ignácio de loyola brandão - o mistério da formiga matutina

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7/17/2019 Ignácio de Loyola Brandão - O Mistério Da Formiga Matutina http://slidepdf.com/reader/full/ignacio-de-loyola-brandao-o-misterio-da-formiga-matutina 1/3 O mistério da formiga matutina – Ignácio de Loyola Brandão Ao abrir o açucareiro, notou que estava cheio de formigas minúsculas. Malditas segundas-feiras, sempre acontece alguma coisa. De onde teriam vindo as formiguinhas, uma vez que morava no décimo oitavo andar !las estariam finalmente se modernizando, conseguindo organizar formigueiros no concreto dos edif"cios #abia, por um desses programas pseudocient"ficos de televis$o, que as formigas constituem a sociedade mais antiga e organizada do mundo. #$o assim h% séculos. &u seriam mil'nios (elo interfone interpelou o zelador, que retrucou irritado. ) *odos os apartamentos est$o reclamando+ & que posso fazer *alvez tenha um grande formigueiro aqui embaio. ) !mbaio do qu' & p%tio é cimentado, o prédio n$o tem ardim, nem um mil"metro verde. A n$o ser esses vasos com plantinhas amareladas que ninguém rega, viraram mictrios de cachorros. ) !nt$o é na garagem. /uer saber #ou zelador, n$o sou chacareiro, n$o sei nada sobre formigas, o s"ndico que chame um formigueiro. ) 0hamar um formigueiro ) 1, um técnico em formigas. !le riu, sem saber se era blague do zelador. !ssa é boa+ 2m especialista que conheça formigas em uma cidade como #$o (aulo+ 3o edif"cio de 45 andares, seis apartamentos por andar, havia dois subsolos com vagas minúsculas para os carros e uma caia-d6%gua subterr7nea. As vagas deviam parecer espaços imensos para as formiguinhas. 0omo se livram de serem esmagadas pelos pneus 0omo sobem para os apartamentos (elo elevador (elas escadas (elos condu"tes de luz, pelas paredes 8ormigas s$o pacientes e organizadas. (rimeiro, vem a comiss$o de frente, sonda o terreno e avisa 9s outras: podem subir ;% tinha visto muitas formigas pelas paredes. 0omo se mant'm *'m visgo nas patinhas !ncheu o copo de %gua, colocou açúcar, as formigas boiaram. 3$o sabem nadar. *ambém n$o afundam. <etirou-as com uma colher de café, atirou-as dentro do freezer. #eriam congeladas e no futuro, descongeladas, retomariam a vida. *inha visto um filme sobre pessoas conservadas no gelo, que eram ressuscitadas. *odavia acordavam possu"das pela maldade. =em, era apenas cinema, histrias inventadas, filmes n$o t'm import7ncia, s$o bons para nos fazer adormecer em madrugadas insones. >oltou 9 mesa para terminar o café. 2ma formiga estava parada unto 9 "cara. Devia estar escondida quando ele limpou a mesa. *omou um gole, café frio. 3$o se importou. Muitas vezes enchia o copo com gelo mo"do, colocava café e tomava com prazer. 0ostume que tinha descoberto na ?t%lia. 0hama-se granita de café. ) #aia da"+ A formiga n$o se moveu, continuou a fit%-lo. ) 3$o fique me olhando. 3$o gosto que me olhem quando estou lendo ou comendo. 3$o gosto de conversar quando n$o veo os olhos da pessoa. <iu. 2ma formiga n$o é uma pessoa. *odavia, ela pareceu entender. *alvez tenha sido o tom de voz. !le sabia que sua voz era forte. Assustadora. 3a uventude, arrancava aplausos ao cantar Torero, na pera Carmem. (oderia ter estudado canto l"rico, talvez tivesse conservado @raziela, ela gostava tanto de música. A formiga afastou-se. (equenino ponto movento-se pela mesa branca de frmica. /ue sensaç$o a mesa provoca nela A de uma plan"cie infind%vel Acho que me sentirei assim no (olo 3orte em um dia de sol. & branco infinito. @ostava de colocar-se nas situaçes dos outros. !la foi para tr%s da arra de suco. 8icou a observ%-lo partir uma fatia de queio, passar geleia no p$o e levar 9 boca. Distraiu-se comendo e quando olhou, a formiga destemida estava de novo 9 sua frente, encarando-o. ) 3$o disse para sumir !la nem piscou. =em, n$o podia ver os olhos dela. ) /uer morrer afogada como as suas companheiras Deve estar com medo de mim, pobrezinha. 0omo ser$o os meus berros em seus ouvidos minúsculos ) /uer ir para o gelo *eve certeza, a formiga moveu a cabeça em um movimento claro: n$o+ ) !nt$o, deie-me comer+ /uer comer também >ai ver é isso. /uer açúcar @eleia

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Conto do livro "O homem que odiava as segundas-feiras", de Ignácio de Loyola Brandão.

