semelhantes às preocupações de guardas noturnas em outros países. A primeira parte
3 O conceito de cultura para o antropólogo se define como sendo dinâmico, na qual o universo simbólico
ao qual as pessoas estão submetidas apresentam remodelações de acordo com o contato que adquirem com
outras pessoas de universos distintos. BARTH, Fredrik. A análise da cultura nas sociedades complexas. In:
O guru, o iniciador e outras variações antropológicas.Rio de Janeiro: Contra Capa Livraria, 2000.
desse artigo procura estabelecer essas relações, assim como mostrar como a história da
iluminação pública é indissociável de preocupações policiais associadas à vigilância e
controle. A segunda parte procura falar especificamente o desenvolvimento de uma vida
noturna no Rio ainda no século XIX, a criação e problemas da cidade que a primeira
guarda noturna deveria se ocupar de combater, enfatizando algumas características da
noite carioca no início do século XX, representadas principalmente pela região da Lapa.
2.Vigiar a Noite
A guarda noturna não é uma invenção à brasileira. Antes mesmo do incremento
da iluminação pública através da descoberta do gás, temos atuação desse tipo de vigilante
em diversas regiões do espaço atlântico. Conforme é demonstrado por Peter C. Baldwin,
em seu livro In the Watches of the Night, no século XVII os norte-americanos já
montavam suas guardas noturnas, quase imediatamente após estabelecerem os governos
locais, para proteção contra incêndios e desordem4. No clássico estudo de Elaine A.
Reynolds, Before the Bobbies5, a guarda noturna estabelecida pelos britânicos, tendo os
primeiros relatos advindos da região de Westminster, já funcionava no começo do século
XVIII, possuindo um padrão básico de atuação em 1739, administradas por sacristias de
paróquias locais, financiada pela vizinhança das ruas vigiadas, estando sob as
fiscalizações de um Comitê de Guarda. Sua função era de proteção da propriedade
privada, com atuação para o impedimento de roubos, arrombamentos, além de outros atos
de desordem. O foco principal era o de prevenção ao crime e incêndio, tendo detecção
como segunda preocupação6. Além disso, está relacionada com a manutenção da
iluminação das ruas, carregando seus largos lampiões em mãos, servidos para orientar
viajantes noturnos, assim como detectar criminosos. O sistema era descentralizado, com
cada paróquia decidindo sobre quantos homens contratar, assim como regras e
regulamentações que ordenavam as condutas dos vigilantes, responsabilidades, salários e
4 BALDWIN, Peter C. In the Watches of the Night: Life in the Nocturnal City, 1820-1930. Chicago:
University of Chicago Press, 2015. p. 11. 5REYNOLDS, Elaine A. Before the Bobbies: The Night Watch and Police Reform in Metropolitan
London, 1720-1830.California: Stanford University Press, 1998. 6 Uma passagem que demonstra bem a preocupação primária da guarda noturna se encontra aqui: "A
manutenção e a boa regulamentação da guarda no tempo noturno [é necessária] para a preservação das
pessoas e propriedades dos habitantes... E muito necessária para prevenir também as confusões que
podem acontecer de incêndios, assassinatos, roubos, assaltos e outros ultrajes e desordens".Ibidem. p.24.
outros benefícios. Possuíam um local de reunião - casa da guarda - onde guardavam seus
equipamentos, como armas e objetos apreendidos, cabendo aos bedéis ou policiais da
paróquia a convocação dos vigilantes, assim como as contagens antes das patrulhas
noturnas. Os turnos de ronda variavam por paróquia, assim como ficava ao encargo de
sacristias a disciplina sobre o corpo de vigilantes, os punindo por ausência em dia
demandado de patrulha, mal comportamento - sedução por vícios que a noite poderia
trazer, como bebedeira - ou dormida na hora do turno, com desde reprimendas até
demissões.
Reynolds demonstra o sistema de guarda noturna britânico como pertencente a
formas de se policiar a Inglaterra antecessoras da implementação de sua polícia moderna,
feita por Robert Peel, com a centralização da força policial a partir de 1829.
Daniel Palma Alvarado faz uma leitura semelhante sobre a guarda noturna no
mundo hispano-americano como sendo origem da função moderna policial7. O autor
evidencia que a guarda noturna já existia no final do século XVIII na América Espanhola
pela década de 90 sob a denominação de serenos. Afirma que com a introdução da
iluminação pública no México, por exemplo, surgiu o trabalho dessas figuras que eram
responsáveis pela custódia da iluminação das ruas, protegendo as lamparinas e as
acendendo. Surgiram em Quito, Equador; Lima, Peru; Santa Fé de Bogotá, Colômbia;
Santiago, Chile como grupos de vigilância que se difundiram na região a exemplo dos
serenos em sua metrópole, a Espanha8. As gradativas petições pedindo a implementação
de serenos em diversas cidades hispano-americanas revelam as crescentes dificuldades
de se governar a noite por parte das localidades, além da procura pela manutenção e
desenvolvimento da iluminação pública para maior segurança. Constantes roubos e atos
considerados imorais eram objetos de reclamação por comerciantes e moradores. A
7ALVARADO, Daniel P. Los cuerpos de serenos y el orígenes de las modernas funciones policiales em
Chile (siglo XIX). Santiago: Historia, n. 46, vol 2, 2016. Pp. 509-545. Devemos problematizar a ideia de
um centro irradiador - Espanha - de um modelo de serenos para as colônias espanholas, uma vez que esse
modelo difusionista apresenta críticas pelo fato de não contemplar outras possíveis influências horizontais
que as colônias possam ter tido entre si para a criação de seus corpos de serenos. 8 O trabalho de Alvarado focará na guarda noturna do Chile, que está fora da região atlântica, porém, sua
atuação, obrigações e história não pode ser dissociada da experiência que a iluminação pública trouxe
sobre a Espanha e suas colônias, já que estas procuraram organizar guardas noturnas influenciadas pelos
serenos que atuavam na metrópole espanhola.
necessidade de se aumentar a segurança foi fundamental para o desenvolvimento da
iluminação pública nas ruas, assim como a adoção do corpo de serenos por pressões do
público. Estes eram incumbidos de funções como patrulha das ruas, anuncio da hora,
tempo, tremores e incêndios; chamada de médicos, parteiras ou padres; deter suspeitos,
procurar por portas abertas para alertar moradores e protegerem a propriedade. Como na
experiência britânica, possuíam como função primordial o papel de força policial noturna
calcada na prevenção do crime e manutenção da ordem social na noite, devendo guardar
estabelecimentos comerciais. Suas funções como acendedores e protetores de postes de
iluminação marcam a associação entre luz e vigilância/controle, ao longo de sua atuação
no século XIX. Ademais, eram administrados pelas autoridades locais que organizavam
seus fundos, advindos da população dos bairros, evidenciando assim como sua gestão e
atuação é correspondente à inglesa e abarcam uma experiência que vai além das fronteiras
nacionais.
