identidade étnica, condição marginal e papel da educação escolar na perspectiva dos ciganos...

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46 Mai/Jun/Jul/Ago 1999 Nº 11 Considerações iniciais Este artigo provém de uma pesquisa mais am- pla que trata do problema da escolarização da mi- noria étnica cigana na Espanha (Ferreira, 1997). Nela se abordou a incapacidade da escola de esti- mular situações de igualdade que colaborem com a melhoria das condições de vida dos ciganos, ana- lisando-se conteúdo e grau de êxito das políticas educacionais, bem como a implementação destas políticas pelos agentes escolares e sua aceitação no dia-a-dia da instituição. Fundamentalmente, o que está em discussão são dois temas interligados: a di- versidade cultural na escola e os processos de desi- gualdade social. Assim, se por um lado é inegável que a escola é um palco de convivência entre dife- rentes, por outro, as políticas educacionais e as prá- ticas dos agentes responsáveis por levar adiante o trabalho pedagógico dentro das instituições pos- suem um viés “monocultural” que, ao desconside- rar as especificidades culturais, termina por colo- car por terra a idéia (genérica) de que a escola pos- sa ser um instrumento de diminuição da desigual- dade social. Para possibilitar a compreensão do leitor a res- peito do caso analisado, apresentarei, na seção se- guinte, algumas informações sobre a situação dos ciganos na Espanha e de seu processo de escolari- zação. Esta apresentação será feita de forma sinté- tica, dado já haver discutido tais questões em ou- tros artigos (Ferreira, 1994; 1995; 1998, no prelo). Nas demais seções, ingressarei no recorte objeto deste texto, onde busco apresentar elementos sobre as perspectivas que tal grupo étnico tem em relação à escola, o que se justifica em virtude do pouco co- nhecimento existente a respeito. A escola e a diversidade cultural dos grupos ciganos Costuma-se dizer que os ciganos tomam da escola apenas aquela bagagem que lhes permite con- tinuar vivendo como ciganos: que querem ter um domínio mínimo da leitura, da escrita e do cálculo. Por outro lado, ante a marginalidade social e fra- casso escolar deste povo, argumenta-se que o fra- casso reflete a falta de igualdade de oportunidades que lhe atinge de maneira global. Identidade étnica, condição marginal e papel da educação escolar na perspectiva dos ciganos espanhóis Márcia Ondina Vieira Ferreira Faculdade de Educação, Universidade Federal de Pelotas Versão revisada de trabalho apresentado na XXI Reunião Anual da ANPEd, Caxambu, setembro de 1998.

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Page 1: Identidade étnica, condição marginal  e papel da educação escolar na  perspectiva dos ciganos espanhóis

46 Mai/Jun/Jul/Ago 1999 N º 11

Considerações iniciais

Este artigo provém de uma pesquisa mais am-pla que trata do problema da escolarização da mi-noria étnica cigana na Espanha (Ferreira, 1997).Nela se abordou a incapacidade da escola de esti-mular situações de igualdade que colaborem coma melhoria das condições de vida dos ciganos, ana-lisando-se conteúdo e grau de êxito das políticaseducacionais, bem como a implementação destaspolíticas pelos agentes escolares e sua aceitação nodia-a-dia da instituição. Fundamentalmente, o queestá em discussão são dois temas interligados: a di-versidade cultural na escola e os processos de desi-gualdade social. Assim, se por um lado é inegávelque a escola é um palco de convivência entre dife-rentes, por outro, as políticas educacionais e as prá-ticas dos agentes responsáveis por levar adiante otrabalho pedagógico dentro das instituições pos-suem um viés “monocultural” que, ao desconside-rar as especificidades culturais, termina por colo-car por terra a idéia (genérica) de que a escola pos-sa ser um instrumento de diminuição da desigual-dade social.

Para possibilitar a compreensão do leitor a res-peito do caso analisado, apresentarei, na seção se-guinte, algumas informações sobre a situação dosciganos na Espanha e de seu processo de escolari-zação. Esta apresentação será feita de forma sinté-tica, dado já haver discutido tais questões em ou-tros artigos (Ferreira, 1994; 1995; 1998, no prelo).Nas demais seções, ingressarei no recorte objetodeste texto, onde busco apresentar elementos sobreas perspectivas que tal grupo étnico tem em relaçãoà escola, o que se justifica em virtude do pouco co-nhecimento existente a respeito.

A escola e a diversidade culturaldos grupos ciganos

Costuma-se dizer que os ciganos tomam daescola apenas aquela bagagem que lhes permite con-tinuar vivendo como ciganos: que querem ter umdomínio mínimo da leitura, da escrita e do cálculo.Por outro lado, ante a marginalidade social e fra-casso escolar deste povo, argumenta-se que o fra-casso reflete a falta de igualdade de oportunidadesque lhe atinge de maneira global.

Identidade étnica, condição marginale papel da educação escolar naperspectiva dos ciganos espanhóis

Márcia Ondina Vieira FerreiraFaculdade de Educação, Universidade Federal de Pelotas

Versão revisada de trabalho apresentado na XXI Reunião Anual da ANPEd, Caxambu, setembro de 1998.

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De fato, a cultura tradicional dos ciganos nãonecessita da escola; ao contrário, ela pode muitasvezes ser considerada uma imposição ou uma inter-ferência em sua forma de vida. Isto é o que nos ex-plica Jean-Pierre Liégeois (1987, p. 176):

[...] dadas as modalidades de vida das popula-

ções ciganas, não foi possível até o presente estabele-

cer uma relação entre o “êxito escolar” e o “êxito

econômico” (a escolarização, tal como está concebi-

da, não fornece nenhuma qualificação para suas prá-

ticas profissionais habituais), nem entre o “êxito es-

colar” e o “êxito social” (a escolarização, por mais

longe que se chegue, não melhora o estatuto do indi-

víduo dentro de seu grupo social, já que os valores são

estranhos a este critério). Poder-se-ia inclusive dizer,

sem temor a exagerar, que, nestes dois casos, o fato

de estar escolarizado pareceu muitas vezes — e ainda

segue parecendo — como um obstáculo, como uma

perda de saber-fazer (saber negociar), por um lado, e,

por outro, uma perda de integração no grupo (de con-

vivência e de identidade). O êxito, a adaptação, a pro-

moção social estavam, em conseqüência, à margem de

todo cursus escolar e ainda hoje, aos olhos do Ciga-

no, o fracasso escolar poucas vezes tem sentido. Em

geral, é a manifestação dramática de mais uma rejei-

ção. Por que haveriam de entrar o Cigano ou o Itine-

rante num âmbito escolar se o que lhes acrescenta são,

sobretudo, dificuldades?

Poderíamos responder afirmando ser impos-sível, hoje, que o povo cigano sobreviva sem aumen-tar seu grau de escolarização, mas aí teríamos quediscutir qual educação lhes seria, com efeito, váli-da. Para o povo cigano espanhol, a educação esco-lar principiou a atingir-lhe a partir de uma óticaassimilacionista. A fase mais recente de sua integra-ção aos centros escolares começou com um convê-nio firmado entre um organismo ligado à Igreja Ca-tólica (Apostolado Gitano) e o Ministerio de Edu-cación y Ciencia, em 1978. Esperava-se que as crian-ças ciganas que freqüentassem as escuelas-puentepudessem, em breve, ocupar as classes de escolas“normalizadas”. Aquelas escolas eram chamadas de“ponte” porque serviriam para facilitar a passagem

das crianças — de uma vida sem escola, ágrafa —para as escolas comuns.

