ilÍada: a estÉtica de uma guerra civilizatÓria · 2 conhecimento. e continuarão desempenhando...
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ILÍADA: A ESTÉTICA DE UMA GUERRA CIVILIZATÓRIA doi: 10.4025/XIIjeam2013.souza50
SOUZA, Ana A. Arguelho de
Que os homens fazem a sua própria história parece ser uma verdade
incontestável, mas há homens cuja participação nessa tarefa, feita só de luta, é indispensável para a definição dos caminhos a serem
trilhados pela sociedade como um todo. Pedro Alcântara Figueira
Introdução
A Ilíada pertence ao gênero epopeia, um tipo de poema de natureza épica que está
entre as mais remotas manifestações estéticas do homem. Escrita em versos, todavia, é uma
narrativa de caráter ficcional e largo fôlego. Gira em torno de assunto ilustre, sublime,
solene, especialmente vinculado a acontecimentos históricos e cometimentos bélicos. No e-
dicionário de Carlos Ceia, é a designação de origem grega para o gênero literário dedicado
a “fenómenos históricos, lendários ou míticos considerados representativos duma
cultura”. A Ilíada, de Homero, é a mais importante peça desse gênero.
Trata-se neste artigo de uma reflexão sobre essa obra, cujo objetivo é proceder à
sua análise não só porque ela é literatura fundante do caudal literário do Ocidente, no
sentido de que está na base das suas mais expressivas manifestações literárias, como
também, porque cumpre uma importante função na elucidação da sociedade grega ou
helênica, nos primórdios civilizatórios. Sua ramagem copiosa expandiu-se pelo Império
Romano, herdeiro direto da cultura grega, com a Eneida de Virgílio; passou pela Idade
Média com as canções de gesta, forma primitiva das novelas de cavalaria como A canção
de Rolando e El Cid; até chegar à Modernidade com Os lusíadas de Camões e, no Brasil,
com Uraguai de Basílio da Gama e Caramuru, de Santa Rita Durães. E é justamente isso
que lhe confere o estatuto de clássico. O clássico se define, originariamente, por ser
produção de uma determinada classe social.
Clássicas são aquelas obras de literatura, de filosofia, de política, etc., que permaneceram no tempo e continuam sendo buscadas como fontes do
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conhecimento. E continuarão desempenhando essas funções pelo fato de terem registrado com riqueza de minúcias e muita inspiração, as contradições históricas de seu tempo. Elas são produções ideológicas, pois estreitamente ligadas às classes sociais e aos interesses que delas emanam, mas são também meios privilegiados e indispensáveis para que o homem reconstitua a trajetória humana e descubra o caráter histórico de todas as coisas que produz. (ALVES, 1990, p. 112)
Nesse sentido, é fundamental que se tenha em mente o fato de que a Ilíada está remetendo o leitor
para uma sociedade de classes na qual as personagens são oriundas de uma classe social composta de uma
nobreza guerreira que, nos marcos de transição da barbárie à civilização, conduziu o processo civilizatório
(ENGELS, 2010 p. 43). Desse processo, tem-se notícia, por meio da épica de Homero, mais do que por
qualquer outra fonte. Todavia, é importante salientar que o clássico perde o caráter de classe quando por suas
qualidades estéticas ou conceituais alcança o estatuto de obra universal, servindo assim como fonte de
conhecimentos úteis ao conjunto dos homens de todos os tempos, no sentido da compreensão histórica das
questões humanas a que remete.
Mesmo considerando que as mediações estéticas ampliam o grau de distanciamento entre o literário
e o mundo real em um processo de recriação e transfiguração, essa majestosa peça literária permite uma visão
privilegiada, tanto do homem como da sociedade grega. É importante observar que nenhuma literatura, por
mais mediada esteticamente, deixa de se contaminar pelo mundo que a produziu. E é nessa circunstância,
entre a sociedade grega do mundo antigo e a mediação literária, que se pretende apreender o homem grego na
realização da vida social. Essa perspectiva de análise textual tem, como base de sustentação, teóricos que
adotam a Ciência da História, ou da totalidade, como meio de captar a singularidade do objeto no interior de
relações mais amplas e marcadas por contradições. Segundo Marx e Engels (1987, p. 24), existe uma única
ciência e esta é a ciência da história.