Problemas comuns eram relacionáveis às guardas noturnas em seus variados
territórios, como péssimas condições de trabalho e pagamento, falta de capacitação e
incapacidade de exercer autoridade ao longo das patrulhas, as quais as autoridades
procuraram sanar conforme a maior dificuldade de se impor segurança e ordem social
sobre o turno da noite.
Ao pensarmos a atuação das guardas, devemos pensar a noite como um momento
diferenciado do dia. Estudos como o de Amy Chazkel9 mostram-na não apenas como uma
categoria temporal distinta, mas também sociojurídica, onde poderes legais de coerção
sobre ações vistas como criminosas ou impróprias eram ampliados para a manutenção da
ordem e crimes adquiriam um caráter punitivo mais forte. Exemplo interessante se
encontra nos Códigos Penais brasileiros de 1830 e 1890. No começo do Império, a noite
já surgia como um condicionante para a legitimação do ato de repulsa de uma vítima
contra um bandido que invadisse a sua propriedade10. A partir desse ano, a noite já era
vista como circunstância agravante para crimes, caso fosse comprovado que o criminoso
9CHAZKEL, Amy. O lado escuro do poder municipal: A mão de obra forçada e o Toque de Recolher no
Rio de Janeiro Oitocentista. Santa Catarina: Revista Mundos do Trabalho. Vol 5, n. 9, 2013. pp. 31-48. 10 BRASIL. Código Penal de 1830. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lim/LIM-
16-12-1830.htm.
a havia inserido como parte da estratégia, cálculo de seu delito de maneira a facilitar o
sucesso de sua execução. Ao discutir o Código Penal Brasileiro de 1890, Galdino Siqueira
tece reflexões sobre a noite como circunstância agravante para crimes11. Crimes como
mendicância, ao ser exercida no período da noite, ganhavam agravantes penais. Outro
apontado por Siqueira é o crime de circulação da moeda falsa, uma vez que o autor afirma
que a luz artificial empregada à noite ajudava a mascarar os defeitos do produto que
poderiam alertar a vítima sobre sua falsidade.
Siqueira ainda entra em uma discussão sobre o próprio conceito jurídico da noite.
Diz ele que ela é debatida e conceituada juridicamente por duas vertentes diferentes que
a categorizam como grandeza "físico-astronômica" ou "psico-sociológica". A primeira
defende a noite definida como o período compreendido entre o Sol se pondo e nascendo,
marcado pelas trevas e falta de visibilidade, enquanto a segunda a conceitua como sendo
um período de repouso, quando as pessoas teriam se retirado para suas habitações e iriam
dormir. Os defensores da primeira definição jurídica para noite argumentavam que os
efeitos produzidos durante aquela fase temporal eram conseqüências do fenômeno natural
da falta de visibilidade, portanto, acidentes, crimes, interrupção de trabalhos e retorno às
residências, esvaziamentos das ruas, etc. eram atreladas à mudanças naturais que a noite
trazia. Siqueira destaca que com a noite há a maior dificuldade de pessoas adquirirem
socorro em caso de necessidade e falta de visibilidade e reconhecimento sobre as ações
dos criminosos, o que faz com que o período se torne mais perigoso e precise de medidas
mais enérgicas da lei. Ademais, o magistrado diz que a noite traz consigo um uso social
próprio do período: o acender de velas nas casas e lampiões nas ruas. Em seus estudos,
Siqueira apóia a primeira definição de noite, argumentando que a obscuridade que ela traz
e os perigos que produz é justificativa para que ela seja lidada de forma mais rígida pela
lei, além de se fazer mais imperativo o uso da iluminação artificial para a segurança. Com
relação à noite como entendida por categoria "psico-sociológica", o autor endossa a crítica
ao seu caráter "relativista", uma vez que em uma mesma localidade poderiam coexistir
simultaneamente o dia jurídico e a noite jurídica, já que bastava que em diferentes bairros
11SIQUEIRA, Galdino. Direito Penal Brazileiro (segundo o Código Penal mandado executar pelo
Decreto N. 847, de 11 de outubro de 1890, e leis que o modificaram ou completaram, elucidados pela
doutrina e jurisprudencia). Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, 2003. pp.484-487.
ou regiões, as pessoas não estivessem às mesmas horas em suas habitações, o que
dificultaria o trabalho de imposição da lei. Um outro aspecto que demarca claramente a
noite como uma categoria jurídica própria é a definição de crimes contra à propriedade,
que estava sujeita à mudança de sua tipificação no Código Penal de 1890 dependendo da
hora em que o crime acontecia. Muito do Código de 1830 foi mantido e a noite como
circunstância agravante e legitimadora de ato de repulsa contra criminosos permaneceu,
o que demonstra a maior preocupação com essa fase do dia. Vejamos um exemplo de
mudança na definição de crime presente no Código de 90, que Siqueira discutia: caso
acontecesse de dia, uma invasão à propriedade sem consenso do dono era considerado
crime de roubo e violência contra a propriedade. Contudo, ao ser inserido sua atuação
durante o período da noite, a própria definição do crime se alterava, transformando-se em
um crime de violência contra a pessoas proprietária do imóvel. Esse curioso fato se dava,
à visão de Siqueira, de que a jurisprudência brasileira considerava que o morador da
residência poderia estar dormindo no período noturno de sua invasão, e conforme o
criminoso invadisse seu domicílio, aquele não poderia se defender contra as
arbitrariedades que o invasor pudesse cometer, estando completamente dependente e
incapacitado de se proteger12.
Antes do advento da iluminação pública como instrumento de seguridade e
imposição da ordem, a forma de controle sobre a ordem social se dava em grande parte
sob o formato de toques de recolher, que restringia a circulação de pessoas a partir de
determinada hora - quem fosse pego andando durante o horário proibido poderia ser
considerado como cometendo um crime, assim como estabelecimentos comerciais tinham
horário para fechar. A vida noturna era restrita, assim, à experiência do espaço privado,
dentro dos cômodos, conforme Wolfgang Schivelbusch salienta13.
Antes do desenvolvimento da iluminação pública a partir do século XVIII, as
fontes de luz que iluminavam ruas geralmente eram provindas de edificações religiosas e
utilizadas para cerimoniais. A luz da lua orientava andarilhos noturnos, assim como o
medo de sair no escuro tornava as ruas muitas vezes desertas. Medo este orientado por
12 Ibidem. pp.321-327. 13SCHIVELBUSCH, Wolfgang. The Policing of Street Lighting. Connecticut: Yale French Studies, n. 73,
1987.pp. 61-74.
acidentes pela má pavimentação e detritos espalhados pelas ruas que poderiam acarretar
perda de carroças ou até a vida por acidentes de percurso, assim como de crime - roubos,
assassinatos, estupros, invasões à de casas, assaltos, etc. Ademais, a noite era associada à
imoralidade – as pessoas “ordeiras” e tementes a Deus ficavam reclusas às suas casas
enquanto vícios humanos eram experimentados por "desavergonhados" em tavernas ou
bordéis -; doença14 e como horário do crime15. Na Inglaterra, a iluminação das ruas era
feita por âmbito privado, onde as lamparinas que iluminavam o espaço público
representavam extensão da própria casa dos moradores, sendo presas em seus muros,
assim como postes16. Os trabalhos sobre iluminação pública demonstram as cidades
noturnas pré-industriais como esvaziadas ou possuindo escasso movimento. Ficava ao
encargo dos pedestres portarem seus próprios lampiões para iluminarem o caminho,
sendo ela móvel.