Com a aplicação, em 1986, da Ley Orgánicadel Derecho a la Educación (LODE), suspendeu-seo referido convênio, já que teve início uma integra-ção massiva das crianças desescolarizadas às esco-las, incluídas aí as ciganas. Tal processo foi funda-mentado sobre a idéia de educação compensatória.

Mas, neste ponto, já começam as dificuldadesno tratamento à diversidade cigana. Primeiro, por-que os ciganos foram enquadrados no critério maisgeral do Programa de Educación Compensatoria,que determinava as zonas mais carentes em termoseducacionais a partir do ponto de vista geográfico.Ainda que fosse real a existência de regiões do paíscom índices educativos bastante baixos, a delimi-tação geográfica não dava conta da mobilidade ter-ritorial dos ciganos, nem — como é óbvio —, desuas especificidades culturais. Da mesma forma,outro critério utilizado para especificar quem deve-ria ser atingido pela educação compensatória refe-ria-se a alunos com risco de marginalidade social,e de novo os ciganos foram subsumidos nesta idéiageneralizadora.

Em relação ao desenvolvimento do referidoPrograma, criaram-se organismos capazes de levaradiante o censo e a matrícula das crianças deses-colarizadas em nível nacional, instituindo-se, em al-guns casos, ajuda econômica às famílias que man-tivessem seus filhos nas escolas, bem como estabe-leceram-se projetos dentro dos colégios que recebes-sem estes escolares. Basicamente, neste caso, pro-fessores de apoio acompanham o processo de apren-dizagem destas crianças em classes suplementares,ainda que elas sejam matriculadas nas distintas sé-ries de acordo com sua idade cronológica.

Minha análise deste processo, fundamentadano referencial teórico que trata do tema, do estudodos resultados do Programa de Educação Compen-satória, na opinião obtida junto a distintas Associa-ções Ciganas espanholas, e em trabalho etnográficoque procurou conhecer, no cotidiano, a escolariza-ção das crianças ciganas, concluiu que tal Progra-ma está fadado ao insucesso. Em primeiro lugar

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porque o Programa não está sustentado na especi-ficidade cultural dos ciganos; ao contrário disso,relega este aspecto para o futuro, sem entender queé o reconhecimento e a valorização da cultura ci-gana na escola que poderiam permitir uma maiorfreqüência das crianças e o estímulo à melhoria dosníveis educacionais alcançados.

Em segundo lugar porque, tendo por base umateoria do déficit, pela qual os problemas de apren-dizagem são inerentes aos aprendizes, não existe umempenho conjunto do corpo docente, nas escolas,visando à melhoria do processo de aprendizagemdos escolares. A maioria do corpo docente acredi-ta que tal defasagem deve ser tratada pelos pro-fessores(as) de educação compensatória, chamadosde “professores(as) dos ciganos”. A presença dosciganos em salas de aula normalizadas não tem ne-nhum efeito sobre seu êxito escolar, de tal maneiraque o índice de estudantes que consegue concluir aeducação primária com êxito não ultrapassa a ci-fra de 2,2% (Fernández Enguita, 1996).

Em terceiro lugar porque, considerando o altograu de rejeição e, mesmo, de racismo contra osciganos na Espanha, a cultura cigana é identificadacom tudo o que há de pior em termos de hábitos ecomportamentos, de tal maneira que os docentesterminam por manifestar constantemente seu desa-grado por terem crianças desta etnia em suas salasde aula, solidificando os preconceitos já presentesnos demais alunos e acirrando os conflitos inter-étnicos.

É nesse ambiente escolar que os grupos ciga-nos, que há mais de quinhentos anos acostumaram-se a viver à margem da sociedade majoritária noterritório espanhol, de repente, foram obrigados aingressar. Voltaremos a isso mais adiante.

A contribuição da teoria a respeito dopapel da escola para a etnia cigana

Creio ser possível afirmar que ainda é inci-piente a literatura que trata, de forma incisiva, asrelações entre etnia e educação. Isto se deve, comoé sabido, a que só muito recentemente outras desi-

gualdades, além das de classe social, começaram aser consideradas como relevantes para a compreen-são das dinâmicas inerentes à escola.

Não obstante, no caso dos ciganos, superamesta lacuna os trabalhos de Teresa San Román.1 Hámais de trinta anos essa antropóloga vem se dedi-cando a compreender a cultura dos grupos ciganosespanhóis, lançando luz, inclusive, sobre a questãoeducacional. Por este motivo, nesta parte do traba-lho procurarei apresentar seus subsídios ao pro-blema, associados às contribuições analíticas de ou-tros autores. Cabe destacar que a seleção restrita deautores dá-se em função de uma abordagem que seocupa do papel da escola para os ciganos, porque,se existe bastante conhecimento sobre a instituiçãoescolar e algum sobre o povo cigano, quase nenhumhá sobre as relações entre os dois e, em especial,sobre as concepções que os ciganos têm a respeitoda escola “da maioria”.

San Román parte da tentativa de entender osprocessos de marginalização em geral, evocando aidéia de que os ciganos são um dos grupos que asofrem:

A marginalização ocorre em situações de com-

petição nas quais existem possibilidades objetivas de

que haja a suplantação de um dos competidores pelo

outro, de forma que consiste socialmente na exclusão

do marginalizado dos espaços sociais, do acesso ins-

titucionalizado aos recursos comuns ou públicos, de

forma que esse acesso é desregrado, menor, limitado

temporalmente e dependente. [...] Neste processo de

marginalização, a posição marginal resultante pode

sem dúvida supor uma solução adaptativa ou conter

aspectos adaptativos, de maneira que seria sopesada

frente às demais soluções alternativas, quando exis-

tem (San Román, 1991, p. 152).

Neste sentido, a marginalização é um caminhobastante trilhado pelos ciganos (um outro caminho

1 Cabe destacar, também, os trabalhos desenvolvidospelo Centro de Investigações Ciganas da Universidade RenéDescartes de Paris, dirigido por Jean-Pierre Liégeois.

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é o passing, o transvase de indivíduos para outrogrupo étnico). Por meio da marginalização os ciga-nos abandonam a competição e buscam nichos parapoder sobreviver, aos quais se somam o abandonode características não funcionais de sua cultura e aincorporação de elementos da cultura majoritária(San Román, 1986).

Em suma, as opções para os ciganos das gran-des cidades — a autora vem trabalhando fundamen-talmente com Madri e Barcelona2 — são a margi-nalização ou a aculturação, de tal forma que elaassim define o problema: “quando a aculturaçãonão existe, a marginalização é radical, e quandoencontramos ciganos integrados, perderam-se ascaracterísticas primordiais da identidade tradicio-nal cigana” (1984c, p. 12).