Todavia, é importante alertar que o rastreamento do real na literatura se dá por
pistas de larga amplitude, por índices, símbolos, mas nunca por vestígios ou provas
circunstanciais, o que não desautoriza a compreensão da sociedade por vias literárias. A
Ilíada, por exemplo, alude a uma guerra localizada na passagem da pré-história para a
história. No entanto, a engenharia do texto construído por Homero é extremamente
reveladora do tempo em que ele viveu, a Jônia do período arcaico, no qual um grande
movimento épico vai às fontes primeiras da Grécia, com o sentido de buscar nas raízes do
povo o enaltecimento da nação grega já a um bom passo do seu processo civilizatório. O
faz por meio de recursos vários: epítetos enaltecedores de uma genealogia dos guerreiros;
adjetivos indicadores de realeza, prestígio dos heróis com os deuses; descrição minuciosa
da frota de guerra, do numeroso exército, dos banquetes e jogos próprios da realeza
micenica ou aquéia.
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Narração versificada
Trata a Ilíada de episódios narrados sobre a guerra dos gregos contra o reino de
Tróia, por causa do rapto de Helena, esposa do grego Menelau, por Paris, príncipe troiano.
Anterior à formação da polis, a Grécia cantada por Homero é dividida em reinos. Na
Ilíada, o resgate de Helena constitui o mote para o tecer da trama heroica, mas as fontes
históricas dão conta da necessidade material dos gregos primitivos de proteger os reinos e
consolidar a Grécia, o que justifica uma tradição guerreira na literatura à qual recorreu
Homero e um poema no qual as lutas se colocam como matéria literária de grande
expressão. Narrado in media res, característica própria das epopeias, o poema inicia a
partir de um ponto médio do seu desenvolvimento, sendo os fatos anteriores retomados ao
longo da narrativa por meio de flash-backs. Assim, o rapto de Helena que deu início à
guerra será mencionado em algumas passagens ao longo do texto poético, sendo que o
Canto I relata acontecimentos que ocorrem já no local da guerra em andamento, no caso, a
contenda entre Aquiles e Agamenon.
Os cantos são divididos com base no modelo das letras do alfabeto que segundo
Naquet (2002, p. 19) é uma divisão tardia, “remonta à época alexandrina, provavelmente,
ao século III a. C”. Também é de Naquet a informação de que o poema foi redigido numa
língua parcialmente artificial que repousa sobre dois dialetos falados, sobretudo, na Ásia
Menor (hoje a Turquia): o jônio e o eólio. É controverso o número de versos que compõe a
Ilíada, variando os pesquisadores entre 15.000 a 25.000, distribuídos em 24 cantos. O
conjunto dos versos é precedido por um exórdio ou proêmio de abertura (preâmbulo). Construído em versos hexâmetros (versos de seis pés ou unidades rítmicas, numa sequência de três
sílabas, uma longa e duas breves, nomeada esta sequência por versos dactílicos), a musicalidade do poema é
conferida por essa organização de sílabas longas e breves. Na sua Arte Poética, Horácio ao discutir as formas
poéticas do Mundo Antigo afirma ter sido Homero quem mostrou o metro em que devem ser escritos “os
feitos dos reis e dos chefes e as tristes guerras”: o verso hexâmetro, composto de seis pés dáctilos (uma sílaba
longa e duas breves). Diz o autor que em versos desiguais (o dístico elegíaco, composto de um hexâmetro e
um pentâmetro) unidos, primeiro se inclui a lamentação, depois também a expressão de um voto atendido. E
prossegue mostrando que, todavia,
[...] os gramáticos disputam e a lide ainda está em juízo sobre quem tenha inventado os breves versos elegíacos. A raiva armou Arquíloco do
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jambo1 que lhe pertence. [...] A musa deu à lira celebrar os deuses e os filhos dos deuses...” (HORÁCIO apud TRINGALI, 1993, p. 29)
Em belíssimas passagens da sua Teoria do Romance (2000), George Lukács aponta que essa
estrutura formal versificada, própria dos poemas homéricos, é o que confere ao poema a cadência exigida
pelo caráter harmônico do mundo que representava. O autor entende o mundo grego como uma totalidade
