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DIÁLOGOS SOBRE A RELIGIÃO NATURAL

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Page 1: HUME, David_Diálogos Sobre a Religião Natural

DIÁLOGOS SOBREA RELIGIÃONATURAL

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CLÁSSICOS

J. Michelet — O PovoMachado de Assis — Dom CasmurroJ.-J. Rousseau — O Contrato SocialR. Descartes — Discurso do MétodoN. Maquiavel — O PríncipeErasmo — Elogio da LoucuraA. Comte — Discurso sobre o Espírito PositiVoltaire — CândidoAristóteles — PolíticaC. Beccaria — Dos Delitos e das PenasT. Hobbes — Do CidadãoP. Verri — Observações sobre a TorturaLancelot/Arnauld — Gramática de Port-RoycVários — Poesia Lírica LatinaD. Hume — Diálogos sobre a Religião Natur

Próximos lançamentos

J.-J. Rousseau — EmílioMontesquieu — O Espírito das Leis

DIÁLOGOS SOBREA RELIGIÃONATURAL

David Hume

TRADUÇÃOJOSÉ OSCAR DE ALMEIDA MARQUES

Martins FontesSão Paulo — 1992

Page 3: HUME, David_Diálogos Sobre a Religião Natural

Título original: DIALOGUES CONCERNING NATURAL RELIGIONCopyright © Livraria Martins Fontes Editora Ltda., São Paulo, 1992

para a presente edição

1.° edição brasileira: novembro de 1992

Tradução: José Oscar de Almeida MarquesPreparação do original: Silvana Vieira

Revisão tipográfica:Sandra Rodrigues Garcia

Pier Luigi Cabra

Produção gráfica: Geraldo AlvesComposição: Antonio Cruz

Capa — Projeto: Alexandre Martins Fontes

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Hume, David, 1711-1776.Diálogos sobre a religião natural / David Hume ;

[tradução José Oscar de Almeida Marques ; prefácio deMichael Wrigley]. — São Paulo : Martins Fontes, 1992. —(Clássicos)

Bibliografia.

ISBN 85-336-0128-X

1. Teologia natural I. Título. II. Série.

92-3163 CDD-210

Indices para catálogo sistemático:1. Teologia natural 210

Todos os direitos desta edição reservados para a língua portuguesa àLIVRARIA MARTINS FONTES EDITORA LTDA.Rua Conselheiro Ramalho, 330/340 — Tel.: 239-3677

01325-000 — São Paulo — SP — Brasil

SUMÁRIO

Prefácio VIIBibliografia XIXCronologia XXIIINota ao texto desta tradução XXVII

DIÁLOGOS SOBRE A RELIGIÃONATURAL............................................................ 1

Panfilo a Hérmipo.................................................3Parte I ..................................................................... 7Parte II..................................................................25Parte III..........................................................................45Parte IV.................................................................57Parte V..................................................................69Parte VI.................................................................79Parte VII ...............................................................91Parte VIII............................................................ 103Parte IX...............................................................115Parte X................................................................ 125Parte XI...............................................................143Parte XII............................................................. 163

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PREFÁCIO

David Hume (1711-1776) foi um dos mais im-portantes filósofos do século XVIII. Seus escritos per-correm uma ampla variedade de tópicos, tanto filo-sóficos como de caráter mais geral, indo da econo-mia, política, estética e história até a metafísica, epis-temologia e ética. Seu trabalho mais significativo éo Tratado da Natureza Humana, em três volumes(1739 e 1740), que contém a exposição mais com-pleta e detalhada de seu sistema filosófico. Ele redi-giu, mais tarde, dois textos mais concisos: a Investi-gação acerca do Entendimento Humano (1748) e aInvestigação acerca dos Princípios da Moral (1751),nos quais são oferecidas e±posições mais breves, cla-ras e acessíveis das principais idéias do Tratado.

Além de seus trabalhos propriamente filosófi-cos, Hume também escreveu uma História da Ingla-terra em oito volumes (1754 a 1762), e numerososensaios curtos sobre uma grande diversidade de as-suntos. A primeira foi descrita por um crítico do

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VIII DIÁLOGOS SOBRE A RELIGIÃO NATURAL

porte de Voltaire como "a melhor história já escri-ta em qualquer idioma", e os últimos terminarampor ser reconhecidos como clássicos da literatura in-glesa, estando incluídos, juntamente com 'os ensaiosde Francis Bacon, entre os exemplos mais excelen-tes do gênero já escritos nessa língua. Na qualidadede filósofo, Hume jamais deteve profissionalmentequalquer posto oficial, mas dedicou-se, ao invés disso,a uma variedade de ocupações, atuando sucessiva-mente como preceptor, bibliotecário e diplomata,até chegar a ser reconhecido, por fim, como a prin-cipal figura literária da Grã-Bretanha, podendo vi-ver, de maneira confortável, com a renda provenientede seus escritos.

A base da filosofia de Hume é o princípio em-pirista de que todo conhecimento so pode provirda experiência sensível. Isto levou-o não apenas a re-jeitar toda a metafísica a priori, do tipo favorecidopor Descartes, Leibniz e Spinoza, mas também à con-clusão, muito mais radical, de que pouquíssimas denossas crenças ordinárias e decididamente não-metafísicas podem ser racionalmente justificadas. Es-ta vertente cética e negativa constitui, porém, ape-nas um aspecto do pensamento de Hume, o qualtambém exibe um lado positivo e naturalista. Em-bora Hume julgue que a maioria de nossas crençasnaturais e cotidianas não admitem justificação racio-nal, ele enfatiza igualmente o fato de que elas sãopsicologicamente inevitáveis. A vertente naturalis-ta e positiva do pensamento de Hume revela-se noprojeto de descobrir os princípios psicológicos ge-mis que explicam como chegamos a formar, com ba-se na experiência sensível, as crenças particulares queefetivamente sustentamos.