A noite deve ser analisada também como um período que carrega cargas de
imposição discriminatórias sobre quem deve ou não andar pelas ruas - os toques de
recolher, assim como o papel de patrulhamento da polícia e peso das leis enfatizam sua
capacidade punitiva sobre determinados segmentos da população com relação à classe,
raça e gênero, sendo os principais propensos à elas negros, mulheres, crianças e pobres
os quais deveriam se recolher para o âmbito privado, enquanto não toca nos direitos de
locomoção daqueles considerados como enquadrados em categorias sociais "ordeiras",
privilegiando aqueles de cor mais clara que eram presumidas de estar dentro de casa à
essa hora.
O desenvolvimento dos primeiros sinais de iluminação pública é intrinsecamente
relacionado à função policial e atuação da guarda noturna. Sua implementação segue
demandas com relação à segurança e incremento das atividades comerciais. Já no final
do século XVII, a preocupação com iluminação pública por autoridades locais tinha sido
expressada na França, mas será no final do século posterior que ela ganhará força-
justamente o mesmo período que guardas noturnas são criadas em vários locais, assim
14 O próprio ar noturno era suspeito de carregar doenças. 15BALDWIN, Peter C. op. cit. pp. 8-13 16SCHIVELBUSCH, Wolfgang. op. cit. p. 63.
como expandidas onde já existem17. A polícia, com o papel de administradora geral,
assumirá a função de implementação do sistema, assim como de sua manutenção - o que
por vezes, como no caso francês, associava a própria iluminação pública a um aparato de
vigilância repressiva do Estado sobre a população18. No mundo hispano-americano,
ficava sua instalação ao encargo do diretor de polícia. Na Inglaterra, era função de
comissários policiais. No Brasil, outorgada ao Intendente Geral de Polícia. Todavia, em
âmbito geral, na sua forma insipiente, os primórdios da iluminação pública através da
instalação de lamparinas de azeite, óleo de baleia, ou velas de cera não traziam resultados
eficazes para o domínio sobre a noite pela sua baixa capacidade de iluminação, que
ressaltava mais a escuridão do que propriamente a iluminava. Serviam mais como pontos
de orientação que apontavam para rotas, com a função de guiar os andarilhos noturnos
pelos trajetos obscurecidos.
A preocupação com a iluminação segue necessidade de se observar aqueles que
agem durante a noite. A iluminação traria assim a visibilidade necessária para a vigilância
e o controle , atendendo uma lógica de introdução de ordem no espaço urbano noturno.
Acreditava-se que ver e identificar criminosos inibia suas operações, os mantendo
apartados pelo medo de reconhecimento e conseqüente prisão. Em oposição da luz como
expoente da lei e ordem em sociedades civis bem policiadas, a escuridão se destaca como
imagética da contraordem e rebelião19. Interligada à concepção de anonimato, era vista
como fonte de estímulo para o acobertamento de crimes e impunidade. À ausência de
uma boa iluminação e seu desenvolvimento imperativo para a ordem e segurança, enfim,
domínio sobre o espaço noturno, surge a necessidade do guarda noturno. Com sua
lamparina às mãos, é capaz de identificar aqueles que se escondem pela noite, sendo os
olhos daqueles que dormem. Funciona como agente para alertar sobre eventos que se
desprendem camuflados à atenção da vizinhança, assim como responsáveis pelo
acendimento de postes de iluminação e sua proteção, evidenciando a relação entre esta,
polícia e segurança. Não é de surpreender que o olho como metáfora da polícia é
17Na Inglaterra, lar da Revolução industrial, as paróquias começam a expandir suas guardas noturnas a
exemplo da região de Westminster principalmente na segunda parte do século XVIII, mesma época de
criação dos serenos. REYNOLDS, Elaine C. op. cit. 18Conseqüentemente, podia ser mal vista por pessoas que eram contra o regime político vigente. 19SCHIVELBUSCH, Wolfgang. op. cit.
sintomática dessa relação entre visibilidade, vigilância e segurança. Hélene L'Heuillet
mostra que o símbolo do olho era utilizado pelos próprios policiais, remetendo à detecção
policial e à aplicação da lei, sendo utilizado como representativa não só por estes, como
por juízes de pás ainda no século XVII20. Carregado de importância política, o olhar
funcionava como símbolo da prudência, do observar e analisar a situação antes de agir,
muito associado aos conselhos dos príncipes. A polícia vai substituindo a antiga função
do conselho como olhos do Estado e este olho, para mostrar mais prudência do que um
homem comum, deve ver melhor e mais - se multiplicar. Ademais, a iluminação ao
simbolizar e auxiliar o olhar do Estado, reforça a sua soberania e autoridade diante do
cidadão, expressando a proximidade entre as autoridades e os civis. À esse olhar da
autoridade é relacionada a necessidade de uma implementação de disciplina através da
vigilância policial, onde, através da observação, o policial exerce o papel de fiscalizador
sobre os costumes da população para a construção de deduções sobre o invisível,
relacionado ao visível que observa.
Mark J. Bouman estabelece a necessidade da luz não apenas relacionada à
seguridade, como a outros dois aspectos que regem demandas da cidade moderna, que se
desenvolvia no século XVIII: utilidade e urbanidade21. O primeiro é compreendido como
a necessidade de se expandir a força produtora, a emancipando da dependência dos turnos
diurnos, se estendendo, pela demanda industrial e comercial, para a esfera da noite. Luz
associa-se assim à lucratividade.Wolfgang Schivelbusch, em sua outra obra22, demonstra
como a iluminação a gás, por exemplo, muito antes de ser utilizada na iluminação pública,
tinha seu uso industrial para prolongar o tempo de trabalho dos operários de fábrica. Por
outro lado, cartéis de cias.de pedágio na Inglaterra do século XVIII dividiram com as
paróquias a função de recolher fundos para instalarem sistemas de iluminação em
avenidas, assim como o recrutamento de guardas noturnos, com as quais procuravam
trazer segurança às vias e, em consequência, adquirirem mais trafego noturno para maior
20 L'HEUILLET, Hélene. Baja Política, Alta Polícia - Un enfoque histórico y filosófico de la policía.
Buenos Aires: Prometeo Libros, 2010. pp. 197-203. 21BOUMAN, Mark J. The “Good Lamp is the Best Police” Metaphor and Ideologies of the Nineteenth-
Century Urban Landscape. Kansas: American Studies, vol. 32, n.2, 1991. 22SCHIVELBUSCH, Wolfgang. Disenchanted Night: The Industrialization of Light in the Nineteenth
Century.California: University of California Press, 1995.
quantidade de pedágio recolhido23. A demanda pelos estabelecimentos comerciais
evidenciam seus desejos pelo fim de restrições aos horários de funcionamento impostos
por toques de recolher ou outras formas mais arcaicas de se governar a noite para
expansão de atividade econômica. A iluminação ajudará assim a aburguesar a vida
noturna, à medida que traz mais pessoas para a rua por conta da crescente segurança e a
guarda noturna contribui para isso. Teatros, casas de ópera e cafés ao expandirem seus
horários de funcionamento marcam o desenvolvimento de um espaço público noturno
aristocratizado, ao passo em que normas apropriadas de conduta se tornam mais
imperativas ao período próprio da noite, conforme elites passam a frequentá-lo24.