Para pôr à prova tais conclusões, San Románnecessita tomar como ponto de partida a concep-ção de inscrição étnica que defende, e aqui nos apro-ximamos do segundo tema a desenvolver nesta se-ção. Seguindo Fredrik Barth (1976), ela sustentaque, mais importante do que os conteúdos que con-formam uma determinada cultura, é a identidadeétnica que reivindica esta cultura de origem. Duran-te os processos de aculturação tais conteúdos po-dem reduzir-se ao mínimo — mas não desaparecer— e, ainda que sejam reconhecidos simplesmentecomo símbolos, garantem a inscrição no grupo, aidentidade étnica.

Tendo como marco de referência a importân-cia de reconhecer a maleabilidade dos limites cul-turais, a investigadora esclarece que a etnicidadecigana não necessariamente desaparece ante a acul-turação, mas que nem sempre esta garante uma saí-da à marginalização. Por isso, no caso do povo ci-gano, dedica-se a “estudar, em torno do fator acul-

turativo da ‘educação paya’3 [não apenas a escolar],[...] o problema da marginalização e o da acultu-ração no marco da etnicidade” (1984a, p. 45).

Como indicadores desta aculturação educa-tiva, ela destaca o nível de instrução (o mais fraco),a interiorização da cultura escrita e o interesse porinformações generalizadas.

Sua hipótese principal é que as variáveis “mar-ginalização étnica/integração social por um lado, eaculturação/cultura tradicional por outro, [...] atuamcom uma certa independência; [...] os aspectos pu-ramente educativos [...] mesmo sendo em si mesmosfatores de aculturação, não são realmente operati-vos como fatores de integração social” (1984a, p.45). Assim, é preciso conhecer as interações entrea educação paya e as relações interétnicas, tendo emvista comprovar a possibilidade de superação damarginalização.

A autora verifica que os ciganos mais acultu-rados são os que apresentam um maior interessepela educação paya. A situação contrária chamamais a atenção: só os ciganos mais fechados às re-lações interétnicas não aceitam tal educação. Logo,a existência de relações interétnicas é condição doprocesso de aculturação. Ademais, a negativa daaculturação necessária à sobrevivência reforça ascondições de marginalização social deste grupo, es-tando ligada, por exemplo, ao analfabetismo e àsocupações tipicamente ciganas (coleta de materialreciclável, venda ambulante). É uma negativa à edu-cação paya como um todo, isto é — e como já foidito —, não só em relação à escola, mas à “instru-ção, conhecimentos e orientações interiorizadasatravés da cultura escrita” e a “informação recebi-da e aceita dos meios de comunicação social” (SanRomán, 1984a, p. 45).

2 As cidades de Madri, Barcelona, Granada e Sevilhasão as de maior concentração de ciganos, vivendo quase50% deles na Província de Badajoz (Comunidade Autôno-ma de Extremadura) e na Comunidade Autônoma da An-daluzia (Calvo Buezas, 1990a) (comunidades autónomas

são divisões territoriais e políticas semelhantes aos nossosestados).

3 Payo, paya: expressão cunhada pelos ciganos espa-nhóis para referir-se aos não-ciganos, mas já de uso correntenas conversações sobre o tema das relações interétnicas entreciganos e não-ciganos. Mantém-se, aqui, o termo em seuoriginal, por sua grande capacidade de denotar o contextointerétnico ciganos/não ciganos e a identidade étnica de cadagrupo.

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Não obstante, isto não significa que a educa-ção paya sempre leve à integração social. Ao con-trário, os trabalhos da autora citada sobre os ciga-nos de Madri e Barcelona indicam que relações in-terétnicas conflituosas interferem negativamentesobre a aculturação educativa. A ocorrência de umaaculturação sem integração é grave, posto que “aaculturação não permite um passo atrás. Se as re-lações fracassam, o resultado não é um cigano rea-firmado na sua cultura, mas a anomia em relaçãoa normas e valores no plano das idéias, e acultu-ração no das expectativas, formas de fazer e dese-jos frustrados” (San Román, 1984b, p. 127).

Mas se o conflito interétnico pode dificultar ointeresse pela educação paya, este pode manter-seapesar disso. As modificações no modo de vida,provenientes de novas formas de trabalho e mora-dia, intervêm com mais força na busca de maioresníveis educativos. Quando penetramos neste assun-to, há que examinar em que medida a escola podepassar a significar a possibilidade de qualificaçãoprofissional diante da existência de novas formasde trabalho, e/ou outros interesses.

Resumindo, a promoção social dos ciganostorna-se difícil quando a existência de relações con-flituosas contribui para seu fechamento em seu mo-do de vida tradicional, mantendo-os apegados asuas ocupações típicas e cultura oral, pois prova-velmente estas características estão associadas a si-tuações de marginalidade. Mas a procura de inser-ção social é vital para os ciganos, já que só têm aperder com o isolamento, e “sempre e quando sejampossíveis as relações e não seja às custas de desa-parecer etnicamente” (San Román, 1984a, p. 117).

Abordarei, agora, o problema das conexõesentre escola e mundo do trabalho. Em sua análisesobre aquela instituição e o povo cigano, MarianoFernández Enguita (1996) destaca que existe umcerto acordo, entre interpretações de matiz distin-to, sobre o fato de que a escola oferece algum tipode formação; que se ocupa de questões cognitivase comportamentais; e que sem credenciais educati-vas o indivíduo vê suas oportunidades sociais seremreduzidas.

Entretanto, se isto tem vigência para a socie-dade majoritária, no caso dos ciganos tal padrão sealtera. Seu trabalho é realizado pelo conjunto fa-miliar, e a aprendizagem ocorre no dia-a-dia. A ca-pacitação para desenvolver múltiplas tarefas é umaexigência da revolução tecnológica e das novas for-mas de organização do trabalho, e os ciganos en-contram-se à margem destes processos. A credencialeducativa faz sentido para quem trabalha em orga-nizações, o que também não é o caso dos ciganos.Por último, a escola prepara para os rituais da fu-tura vida no trabalho, carregada de disciplina, todoo contrário do que necessitam os ciganos para exer-cerem suas atividades tradicionais.

Ainda assim, a vida cigana vem sofrendo mu-tações. Quando San Román examina os tipos deocupação dos ciganos (Giems, 1976; San Román,1976, 1980), percebe que adquire prestígio quempossui ocupações mais qualificadas: “a preferênciado cigano por ocupações em que possa agir comocigano, há que entendê-la no contexto de uma fal-ta de alternativas” (1976, p. 152).4

Além disso, é o cigano jovem “que está sendoo autor da mais importante mudança ao realizartrabalhos como assalariado, seja como pessoal qua-lificado ou não-qualificado. Os ciganos jovens sãoquem mais horas trabalham sem ter uma compen-sação econômica comparativamente forte”. Contu-

4 Voltando a Barth, é interessante destacar que talafirmação é feita em função de uma análise sobre quais ocu-pações se definem sobre a base étnica. As ocupações tradi-cionais, como a coleta de material reciclável e a venda am-bulante, são atributos (atuais) da identidade cigana. O tra-balho manual do cigano, como assalariado, não permite queestabeleça relações étnicas com os não-ciganos; não permi-te que ele demonstre sua identidade étnica. Neste sentido,torna-se preciso buscar outras formas de manifestar iden-tidade. San Román (1976, p. 153) sugere que novas agru-pações emergem para ocupar esse espaço:

“Refiro-me especialmente ao movimento religioso dos‘aleluyas’, pentecostais ciganos que se diferenciam de cató-licos e pentecostais payos; refiro-me, também, ao tímidoaparecimento de movimentos ciganos de caráter político-econômico” (Ver a próxima seção deste trabalho).