harmônica, que supõe para o homem um longo caminho até que ele alcance a plena humanização. Dentro do
homem, no entanto, diz Lukács, não há nenhum abismo, porque a marca da civilização grega é essa unidade
presente entre o homem e o mundo. Todavia, a superioridade do mundo físico, da natureza sobre o homem
está patente na grande simbologia do Olimpo. Diz ainda esse autor que o mundo (a Grécia) é vasto e que, no
entanto, é como a própria casa, pois o fogo que arde na alma é da mesma essência que as estrelas. E que a
relação entre o mundo subjetivo e objetivo é mantida assim em equilíbrio adequado: o herói sente na exata
medida a superioridade do mundo exterior com que se defronta. (LUKÁCS: 2000, p. 25-100)
Importante é pontuar que essa ideia de uma totalidade unitária de mundo decorre dos
desdobramentos e mediações com que a arte (a literatura) grega alude a uma relação mais direta entre o
homem grego e a natureza. É um período da história em que a tecnologia não houvera se desenvolvido o
suficiente para que as mediações entre esse homem e o mundo se tornassem mais complexas.
A submissão da natureza ao homem, recém iniciando seu processo de dominá-la,
não se faz de forma tranquila, e esse processo vai se consolidar somente na modernidade,
quando a burguesia formula o conceito de livre arbítrio, e decreta que o homem é um ser
livre e dono de sua vontade (LA MIRANDOLA, 1965, p. 49). Em decorrência de que o
destino dos gregos está submetido à vontade dos deuses, assume capital importância a
figura do adivinho e os oráculos. O adivinho remonta à época trágica dos gregos, em torno
de mais ou menos dois mil e quinhentos anos a.C. e está presente na Ilíada, na figura de
Calcas, em expressivas passagens.
O termo oráculo designa tanto a resposta de uma divindade a uma consulta
formulada, quanto os santuários a que acorriam devotos para suas consultas. Constituía a
consulta oracular uma expressão da submissão dos mortais aos desígnios divinos que, no
mais das vezes, desejavam indagar sobre seu destino, para tentar fugir dele, quando não
fosse auspicioso. Essa tentativa, no entanto, revelam as literaturas antigas, redundava em
nada, já que só aos deuses pertencia o poder de mudar a direção da vida. Também as
tragédias estão permeadas por essa fatalidade do destino e pelas predições oraculares que
compõem o universo cultural do chamado Mundo Antigo.
1 Verso marcado por três pés (unidades rítmicas e melódicas) compostos de uma sílaba longa (dois tempos – subida, em grego – ársis) e uma sílaba breve (um tempo – descida, em grego – thésis). Da circunstância de a subida e a descida do ritmo ser marcada com a mão ou, sobretudo, o pé, se origina o apelativo dessas unidades melódicas.
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A filiação da Ilíada a uma tradição
A grandeza e magnitude do poema é dada não só pelos hexâmetros de largo fôlego,
mas pela tradição em que o poema vai beber. Diferente da sociedade moderna, na qual a
obra é vinculada a uma autoria individual, na literatura dos antigos, a existência de
personagens comuns perpassando por obras de diferentes autores indica uma fonte
primeira, uma tradição oral e escrita, na qual todos bebem. De modo que, diferente da
personagem moderna, concebida pelo ato criador de autoria única, as personagens das
literaturas antigas nascem nessa tradição e vão sendo apropriadas e aproveitadas em novas
versões literárias.
É o caso da Ilíada que, segundo fontes historiográficas, vai beber na tradição
consolidada no interior de um processo cultural de natureza épica que veio se forjando ao
longo do tempo e que no século VIII a. C., alcança seu apogeu com o nome de movimento
épico, no interior do qual circulava “uma série de lendas e cantos épicos, no começo,
curtos e isolados, que tinham como núcleo central o longo assédio dos navios gregos à
cidade de Tróia (D’ONOFRIO, 2004, p. 28). E que esses primeiros escritos se perderam,
ao todo ou em parte, restando a notícia de fragmentos de peças: A pequena Ilíada; A
tomada de Ílio; As amazonas.