"Urbanidade", por sua vez, implica na procura de se ver e ser visto. Imbrica na
necessidade autoconsciente que a cidade moderna vai possuindo de se diferenciar de
localidades menores e “atrasadas”, além de competir com outras cidades. Fora isso,
configura-se como forma de valorizar espaços considerados nevrálgicos para a vida da
cidade - distritos de negócios e pontos onde pessoas ricas moravam - que se tornam as
primeiras localidades a receberem as inovações tecnológicas de iluminação e pontos
fundamentais para a crescente vida noturna. Carregada de sentido elitista,
“urbanidade”explicita a segmentação social da cidade a partir do consumo de insumos
tecnológicos, estratificando o espaço urbano entre o produtor para a nova tecnologia
energética - região onde os mais pobres moram e produz a fonte energética para a luz - e
a que é priorizada por ela, remetendo ao espaço aburguesado de sua malha. Peter Baldwin
afirma que historiadores da tecnologia não devem simplesmente acreditar que eventos
históricos acontecem puramente por conta da inovação tecnológica. É necessário levar
em conta que o uso da tecnologia intencionado por seus inventores pode ser substituído
pelos interesses de seus consumidores, adquirindo novos formatos. Determinados setores
da população possuem mais acesso à tecnologia e maior voz sobre como ela deve ser
utilizada, evidenciando como desigualdades de conhecimento, riqueza e poder ajudam a
dar forma a aplicação de qualquer nova invenção25.
23REYNOLDS, Elaine C. op. cit.p. 36. 24GÓIS, M. P. Ferreira de. “Na Calada da Noite”: Modernidade e Conservadorismo na Vida Noturna
Carioca (1760-1950). Rio de Janeiro:Espaço Aberto, vol. 5, n.2, 2015.pp. 45-60. 25BALDWIN, Peter C. op. cit. p.3.
Devemos analisar o desenvolvimento da iluminação a partir de uma perspectiva
transnacional– os desenvolvimentos tecnológicos circulam pelo oceano atlântico, ao
mesmo tempo em que sua inovação é produto de demanda crescente orientada pelo
interligamento comercial cada vez mais profundo entre as regiões por esse espaço e
influenciam cidades centrais, conectadas a esse universo.
A iluminação a gás trará um crescimento seu sem paralelos, com sua capacidade
de iluminar o espaço extremamente superior a métodos anteriores. O sentimento de
seguridade da iluminação transforma as relações do homem moderno com a cidade
noturna, o fazendo ir para a rua e estas, que antes eram desertas à noite, se convertem em
um novo espaço de sociabilidade que se torna mais difícil de controlar e exige maior
vigilância. Esse novo ambiente criará a maior preocupação com a proteção da propriedade
privada, com a taxa ascendente de crimes. Contudo, a segurança não deve inibir o
desenvolvimento comercial da cidade, mas procurar novas formas de se tornar mais
eficaz. A noite se converte de espaço de repouso social para local de trabalho e extensão
da sociabilidade diurna que necessita de maior regulação pelas sociedades. Exemplo disso
é a importância crescente dos Códigos de Postura municipais como forma de se obter
maior controle e ordem sobre o espaço noturno no século XIX26.
A iluminação sobre áreas importantes da cidade impulsiona a saída de pessoas
com maior poder aquisitivo de suas casas – a expansão de cafés, restaurantes, teatros,
cabarés, casas de ópera, cassinos – propiciada pela crescente atividade econômica e maior
sentimento de segurança ocasionada pela iluminação também trará a esses espaços
normas de condutas sociais mais estritas, a fim de proteger tal lócus social de práticas
consideradas imorais ou nocivas. Diz Peter Baldwin que conflitos sociais familiares,
costumes sociais e disparidades de poder persistem até mesmo após tecnologias
oferecerem possibilidades de mudanças27. A noite urbana moderna, sendo assim, deve ser
vista mais do que como uma simples extensão do dia – se transforma em um novo espaço,
26SCHMACHTENBERG, Ricardo. Código de Posturas e Regulamentos: Vigiar, Controlar e Punir.Anais
do IX Encontro Estadual de História da ANPUH-RS. Porto Alegre: ANPUH/RS, 2008. Disponível
em:http://eeh2008.anpuh-
rs.org.br/resources/content/anais/1209158027_ARQUIVO_CODIGOSDEPOSTURAS.pdf. 27BALDWIN, Peter C. op. cit. p.13.
conforme o desenvolvimento da iluminação, com sua própria agenda, regras de acesso e
códigos de comportamento.
Conforme a noite vai se tornando mais difícil de governar pela crescente vida
noturna propiciada pela iluminação e o crime vai aumentando, as antigas formas de
atuação da guarda noturna já não servem mais. Há a necessidade cada vez maior de se
especializá-la, tirando seu controle do âmbito local para o Estado central. A reforma das
guardas marca sua passagem para as modernas polícias, com regulamentos comuns, como
os trabalhos de Reynolds e Alvarado demonstram. A adoção de vestimentas uniformes,
seu comando que sai das autoridades locais para o governo central, maior
disciplinarização dos vigilantes noturnos, critérios mais seletivos para seu recrutamento -
como idade, condicionamento físico -, aumento de salários e melhoria da infraestrutura,
etc., mostra como a guarda vai virando, na Inglaterra, a polícia metropolitana, enquanto
no Chile vai sendo incorporada ao comando central da polícia, evidenciando a procura de
controle sobre espaços noturnos que se expandiam.
A transformação das cidades em cidades modernas marcam novas formas de se
lidar com a noite e experiências que são compartilhadas a níveis globais, e não restritas a
particularidades nacionais. A guarda noturna que surge no Rio de Janeiro não é então uma
construção tipicamente carioca, uma experiência particular à capital brasileira na época,
mas um fenômeno com implicações antigas e que vai se remodelando à medida que novos
desafios surgem.
3. A Vida Noturna Carioca
Pensando no Rio como cidade portuária conectada ao universo atlântico e
interligada à circulação nesse ambiente, sua história não está dissociada da experiência
histórica do universo atlântico.