PREFÁCIO IXAmbas as vertentes do pensamento de Hume,

positiva e negativa, podem ser vistas operando emsuas discussões sobre a religião. Os Diálogos sobrea Religião Natural, escritos entre 1751 e 1755 e sub-metidos a diversas revisões antes de sua publicaçãopóstuma em 1779, constituem a contribuição maissubstancial e influente de Hume á filosofia da reli-gião, e vemos, neste trabalho, a operação do lado crí-tico e negativo de seu pensamento, quando ele sub-mete as crenças religiosas mais centrais a uma pene -

trante investigação, a partir da perspectiva do empi-rismo radical. Em seu outro trabalho mais impor-tante sobre a religião, a História Natural da Religião(1751), Hume adota uma abordagem naturalista dasmanifestações religiosas, e oferece um relato pionei-ro, em termos antropológicos, psicológicos e histó-ricos, da função e da origem das crenças religiosasem diversas épocas e culturas, procurando desse mo-do explicar por que essas crenças estão tão difundi-das, embora sejam, do ponto de vista de sua nacio-nalidade, completamente injustificáveis. Entre ou-tras de suas discussões mais breves, mas também im-portantes acerca da religião, está o ensaio sobre osmilagres, que Hume incluiu na Investigação acercado Entendimento Humano, além de outros dois en-saios curtos que ele escreved sobre o suicídio e aimortalidade da alma.

A atitude geral de Hume perante a religião foi,sem a menor dúvida, extremàmenre negativa. Du-rante sua vida, suas posições sobre o assunto foramnotórias, a ponto de ele ser conhecido como "o gran-de infiel", e muitos de seus escritos sobre a religião,incluindo os Diálogos, foram considerados demasiado

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X DIÁLOGOS SOBRE A RELIGIÃO NATURAL

subversivos para serem publicados com segurança en-quanto o autor estava vivo. E absolutamente certoque Hume rejeitou todos os aspectos centrais doCristianismo, e considerou a religião em geral nãoapenas como falsa, mas também como efetivamenteperniciosa. Seria um erro, porém, descrevê-lo comosendo realmente um ateísta. Conta-se que, estandoele uma vez presente a um jantar em Paris na casado Barão d'Holbach, famoso philosophe e materia-lista, e tendo a conversação se dirigido para o temada religião, Hume fez a observação de que nunca,em sua vida, havia encontrado um genuíno ateísta.A isto d'Holbach replicou imediatamente: "Bem,o senhor está com sorte. Há dezessete deles senta-dos ao redor desta mesma mesa neste exato momen-to." Não há razão para supor que Hume estivessesendo insincero na ocasião. Pois, embora ele eviden-temente concordasse com d'Holbach e seus amigosphilosophes sobre não haver qualquer evidência pa-ra justificar a crença na existência de Deus, a dife-rença entre eles residia no fato de que estes últimospensavam poder afirmar, com absoluta certeza, queDeus não existe; ao passo que, na perspectiva de Hu-me, a questão geral sobre a existência de Deus, jun-tamente com todas as outras questões metafísicas úl-timas desse tipo, é impossível de ser decidida, já queela diz respeito a algo que está totalmente fora doalcance do entendimento humano. E por isso quesua oposição ao ateísmo dogmático de d'Holbachnão é menos enfática do que sua oposição ás afir-mações dogmáticas da existência de Deus. Em seuensaio sobre os milagres, Hume exibe o mesmo ti-po de abordagem agnóstica frente a questões de na-

PREFÁCIO XI

tureza religiosa, e seu argumento não procura esta-belecer a impossibilidade de que um milagre venhaa ocorrer, mas apenas que nunca poderemos disporde uma evidência suficientemente forte para estar-mos certos de que ele de fato ocorreu. Quanto aosmilagres propriamente ditos, Hume é bastante cui-dadoso para não negar dogmaticamente a possibili-dade de sua ocorrência.

Nos Diálogos sobre a Religião Natural, Humevolta sua atenção para a questão da existência deDeus, e é aqui que sua atitude agnóstica frente a es-sa questão é defendida de forma mais extensa e mi-nuciosa. Poderia parecer, á primeira vista, que o ob-jetivo dos Diálogos é menos radical, dado que os par-ticipantes concordam, logo de início, que a existên-cia de Deus não pode estar em julgamento, e queo único ponto em que há lugar para debate diz res-peito determinação da natureza desse ser divino.Aqui, no entanto, Hume está de fato sendo insince-ro, e não pode deixar de sê-lo, para evitar infringirabertamente os limites fixados pelas convenções queestabeleciam o que era permissível, na época, em ma-téria de discussão sobre temas religiosos. E verdadeque, na Grã-Bretanha setecentista, esses limites erambastante liberais, mas o franco questionamento daprópria existência de Deus não estava, nem mesmolá, entre as coisas consideradas, admissíveis. Isto ex-plica a cautela de Hume. Embora á argumento dosDiálogos não conteste abertamente a existência deDeus, ele solapa de fato, de `forma implícita e indi-reta, todas as justificativas para se acreditar em umser que se assemelhe, minimamente, ao Deus da re-ligião.

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XII DIÁLOGOS SOBRE A RELIGIÃO NATURAL

Nos Diálogos, Hume rejeita após uma breve dis-cussão (Parte IX) a possibilidade de um argumentoa priori para a existência de Deus, mas o principalfoco de interesse é uma longa e detalhada discussãoe refutação do argumento conhecido como o Argu-mento do Desígnio. A idéia central desse argumen-to é extremamente simples. Sabemos, a partir de nos-sa experiência, que entidades complexas e altamen-te organizadas, como as máquinas, não surgem porpuro acaso, mas apenas como resultado de um de-sígnio consciente da parte de um criador dotado deinteligência. Assim, prossegue o argumento, quan-do consideramos quão imensamente mais comple-xo e organizado é o universo como um todo, esta-mos justificados em concluir que a origem dessa or-dem e, do mesmo modo, o desígnio consciente deum criador dotado de inteligência, embora, neste ca-so, deva tratar-se de um ser infinitamente mais inte-ligente e poderoso do que qualquer ser humano. Naspalavras sucintas com as quais um dos personagensde Hume enuncia o cerne do argumento, "O mun-do assemelha-se aos produtos do engenho humano;sua causa, portanto, também deve assemelhar-se àsdesses produtos.'' (Parte VII)

Não há dúvida de que, do ponto de vista psico-lógico, este é provavelmente o argumento mais for-te e convincente para a existência de Deus, e que éele que sustenta, de forma consciente ou inconscien-te, a fé de muitos dos que professam convicções re-ligiosas. Francis Bacon capturou muito bem esse ape-lo emocional quando declarou, em seu ensaio so-bre o ateísmo: "Eu preferiria antes acreditar em to-das as fábulas do Alcorão do que supor que esta ma-

PREFÁCIO XIIIjestosa construção está desprovida de um espírito:'Mas a discussão de Hume mostra conclusivamenteque, por mais atraente que possa ser este argumen-to sob o aspecto emocional, ele se revela, quandoanalisa de forma cuidadosa e desapaixonada, comologicamente muito frágil, capaz de provar muito pou-co ou quase nada.