Decorrentes dessa literatura primeira, versos épicos que enalteciam os heróis
passam a ser recitados durante celebrações patrióticas, religiosas e em banquetes, se
estendendo essa prática até os tempos de Homero. O fato é que, à época de Homero, a
lenda de Tróia já existia e a feitura da Ilíada está integrada a esse “movimento épico”. Os
escritos primordiais que teriam dado origem à Ilíada ganham sentido quando Vernant
(2002, p. 24) localiza a existência da escrita e a constituição de arquivos em todo o sistema
social de um período da Grécia, a era palaciana ou micênica, cujas dinastias aquéias são
cantadas por Homero. Esse período é assinalado pela existência de escribas responsáveis
pela implantação de métodos administrativos próprios da economia do palácio. Nesse
sentido, vê-se que, na Grécia, a palavra é cultivada desde os primórdios civilizatórios, daí a
presença de uma tradição literária, na qual Homero busca inspiração para sua literatura.
A partir desses dados, Nunes (2005, p. 37) vai dizer que a originalidade da Ilíada
reside “na nova apresentação de um assunto conhecido em que ocorriam transcrições
longas de episódios e cenas, dispostos sob nova perspectiva.” A novidade literária da
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Ilíada, desse modo, fica a cargo de sua perspectiva diferenciada, a partir da qual a
linguagem e a materialidade postas pela tradição serão re-significadas.
Esse tipo de intertextualidade diferente da moderna e que se encontra presente no
universo literário do mundo antigo deve-se à natureza mesma daquelas sociedades, nas
quais a divisão do trabalho sendo dada de forma incipiente a uma classe social específica –
o escravo – não forjara ainda o indivíduo moderno neste caso, o autor. Este é produto da
divisão manufatureira do trabalho e, por isso, só ganha expressão na sociedade do trabalho
especializado e da mercadoria. No caso das sociedades antigas, esse fator alia-se à própria
exiguidade do tempo histórico, que leva à repetição, pois em uma formação social pouco
desenvolvida pela história não há suficientes elementos para compor a matéria literária.
O proêmio é a entrada por onde o narrador anuncia o assunto e vincula sua escritura
à tradição. É a homenagem e a reverência própria dos narradores que pretendem grandeza
e grandiloquência em seus versos. Ao invocar as musas, o poeta pagaria sua dívida à
tradição e o assunto do seu canto lhe seria transmitido. Por isso, a primeira palavra anuncia
o assunto principal, o tema condutor da narrativa. Essa recorrência, então, revela a
existência de uma tradição épica, na qual essas convenções se formaram. Na Ilíada: “A ira
canta ó Musa, do Pelida Aquiles...”; na Odisseia: “O herói canta-me ó Deusa, polimorfo,
que muito viajou...”; em A pequena Ilíada: “Ilion canto e a Dardânia rica em cavalos...”
(SCHÜLLER, 2004, p. 14).
Assim, a Ilíada é o poema da ira. Da ira dos deuses, de Menelau, mas
principalmente de Aquiles, que é a ira anunciada. É ela que confere a unidade de tempo e
ação ao poema. É ela que move os acontecimentos, é ela que dá aos gregos a vitória. Mas
é, também, o poema da astúcia, da força, da coragem e de outros tantos predicados que
conferem virtuosidade ao homem grego. Curiosamente, o tema do exórdio, ou preâmbulo,
anunciado seria restrito para tratar do vasto assunto da guerra em Tróia, mas Aquiles é
figura de proa, tão exaltado pelo poeta, que precisa sair de cena para que outros guerreiros
– Ajax, Diomedes, Odisseu – ganhem visibilidade em determinados cantos, o que justifica
o exórdio sobre sua ira.