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O mistério da formiga matutina – Ignácio de Loyola Brandão

Ao abrir o açucareiro, notou que estava cheio de formigas minúsculas. Malditassegundas-feiras, sempre acontece alguma coisa. De onde teriam vindo as formiguinhas,uma vez que morava no décimo oitavo andar !las estariam finalmente semodernizando, conseguindo organizar formigueiros no concreto dos edif"cios #abia, porum desses programas pseudocient"ficos de televis$o, que as formigas constituem a

sociedade mais antiga e organizada do mundo. #$o assim h% séculos. &u seriammil'nios (elo interfone interpelou o zelador, que retrucou irritado.

) *odos os apartamentos est$o reclamando+ & que posso fazer *alvez tenha umgrande formigueiro aqui embaio.

) !mbaio do qu' & p%tio é cimentado, o prédio n$o tem ardim, nem um mil"metroverde. A n$o ser esses vasos com plantinhas amareladas que ninguém rega, virarammictrios de cachorros.

) !nt$o é na garagem. /uer saber #ou zelador, n$o sou chacareiro, n$o sei nadasobre formigas, o s"ndico que chame um formigueiro.

) 0hamar um formigueiro) 1, um técnico em formigas.!le riu, sem saber se era blague do zelador. !ssa é boa+ 2m especialista que conheça

formigas em uma cidade como #$o (aulo+ 3o edif"cio de 45 andares, seis apartamentospor andar, havia dois subsolos com vagas minúsculas para os carros e uma caia-d6%guasubterr7nea. As vagas deviam parecer espaços imensos para as formiguinhas. 0omo selivram de serem esmagadas pelos pneus 0omo sobem para os apartamentos (eloelevador (elas escadas (elos condu"tes de luz, pelas paredes 8ormigas s$o pacientes eorganizadas. (rimeiro, vem a comiss$o de frente, sonda o terreno e avisa 9s outras:podem subir ;% tinha visto muitas formigas pelas paredes. 0omo se mant'm *'m visgonas patinhas

!ncheu o copo de %gua, colocou açúcar, as formigas boiaram. 3$o sabem nadar.*ambém n$o afundam. <etirou-as com uma colher de café, atirou-as dentro do freezer.#eriam congeladas e no futuro, descongeladas, retomariam a vida. *inha visto um filmesobre pessoas conservadas no gelo, que eram ressuscitadas. *odavia acordavam

possu"das pela maldade. =em, era apenas cinema, histrias inventadas, filmes n$o t'mimport7ncia, s$o bons para nos fazer adormecer em madrugadas insones.>oltou 9 mesa para terminar o café. 2ma formiga estava parada unto 9 "cara.

Devia estar escondida quando ele limpou a mesa. *omou um gole, café frio. 3$o seimportou. Muitas vezes enchia o copo com gelo mo"do, colocava café e tomava comprazer. 0ostume que tinha descoberto na ?t%lia. 0hama-se granita de café.

) #aia da"+A formiga n$o se moveu, continuou a fit%-lo.) 3$o fique me olhando. 3$o gosto que me olhem quando estou lendo ou comendo.

3$o gosto de conversar quando n$o veo os olhos da pessoa.<iu. 2ma formiga n$o é uma pessoa. *odavia, ela pareceu entender. *alvez tenha

sido o tom de voz. !le sabia que sua voz era forte. Assustadora. 3a uventude, arrancavaaplausos ao cantar Torero, na pera Carmem. (oderia ter estudado canto l"rico, talveztivesse conservado @raziela, ela gostava tanto de música. A formiga afastou-se.(equenino ponto movento-se pela mesa branca de frmica. /ue sensaç$o a mesaprovoca nela A de uma plan"cie infind%vel Acho que me sentirei assim no (olo 3orte emum dia de sol. & branco infinito. @ostava de colocar-se nas situaçes dos outros. !la foipara tr%s da arra de suco. 8icou a observ%-lo partir uma fatia de queio, passar geleia nop$o e levar 9 boca. Distraiu-se comendo e quando olhou, a formiga destemida estava denovo 9 sua frente, encarando-o.