Não vou tentar resumir os muitos defeitos queHume detecta no Argumento do Desígnio. Em vezdisso, deixo ao leitor comprovar por si mesmo o ir-resistível poder cumulativo da dialética argumenta-tiva de Hume, à medida que ele traz á luz, de modoseguro e sistemático, as falhas cada vez mais profun-das que se escondem sob a superfície aparentemen-te coesa daquele argumento. Para ilustrar, porém, al-guns traços característicos de sua discussão, eis aquialguns dos problemas que Hume levanta contra osdefensores do Argumento do Desígnio. Uma das ob-jeções mais óbvias, que Hume introduz na Parte Xdos Diálogos, liga-se ao antigo problema da existên-cia do mal. Se Deus é sumamente bom e onipoten-te, então ele deve tanto querer como ser capaz decriar um mundo sem sofrimentos. No entanto, da-do que o mundo está obviamente repleto de sofri-mentos, se há efetivamente um criador inteligentedo universo, ele deve, ou não ser totalmente bené-volo, ou não ser onipotente. Em qualquer dos ca-sos, a divindade cuja existência é provada pelo Ar-gumento do Desígnio está aquém do Deus conce-bido tradicionalmente pela religião. Mas outras ob-jeções de Hume deixam claro que nem mesmo istopode ser provado pelo argumento em discussão. Eleindica, na Parte V dos Diálogos, que, ainda que se

Disserta Final
Highlight
Assim, prossegue o argumento, quando consideramos quão imensamente mais complexo e organizado é o universo como um todo, estamos justificados em concluir que a origem dessa ordem e, do mesmo modo, o desígnio consciente de um criador dotado de inteligência, embora, neste caso, deva tratar-se de um ser infinitamente mais inteligente e poderoso do que qualquer ser humano.
Disserta Final
Highlight
Francis Bacon capturou muito bem esse apelo emocional quando declarou, em seu ensaio sobre o ateísmo: "Eu preferiria antes acreditar em todas as fábulas do Alcorão do que supor que esta ma- PREFÁCIO XIII jestosa construção está desprovida de um espírito:' Mas a discussão de Hume mostra conclusivamente que, por mais atraente que possa ser este argumento sob o aspecto emocional, ele se revela, quando analisa de forma cuidadosa e desapaixonada, como logicamente muito frágil, capaz de provar muito pouco ou quase nada.
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XIV DIÁLOGOS SOBRE A RELIGIÃO NATURAL

conceda que a única maneira de explicar a comple-xidade e a ordem que observamos no universo éconsiderá-las como resultando de um desígnio inte-ligente, isto não fornece nenhuma razão para se acre-ditar que o universo é o produto de um único cria-dor dotado de inteligência. Se a analogia com nossaexperiência constitui um princípio válido de argu-mentação (e esta é uma suposição crucial de todoo Argumento do Desígnio), então pareceria maisprovável que uma entidade tão vasta e complexa co-mo o universo tenha sido o resultado do esforço con-junto de vários planejadores, cada um dos quais sen-do responsável por uma parte ou aspecto do proje-to total, do mesmo modo que uma equipe de arqui-tetos colabora no projeto de uma grande edificação.E, como se isto já não fosse ruim o suficiente, Hu-me passa a questionar o ponto fundamental de quetodo o argumento depende, que é a idéia de que aúnica origem possível da ordem e complexidade douniverso é um desígnio intelectual consciente. Con-tra isto, Hume menciona certos exemplos óbvios,como a reprodução das plantas e animais, nos quaisentidades altamente complexas e organizadas surgemsem o concurso de qualquer desígnio consciente des-se tipo (cf. Parte VII). E, o que é mais importante,Hume enfatiza que nosso conhecimento do universoé, na verdade, extremamente limitado. Só consegui-mos observar uma parte muito pequena dele, duranteum tempo muito curto, e sabemos muito pouco mes-mo sobre isso que nos é dado observar. Não esta-mos, portanto, em condições de aceitar como justi-ficado um argumento que faça uso de qualquer ti-po de analogia para inferir, a partir das proprieda-

PREFÁCIO XVdes que observamos em uma pequena porção do uni-verso, determinadas conclusões acerca da naturezado universo como um todo, e acerca de sua origem.Assim, a estratégia argumentativa geral do Argumen-to do Desígnio revela-se, em mais um aspecto, co-mo fundamentalmente falaciosa.

Hume apresenta sua crítica ao Argumento doDesígnio sob a forma de um diálogo entre três per-sonagens. Dois deles, Cleantes e Demea, argumen-tam, cada um á sua maneira, em favor da existênciade Deus. Demea oscila entre duas posições: em al-guns momentos ele defende a possibilidade de umaprova a priori da existência de Deus, enquanto emoutros ele insiste que a fé, por si só, é suficiente co-mo garantia da crença nessa existência. Cleantes, emcontrapartida, pensa que a existência de Deus só podeser estabelecida por meio de argumentos a posterio-ri, ou seja, baseados na experiência, e é ele o defen-sor do Argumento do Desígnio. O terceiro perso-nagem, Filo, que é indubitavelmente o expositor dasconcepções do próprio Hume, insurge-se contraqualquer tipo de prova da existência de Deus, e ad-voga uma postura agnóstica sobre a questão.