Até 1854, a capital apresentava uma iluminação de aspectos pré-industriais. A
iluminação da cidade, no final do século XVIII era feita especialmente através de
candeeiros de óleo de baleia ou vela de cera28. A primeira preocupação com a iluminação,
de caráter público, veio no governo do vice-rei Conde de Rezende, ainda em 1794, se
estendendo nos vice-reinados posteriores e adquirindo maior importância com a vinda da
família real, em 1808. A iluminação, em seu começo, era restrita ao Centro, associada às
preocupações com a segurança da família real e da Corte, estando a encargo do Intendente
Geral de Polícia, responsável também por outras tarefas de administração urbana, como
arruamentos.
Amy Chazkel apresenta como as autoridades procuravam regulamentar a vida
noturna antes dela ganhar maior impulso na capital, no século XIX, seguindo a lógica do
toque de recolher – o toque de Aragão, surgido em 1825– que limitava a circulação e
reunião de certos grupos cariocas no período da noite e durou cinqüenta e três anos29.
Começava ao por do sol, após seis e meia da tarde e se aplicava principalmente sobre
marinheiros e escravos como pena por estarem nas ruas fora da hora. Novas regras dadas
ao toque em 1858 procuraram reforçar as exigências de se fechar estabelecimentos como
tavernas e botequins após as dez da noite, ao passo em que reforçam a presunção das que
andassem na rua como criminosas. O toque evidenciava garantias de direitos como tendo
critérios raciais influenciando sua efetuação, uma vez que priorizava a restrição do
movimento de pessoas de cor, eximindo pessoas abastadas de pele mais clara. A
iluminação surgia repetidamente nos documentos policiais como necessidade para se
estabelecer maior segurança e tranqüilidade pública. A noite era um período no qual o
poder legal de policiais era ampliado e fortalecido para prender pessoas que se
encontrassem na rua durante a imposição do toque.
Todavia, a situação mudaria. Em 1851, o barão de Mauá conseguia firmar um
acordo com o governo para um monopólio sobre o incremento da iluminação a gás desde
o bairro de Botafogo até o Valongo. Um ano depois, ele formava a Companhia da
Iluminação a Gás e começava a árdua construção do edifício da fábrica de produção de
gás. Em 1854 eram instaladas as primeiras luminárias a gás de hulha, processo que só
28DUNLOP, C. J. Subsídios para a História do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Imperial Novo Milênio,
1957. 29CHAZKEL, Amy. op. cit.
ganhou crescente expansão e se focou principalmente nas áreas nobres do centro, com as
regiões periféricas sendo iluminadas por gás globe, de óleo de nafta e pior qualidade.
Pelo final do século XIX, as notícias sobre a vida noturna da capital pelos jornais
começam a surgir. A importação de costumes europeus para a sociabilidade, como a moda
parisiense, promoção de peças de teatro, recitais de operas para a noite foram sendo
retratadas pela mídia. Marcam a procura de uma sociabilidade cosmopolita e que atende
às demandas do comercio, que procura expandir seu horário de funcionamento e lucro.
Além disso, abarca experiências de europeus que, com a imigração no final do XIX para
o Brasil, traziam consigo costumes de experimentar a noite como período de lazer, sendo
responsáveis pela abertura de cafés ao modelo francês, cabarés, estalagens e pensões. À
esse movimento de pessoas podemos associar o caráter de hibridismo que a noite no Rio
adquiriu. Em regiões como a Lapa, muitos desses imigrantes fundarão estabelecimentos
noturnos, a exemplo de restaurantes e cabarés de ar mais europeizado e pensões que
formarão a vida noturna do bairro. Essa forma de se viver em noite aos moldes europeus
evidencia a procura do Brasil em ser inserido como uma nação cosmopolita e civilizada,
com seus hábitos e costumes equiparados aos de países que eram vistos como modelos
civilizacionais. Marca, assim, a aristocratização da noite carioca.
Concomitantemente, o processo de fragmentação espacial que a iluminação
proporciona à cidade moderna é comum ao Rio, onde vemos áreas como rua do Ouvidor,
largo do Rócio cada vez mais freqüentadas por um público seleto ao mesmo passo de que
eram bem iluminadas, e em contraposição, áreas mais escuras como a Gamboa ou Saúde
que ficavam sobre a vigilância policial para silenciamento de outras atividades que regiam
a dinâmica noturna, mas não eram noticiadas pelos jornais, como rodas de capoeira e
jongo. Primeiros bailes de carnaval eram organizados em clubes e teatros, cordões e
ranchos promoviam ocupações no centro da cidade, inaugurando a tradição que seria
depois traduzida nos blocos carnavalescos30. Os bailes poderiam ocorrer na rua conforme
a noite, mas eram objetos de vigilância estrita por parte da polícia. Marcos Góis diferencia
a vida noturna entre a caracterizada pelo lazer “médio” - dos funcionários públicos,
pequenos empresários urbanos, da elite rural que vivia na capital, visitantes da cidade e
30GÓIS, M. P. Ferreira de. op. cit. p. 57.
comerciários, concentrada nos teatros, cinemas, cafés, clubes e restaurantes da Praça
Tiradentes e do entorno da Praça Floriano, apresentando-se como lazer familiar– e o lazer
dos trabalhadores autônomos, pequenos empresários, visitantes solteiros, jovens
empreendedores, músicos, bailarinas, imigrantes pobres, contraventores, que acontecia
na região da Lapa, zona portuária, Praça Onze em cabarés, opiários, gafieira, clubes e
bares31.
Conforme a preocupação com o crime ascendente na cidade e a demanda
comercial gradativamente lutando pelo fim das imposições do toque de Aragão para a
extensão de seus funcionamentos com o crescimento da vida noturna e sua gradativa
comercialização, as autoridades teriam de encontrar outra forma de controle sobre os
espaços durante a noite. O aparato jurídico para definir a noite como perigosa não entra
em sincronismo com o ritmo das mudanças tecnológicas. Contudo, o desenvolvimento
comercial urbano não podia ser negligenciado ou interrompido. A polícia não dava conta
do patrulhamento pelas ruas, pois, pela argumentação dos próprios policiais, por não
possuir suficiente para isso. Surge assim a necessidade da guarda noturna no Rio de
Janeiro e a primeira surge na freguesia da Candelária.
A Guarda Noturna da Candelária foi fundada em 11 de novembro de 1889, quatro
dias antes da República, sendo obra dos esforços do comendador Antonio de Castilho
Maia, que era também subdelegado da circunscrição policial local e presidente da Junta
Comercial da capital. Vindo de família do Rio Grande do Sul, Antonio de Castilho tornou-
se um importante comerciante na cidade do Rio no final do século XIX. Uma de suas
atuações que chama a atenção foi a posição de diretor e agente geral de uma companhia
de seguros terrestres e marítimos chamada “Lealdade”, encarregada de assegurar prédios,
móveis, navios, carregamentos, estabelecimentos industriais e comerciais, o que
demonstra como já tinha experiência e preocupação na prática da defesa de propriedade
individual. Além disso, fora reservista da Guarda Nacional, grupo que tradicionalmente
era relacionado à manutenção da ordem pública e de caráter cívico, elemento que seria
também fundamental como característico da Guarda Noturna. Como empregado da
polícia na época de criação da guarda na Candelária, estava ciente das limitações sobre a
31Ibidem. p. 59.
capacidade policial de patrulhamento sobre as ruas, reiteradamente expostas pelos jornais
à população da capital.