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Temporalidade e objetividade no poema
D’Onófrio (2004, p. 41) divide o poema em dois planos temporais: o de sua feitura
– plano da enunciação, da costura do aparelho formal por um narrador, no caso, Homero –
século VIII a. C; e o universo do enunciado, em que a engenharia das palavras já apresenta
o poema como uma estrutura fechada: esta é constituída pelos fatos narrados e pelas
personagens que vivem uma história ficcional, cuja ocorrência nos remete ao último
estágio da pré-história – o estado superior da barbárie, segundo Engels, (op. cit.).
Para conferir maior grau de verossimilhança do poema com a verdade histórica, o
narrador utiliza-se de técnicas e recursos que conferem distanciamento e objetividade à
narrativa. Um desses recursos é a atribuição da palavra à musa. Por esse meio, cria o
distanciamento necessário entre o tempo da enunciação e do enunciado no poema e assim
confere a verossimilhança desejada. Não bastassem os quatro séculos que separam a
enunciação do enunciado, ao conferir a narrativa à musa, o autor livra-se das prerrogativas
da onipresença incômoda em uma narrativa de fatos que transitam entre o mundo dos
deuses e dos homens. Só a musa pode transitar entre esses dois mundos, pois só ela tem
penetração no universo dos deuses.
Outro recurso é o uso da terceira pessoa para realizar as ações bélicas e heroicas, o
que confere à narrativa uma presencialidade objetiva mais do que necessária à magnitude
do poema. Schuller (2004, p. 24) diz que o tempo da ação é eloquentemente breve. Chama-
o de poema-crônica, tamanha a objetividade conferida pelo foco narrativo. Aristóteles fala
em mimeses – imitação do real. A arte imita a vida. O leitor entra na guerra como
espectador atento, acompanha de perto as contendas pessoais, as batalhas individuais e
coletivas, participa dos banquetes, faz a contagem dos navios, passa em revista os
exércitos, compartilha do sofrimento de Aquiles pela perda de Pátroclo e da dor de Príamo
pela perda de Heitor.
Acerca da cronologia que costura a trama, o marco temporal é o décimo ano de
uma guerra que durou nove. Entretanto, o tempo de ação na Ilíada perfaz
aproximadamente cinquenta dias. Sendo um poema guerreiro, a Ilíada narra lutas e
episódios relacionados à guerra. Todavia, a ação bélica se concentra em apenas quatro dias.
No tempo restante, a contagem dos navios; a revista das tropas; a narração do sonho de
Agamenon; as assembleias – dos deuses, dos aqueus; a incineração dos corpos; os
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sepultamentos de Pátroclo e Heitor e os jogos fúnebres. O motivo da guerra – o rapto de
Helena – contido em literaturas anteriores é apenas mencionado, mas não faz parte dos
acontecimentos narrados nos cinquenta dias. A história inicia com a contenda entre
Aquiles e Agamenon e se encerra com a entrega do corpo de Heitor a Príamo e o banquete
funéreo.
Espacialidade
As ações ocorrem frente aos muros de Tróia, basicamente, mas há que se
considerar em um plano igualmente relevante, no poema, os espaços que constituem a
morada dos deuses. Por meio da espacialidade objetiva e concreta, que delimita o chão das
ações bélicas, Homero confere a verossimilhança que marca os grandes épicos. Um exame
da história e da geografia da antiga Grécia é suficiente para se localizar esses espaços, o
que faz de Homero, não só um literato, mas um pesquisador. É, todavia, por meio de uma
demarcação da espacialidade mítica, que o autor constrói a unidade da ação épica aos
moldes gregos. Articulando homens e deuses, ele obtém, formalmente, a totalidade fechada
que constitui o mundo grego, de que fala Lukács em A Teoria do Romance (ano, p. 31) e
que Homero soube com tanta maestria captar: “Totalidade do ser só é possível quando tudo
já é homogêneo, antes de ser desenvolvido pelas formas. Quando as formas não são mais
uma coerção, mas somente a conscientização...”. Essa conscientização advém de algo
anterior à feitura do poema, advém de algo que está no mundo, a plena identidade entre o
homem e os deuses-natureza. Confirmam essa proximidade do homem com a natureza, as
inúmeras metáforas e comparações com plantas e animais, que perpassam todo o poema.