Diversas razões podem explicar o fato de Hu-me ter escolhido a forma do diálogo para sua expo-sição. Em primeiro lugar, isto lhe permite anteci-par e responder possíveis réplicas sua crítica ao Ar-gumento do Desígnio, tornando-a, desse modo, tãosólida e persuasiva quanto possível: Em segundo lu-gar, isto o ajuda a ocultar parcialmente o caráter ra-dical da posição que ele defende, e a forma dialó-gica é explorada de diversas maneiras para a obten-ção desse resultado. Assim, ao atribuir a Demea e

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XVI DIÁLOGOS SOBRE A RELIGIÃO NATURAL

Cleantes (que são, ambos, porta-vozes da religião)algumas das criticas ás provas da existência de Deus,Hume consegue desviar a atenção das plenas impli-cações agnósticas de sua argumentação. Além disso,Hume pode fazer com que seus personagens comen-tem o próprio progresso da discussão, de uma ma-neira deliberadamente calculada para iludir o leitorsuperficial. O exemplo mais óbvio disto e o veredi-to final formulado pelo narrador Panfilo, ao decla-rar que o ponto de vista definido por Cleantes é omais plausível dos três. E

claro que Hume não pre-tende que esse veredito seja levado a sério, como coin-cidindo com sua própria posição real sobre o assunto,já que ele o atribui a Panfilo — o qual, devemos lem-brar, é um discípulo de Cleantes e, portanto, alguémde quem se poderia muito bem esperar que viessea favorecer as concepções de seu mestre.

Um exemplo um pouco menos óbvio dessa mes-ma estratégia ocorre no final da Parte X dos Diálo-gos, quando Filo, que havia até então mantido con-sistentemente uma atitude crítica e cética ante a exis-tência de Deus, inverte subitamente sua posição epassa a concordar com Cleantes quanto à validadedo -gumento do Desígnio. Mas o fato de que, tam-bém aqui, Hume está sendo irônico torna-se clarose prestarmos a devida atenção aos detalhes daquiloque Filo continua efetivamente afirmando depois dis-so. Pois, de fato, suas observações subseqüentes, selidas com cuidado, restabelecem de maneira implí-cita quase todas as críticas que ele havia anterior-mente apresentado. Em ambos os casos, é claro queHume está meramente cedendo às convenções que,na época, governavam as discussões sobre religião.Que essa cautela estava plenamente justificada rece-

PREFÁCIO XVIIbe uma vivida ilustração no fato de que Mam Smith,amigo íntimo de Hume, considerou os Diálogos —mesmo na forma em que foram redigidos, com suasreais conclusões cuidadosamente disfarçadas — co-mo excessivamente perigosos e subversivos para ar-riscar-se a atender ao pedido de seu amigo e assegu-rar sua publicação póstuma. Quando eles foram fi-nalmente publicados, graças ao empenho do sobri-nho de Hume, o impressor recusou-se a ter seu no-me identificado nos volumes.

A influência do argumento de Hume foi pro-funda, e os Diálogos constituem sem dúvida uma dasgrandes linhas divisórias nas discussões filosóficas so-bre a religião. Antes de Hume, quase todos os gran-des filósofos tinham admitido que a existência deDeus podia ser demonstrada, e tinham atribuído aoconceito de Deus um papel central em seus sistemasfilosóficos. O impacto das idéias de Hume é expres-sivamente ilustrado pelo fato de que o próximo gran-de filósofo a sucedê-lo, Immanuel Kant, longe de ten-tar provar a existência de Deus, argumentou que to-das as provas desse tipo são impossíveis, e insistiuem que somente a fé pode constituir-se numa basepara a religião. Após Hume, a relação entre a fé ea razão jamais poderia voltar a ser o que era. Seusargumentos nos Diálogos fazem soar o dobre finaldos sinos pela teologia racional, e preparam o cami-nho para as abordagens fideístas e existencialistas dareligião, como a de Kierkegaarô, que acreditou quea religião só pode e deve ter 'sua base na fé, mesmoque isto signifique aceitar abertamente o irracional.

Michael Wrigley

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BIBLIOGRAFIA

A edição definitiva do texto inglês dos Diálogosencontra-se em Hume on Religion, editado por JohnV. Price e A. Wayne Colver (Clarendon Press, Ox-ford, 1976). Este volume contém também um textodefinitivo da História Natural da Religião.

A edição dos Diálogos preparada por NormanKemp Smith é indispensável, e contém uma longaintrodução (mais de cem páginas) na qual, além deuma grande riqueza de informações sobre as váriasrevisões do texto realizadas por Hume, a história desuas publicações, e o contexto histórico, cultural ereligioso de sua produção, en"contra-se uma detalhadaanálise, profunda e perspicaz,' dos argumentos de-senvolvidos no texto. A primeira edição data de 1935,e há uma republicação recente pela Macmillan Pu-blication Company, Nova York, 19E.

O estudo mais abrangente das concepções deHume sobre a religião é:

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XX DIÁLOGOS SOBRE A RELIGIÃO NATURAL

J. C. A. GASKIN Hume's Philosophy ofReligion.Macmillan, Londres, 1978.

Outras importantes discussões, a partir de pontosde vista bastante diversificados, sobre os Diálo-gos e sobre as perspectivas de Hume diante da re-ligião em geral, incluem: '

R. J. BUTLER "Natural Belief and the Enigma ofHume". Archiv für Geschichte der Philosophie, 1960.

NICHOLAS CAPALDI "Hume's Philosophy ofReligion: God without Ethics". International Jour-nal for the Philosophy of Religion, 1976.

J. C. A. GASKIN "God, Hume and Natural Be-lief". Philosophy, 1974.

J. C. A. GASKIN "Hume's Critique of Religion".Journal of the History ofPhilosophy, 1976.

GEORGE J. NATHAN "The Existence and Na-ture of God in Hume's Theism", in D. Livings-ton e J. King (orgs.) Hume: A Re-evaluation. Ford-ham Univ. Press, Nova York, 1976.

JAMES NOXON "Hume's Agnosticism". Philoso-phical Review, 1964. Reimpresso em V. C. Chap-pell (org.) Hume: A Collection of Critical Essays.Anchor, Nova York, 1966.

JAMES NOXON "In Defence of 'Hume's Agnos-ticism' ",Journal of the History ofPhilosophy, ou-tubro de 1976.

TERENCE PENELHUM "Hume's Skepticism andthe Dialogues" in D. Norton, N. Capaldi e W.Robinson (orgs.) McGill Hume Studies.

Austin Hill Press, San Diego, 1976.BERNARD WILLIAMS "Hume on Religion" in

D. Pears (org.) David Hume: A Symposium. Mac-millan, Londres, 1963.

BIBLIOGRAFIA XXIKEITH E. YANDELL "Hume on Religious Belief"

in D. Livingston e J. King (orgs.) Hume: A Re-evaluation.