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do, “também entre a gente jovem cigana aparecemos trabalhadores mais satisfeitos: os operários qua-lificados, que se constitui numa ocupação de altoprestígio entre estes ciganos e com bons rendimen-tos” (Giems, 1976, p. 179).

Assim, ante as novas necessidades que se im-põem aos ciganos em relação à obtenção de postosde trabalho payos, a escola, como local onde se re-cebe uma formação ou credenciais educativas, co-meça a fazer sentido, principalmente para as no-vas gerações.

Esta situação traz uma série de problemas, da-do que, ao ingressar massivamente na escola, osciganos passam a receber dela uma carga de infor-mações, valores e normas muito maior do que gos-tariam, isto é, as expectativas que apresentam so-bre a escolarização diferem bastante da realidade.Poderia, aqui, discorrer sobre a incapacidade daescola de atender à diversidade, sobre o monocul-turalismo que lhe caracteriza, e sobre sua parcelade responsabilidade na produção do fracasso dosgrupos sem privilégios. Entretanto, deixando de la-do estas questões, no final desta seção vou centrar-me na opinião dos ciganos sobre a escola, aspectosobre o qual há menos contribuições.

San Román trata disso principalmente em duasinvestigações (1980, 1984a). Numa delas (1980),um trabalho escrito em 1975, analisou como as di-ferenças culturais entre não-ciganos e ciganos inter-ferem na relação que cada grupo mantém com a es-cola. Para tanto, trabalha com pais e mães do bairrode La Celsa, na zona sul de Madri, que possuía eainda possui submoradias e um grande núcleo defavelas (chamadas, na Espanha, de chabolas).

Uma das questões propostas aos habitantes deLa Celsa foi se seria adequado que fossem ciganosos docentes das crianças ciganas. A totalidade da-queles que estão de acordo com isso são não-ciga-nos, e a totalidade dos ciganos discorda. Para ela,os não-ciganos assim argumentam para não ter derelacionar-se com os ciganos, mas observemos comose combinam as justificativas.

A maioria dos ciganos pensa que os docentesnecessitam ser não-ciganos porque ciganos não sa-

beriam ensinar a ciganos, ou seja, referem-se aoconteúdo da educação. Afinal, a escola é paya: “oque estão dizendo é que para transmitir às crianças‘o seu’, não precisam da escola para nada” (1980,p. 234). Quanto aos não-ciganos, a maioria pen-sa que os docentes deveriam ser ciganos porque,assim, a infância cigana lhes respeitaria, ou seja,preocupa-se com o sistema de ensino, os valores, aautoridade.

Já entre os ciganos a questão da autoridade édiscutida baseada em argumentos muito particula-res. Quem pertence a linhagens fracas no bairro nãotrata do problema da autoridade, pois não a tem detodas as formas, voltando-se para a questão do con-teúdo do ensino. Os que são jovens e não atingirama etapa de serem reconhecidos como pessoas de res-peito destacam este aspecto, porque necessitam de-monstrar agressividade; bem como o colocam osque pertencem a grupos fortes, por não admitir opoder de outros ciganos, concluindo que docentesciganos nada saberiam ensinar a outros ciganos.5

É conveniente, ainda, mencionar outra cor-relação:

[...] a maior parte (3/4) dos ciganos que lêem e

escrevem rejeitam a possibilidade de que seus filhos

sejam ensinados por professores ciganos, argumentan-

do que os ciganos não saberiam ensinar-lhes, enquanto

cerca de 90% de quem esgrime o argumento do con-

flituoso que seria um cigano com autoridade sobre os

outros são analfabetos. Parece que aqui os ciganos

estão falando de experiência pessoal, mais do que de

outra coisa (San Román, 1980, p. 235).

Por fim, a autora chama a atenção sobre asdiferenças culturais nas respostas. Enquanto os não-ciganos ocupam-se em dar soluções para o proble-ma cigano, que na verdade se sustentam em seuspróprios valores, os ciganos não se interessam pe-los não-ciganos, tentam ver como solucionar suaspróprias dificuldades. E San Román reforça a idéiaque defende: “a união professor cigano + aluno ci-

5 Ver, também, Fernández Enguita, 1996, p. 145.

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gano, professor payo + aluno payo ou, o que é omesmo, a separação de payos e ciganos, é eviden-temente um desejo, esteja ou não justificado, payo,não-cigano” (1980, p. 236). Neste sentido, quemdeseja a convivência de payos e ciganos nas mes-mas escolas são estes últimos (1980, 1984a).

A questão da educação conjunta de payos eminorias, incluindo os ciganos, está hoje oficialmen-te superada na Espanha, dado que os colégios sãoobrigados a matricular todas as crianças. Especial-mente no caso dos ciganos, sua integração a esco-las normalizadas começa, como já fiz referência, apartir de 1986. Mas é importante ainda resgataresta questão, dado que o racismo e a rejeição aosciganos nas escolas é um fato conhecido e, maisrecentemente, comprovado por meio das pesquisasde Calvo Buezas (1989, 1990a, 1990b).

Os motivos que os ciganos dão para ir à esco-la com os payos são variados, mas denotam estedesejo de “normalizar” a vida de seus filhos; reco-nhecendo, deste modo, que a segregação em nadacolabora para seu futuro, que a adaptação é neces-sária para que não desapareçam como grupo étni-co, ou para que sobrevivam enquanto indivíduos.San Román (1984a) encontra que 96% da popu-lação cigana de Madri e 93% dos que vivem em LaPerona (Barcelona) querem que seus filhos freqüen-tem a escola junto com os não-ciganos.

Não obstante, a autora tenta conhecer aindamais as motivações dos ciganos para levarem seusfilhos às aulas, e por isso trabalha sobre três ques-tões, tanto com não-ciganos como com ciganos(1980). A primeira delas trata da importância doconhecimento da leitura e escrita e da expressão oralcorreta. A maioria dos pais e mães investigados (LaCelsa, Madri) está convencida da importância dis-so, expresso em três conjuntos de respostas: a aqui-sição de poder, a mudança de ocupação e o interessepelo saber.

Ainda que a questão da mobilidade social atin-ja a maioria dos payos e dos ciganos, “78% de quempensa que a expressão oral e escrita correta é espe-cialmente útil para adquirir poder são payos; en-quanto 3/4 de quem gostaria com isso conseguir

uma mudança benéfica de ocupação são ciganos.Por outra parte, também são ciganos 4/5 de quemaprecia sua utilidade unicamente para saber maiscoisas” (p. 241).

De acordo com seu grau de qualificação, “ostrabalhadores que não têm um ofício reconhecido,rentável ou prestigioso vêem no acesso a ele possi-bilidades de mobilidade social, enquanto aquelesque já o têm [...] tendem preferentemente a dar seuspassos para cima na manipulação de amizades edependências” (p. 241).

Mas é interessante verificar que os ciganosem geral pensam que é bom saber ler, escrever efalar corretamente simplesmente porque isto per-mite conhecer mais. Isto é especialmente chama-tivo no caso de vendedores e coletores de materialreciclável, ocupações tradicionais ciganas, para asquais, com efeito, não é necessário nenhum nívelde ensino.