Personagens
As personagens construídas por Homero é que, efetivamente, conseguem fazer o
poema alçar o voo eterno através dos tempos. Também aqui ele se apoia na materialidade
da vida, ao construir, fio por fio, a tradição nobiliárquica dos heróis, seja pelo aparato de
seus trajes, pelo comportamento à mesa, pelo respeito aos rituais sagrados, pelo cultivo da
honra e da democracia e pelos epítetos que situam genealogicamente as personagens,
muito embora, afirma Schuller, (2004, p. 14), estes sejam às vezes utilizados pra satisfazer
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necessidades métricas. Aquiles é chamado por Pelida, indicando que é filho do nobre
Peleu; Agamenon e Menelau são os Atridas, filhos de Atreu e assim por diante.
Não são essas personagens, portanto, a representação de quaisquer guerreiros
bárbaros. São constituídos de uma nobreza palaciana que carrega junto com suas armas,
carros, cavalos e navios de guerra, todo um sistema social, um conjunto de valores, uma
hierarquia que sabem respeitar. É pelo comportamento desses personagens que se
apreendem os germens da verdadeira democracia grega; a noção de honra que distinguia a
nobreza grega; a educação que cultivava, mesmo nos campos de batalha, onde o guerreiro
mais velho era o instrutor do mais novo, porque detinha uma sabedoria, amealhada ao
longo de tantas lutas, que era ouvida e respeitada por todos.
Por fim, um recurso amplamente utilizado nos cantos, que além de conferir extrema
objetividade à narrativa, oferece ao leitor uma imagem precisa da classe social a que
pertencem os personagens são as descrições pormenorizadas da indumentária de guerra,
dos cavalos, dos carros e armas.
História e literatura em Homero
A Ilíada traduz a estética de uma guerra civilizatória, cuja compreensão mais
precisa impõe que se materialize o “chão” da Grécia que foi palco dessa literatura. E essa
tarefa é facilitada pelo cruzamento de dados historigráficos com os literários. A Grécia é
primeira grande civilização do Ocidente. Juntamente com Império Romano, forma o bloco
que constitui o modo de produção escravista. Segundo Giordani (2001), a Grécia, habitada,
primitivamente, por uma população autóctone, os cretenses, apresenta sucessivos períodos
históricos, determinados por constantes invasões – aqueus, jônios, eólios, dórios e persas.
O estabelecimento desses povos, ao longo dos séculos, vai consolidando o formidável
complexo civilizatório grego.
Engels como já se afirmou, localiza o período descrito por Homero na Ilíada como
o estágio superior da barbárie: “Nos poemas homéricos, principalmente na Ilíada,
encontramos a época mais florescente da barbárie” (2010, p. 43). Esse período é assinalado
na historiografia como a “idade do bronze” ou civilização micênica, formada pelo povo
aqueu ou micênico. A sociedade micênica ou aqueia está assentada sobre o trabalho de
escravos, submetidos em inúmeras e sucessivas guerras. A guerra é uma constante na
Grécia antiga e decorre da necessidade de controle e proteção dos seus territórios, como já
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afirmou anteriormente e que efetivamente justifica a existência de um poema de natureza
guerreira. Sendo a primeira sociedade ocidental a entrar no processo civilizatório sofre, em
razão disso, constantes ataques de outros povos.
Os diferentes povos mantiveram incessantes guerras pela posse dos melhores territórios e também com o objetivo do saque, pois a escravização dos prisioneiros de guerra já era uma istituição reconhecida. (ENGELS, 2010, p. 133)
Estas idéias se representam na Ilíada em situações nas quais se percebe uma
unidade dos aqueus em termos de organização e costumes enquanto, do lado de Tróia,
inúmeras tribos de fora são chamadas para ajudar os troianos em uma possível conquista da
Grécia. Esses povos, que pelas descrições de Homero se diferem em termos de língua,
organização e costumes, atestam estágios civilizatórios em graus diferenciados e conferem
sentido ao fato de que a literatura homérica se assenta no desejo de exaltar os heróis que
realizaram a defesa inconteste dos territórios gregos.