O mais abrangente estudo da filosofia de Hume co-mo um todo (um clássico ainda não superado) é:

NORMAN KEMP SMITH The Philosophy ofDa-vid Hume: A Critical Study of Its Origins and Cen-tral Doctrines. Macmillan, Londres, 1941.

Importantes trabalhos mais recentes sobre vários as-pectos da filosofia geral de Hume incluem:

ANNETTE BAIER A Progress of Sentiments: Re-flections on Hume's Treatise. Cambridge, Mass.,Harvard Univ. Press, 1991.

DUNCAN FORBES Hume's Philosophical PoliticsC.U.P., 1975.

PETER JONES Hume's Sentiments: Their Cicerro-nian and French Context. Edinburgh Univ. Press,1982.

DONALD W. LIVINGSTON Hume's Philosophyof Common Life. Univ. of Chicago Press, 1984.

YVES MICHAUD Hume et la fin de la philosophie.PUF, Paris, 1983.

DAVID MILLER Philosophy and Ideology in Hume'sPolitical Thought. Clarendon Press, Oxford, 1982.

JOAO PAULO MONTEIRO Hume e a Epistemo-logia. Imprensa Nacional, 4982.

DAVID FATE NORTON David Hume: Common-Sense Moralist and Sceptie4 Metaphysician. Prin-ceton Univ. Press, 1981'

GALEN STRAWSON The Secret Connexion: Cau-sation, Realism and David Hume. ClarendonPress, Oxford, 1989.

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XXII DIÁLOGOS SOBRE A RELIGIÃO NATURAL

JOHN P. WRIGHT The Sceptical Realism of Da-vid Hume. Manchester Univ. Press, 1983.

A biografia definitiva de Hume é:E. C. MOSSNER The Life of David Hume, V. edi-

ção revisada, Clarendon Press, Oxford, 1980.

Importantes coletâneas de artigos sobre vários as-pectos do trabalho de Hume incluem:

V.C. CHAPPELL (org.) Hume: A Collection of Cri-tical Essays. Anchor, Nova York, 1966.

D. LIVINGSTON e J. KING (orgs.) Hume: A Re-evaluation. Fordham Univ. Press, Nova York,1976.

K. R. MERRILL e ROBERT SHAHAN (orgs.) Da-vid Hume: Many-Sided Genius. Oklahoma Univ.Press, Norman, 1976.

G. R. MORICE (org.) David Hume: Bicentenary Pa-pers. Edinburgh Univ. Press, 1977.

D. NORTON, N. CAPALDI e W. ROBINSON(orgs.) McGill Hume Studies. Austin Hill Press,San Diego, 1976.

D. NORTON e R. POPKIN (orgs.) David Hume:Philosophical Historian. Bobbs-Merrill, NovaYork, 1965.

DAVID PEARS (org.) David Hume: A Symposium,Macmillan, Londres, 1963.

W. B. TODD (org.) Hume and the Enlightenment.Univ. of Texas Press, 1974.

Michael Wrigley

CRONOLOGIA

1711. Nasce em Edimburgo, em 7 de maio, Da-vid Hume, de uma família da pequena no-breza da Escócia.

1712. Nasce Jean Jacques Rousseau.1713. Nasce Denis Diderot. Publicação dos Trés diálogos en-

tre Hilas e Filonous de Berkeley, então com 28 anos.1714. Morre o pai de Hume.

Nasce Condillac.Leibniz: A monadologia.

1716. Morte de Leibniz.1719. Daniel Defoe: Robinson Crusoe.1722. Hume entra para o Colégio de Edimburgo,

onde estudará lógica, retórica, matemáticae sobretudo a "filosofia natural", o que o fazentrar em contato corm cr sistema de New-ton. Estuda também direito e história, massuas preferências vão para a filosofia e a li-teratura.

1724. Nasce Immanuel Kant.

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CRONOLOGIA XXVde rebatizados Investigações sobre o entendi-mento humano.Montesquieu: O espírito das leis.

1749. Nasce Goethe.Buffon inicia a publicação de sua História natural.

1751. De volta á Inglaterra, Hume publica a In-vestigação sobre os princípios da moral. E-lhenegada a cadeira de lógica da Universidadede Edimburgo.Publicação do primeiro volume da Enciclopédia.

1752. Hume publica os Discursos políticos; reda-ção dos Diálogos sobre a religião natural.Torna-se bibliotecário da ordem dos advo-gados de Edimburgo; consagra-se á redaçãode uma grande História da Inglaterra.

1753. Morre Berkeley.Buffon: Buffon sobre o estilo.

1754. Hume publica o primeiro volume da His-tória da Inglaterra.Morre Christian Wolff.

1755. Rousseau: Discurso sobre a desigualdade.Kant: História geral da natureza e teoria do céu.

1756. Publicação do segundo volume da Históriada Inglaterra.

1757. Publica Quatro dissertações.1759. Publica o volume 3 da História dq Inglaterra.

Voltaire: Cândido.1762. Publica o quarto e últimò volume da His-

tória da Inglaterra.Nasce Fichte.

1763. Hume assume o cargo de secretário da em-baixada inglesa em Paris, onde se torna um

XXIV DIÁLOGOS SOBRE A RELIGIÃO NATURAL

1725. Vico: A ciência nova.1726. Voltaire exilado na Inglaterra.1727. Morte de Isaac Newton.1729. Nasce Lessing.1734. Hume viaja á Françt, onde se instala em

Reims e depois em La Fléche, no mesmolugar onde Descartes estudara. Inicia a re-dação do Tratado sobre a natureza humana.

1737. Retorna a Londres.1739. Publicação dos dois primeiros livros do Tra-

tado sobre a natureza humana, que não con-seguem nenhum êxito.

1740. Publicação do terceiro livro do Tratado so-bre a natureza humana.

1741. Publicação dos Ensaios morais e políticos,obra mais fácil e popular com que Humepretendia superar o fracasso comercial doTratado; consegue boa acolhida.

1743. D'Alembert: Tratado de dinâmica.1745. Hume é rejeitado na tentativa de obter a ca-

deira de filosofia moral na Universidade deEdimburgo. Torna-se preceptor de um jo-vem marquês que enlouquece.Morre Jonathan Swift.