) 3$o disse para sumir!la nem piscou. =em, n$o podia ver os olhos dela.) /uer morrer afogada como as suas companheirasDeve estar com medo de mim, pobrezinha. 0omo ser$o os meus berros em seus

ouvidos minúsculos

) /uer ir para o gelo*eve certeza, a formiga moveu a cabeça em um movimento claro: n$o+) !nt$o, deie-me comer+ /uer comer também >ai ver é isso. /uer açúcar @eleia

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!la sinalizou outro n$o.) @eleia de frutas silvestres #abe o que s$o frutas silvestres ) 8ormigas s$o do

campo, conhecem tudo.) 3$o !nt$o, do que gostam as formigas ) De folhas, diria @raziela, cuo sonho era

morar em um s"tio, cuidar de canteiros de flores e verduras. 3o entanto ela se fora h%tanto tempo, ainda estavam na memrias suas unhas pintadas de cores violentas. *odasas quintas-feiras, ela sentava-se durante uma hora diante do espelho oval com moldura

de madeira e pintava as unhas. 0ada semana de uma cor. 0omo #allB =oCles no filmeCabaré. 3a moldura do espelho, entre bilhetes, postais, flores secas, desenhos, haviauma fotografia dela, nua. /uantas vezes, no ardim da casa em que moravam, tinhamcontemplado a fila de formigas carregando para o interior da terra folhas e gravetosdiminutos. Agora, @raziela se fora para a *oscana, deiando-o s. ! ele, por segurança,depois que a casa fora assaltada tr's vezes, viera para o apartamento.

) /uer uma folhinha *enho uma planta que me deram ontem. Algumas folhas est$oamarelando, voc' n$o vai se importar, vai >eo tantas formigas carregando folhas secas+

A formiga sinalizou outro n$o. (or um segundo, ele hesitou. ! se ela fizesse aquelegesto por instinto =em, n$o quer comer nada. >ai ver, precisa de alguma coisa. 0omodescobrir % no mundo milhes de coisas que podem ser necessidades para os outros.& que seria espec"fico para uma formiga /uais as car'ncias dela Afeto De que

maneira demonstrar afeto por uma formiga 3$o d% para passar a m$o pelas suascostas, fazer 0afuné, ela n$o pode encostar a cabeça no ombro de alguém, n$o se podeacarici%-la.

8abr"cio, o terapeuta magro, sempre de roupas pretas, que frequentava a mesmapadaria, costume t$o paulistano, diz que um dos enganos é imaginar que a falta de afetoprovoca neuroses. 3ada disso. A pris$o de ventre é a maior causa de compleos,reeiçes, traumas, distúrbios mentais. 2m homem com o intestino preso ficaenvergonhado, sente dores, peso, anda curvado, perde a postura, a autoestima se dilui,a cabeça fica nebulosa, os pensamentos n$o fluem.

) (recisa de alguma coisaA formiga fez que sim. Ah, n$o era um gesto instintivo. !stavam se comunicando.) Do qu'!la teve um gesto que pareceu interrogativo.) 3$o sabe.!la acenou afirmativamente.) 1 alguma coisa de que precisa muito#im, ela confirmou com a cabeça minúscula.) ! como saber&utra interrogaç$o.) ! se voc' aprendesse a falar @ostariaA formiga fez que sim.) (recisamos de tempo.=obagem, ela devia ter todo o tempo do mundo. & que seria o tempo para ela

/uanto dura uma formiga !le poderia aeitar as coisas. (recisava encontrar o manualque ensina 9s formigas a arte da conversaç$o com humanos. (odia, igualmente,raciocinar ao contr%rio. Aprender a l"ngua delas para se comunicar.