A segunda questão é: “para que serviria a es-cola?” (p. 242). Aqui ocorre uma descrença na re-lação entre os conhecimentos obtidos na escola e oque chamamos de credencial educativa: diminui aporcentagem de quem espera que da escola venhamos conhecimentos que lhes ajudariam a obter umaocupação melhor.

Contudo, há um grupo de ciganos, mesmoque minoritário em relação aos pais investigados(7,5%), que espera da escola o deixar de ser ciga-nos. Isto é bastante significativo para pensar o temadas características que conformam a identidade ci-gana. Em nenhum momento da investigação os ci-ganos identificaram no conhecimento da leitura,escrita ou correção ao falar, elementos que lhes dis-tanciassem de ser ciganos, mas o identificam emoutras aspirações postas na escola: “um ofício, quenão briguem, que convivam com payos” (p. 243).

A última questão refere-se ao que, de fato, rea-liza a escola: 72% consideram que serve para queas crianças aprendam, mas metade está satisfeitacom o que aprende, e metade crê que ainda é mui-to pouco. O restante está insatisfeito: “em todo casoserve para que não andem pela rua ou, simplesmen-te, não serve para nada” (p. 243).

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Não obstante, o que quero destacar das cor-relações feitas por San Román é que a insatisfaçãodos pais, tendo em conta suas expectativas sobre aescola, é majoritária. Inclusive aqueles ciganos “queesperavam que a escola tornasse seus filhos payosdizem que não serve para nada” (p. 244). Por isso,a pesquisadora indaga “se, de fato, a educação, nes-tes níveis tão baixos, serve para algo que se relacionecom a mobilidade social” (p. 244), isto é, para quemjá está tão distante de condições de vida dignas, hámenos motivos “para esperar da educação o que,neste nível, a educação não dá” (p. 245).

Breve aproximação empíricaao problema do interesse cigano

na escola “da maioria”

As contribuições até então apresentadas le-vam-nos a refletir a respeito de duas questões prin-cipais. Primeiro, a idéia majoritária de escola nãocondiz com aquilo que é vivenciado pelos compo-nentes dos grupos ciganos. Para estes, a instituiçãonão tem serventia a partir dos múltiplos aspectosque podem ser enumerados por aqueles que defen-dem uma concepção semelhante, ainda que ampla,a respeito de seu papel: seu valor intrínseco enquan-to formadora de cidadãos aptos a ocupar seu lugarna sociedade e no mundo do trabalho.

A segunda questão evoca os direitos que gru-pos minoritários, tais como os ciganos, possam terno sentido de manter suas concepções de mundo ede socialização de seus jovens, ainda que inseridosem sociedades culturalmente diferenciadas. Estaquestão se relaciona à articulação entre diversida-de cultural e desigualdade social.

Trabalhemos, um pouco mais, essas duas ques-tões.

Na investigação que deu origem a este traba-lho, concluí que a escolarização que atualmente estáatingindo o povo cigano na Espanha — fazendoparte, ali, do chamado processo de “integração” —vem colaborando para manter sua situação de ex-clusão e desigualdade social, de tal maneira quequestiono o caráter obrigatório de uma educação

que não se compromete com seus propósitos for-mais, isto é, o alcance de parâmetros mínimos deigualdade e respeito às diferenças. Isto pode ser ob-servado na própria concepção das políticas sociaisutilizadas, de caráter compensatório e individuali-zado; nos rituais de interação, caracterizados pelafalta de estímulo à convivência solidária e à não-discriminação; na insuficiência de esforços para quea aprendizagem cognoscitiva atinja resultados sa-tisfatórios; no caráter disciplinador e punitivo daavaliação etc.

Entretanto, o desentendimento dos ciganoscom a escola parece situar-se mais além dos elemen-tos que caracterizam o sentido da educação públi-ca que almejamos para todos. Parece haver umalacuna radical entre o que a escola oferece aos ci-ganos e aquilo que estes gostariam que ali lhes ocor-resse. Não me refiro, aqui, diretamente ao fracas-so escolar, dado que, de novo, o que chamamos poreste termo não necessariamente se identifica com aidéia que eles têm sobre as funções da escola. Faloda sua aparente negativa das normas e rituais diá-rios na instituição educativa: o que captei forammetalinguagens completamente distintas, sem pos-sibilidade de diálogo. De um lado, auto-inscriçãoétnica; de outro, estigmatização.

Com efeito, em minha observação do cotidia-no de uma escola pública em Madri, percebi que ocontato dos ciganos com a escola — em geral rea-lizado pelas mães — apresenta um caráter mera-mente instrumental, voltado à solução de proble-mas imediatos e sem relação com quaisquer ques-tões de caráter pedagógico. As mães procuram aescola para tratar da documentação para obtençãode bolsas para o refeitório escolar, do absenteísmode seus filhos etc., e, em geral, porque são chama-das pela escola. Esta vem a cumprir, assim, o pa-pel de mais um organismo de assistência social.

É interessante compreender que este compor-tamento faz parte das formas de sobrevivência apre-sentadas pelos grupos ciganos. Após séculos tentan-do sobreviver às políticas da sociedade majoritária,que vão da rejeição absoluta, passando por tenta-tivas de extermínio físico e cultural e, mais recen-

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temente, por projetos assimilacionistas, os ciganosbuscam aproveitar ao máximo as concessões obti-das das políticas sociais, oferecendo o mínimo emtermos de retribuição. Além de um lugar de alimen-tação para alguns, o salário social pago pelos go-vernos às famílias mais pobres depende da freqüên-cia das crianças à escola. Neste sentido, mesmo quea instituição se revele um instrumento perigoso àidentidade cultural e, num plano mais simples, umlocal onde as crianças são levadas sem que se per-ceba a relevância imediata disso, esta é a contribui-ção que os pequenos dão para o sustento econômi-co do grupo.

Não obstante, esta estratégia não é compreen-dida pelos demais membros da comunidade esco-lar, e isto se agrava porque a maioria dessa comu-nidade é paya: são os docentes, os pais dos outrosalunos e os outros alunos. O estigma que recai so-bre os ciganos faz com que todas as suas atitudessejam interpretadas de forma negativa, como umaafronta à concepção de escola, como uma descon-sideração às concessões feitas pela sociedade a umgrupo que insiste em gerir-se pelos seus própriosvalores, e como um desperdício de dinheiro públi-co que poderia ser mais bem aproveitado.

É dessa forma, então, que se perpetua a dico-tomia citada entre autoinscrição étnica e estigmati-zação, aspecto também explorado por Teresa SanRomán, quando se refere aos problemas que o con-flito nas relações interétnicas podem trazer sobre apossibilidade de que os ciganos venham a compar-tilhar da educação paya. Isto pôde ser percebido naescola onde realizei minha pesquisa empírica. Naspoucas ocasiões em que houve espaços para a inte-ração entre distintos grupos, de tal maneira quecada um deles pudesse apresentar propostas parao funcionamento da instituição, o que ganhou des-taque foram as dificuldades de convivência inter-étnica, a partir de críticas dos não-ciganos a padrõesde comportamento “tipicamente” ciganos, e destesquerendo garantir seus padrões culturais acima dequalquer coisa.