1746. Hume torna-se secretário do general deSaint-Clair numa fracassada expedição mi-litar á Bretanha.Voltaire: Zadig.

1748. Torna-se marechal-de-campo do general deSaint-Clair numa missão diplomática emTurim e Viena. Publica os Ensaios filosófi-cos sobre o entendimento humano, mais tar-

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XXVI DIÁLOGOS SOBRE A RELIGIÃO NATURAL

personagem da moda; contato com os enci-clopedistas.

1766. Retorna a Londres como protetor de Rous-seau, que se julga perseguido; as relações en-tre os dois são de boa amizade, no início,mas logo degeneram.

1767. Rousseau volta para a França. Para esclare-cer o desentendimento, Hume redige a "Ex-posição sucinta sobre a contestação entre o sr.Hume e o sr. Rousseau, com as peças justifica-tivas", editada pelos enciclopedistas.

1769. Já rico e famoso, como sempre desejara ser,Hume retorna a Edimburgo.Diderot: O sonho de DAlembert.

1770. Nascem Beethoven e Hegel.1776. Morre David Hume, em 25 de agosto.

Rousseau: Devaneios de um caminhante solitário.Adam Smith: Investigação sobre a natureza e as causasda riqueza das nações.

1779. Publicação dos Diálogos sobre a religião na-tural.

NOTA AO TEXTO DESTA TRADUÇÃO

Os Diálogos sobre a Religião Natural de DavidHume foram redigidos sob forma de uma longa car-ta, na qual o personagem Panfilo relata a seu amigoHérmipo suas lembranças de uma conversação filo-sófica que presenciara algum tempo atrás. O tempoda narrativa não coincide, assim, com o tempo dosacontecimentos, e Hume não faz uso do recurso —comum em textos dialógicos — de prefixar os no-mes dos interlocutores a suas falas, á maneira de umtexto teatral. Contudo, algumas edições recentes destelivro (em especial as que não se dirigem exclusiva-mente ao público academia()) têm optado por in-troduzir essa prefixação, 4ue inegavelmente facilitaa leitura e realça a espontaneidade da discussão. Aoaplicarem, porém, o mesmd procedimento aos co-mentários do narrador Panfilo, essas edições rom-pem a coerência do texto, pois Panfilo, como sim-ples espectador, não tem participação no diálogo:suas observações são feitas posteriormente e dirigi-

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XXVIII DIÁLOGOS SOBRE A RELIGIÃO NATURAL

gidas apenas a Hérmipo. Visando conciliar as van-tagens de uma apresentação dial6gica com o respei-to ao contexto epistolar em que ela se situa, a pre-sente edição identifica nominalmente as falas dos par-ticipantes Demea, Cleantes e Filo, distinguindo a nar-rativa de Panfilo pelo uso de tipos itálicos. A exce-ção desse recurso meramente tipográfico (e da ne-cessária modernização da pontuação), esta traduçãoé absolutamente fiel ao texto original, segundo a con-sagrada edição de Norman Kemp Smith. Todas asnotas de rodapé numeradas são de autoria de Hu-me, sendo as notas editoriais introduzidas por aste-riscos.

José Oscar de Almeida Marques

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DIÁLOGOS SOBRE A RELIGIÃONATURAL

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PANFILO A HÉRMIPO

Pi se notou, meu caro Hérmipo, que, embora osfilósofos da Antigüidade tenham transmitido a maiorparte de seus ensinamentos sob forma de diálogo, essemétodo de exposição foi pouco utilizado em épocas pos-teriores, e raramente teve sucesso nas mãos daquelesque o experimentaram. Na verdade, uma discussão exa-ta e sistemática, tal como hoje se requer dos que se de-dicam às investigações filosóficas, conduz naturalmenteo expositor ao estilo metódico e didático, no qual sepode explicar de imediato e sem preâmbulos qual é oobjetivo visado, procedendo-se, logo em seguida, à de-dução das provas que o fundamentam. Parece pouconatural apresentar um sistema sob forma de conver-sação; e, se bem que o escritor de diálogos pretenda,ao afastar-se do. estilo direto de exposição, dar um armais livre a seu texto e evitar o aparecimento de au-tor e leitor, ele se arrisca a uma inconveniência ain-da maior, fazendo surgir as figuras de pedagogo e dis-cípulo. Ou então, se ele conduz a disputa dentro de

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um clima natural de companheirismo, introduzindouma grande variedade de tópicos e mantendo um equi-líbrio adequado entre os participantes, ocorre freqüen-temente que muito tempo será gasto em preparaçõese transições, de tal modo que a graça e elegância dodiálogo não poderão, ao final, levar o leitor a sentir-se compensado pela ordem, concisão e rigor que a elassão sacrificados.

Há, contudo, alguns assuntos aos quais a escritaem forma de diálogo é especialmente adequada e, aindahoje, preferível ao método simples e direto de exposi-ção. Assim, qualquer tópico de doutrina que seja tãoóbvio a ponto de quase não admitir disputa, mas aomesmo tempo tão importante a ponto de jamais serdemasiado repeti-lo, parece requerer um tratamentodesse tipo, no qual a novidade do estilo pode compen-sar a trivialidade do assunto, a vivacidade da conver-sação reforçar o preceito e a diversidade de pontos devista apresentados pelos vários personagens afastar aaparência de tédio e redundância.

Por outro lado, qualquer questão filosófica que se-ja tão obscura e incerta a ponto de não ser possívelà razão humana chegar a uma conclusão definitivasobre ela parece levar-nos naturalmente (se é que, afi-nal, devemos ocupar-nos dela) ao estilo de diálogo econversação. Nos casos em que ninguém pode razoa-velmente estar seguro é permissível a divergência en-tre pessoas razoaveis. Opiniões opostas, mesmo que nãolevem a qualquer decisão, proporcionam um agradá-vel entretenimento; e, se o assunto é curioso e interes-sante, o livro de uma certa forma nos convida à par-ticipação, unindo assim os dois maiores e mais purosprazeres da vida humana: estudo e convivência social.