(ercorrendo livrarias, na porta de uma delas deu com um homem que estendeu umfolheto amarelo convidando para uma reuni$o. (roposta: etinguir as segundas-feiras./ue ideia interessante+ Até que enfim alguém pensou nisso, n$o posso me esquecer.Apanhou um pacotinho para audar na divulgaç$o. 3as estantes, encontrou manuais detodos os tipos: dietas, vencer na vida, saber liderar, piscar os olhos, administrarempresas, selecionar empregados, investir na bolsa, abrir portas, colocar o 0D noaparelho de som, obter melhores vantagens do celular, ludibriar o imposto de renda,conquistar uma mulher, fazer oraçes, lavar o rosto, virar esquinas, tornar uma mulherlouca na cama, moldar o corpo com perfeiç$o, cuidar do coraç$o, combater o estresse,combater a depress$o, depilar o corpo, cozinhar legumes, assar carnes, saber viaar e oque comprar em viagens, contemplar sem perigo os helicpteros que congestionam os

céus. 8alta aqui como viver uma segunda-feira sem neuras, pensou, percebendo que aideia do homenzinho tinha penetrado em seu subconsciente. 3$o h% uma s situaç$o na

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vida de uma pessoa que n$o sea comandada por um guia. !ceto a maneira de secomunicar com formigas.

*odas as manh$s, ela surgia na mesa do café, instalava-se perto da arra de suco.&nde se escondia !le trazia a lupa de selecionar fotografias, tinha pertencido 9 @raziela.>ia a formiga aumentada, as feiçes n"tidas.

) # tem voc' agora!la fez que sim.

) #uas companheiras morreram *odas!la fez que sim.) 8ui eu que matei 2ma parte fui eu... Mas todas...!la fez que n$o.) 8oi a dedetizaç$o?nterrogaç$o. & que é dedetizaç$o) >oc' est% s no mundo. !la sinalizou, n$o entendia a palavra s. 0omo eplicar

solid$o a uma formiga ! mundo) #abe o que é o mundo?nterrogaç$o. #úbito, passou pela cabeça dele que era dif"cil eplicar uma coisa cuo

significado ele tinha perdido. Mas houve tempo em que a gente sabia o que era o mundo,como nos situ%vamos nele, para que faz"amos as coisas.

) >ou te dizer... talvez voc' compreenda... gosto de voc'. !ntende!la acenou que sim.) >oc' gosta de mim!la confirmou. (ortanto, formigas sabem o que é gostar e n$o gostar.) Desde que voc' apareceu n$o fico lendo ornal no café da manh$ nem vou para a

televis$o assistir ao notic%rio. *enho me sentido melhor. >olto para casa sabendo quevoc' me espera, est% em alguma parte. *em esconderio, n$o é, malandrinha >ouencontrar um modo de falarmos a mesma l"ngua. /uero aprender a sua, saber como secomunica. >oc' me parece angustiada. !st% ansiosa !spera que eu aprenda uma formade conversarmos /uer me dizer uma coisa #into que precisa me dizer alguma coisa.#ou o único que pode te audar agora.

0ertas coisas ela parecia entender, outras n$o. % milhares de anos elas convivemcom os homens, captaram nossos comportamentos bvios e imut%veis como os delas.Assim, a formiga confirmou e o gesto da cabeça pareceu desanimado. !le saiu 9 procurade um especialista. 8oi ao Eoolgico, ao ?nstituto =iolgico, ao AgronFmico, telefonoupara os ornais, passou o dia nas universidades. !ra tratado como louco. G/uer falar comas formigasH, indagou um catedr%tico renomado, autor de teses internacionais. G(oisvenha c%.H Ievou-o ao fundo do departamento, ogou-o por terra, esfregou a cara dele noch$o, perto de um formigueiro. G!ntre a", talvez aprenda.H 3o trabalho, fez indagaçest"midas. 3inguém sabia nada.

3aquela segunda-feira, como fazia todas as manh$s, a formiga esperava, perto da arra. Devia gostar da cor amarela do suco de larana. (arecia abatida. 8oi ent$o queocorreu a ele que bichinhos assim ) formiga é bicho ?nseto Mam"fero ?nvertebradoMolusco ) t'm vida curta. /uanto tempo restaria a ela #e pudesse dizer quanto %viveu+

) #abe qual a sua idade!la teve um gesto interrogativo. 3$o podia saber o que é idade. 8oram os homens

que inventaram as divises de tempo, absolutamente sem sentido.) #e voc' soubesse quando nasceu e pudesse me dizer.!la, assombrada. & que é nascer & que faz uma formiga além de picar folhas e

levar ao fundo do formigueiro, servir 9 rainha, entrar nos açucareiros, mergulhar nosdoces

) #abe o que é a vida!la dez que n$o.) Morte3$o.!le ia dizer mais alguma coisa quando percebeu que a formiguinha se imobilizou

sobre a toalha branca. ?nerte. *inha se esgotado seu tempo. !ra apenas um pontinhonegro na alvura do linho. 3$o morrera, n$o sabia o que era morte. Do que precisavatanto