Em suma, há muito o que debater antes queos ciganos se disponham a defender uma concep-

ção de escola, ou que consigam elaborar uma po-sição mais acabada a respeito. Antes de mais nadatemos, hoje, o conflito étnico e o status marginaldeste grupo impedindo o avanço de sua elaboraçãosobre o tema, e fazendo com que a escola represente,para o grupo, uma simples obrigação.

Ainda que com esta convicção, pareceu-meadequado não abandonar a procura de mais conhe-cimento sobre o ponto de vista dos ciganos. Tare-fa difícil, aconteceu em dois âmbitos: numa favelamadrilena conhecida por Cerro La Mica e por meiode contatos com organizações ciganas de caráternacional. Estes âmbitos são radicalmente diferen-tes, e entram em cheio na idéia já apresentada naseção passada: as relações entre marginalização,aculturação e mudança de conteúdos étnicos, ele-mentos que discutirei em seguida.

Em primeiro lugar, é preciso esclarecer queesta favela localiza-se no mesmo bairro da escolaonde foi realizada a investigação, e nela vivem al-guns dos alunos ciganos que estudam na escola. Obairro situa-se na região sul de Madri, a mais po-bre e carente em termos estruturais.

Os contatos com os habitantes de Cerro LaMica produziram-se por mediação da assistênciasocial radicada neste povoado — uma Unidad deTrabajo Social, organismo ligado ao Consorcio pa-ra el Realojamiento de la Población Marginada deMadrid.6 Esta favela é bastante grande, possuindosete “bairros” separados pela origem étnica de cadagrupo cigano, sendo que num deles convivem ciga-nos e não-ciganos. Se, como é lógico, sem esta me-diação seria praticamente impossível a obtenção deinformações, por outro lado as pessoas que conhe-ci foram selecionadas pela assistente social encar-regada de acompanhar a escolaridade das crianças,de tal maneira que a amostra foi formada por aque-les que, segundo ela, mais valor davam à educação

6 Este organismo tem como objetivo dar resposta aoproblema do crescimento das favelas na cidade de Madri,recebendo verba da Prefeitura e da Comunidade Autôno-ma de Madri.

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formal e menos problemas de convivência apresen-tavam com seus vizinhos não-ciganos.

Levando em consideração estas particulari-dades, é preciso dizer que esses adultos ciganos so-mente têm a agradecer à escola e, sob as circunstân-cias, creio que não diriam outra coisa. Mas, quan-do interrogados sobre o que gostam, eles tambémapresentam um interesse apenas instrumental, ba-seado no atendimento às suas dificuldades imedia-tas de vida. Referem-se, também, ao carinho quesuas crianças recebem do corpo docente, insistin-do em que foram bem tratados pela direção esco-lar, sempre que tiveram que comparecer aos centroseducativos por qualquer motivo. Não parecem in-clinados a fazer críticas aos docentes, ou a sugeriralgo a acrescentar à escola, relatando suas idéias,por fim, a uma mulher não-cigana. Considerandoo mencionado grau de rejeição que tem esta etniana sociedade espanhola, os argumentos utilizadospelos ciganos são compreensíveis e racionalmenteselecionados.

Entretanto, posso sugerir outra hipótese, pró-xima das apresentadas por San Román: é muitoprovável que não possamos exigir dos habitantesdestas favelas o que pode parecer-nos óbvio: que hádiferenças entre formas e conteúdos do ensino, e queestas conformam distintos tipos de aprendizagem,mais ou menos acordes com determinados interes-ses historicamente construídos. Assim, dizem os ci-ganos entrevistados, além de escrever e aprender acalcular, a escola é importante “pelas demais coisasque ensina”, sem que saibam identificar esse extra.

Quanto ao motivo pelo qual seus filhos e fi-lhas não continuam a estudar, a resposta advém desuas dificuldades econômicas: ou não têm dinhei-ro para mantê-los estudando após a escolaridadeobrigatória,7 ou os jovens precisam ajudar no sus-tento da casa, aprendendo o ofício dos pais; em

nenhum momento afirmam que o estudo seja des-necessário. Ao contrário disso, o estudo é impor-tante para “adquirir um ofício, para ser como umpayo”, “para que as crianças tenham uma vida me-lhor, não como a minha”. Ainda assim, uma dasmulheres deixou claro que isto se aplica ao caso doshomens, pois as mulheres estão obrigadas a ajudarsuas mães quando já têm idade para isso, caso con-trário talvez adquirissem maus hábitos junto aosdemais adolescentes.

Pelos estudos e análises que realizei, é possí-vel concluir que o cigano “médio”8 teme a educa-ção formal porque ela oferece perigo aos conteúdosculturais que caracterizam a etnicidade cigana. Édifícil comprovar a validez de uma instituição quepossui uma interferência tão grande sobre os hábi-tos de vida, costumes, valores e formas de comuni-cação fundamentalmente utilizados pela etnia; quecontribui pouco em termos da aprendizagem deconhecimentos socialmente úteis, a partir do refe-rencial cigano; e onde as crianças sofrem discrimi-nação e estão expostas ao racismo, tanto de formalatente quanto manifesta.

Mas, há que salientar, essa asserção é dema-siado racional para evocar o sentimento e as atitu-des de contestação que, de fato, acontecem nas es-colas. O que encontramos é mais uma “fuga” doque um enfrentamento organizado aos valores, nor-mas e conteúdos escolares. Isto porque, ao que pa-rece, a maioria das famílias ciganas está tentandoadaptar-se às exigências atuais. Como começa asurgir a convicção de que a escola é inevitável, asatitudes de contestação voltam-se mais para a ques-tão do controle escolar, sem que se negue aberta-mente a importância da instituição e sem penetrarna disputa pelo poder na mesma. O problema pas-sa a ser, então, como participar dela sem acultu-

7 Na ocasião da coleta desses dados, a obrigatorieda-de vigorava até os 14 anos de idade para aqueles que esta-vam completando o nível primário de ensino, ou EnseñanzaGeneral Básica.

8 Considerando a multiplicidade e a particularidadede cada comunidade cigana, é difícil falar a respeito de umtipo “médio” de cigano, isto é, aquele que representaria oscomportamentos do grupo ou sofreria as dinâmicas sociaismais amplas. Fernández Enguita (1995) sugere que traba-lhemos, isto sim, com a idéia do tipo extremo.

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rar-se totalmente, o que conduz à indagação sobrequal o grau de redução de conteúdos culturais queé possível suportar sem que desapareça a identida-de étnica.

Já para a sociedade não-cigana o desafio é acei-tar a cultura cigana no marco da convivência pací-fica, permitindo aos ciganos incorporar-se sem per-der sua identidade cultural, ainda que percam con-teúdo. Um incentivo para que isto aconteça é a ten-tativa de promover uma educação intercultural,com respeito à diversidade. Por fim, o desafio paraos ciganos é convencer os demais de que têm direi-to a manter-se ciganos ainda que desejem sair damarginalidade.