PANFILO A HÉRMIPO 5Todas essas circunstâncias estão afortunadamente

presentes no tema da religião natural. Que verdadepoderia ser tão óbvia, tão certa, como a existência deum Deus, reconhecida mesmo pelas épocas mais igno-rantes, e para a qual os gênios mais refinados têm-seempenhado ambiciosamente em fornecer novas pro-vas e argumentos? Que verdade é tão importante quan-to esta, que é o sustentáculo de todas as nossas espe-ranças, o fundamento mais seguro da moralidade, oapoio mais firme da sociedade e o único princípio quenem por um momento deve estar ausente de nossospensamentos e meditações? E, no entanto, ao tratardessa verdade óbvia e importante, quão obscuras sãoas questões que surgem acerca da natureza desse SerDivino, seus atributos, seus decretos, seu plano provi-dencial! Estas questões sempre foram objeto de dispu-tas entre os homens e, relativamente a elas, a razãohumana jamais chegou a alguma conclusão segura.Apesar disso, trata-se de questões de tão grande inte-resse que somos incapazes de refrear nossa incansávelcuriosidade sobre elas, mesmo que nossas pesquisas maisacuradas não tenham produzido até agora senão dú-vidas, incertezas e contradições.

Isso foi o que tive oportunidade de observar al-gum tempo atrás, durante a parte do verão que pas-sei, como de hábito, em casa de Cleantes, ao presen-ciar suas conversas com Filo e Demea, das quais jálhe transmiti recentemente um relato algo imperfei-ta Sua curiosidade, como você me manifestou na oca-sião,foi tão estimulada pelo assunto que me sinto obri-gado a entrar em detalhes mais exatos de seus raciocí-nios e a apresentar os diversos sistemas que eles desen-volveram em relação a este tópico tão delicado que

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é a religião natural. O contraste marcante entre suaspersonalidades fez com que você alimentasse expecta-tivas ainda mais altas, ao opor a rigorosa inclinaçãofilosófica de Cleantes ao descuidado ceticismo de Filo,ou comparar as disposições de cada um deles à orto-doxia rígida e inflexível de Demea. Minha pouca ida-de tornou-me um simples ouvinte de suas disputas, ea curiosidade natural à juventude fez com que todaa cadeia e o nexo de seus argumentos se imprimissemem minha memória de maneira tão profunda que, se-gundo espero, a narração não irá omitir ou obscure-cer qualquer parte significativa deles.

PARTE I

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Depois de ter-me juntado ao grupo, que encontreireunido na biblioteca de Cleantes, Demea cumpri-mentou-o pelo grande zelo que ele dedicava à minhaeducação e pela sua incansável perseverança e fideli-dade em relação a todos os seus amigos.

Demea: O pai de Panfilo foi seu amigo íntimo,o filho é seu discípulo e pode mesmo ser considera-do seu filho adotivo, se julgarmos pelos cuidados quevocê dedica tarefa de educa-lo em todos os camposúteis da literatura e da ciência. E como estou persua-dido de que sua prudência não é menor que sua de-dicação, vou comunicar-lhe um princípio que seguiem relação a meus próprios filhos, para verificar atéque ponto ele concorda com as praticas que você ado-ta. O método que sigo na educação deles baseia-seno que disse um autor da Antigüidade: "Os estudan-tes de filosofia devem primeiro aprender lógica, de-

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pois ética, em seguida física, e só por último devemestudar a natureza dos deuses'." Segundo ele, a ciên-cia da teologia natural, por ser a mais profunda edifícil de todas, exige dos estudantes um juízo ple-namente amadurecido, e só pode ser confiada semperigo ás mentes já cultivadas em todas as demaisdisciplinas.

Filo: Será possível que você demore tanto tem-po para começar a ensinar os princípios da religiãoa seus filhos? Não há nisso o perigo de que eles ve-nham a negligenciar ou rejeitar completamente es-sas opiniões, das quais quase não terão ouvido falardurante todo o curso de sua educação?

Demea: E apenas enquanto ciência, sujeita aoraciocínio humano e á discussão que eu protelo oestudo da teologia natural. Minha principal preocu-pação é acostumar suas mentes desde cedo á devo-ção e, através de constante aconselhamento e instru-ção como também, segundo espero, através doexemplo —, imprimir profundamente em seus jo-vens espíritos o hábito da reverência para com to-dos os princípios da religião. Além disso, á medidaque vão percorrendo todas as outras ciências, cha-mo sua atenção para a incerteza de cada uma delas,para as eternas disputas entre os homens, para a obs-curidade de toda filosofia e para as conclusões des-propositadas e ridículas a que alguns dos maioresgênios chegaram a partir dos princípios da mera ra-zão humana. Assim, depois de ter adestrado suasmentes na prática de uma apropriada submissão e

1. Crísipo, de acordo com Plutarco, De Stoicorum repug-nantis.

PARTE I 11modéstia, não hesito mais em introduzi-los nos maio-res mistérios da religião, sem temer aquela presun-çosa arrogância da filosofia, que poderia levá-los arejeitar as mais bem fundadas doutrinas e opiniões.

Filo: Sua precaução em incutir desde cedo a de-voção nas mentes de seus filhos é sem dúvida razoá-vel, e é exatamente o que se requer nesta era profa-na e irreligiosa. Mas o que mais me admira em seuplano de educação é o seu método de tirar proveitodos próprios princípios da filosofia e da erudição,os.quais, ao inspirar o orgulho e a auto-suficiência,levam comumente, em todas as épocas, á destruiçãodos princípios religiosos. De fato, notamos que aspessoas vulgares, que não estão familiarizadas coma ciência ou com a investigação rigorosa, são habi-tualmente levadas, pela observação das infindáveisdisputas dos sábios, a desprezar por completo a fi-losofia e, em conseqüência, a aferrar-se cada vez maistenazmente aos grandes tópicos de teologia que lhesforam ensinados. E aqueles que adentram um pou-co o estudo e a investigação, ao encontrar muitasaparências de evidência nas mais recentes e extrava-gantes doutrinas, passam a supor que nada é dema-siado difícil para a razão humana e, rompendo ar-rogantemente todas as barreiras, profanam os maisíntimos santuários do templo. Mas, e nisto esperocontar com a concordância de Cleantes, uma vez quetenhamos deixado de lado a ignorância, que é o re-médio mais eficaz, resta ainda um recurso para im-pedir essa liberdade profana. Que os princípios deDemea sejam postos em prática e difundidos! Tor-nemo-nos plenamente conscientes da debilidade, ce-gueira e estreiteza da razão humana. Que se dê a