Atuando na freguesia da Candelária, Maia reuniu cerca de cinqüenta dos
principais comerciantes da freguesia para assinaturas de apoio ao seu projeto, entregue ao
Ministério da Justiça. A Guarda Noturna da Candelária foi criada com o propósito de
proteger a propriedade de seus contribuintes – comerciantes e banqueiros que aferiam ao
grupo um sistema de financiamento privado. Inicialmente teve como presidente o
comendador Antonio de Castilho Maia, tendo também um tesoureiro com suplente e um
comandante responsável pelo grupo de vigilantes32. Aos contribuintes da guarda era dado
o direito de formarem uma assembléia para eleição dos responsáveis pela sua
administração.
O regulamento inicial sobre a Guarda Noturna desta freguesia destacava que seria
sustentada pelos comerciantes da região através de quantia mensal para o zelo da
propriedade privada na freguesia33. Esta era dividida em dezesseis quarteirões, onde em
cada um haveria pelo menos um guarda para ronda, podendo esse número ser aumentado
em caso de necessidade. Os vigilantes rondavam alternadamente, cabendo a cada um,
patrulhas de quinze noites por mês e eram obrigados, no final do trabalho às cinco da
manhã, a relatarem as ocorrências ao subdelegado da circunscrição. Adquiriam direito à
gratificação sobre o salário sempre que efetuassem prisão de gatunos em flagrante e eram
multados quando fossem encontrados dormindo ou cometendo outro fato culposo,
podendo até serem demitidos. Deveriam apresentar-se fardados na delegacia do distrito –
o fardamento era distribuído pela polícia – às sete horas da noite para instruções. Apesar
da noite ser vista como um período de aumento do poder legal policial, o regulamento,
inicialmente, demarcava restrições à capacidade punitiva dos guardas noturnos, que
poderiam só prender uma pessoa através de autorização do subdelegado a quem
respondiam. Isso mudaria no início do século XX - o regulamento geral das guardas
noturnas especificava pelo parágrafo quarto do artigo 31 (deveres dos vigilantes noturnos)
32 O Paiz. "Guarda Cívica". 30 de agosto de 1889 33Ibidem.
que poderia ser preso imediatamente quem fosse encontrado cometendo os crimes
estabelecidos pelo estatuto34.
Os quarteirões vigiados não poderiam ser abandonados de vigilância e os guardas
eram autorizados a usar seus apitos para pedir auxilio de policiais que estivessem em
ronda, além de poderem auxiliar companheiros caso seu quarteirão encontrasse ainda um
vigilante nele presente. Funcionavam assim como os olhos e ouvidos das autoridades
diante da escuridão noturna. Os armamentos também eram dados pela polícia e caso o
vigilante noturno se desligasse da instituição em menos de seis meses de serviço, deveria
indenizar o cofre da Guarda com o preço do fardamento e devolução do armamento,
geralmente resumidos a terçados, que evoluíram mais tarde para sabres e revólveres. Por
fim, não podemos deixar de citar a utilização de lanternas para ruas que ainda não
tivessem boa iluminação.
Um estudo sobre a documentação policial da guarda presente no Arquivo
Nacional revela funções da guarda carioca35: perseguição a gatunos, vigilância sobre
suspeitos de gatunagem, averiguações a procura de instrumentos utilizados para crime,
controle sobre desordens, vadios, bêbados e prostitutas; prevenir tentativas de assassinato,
agressão, roubos, furtos, ofensa à moral, crime contra a propriedade, tentativas de rapto,
infrações de postura; auxiliar menores abandonados e acidentados; chamar por médicos
e parteiras; procurar por portas e janelas abertas e, caso a encontrasse, vigiar o recinto até
o dono aparecer; coleta de objetos abandonados ou perdidos pelas ruas; alertar sobre
princípios de incêndio e procurar por possíveis casos de pessoas com insanidade mental
que vagassem pelas ruas. Cabia, além disso, a um guarda noturno a fiscalização sobre a
iluminação pública nas ruas, para ver se estavam funcionando de maneira apropriada,
determinar o fechamento às dez horas da noite de tavernas, botequins, casas de pasto, etc.
que não tivessem licença para funcionar depois de tal horário - evidenciando assim
aspectos do Toque de Aragão que ainda eram retidos na imposição da lei -; o poder de
interrogar indivíduos suspeitos próximos a habitações e seu deslocamento para
34 Revista Boletim Policial. "Instruções regulamentares do serviço das guardas de vigilantes nocturnos".
março de 1908, n. 11. p. 6. 35 AN. Fundo GIFI 6C 161. Estatística dos Serviços das Guardas Noturnas (1904).
delegacias, caso suas explicações não fossem satisfatórias, dar conhecimento ao delegado
da polícia sobre ajuntamentos ilícitos ou sociedades suspeitas em seu bairro patrulhado.
As funções da guarda evidenciam características semelhantes a seus pares localizados em
outros países. Reverberam uma preocupação sobre problemas comuns que regiam a noite
na mentalidade das autoridades de distintos países e dão continuidade a uma preocupação
sobre a circulação social no período da noite.
A observância sobre o regulamento da guarda noturna explicita um estrito código
de conduta moral do vigilante, que tinha sido implementado tanto na night watch britânica
quanto nos serenos hispano-americanos. Deveriam os guardas permanecerem atentos,
não podendo conversar, sentar, dormir ou tomar bebidas alcoólicas durante o serviço.
Deveriam tratar as pessoas a quem se dirigissem com urbanidade, sendo retrato encarnado
de um grupo policial cívico e profissional36.
Em junho de 1885, já tinha sido proposta a criação de uma guarda noturna por
Alfredo Camarate, jornalista do Jornal do Commercio37. Porém a iniciativa demoraria
quatro anos até ser efetivamente implementada. Uma das razões pode ser em função do
forte debate acerca de sua falta de constitucionalidade – já que se constituía em um grupo
privado -, vista com maus olhos por senadores da capital, que a interligavam a uma falta
de legitimidade para atuação, como Silveira da Motta38. Outro ponto desfavorável foi a
associação de grupos privados urbanos de policiamento à arbitrariedade e violência de
grupos de capangas privados de fazendeiros, que agiam como capitães do mato em época
de pleno movimento abolicionista39. Até mesmo antes de 1885, já se debatia nos jornais
a necessidade de se criar um policiamento noturno na cidade e demonstrava-se uma
preocupação com a crescente violência noturna. Em 1859, apenas cinco anos após a
primeira iluminação a gás na cidade, saia n’O Correio Mercantil uma notícia pedindo por
rondas policiais noturnas40. Salientava que a cidade do Rio de Janeiro sofria inchaço pelo
aumento de imigrantes, além do aumento preço dos alimentos e aluguéis estar
36 Revista Boletim Policial. op. cit. 37 Jornal do Commercio. "A Guarda noturna". 9 de agosto de 1885. 38 Ibidem. 39 Ibidem. 40 Correio Mercantil. "Relatório de 1859 - ronda noturna". 16 de outubro de 1859.
influenciando o crescimento dos crimes contra a propriedade. O autor da nota ressaltava
que o serviço de rondas noturnas era de natureza especialíssima, de prevenção ao crime,
defendendo que homens especializados e com conhecimentos sobre indivíduos suspeitos
participassem das patrulhas noturnas, em detrimento de um corpo de policiais militares.