Aqui, podemos ingressar na perspectiva apre-sentada por outro tipo de ciganos, aqueles politi-camente atuantes na sociedade espanhola, isto é, osque participam de organizações ciganas. Ao consi-derar o aparecimento de tais sociedades, Calvo Bue-zas (1993), Liégeois (1988) e San Román (1976,1986) sublinham o surgimento de uma nova formade manifestar a identidade étnica. De um lado, essasassociações representam um gênero não tipicamen-te cigano de reunir-se, imitado do mundo “payo”;de outro, esta forma mais “elitista” parece provirda certeza de que é necessário transformar-se paranão sucumbir.

De fato, em meados deste século começam aaparecer, em várias partes do mundo, associaçõesciganas internacionais e de caráter nacional. Segun-do San Román, as associações internacionais vêm“levantando a bandeira da identidade cigana com-partilhada e reivindicando para o povo cigano umposto digno no interior da comunidade mundial,seguindo bem de perto o modelo do povo judeu emsuas reivindicações” (1986, p. 206).

Liegéois (1988) acrescenta que as Associaçõesfazem parte da atual “mutação cigana”. Ele inte-gra este conceito num contexto de mudança de pos-turas, tanto das sociedades majoritárias como dopovo cigano. Após vários tipos de políticas em re-lação aos ciganos, em geral negativas em termos doreconhecimento do seu direito à diferença, as socie-dades majoritárias estariam num momento de in-

decisão quanto a que políticas utilizar. Em relaçãoaos ciganos, “a mutação é uma mudança rápida eprofunda” (1988, p. 11). Eles vêm abandonando ainvisibilidade, que era sua alternativa à perseguição,e a segmentação em múltiplos grupos, para fazer-se presente por meio de Associações que buscamintegrar interesses comuns, atuando como gruposde pressão dentro dos Estados.

Assim, as associações instauram um poder ci-gano que surge pela convicção de que não há ou-tra forma de sobrevivência na sociedade atual. Po-dem ser identificadas como tentativas de manuten-ção da identidade com características de acultu-ração, ou seja, atualmente elas representam umaalternativa ante a necessidade de participação dosgrupos ciganos na sociedade majoritária, por meioda qual se percebe a estratégia de manter a iden-tidade étnica, reduzindo ao mínimo o conteúdocultural.

Considerando, então, a mudança que estas As-sociações significam para a vida cigana, procureiidentificar se haveria uma modificação, também, naimportância que adquiriria a escola “paya” para osciganos das organizações espanholas, concluindoque, com efeito, isto acontece. Foram quatro as so-ciedades com as quais trabalhei, selecionadas emfunção de sua presença pública, em nível nacional,e participação nos debates educativos: Asociaciónde Enseñantes con Gitanos, Asociación NacionalPresencia Gitana, Asociación Secretariado GeneralGitano e Unión Romaní, criadas, respectivamente,em 1980, 1972, 1983 e 1986.

As diferenças políticas e de forma de funcio-namento destas organizações são várias. A todas,no entanto, podem filiar-se tanto ciganos quantonão-ciganos, havendo diferenças quanto a quempode compor a direção das organizações. ApenasEnseñantes con Gitanos está voltada exclusivamen-te às questões educacionais porque, como o nomesugere, reúne professores de todas as etnias inte-ressados em discutir formas e conteúdo da educa-ção voltada aos ciganos e, também, às demais mi-norias que vivem no país. Ocupa-se de um serviçode documentação sobre educação intercultural e

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publica um boletim semestral (Boletín del Centrode Documentación de la Asociación de Enseñantescon Gitanos). As demais associações tem um im-plicação maior em defesa das condições de vida edos direitos da minoria cigana na Espanha, fazen-do parte da Comisión Representativa de las Orga-nizaciones no Gubernamentales sin Fin de Lucro deÁmbito Nacional, que atua junto ao Ministerio deAsuntos Sociales. Todas as quatro, por último, re-cebem subvenção deste ministério para realizar suasatividades.

Um dos espaços utilizados por essas organiza-ções para estimular a melhoria das condições devida do povo cigano é sua interferência sobre a ela-boração e controle das políticas educativas. Elasbuscam incidir na discussão a respeito da escolapara o povo cigano, tanto em relação à educaçãoinfanto-juvenil, quanto à voltada para a alfabetiza-ção de adultos e a promoção de cursos de forma-ção profissional. Ocupam-se, também, em formara opinião pública sobre a necessidade de tolerân-cia interétnica e de programas de apoio aos gruposmais desfavorecidos.

Não obstante, há diferenças no encaminha-mento de suas estratégias políticas quanto à esco-larização, que, em virtude do espaço de que dispo-nho, desenvolverei de forma resumida. Enseñantescon Gitanos tem apostado na produção de progra-mas de educação intercultural. Seus encontros na-cionais anuais (Jornadas de Enseñantes con Gita-nos), realizados desde 1980, possibilitam o aprofun-damento de discussões, a produção de materiais eo intercâmbio entre educadores que se ocupam dointerculturalismo, definido pelo coletivo como:

[...] uma concepção teórica e prática de caráter

universal, que está atenta à diversidade cultural de

todas as sociedades a partir dos princípios de igual-

dade, interação e transformação social.

O interculturalismo supõe uma concepção teó-

rica da realidade social e é um instrumento para a

intervenção sóciopolítica, mas também implica numa

opção ética e ideológica de caráter pessoal, uma for-

ma de entender e viver as relações sociais e, logica-

mente, uma maneira de delinear e desenvolver o fe-

nômeno educativo (Asociación de Enseñantes con Gi-

tanos, 1996, p. 4 do anexo).

A origem da Asociación Secretariado GeneralGitano está relacionada à Pastoral Cigana (Apos-tolado Gitano), às escuelas-puente e, conseqüente-mente, ao MEC (Ministerio de Educación y Cien-cia), de tal maneira que, hoje, encaminha-se prin-cipalmente a examinar os frutos do processo deescolarização desenvolvido com sua participação.Realiza estudos, desenvolve projetos, publica ma-teriais e também conta com um centro de documen-tação. Pode ser criticada por apresentar uma posi-ção que não dá conta, suficientemente, da desigualdistribuição do poder econômico, político e socialentre a sociedade majoritária e o grupo minoritário,jogando esforços, ao contrário, em tentativas deadaptação dos grupos ciganos às políticas sociaisorientadas pelos governos.

Já a Asociación Nacional Presencia Gitana ea Unión Romaní atuam tanto em nível nacional,quanto internacional, visando ao reconhecimentoda condição de nação aos ciganos.

A primeira é responsável, na Espanha, pelatradução para o espanhol do Boletín Interface e daColeção Interface de livros, publicados com o apoioda Comissão Européia pelo Centro de InvestigaçõesCiganas da Universidade René Descartes, Paris. Pormeio de tais publicações e da promoção de cursos,a associação pretende disseminar a cultura e histó-ria dos ciganos e estimular a educação e formaçãodos jovens ciganos.

Esta organização defende, também, o intercul-turalismo, apoiando outros grupos que sofrem de-sigualdade, definindo-se como “associação civil,não confessional, plurirracial, intercultural e aparti-dária” (Asociación Nacional Presencia Gitana, s.d).

A respeito do idioma cigano, Presencia Gitanaparticipa de uma equipe internacional que tentaunificá-lo, estabelecendo e codificando uma gramá-tica com o propósito de reimplantar o romani nospaíses onde a comunidade cigana está perdendo ouso da língua, como é o caso da Espanha.