Na Ilíada, a realeza micênica, materializada no povo aqueu, constitui uma classe de
nobres que, segundo Vernant (2002), exerciam sua onipotência sem controle e limite no
recesso dos palácios. A vida social dessas tribos assentava-se em uma economia rural e
guerreira, na criação do gado e na agricultura; os ofícios especializados se definiam em
função do fornecimento de matérias-primas e encomendas de produtos elaborados. A
economia girava em torno de uma indústria de luxo, palaciana, constituída de peças de
ourivesaria, taças, tripés, caldeirões, armas trabalhadas, tapetes, tecidos bordados, como
símbolos de poder e instrumentos de prestígio pessoal. Embora Vernant afirme que todo
esse complexo da civilização micênica fora destruído pela invasão dórica, em que o
sistema palaciano desaba junto com a supremacia de um rei, essa idéia só será admissível
se entendermos que, para Vernant, há uma linha de continuidade entre a civilização
micênica e dórica, presente, por exemplo, na descrição que Homero faz, na Odisseia, do
modesto reino de Ulisses, a pequena ilha de Ítaca, que representa a manifestação de certos
aspectos da civilização micênica. A supremacia dessa realeza teria sido substituída por um
sistema social onde os Grandes se colocam igualmente no cume da hierarquia social. Na
verdade, ocorre que, observando as fontes homéricas, do ponto de vista do
desenvolvimento de forças produtivas, constata-se que a história da civilização grega se
realizou de forma diferenciada, de região para região. Esparta, reino de Agamenon, por
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exemplo, é descrita, na Odisseia, com uma suntuosidade que não está presente na modesta
Ítaca de Ulisses.
Curtis (2001) também menciona a existência, nos primórdios da Grécia, de uma
civilização micênica formada, principalmente, por cretenses e aqueus, mas se refere a um
longo e obscuro período, a partir da invasão dórica, ao cabo do qual, por volta do século
VIII a. C., teria se iniciado uma nova fase da história grega a que ele chamou arcaica e que
se estende até o início do conflito com os persas. Segundo D’Onofrio (2004), é em torno
do século VIII a. C., que nasce a escrita da Ilíada e da Odisséia de Homero, o qual teria
vivido nesse século.
O período micênico ou, segundo Engels, o estágio superior da barbárie, trata-se de
um período constituído pela construção de instrumentos de ferro aperfeiçoados; da
preparação do azeite e do vinho; do trabalho com metais, já elevados à categoria de arte; da
construção de carretas, carros de guerra, barcos com pranchas e vigas e, também, de um
trabalho arquitetônico de cidades com muralhas e torres. Nos sinais desse arsenal, também
detectados por Vernant, é possível se vislumbrar, na Ilíada, como também, em elementos
mencionados por Engels (2010, p.127-137): um lugar comum para enterrar os mortos – na
Ilíada o Hades é mencionado como esse lugar comum, destinado a todos os mortos,
indistintamente; a obrigação recíproca de prestação de socorro, defesa e apoio contra a
violência – o motivo primeiro da guerra a Tróia é o apoio buscado por Agamenon às
demais tribos aqueias para vingar a honra do irmão, Menelau, pelo rapto de Helena por
Paris, príncipe troiano; a descendência segundo o direito paterno – ao longo de toda a
Ilíada os guerreiros são nomeados e reverenciados por epítetos que situam sua genealogia
pelo lado paterno; a existência de fratrias e tribos confederadas – que na Ilíada aparecem
como unidades militares, na passagem em que Nestor aconselha Agamenon: “Distribua os
homens por tribos e por fratrias, para que a fratria preste auxílio à fratria e a tribo à tribo”;
e o Conselho, formado pelos aristocratas, que tomavam decisões em assuntos importantes,
quando não conduziam o assunto para uma assembléia do povo, soberana, na qual todos
tinham direito a falar e a decisão derradeira se tomava pela contagem das mãos levantadas
ou por aclamação. Confirma Schömann apud Engels (2010, p.134): “Quando se discute
medida que requer a cooperação do povo, jamais Homero refere qualquer meio pelo qual o
povo pudesse ser constrangido a decidir contra sua vontade”.