A atuação da Guarda Noturna da Candelária rendeu efeitos positivos em seus
primeiros anos, sendo elogiada. Nas primeiras décadas do século XX, ela ainda mantinha-
se prestativa, na visão dos jornais, sendo a mais elogiosa das guardas noturnas. Sua
experiência positiva influenciou na expansão dos grupos pela capital e na última década
do século XIX já temos a proliferação de guardas noturnas em outras freguesias, como
São José, Sacramento, Sant'Anna, entre outros. O inicio de atuação das guardas noturnas
no Rio de Janeiro encontra uma forma de atuação desuniforme - embora os regulamentos
particulares de cada guarda ainda seguissem os pontos abordados no original da
Candelária, aspectos pormenores encontravam variáveis, como o horário de ronda que
poderia variar, assim como o fardamento ou número mínimo de vigilantes necessários. O
começo do século XX marca em sua primeira década a tentativa policial de uniformizar
o serviço e procura por subordiná-lo à maiores influências do chefe de polícia,
exemplificado pela criação de um regulamento comum às guardas noturnas pelo chefe de
polícia Enéas Galvão no ano de 190041 .
Que vida noturna era essa que a Guarda Noturna deveria tentar controlar? O Rio
de Janeiro começou a ter uma noite cada vez mais agitada com o desenvolvimento da
iluminação pública a partir do século XIX, tendo a guarda noturna surgindo na capital
praticamente na sua última década, atuando principalmente ao longo do século XX.
Um dos melhores lugares para contar um pouco dessa história se concentra na
região da Lapa, que virou retrato representativo da noite carioca no início do século XX..
A região lapiana remete à carioquice e a cultura da cidade, principalmente a partir da
leitura de crônicas memorialísticas saudosistas sobre a região. Sua vida boemia, com seus
cabarés e bordéis, a presença de rodas de samba, a figura de importantes malandros, como
Camisa Preta, Meia-Noite, Alice Cara-de-Cavalo e Madame Satã remetem a uma história
41 A Notícia. 1 de setembro de 1900. p.2.
que se molda aos contornos nacionais e a experiências de caráter local. Visto como local
representativo da cultura noturna do Rio, a Lapa, principalmente nas décadas de 20 e 30
se consolidou como local central de vida noturna que teve sua fama construída a partir da
experiência de intelectuais boêmios no bairro. Alessa Patrícia da Silva demonstra como
a boemia se constitui em uma crítica ao modo burguês de ser e representava um confronto
contra a uniformidade de costumes burgueses, que desdenhava da estabilidade burguesa
e afrontava aspectos de seu costume42. Sua forma de viver encarnava desapego pelo
dinheiro e conforto e se relacionava à música, orgias, poesias ao amor. O boêmio
representava o ócio em detrimento ao trabalho. No Brasil, adquirem um caráter ambíguo,
pois são representados principalmente como pertencentes aos estratos burgueses, mas que
de noite atuam como boêmios. Pensar na construção identitária da Lapa e seus
simbolismos é também atentar que seu imaginário foi produzido por muitos desses
intelectuais boêmios que o freqüentavam. Um deles foi Luis Martins.
Martins foi um dos importantes cronistas, jornalistas e intelectuais que iam à
região da Lapa. Em seu romance Noturno da Lapa43, o cronista relembra suas
peregrinações pelo bairro à noite e conversas com amigos em restaurantes da região. Suas
reconstruções memorialísticas associam o bairro à boemia, principalmente a prostituição,
com seu convívio com meretrizes e observação sobre a degradação física e espiritual que
a prostituição trazia sobre suas praticantes. É interessante observarmos a associação que
o autor faz ao bairro: o descreve como tendo uma noite que reflete a alma da cidade44,
reforçando essa imagem ao longo de sua narrativa. Falar de seu retorno ao Rio, quando
estivera morando em São Paulo, era falar de sua volta à Lapa. A vida noturna do local é
grudada à concepção da cidade na mente de Martins. Ele apresenta ao leitor uma Lapa de
dois aspectos: a pública, evidentemente urbana, com seu comércio, lojas, restaurantes,
bares e cabarés, intensamente iluminada, saturada por trânsito de veículos e uma outra,
que se encontra escondida, suburbana, que se constrói pelas ruelas escuras próximas à
entrada para Santa Teresa, onde ficavam as pensões45.
42SILVA, Alessandra Patrícia Dias da. O imaginário da Lapa: Apogeu, decadência e reconstrução.
Dissertação (mestrado) – Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: 2014. 43MARTINS, Luís. Noturno da Lapa (romance). 4ª Ed. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 2015. 44Ibidem. p. 116. 45Idem. Noturno da Lapa (memórias). 6ªed. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 2015.p. 234.
Por entre drinques com seus amigos, o autor narra suas aventuras desde a vida de
estudante, passando por momentos de euforia e de crise, como a procura por um trabalho
de jornalista quando estava vivendo em situação financeira precária. Ao narrar a Lapa de
outrora, a descreve como “Montmartre dos Trópicos”, remetendo-a a uma imagem
boêmia, local geralmente relacionado a vícios e marginalização, mas Martins procura
fugir desse espectro, defendendo uma Lapa onde intelectuais freqüentavam seus bares,
terreno da poesia e literatura, onde boêmios saiam à rua para recitar Villon, Baudelaire.
Ressalta nomes de bares importantes, como o Danúbio Azul, o Túnel da Lapa, Arraial,
Café Bahia, Café Colosso, Capela, Gruta do Frade, etc. Marca passagens de importantes
políticos pelo local. Seu discurso associa a Lapa a uma vida noturna que reúne
características da antiga cidade carioca, com suas antigas vielas imperiais, à uma
sociabilidade noturna que faz entrar em contato pessoas de diferentes classes sociais.
Em sua dissertação, da Silva mostra como a identidade da Lapa se constrói a partir
de um imaginário social boêmio, que procura aferir a vida noturna do bairro como espelho
da identidade da própria cidade46. Um exemplo que podemos elencar de seu estudo é
quando os freqüentadores do bairro, como Luis Martins, ao rememorar sobre a vida
noturna lapiana, durante a década de 60, relembram o começo de seu declínio e a erosão
de sua identidade que a caracterizara como local ímpar durante as décadas de 20 e 30.