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Unión Romaní está envolvida numa série deprogramas, como formação para o trabalho e dedirigentes, campanhas contra o racismo, assessoriajurídica à comunidade cigana, e publicação de vá-rios materiais e livros.

A revista trimestral I Tchatchipen (A Verda-de) é editada pelo Instituto Romanó de ServiciosSociales y Culturales, ligado à Unión Romaní. Pro-põe-se a ser uma publicação científica sobre temasciganos, ocupando-se especialmente do desenvolvi-mento do romani.

Sobre a educação formal, os ciganos de UniónRomaní a entendem como mais um meio para oalcance de um padrão de igualdade com a socieda-de majoritária; portanto, o término do analfabetis-mo, a formação profissional e os títulos universi-tários são metas educativas defendidas e pleiteadaspela associação.

Por fim, gostaria de sistematizar algumas con-clusões. Em primeiro lugar, como já foi dito, as as-sociações ciganas estudadas possuem uma posiçãoa favor de que os ciganos aproveitem as possibili-dades oferecidas pela escolarização formal, comoelemento-chave para que este povo consiga diminuirsuas taxas de desigualdade social. Mas, em segun-do lugar, quanto à avaliação das políticas educativasdesenvolvidas pela sociedade majoritária, as dife-renças aparecem fundamentalmente no grau de im-portância que cada associação concede à educaçãointercultural como meio para estimular a promo-ção social do grupo étnico estudado. Há propostasque se centram na necessidade de escolarização mas-siva, sem ingressar na questão do conteúdo da edu-cação. Há outras, por sua vez, que não entendemo sucesso desse processo sem que se enfatize umaeducação que leve em conta as particularidades dosgrupos minoritários, ao mesmo tempo em que sedivulgue a necessidade de convivência interétnica.Ainda, a defesa da educação bilíngüe se sustenta naidéia de que, por ser uma nação, o povo cigano me-rece ter seu idioma conhecido por suas crianças, oque ajudaria a garantir, finalmente, um dos elemen-tos de sua cultura à medida que a etnia amplia suaparticipação na sociedade majoritária.

Conclusões

O propósito fundamental deste artigo foi dis-cutir que significado a escolarização formal pode terpara a comunidade cigana. Partindo da experiên-cia espanhola, discorri a respeito da falta de trata-mento à diversidade cigana nas atuais políticas edu-cativas. O Programa de Educação Compensatóriautilizado foi criticado tendo em vista que, apesar dedesde o ano de 1986 vir promovendo a escolariza-ção massiva das crianças ciganas, não vem apresen-tando índices positivos de aproveitamento escolar.O principal motivo indicado para este fracasso é adesconsideração das especificidades culturais dosgrupos ciganos.

Em seguida, apresentei algumas referênciasteóricas sobre as relações entre educação e etniacigana. O problema da marginalização dos ciganosfoi colocado como central para entender o fenôme-no. Quando a escola não consegue ter um impactosignificativo sobre os interesses dos ciganos, a posi-ção marginal destes pode piorar, porque pode acon-tecer uma ampliação do fechamento dos ciganos emseu universo cultural, o que, dadas as atuais neces-sidades de aumento dos níveis educativos, agrava-ria suas precárias condições de vida. Por outro lado,é possível que se produza, também, a opção peloabandono da cultura de origem, já que a socieda-de majoritária apresenta este aspecto como condi-ção para o fim da marginalidade. Contribui, paraisso, a existência de conflito nas relações interétnicasentre ciganos e não-ciganos, forçando os primeirosa optar pelo fechamento ou pela aculturação.

Neste sentido, os ciganos encontram-se à mer-cê da escolarização que lhes é obrigada. Eles nãocompartilham da necessidade da escola como umlocal de formação de suas crianças e jovens, muitopelo contrário, mas não têm poder para reivindicaroutro tipo de educação, nem elementos para apre-sentar propostas alternativas à concepção dominan-te. Ante a discriminação que sofrem, simplesmen-te se defendem buscando sustentar os valores tra-dicionais de sua cultura.

Entretanto, o surgimento de organizações ci-

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ganas parece indicar uma alternativa em termos dadicotomia integração às custas da perda de identi-dade étnica. Elas utilizam outras formas de sobre-vivência da cultura, mesmo que isso signifique di-minuição dos conteúdos ou modificação dos valo-res culturais. A maioria delas tem claro, também,que só uma educação intercultural, voltada à valo-rização da convivência e dos valores culturais daspessoas de diferentes etnias, pode garantir o êxitodas crianças na instituição escolar.

Para concluir, gostaria de reforçar que estoude acordo com a idéia de que o perigo de acultu-ração oferecido aos ciganos é real, mas que seu in-gresso na escola não só é inevitável, quanto neces-sário para minorar o grau de desigualdade social emque estão imersos. Fundamentalmente deveríamosesperar, como afirma Fernández Enguita (1995),que haja um processo de negociação maior entre ospróprios grupos ciganos e entre estes e a sociedadecircundante, de forma a buscar uma educação for-mal mais acorde aos interesses daqueles.

Por último, parece-me oportuno divulgar ossentimentos manifestados na publicação AmaróGaó, da Asociación Gitana de Valencia, reprodu-zido no Boletín de Enseñantes con Gitanos:

Uma, outra e tantas gerações de mães e pais ci-

ganos nos reconhecemos e nos cantamos na infância

de Camarón.9 Sobreviver, brincar trabalhando, ter que

levar para casa uma parte do sustento [...] a escola

ficava distante, era uma coisa de payos.

Mas o tempo passa muito rápido e os ciganos,

agora mais quietos e com possibilidades de acesso à

escola, nos colocamos o quanto isto é benéfico para

nossos filhos. Romper com nosso analfabetismo e ter

acesso a muitos conhecimentos, a outras culturas, a

outras profissões.

Já estão nossas filhas e filhos na escola, não to-

dos, faltam muitos, mas já estão chegando, pese a má

acolhida que repetidamente recebemos, pese as difi-

culdades que nos impõem as mães e pais das crianças

não-ciganas, pese a pouca (ou nenhuma) preparação

das professoras e professores e seus programas esco-

lares, para nossas peculiares características (primeiro

acercamento à escola, falta de hábitos escolares, defa-

sagem idade-conhecimento, muito espertos, não afei-

tos a horários nem matérias flexíveis [...]). Entretan-

to, ainda sendo isto importantíssimo, não é o que mais

nos preocupa. O que na realidade nos produz medo

é que nossa cultura não é reconhecida, não é valori-

zada, não está imersa nos programas escolares. Nos-

sas filhas e filhos sentam-se na escola sendo ciganos,

mas quando se levantarem dentro de uns anos, que

serão? (Asociación Gitana de Valencia, 1992, p. 3).

MÁRCIA ONDINA VIEIRA FERREIRA, doutora emSociologia pela Universidade de Salamanca (Espanha), éprofessora da Faculdade de Educação da Universidade Fe-deral de Pelotas (RS). No mestrado em Educação dessa Fa-culdade vem investigando e orientando alunos sobre os te-mas: escola e diversidades sociais e culturais e profissão do-cente. No curso de graduação em Filosofia atua na área deformação de professores. É co-organizadora do livro Frag-

mentos da globalização na educação (Porto Alegre: ArtesMédicas, 1999).

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