Engels (2010, p. 132) dirá, em relação à classe social micênica ou aqueia que
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comandou os destinos da Grécia nesse período, que ela está presente nos poemas de
Homero como as várias tribos gregas que já viviam em cidades muradas. Em relação às
suas origens, diz o autor, que o aumento da população, dos rebanhos e da agricultura,
aliado ao nascimento dos ofícios manuais fez crescer as diferenças de riqueza e com estas
o elemento aristocrático.
Também Ponce (1985, p. 36) chama a atenção para o fato de que os basileus, chefes
militares do período arcaico, ainda eram eleitos pela comunidade, mas já havia uma
tendência para que essa função fosse transmitida de pai para filho, formando assim uma
nobreza hereditária, de modo a definir o homem desse período como o de uma classe
dominante, possuidor de terras, de escravos e guerreiros, o que confirma as posições de
Curtis, Vernant e Engels, com as representações da Ilíada.
Por fim, o desfecho, que não leva em conta o destino de Paris e Helena, sugere um
tempo em que a pátria é maior que o indivíduo e atesta uma intenção clara e objetiva do
poeta: apresentar ao público uma obra grandiosa, fundada na tradição guerreira, como
instrumento para consolidar a unidade grega em torno de valores sociais civilizatórios,
infundindo no povo aqueu, por meio da figura de grandes guerreiros, em especial, de
Aquiles, a concepção desejável de homem para aquele momento da civilização ocidental. É
possível que esta seja a razão porque o poema insiste tanto na exaltação dos gregos e dilui
o valor dos troianos em atos menos valorosos. Quando coloca em cena os troianos em
disputa com os gregos será sempre destes as vantagens. Tal como os deuses do Olimpo,
também Homero teria suas predileções?
Considerações Finais
Estas reflexões pretendem apenas contribuir para colocar em uma perspectiva
histórica o fato de que a literatura, por suas medições estéticas, é reveladora da sociedade
que a produziu, ainda mais, em um tempo em que a ciência não alcançava a materialidade
da vida. Homero, de fato, existiu? Reza a tradição que ele nasceu em Esmirna, cidade
jônica, do século VIII a.C. Em assim sendo, em que medida é o autor integral da Ilíada?
São questões cujas tentativas de respostas ainda não foram e, quem sabe, nunca serão
solucionadas. Mas... que importância tem isso diante da concretude de uma obra da
envergadura da Ilíada? Tudo o que temos e o que sabemos de um tempo onde os deuses
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“habitavam entre os homens”, tudo o que temos de atestado de uma sociedade na qual
vigorava o primado do mito sobre a razão encontra-se em obras como esta. É o legado
maior da cultura ocidental, em termos estéticos, porque com beleza e magia sugere que a
construção das civilizações pelos homens não foi uma tarefa comum, mas exigiu força,
honradez e luta. Toda a formação do homem, suas necessidades e as respostas a elas, em
terra íngreme e tempos áridos são expressas em atitudes, valores e ensinamentos, que
atravessam cada página do que restou hoje de uma história de heróis.
Mito e história são as duas matérias que deram corpo ao poema. As musas e os
deuses que se repartem entre os dois lados da guerra; os heróis; as adivinhações e
predições, compondo uma superestrutura fundada em um sistema primitivo, tribal; na
divisão da terra em reinos; uma era palaciana povoada pela civilização micênica - cretenses
e aqueus, ainda na fase superior da barbárie, ainda entrando na história.
Não importa muito até onde a história termina e começa a ficção, não importa nem
mesmo se existe de fato história nessa obra. Importa que por ela ganhamos a dimensão e a
consciência de que somos seres históricos e de que construir civilizações é tarefa de gente
grande, que luta com suor, sangue lágrimas e glória. E é isso que a Ilíada nos ensina, com
suas possibilidades vastas, que abrangem o homem, a educação, os mitos e religiões, as
teogonias e cosmogonias. Que desperta em nós, ainda hoje, a necessidade de lutar por mais
civilização.
REFERÊNCIAS
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