Martins destaca que, com a Segunda Guerra Mundial, o gradativo aumento da presença
de americanos na Lapa acabou por descaracterizar a região. Afirma o autor que os
americanos “naturalmente invadiram a Lapa, enchendo de alegria, animação, movimento
e cantoria os seus bares e cabarés. Isto, porém descaracterizava, modificava, desfigurava
profundamente a fisionomia do bairro; uma Lapa ianquizada era impossível”47. O
estrangeiro representava, sob a ótica de Martins, uma invasão que alterava a imagem do
bairro e sua vida noturna, tirando dela a sua identidade carioca. Para Martins, “o que era
gostosura na boca da Lapa era justamente o dialeto carioca revisto e aumentado cada noite
pelo malandro criador de neologismos funcionais”48. O cronista enxerga o espaço noturno
do bairro como possuindo a sua construção imagética a partir de suas características
46SILVA, Alessandra Patrícia Dias da. op. cit. 47 MARTINS, Luís.Noturno da Lapa (memórias). 6ªed. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 2015 p.
247. 48Ibidem. p. 248.
locais. Era isso o que dava à Lapa e a noite carioca a sua singularidade. Na página
seguinte, destacava: “A Lapa nunca foi lugar de turista. Nas suas bibocas puxadas a
música e a chope era justamente o carioca que se entocava para encontrar a alma típica
da cidade”49. Associava um sentimento de brasilidade ao próprio bairro, que caracterizava
sua experimentação: “O malandro de camisa de seda e salto carrapeta, sombra pacífica
do antigo malandro da Lapa, capoeira e navalhista, parecia estar ali como um guarda
secreto em missão especialíssima: para defender o folclore”50. À medida que a Lapa
declinava e a vida noturna se expandia para Copacabana, Martins ressalta que a última
nada tem a ver com a primeira e não representa a noite carioca. Se Copacabana era
marcada por ser um bairro cosmopolita, igual às de outras cidades, a Lapa era, na
percepção do cronista, um local que remetia ao passado colonial da cidade, à evocação
de romances de Macedo, de serenatas boêmias que marcavam um modo de se viver a
noite especificamente local.
Esse bairro, ao mesmo tempo em que apresenta sua característica de boemia
associada a cabarés, clubes dançantes e presença de figuras importantes e intelectuais,
como Noel Rosa, Manoel Bandeira, Antonio Maria, Pixinguinha, Jorge Amado, Heitor
Villa-Lobos, concomitantemente apresenta um aspecto de marginalizado que se enraíza
no imaginário popular – local da prostituição, vícios, malandragem e contravenção. Em
sua rememoração sobre a noite na Lapa, Gasparino Damata relembra o bairro pela sua
vida noturna dissoluta51.
Em suas andanças pela rua da capital, José do Patrocínio Filho narra suas
observações sobre a Lapa da meia noite52. A noite como momento, possuía estratificações
próprias - se o seu começo, desde o por do sol até o limiar da meia noite era considerada
horário em que famílias freqüentavam teatros e restaurantes, regulado pela moralidade e
ordem; a madrugada era convertida em momento do vício e depravação, onde os cabarés
e casas do jogo substituíam os teatros, cafés, cinemas e restaurantes como fontes de
divertimento. Já nas duas primeiras décadas do século XX, José do Patrocínio relata a
49Ibidem. p. 249. 50Ibidem. 51DAMATA, Gasparino. Antologia da Lapa – vida boêmia no Rio de ontem. Rio de Janeiro: Editora
Leitura S.A, 1965. P.24 52 FILHO, José do Patrocínio. Mundo, Diabo e Carne. São Paulo: Antiqua, 2002. pp. 49-54.
ascensão da cocaína como droga que se popularizava pelos cabarés, o vício acarretado
pelo jogo, que levava à falência do trabalhador honesto, sem deixar de enfatizar o ar
cosmopolita que a noite carioca transmitia, observando a polifonia de línguas que eram
faladas nos cabarés. Cita a presença de figuras ameaçadoras nesses locais, como gatunos,
cáftens, contrabandistas e assassinos que se misturam em meio a operários e rapazolas
adolescentes, vistas como figuras ingênuas e que podem ser remodelados e influenciados
por mal hábitos. A noite, assim, se torna em espaço de tempo propício à propagação da
criminalidade a partir dos contatos que proporciona entre o mundo da ordem e da
desordem, evidenciando a porosidade existente entre ambos.
A vida noturna carioca deve ser pensada, à concepção barthiana, como composta
por fluxos culturais diversos que estruturam o seu universo simbólico, vindos de
experiências transnacionais, assim como de experiências locais – criam assim a noite que
regia a região da Lapa, polissêmica, diversificada, híbrida culturalmente, absorvendo
formas de sociabilidade que eram trazidas por imigrantes, como pensões e cabarés, assim
como clubes-dançantes, mas que ao mesmo tempo adquiria traços locais a partir da
dimensão nacional, como a presença mais tarde de alguns grupos de samba ou a atuação
de malandros, o chope que passa a se tornar uma tradição carioca, etc. Sendo assim,
devemos problematizar a ideia de uma “vida noturna carioca” e que a Lapa, representante
desta na visão de memorialistas como Luis Martíns, seja sinônimo de folclore nacional.
Sua vida noturna é indissociada da vida noturna da cidade na medida em que ela apresenta
uma série de características híbridas que demonstra a polifonia de vozes que constituíram
a sua identidade. A crônica de Gasparino Damata torna claro essa nossa ideia quando diz
que a Lapa podia ser descrita como centro da vida noturna carioca e uma “Montmartre
verde-amarelo”, sendo a mistura de uma Paris requintada com a Bahia afro-luso-
brasileira53. Demonstra, por essa observação os fluxos culturais que formavam a vida
noturna da cidade, vindos de fora e de dentro. Os cabarés afrancesados que eram famosos
no bairro demonstram, por exemplo, formas de sociabilidade - que eram representativas
de outras regiões do universo atlântico que não apenas o território carioca- que foram
instalados, muitos por europeus que vieram com a imigração, e faziam sucesso no bairro.
53DAMATA, Gasparino. op cit.
Considerações finais.
O Rio de Janeiro viu ao longo do século XIX o desenvolvimento de uma vida
noturna que seguia a tendência mundial que caracterizava as cidades modernas. Podemos
observar como a criação de sua guarda noturna carrega semelhanças com suas
predecessoras e nos expõe problemas que eram comuns ao mundo atlântico relacionados
ao controle sobre a noite por parte das autoridades. A noite, como momento distinto e de
mais enérgica participação da lei fica evidenciado pela jurisprudência que inseria o
período como agravante para crimes e a necessidade de se constituírem grupos de
vigilância privados para a proteção nas ruas. Um estudo sobre a guarda noturna revela
quais eram essas preocupações que deveriam ser combatidas e novas formas de se agir
sobre a noite. Além disso, expõe um modelo de policiamento privado funcionando
durante o período republicano, revelando formas de atuação policial que persistiram
mesmo com a construção de uma nova ordem que dizia proclamar uma ruptura com a
antiga, resultado das dificuldades policiais em controlarem uma noite que se expandia de
maneira intensa.
REFERÊNCIAS:
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