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devida atenção ás incertezas e infindáveis contradi-ções que dela provêm, mesmo em assuntos da vidae da prática cotidianas. Tenhamos presentes diantede nós os erros e ilusões de nossos próprios senti-dos, as dificuldades insuperáveis que acompanhamos primeiros princípios de todos os sistemas, as con-tradições que decorrem das próprias idéias de ma-téria, causa e efeito, extensão, espaço, tempo, movi-mento e, numa palavra, quantidade, em todos seusaspectos, que é o objeto da única ciência que podecom justiça aspirar a alguma certeza ou evidência.Quando esses tópicos são mostrados em suas verda-deiras cores, tal como o fazem alguns filósofos e qua-se todos os teólogos, quem poderá preservar um grausuficiente de confiança nessa frágil faculdade da ra-zão a ponto de sentir qualquer respeito por suas con-clusões sobre tópicos tão elevados, tão abstratos, tãodistantes da vida e da experiência cotidianas? Quandoa coesão das partes de uma pedra, ou mesmo a com-posição de partes que a torna uma coisa extensa,quando esses objetos familiares, repito, são inexpli-cáveis e contêm aspectos tão incompatíveis e con-traditórios, com que segurança poderemos decidiracerca da origem dos mundos ou rastrear sua histó-ria de eternidade em eternidade?

Enquanto Filo pronunciava essas palavras, pudeobservar um sorriso nos rostos de Demea e Cleantes.O de Demea parecia transmitir uma franca satisfa-çao com as doutrinas expostas, mas nas feições deCleantes pude distinguir um ar astucioso, como se eletivesse percebido algum gracejo ou calculada malíciano raciocínio de Filo.

PARTE I 13

Cleantes: Assim, o que você propõe, Filo, éque a fé religiosa seja edificada sobre o ceticismo fi-losófico; e você julga que, se a certeza ou evidênciafor expulsa de todos os outros campos de investiga-ção, ela se refugiará integralmente nessas doutrinasteológicas, adquirindo aí uma força e autoridade su-periores. Saberemos logo mais, quando terminar estareunião, se o seu ceticismo é tão absoluto e sincerocomo você pretende; veremos então se você se reti-rará pela porta ou pela janela, e se realmente duvi-da de que seu corpo será submetido á gravidade oude que pode machucar-se ao cair, como supõe a opi-nião popular derivada de nossos sentidos falaciosose de nossa ainda mais falaciosa experiência. E estasconsiderações, Demea, são suficientes para ameni-zar, segundo creio, nossa má-vontade em relação aessa seita humorística dos céticos. Se eles estão real-mente falando a sério, não incomodarão o mundopor muito mais tempo com suas dúvidas, manhase disputas; se, porém, se trata de mera pilhéria, tal-vez não tenham muita graça, mas jamais constitui-rão um real perigo, quer para o Estado, para a filo-sofia ou para a religião.

Na realidade, Filo, parece certo que, embora umhomem, num acesso temperamental e após intensareflexão sobre as muitas contradições e imperfeiçõesda razão humana, possa renunciar inteiramente a to-da crença e opinião, é-lhe impossível perseverar nesseceticismo total, ou expressá-lo em sua conduta, mes-mo durante algumas poucas horas. Os objetos exte-riores impõem-se á sua atenção, as paixões o solici-tam, sua melancolia filosófica se dissipa e, ainda queexerça o mais violento esforço sobre suas inclinações,

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não será capaz de manter por mais tempo sua débilaparência de ceticismo. E qual seria a razão para im-por a si mesmo uma tal violência? Este é um pontoacerca. do qual jamais lhe será possível justificar-sede maneira consistente com seus princípios céticos;de tal modo que, no final das contas, nada pode sermais ridículo do que os princípios dos antigos pir-rônicos, caso eles tenham verdadeiramente buscado,como se diz, estender a todos os campos o mesmoceticismo que aprenderam nas pregações de sua es-cola, e que deveriam ter confinado a esses limites.

Há, sob este ponto de vista, uma grande seme-lhança entre as seitas dos estóicos e dos pirrônicos,apesar de terem sido antagonistas perpétuos. Am-bas parecem estar fundadas nesta máxima errônea:que aquilo que alguém pode fazer algumas vezes eem alguns estados de espírito pode fazê-lo sempree em qualquer estado de espírito. Quando o espíri-to se eleva, por meio da reflexão estóica, até um en-tusiasmo sublime pela virtude e se excita fortemen-te com alguma espécie de honra ou de bem públi-co, esse sublime sentido de dever não será sobrepu-jado pelas dores ou sofrimentos corporais mais ex-tremos; e talvez seja possível, por esse meio, até mes-mo sorrir e regozijar-se em meio á tortura. Se istopode algumas vezes ocorrer, de fato e na realidade,com muito mais razão será possível a um filósofo,em sua escola ou mesmo em seu gabinete, provocarem si mesmo um tal grau de entusiasmo e suportar,na imaginação, a dor mais aguda ou o mais calami-toso evento que possa conceber. Mas como poderáele sustentar esse próprio entusiasmo? Sua propen-são espiritual afrouxa e não pode ser voluntariamenterestabelecida, distrações afastam-no de seu caminho,

PARTEI 15infortúnios o atingem inesperadamente, e a condi-ção do filósofo decai gradualmente até chegará doplebeu.

Filo: Aceito sua comparação entre estóicos e cé-ticos. Mas pode-se ao mesmo tempo observar que,embora a mente não consiga, no estoicismo, susten-tar os vôos mais altos da filosofia, ela ainda preser-va, mesmo na queda mais profunda, algo de sua dis-posição anterior; e os efeitos do raciocínio estóicovão manifestar-se em sua conduta cotidiana e em to-do o teor de suas ações. As escolas da Antigüidade,particularmente a de Zenão, produziram exemplosde virtude e constância que parecem espantosos aostempos presentes.

Apenas Sabedoria fútil e falsa FilosofiaMas podiam, num grato feitiço, encantarA dor por um instante, ou a angústia; e excitarA Esperança ilusória, ou armar o peito obstinadoDe tenaz Paciência, como se de aço tríplice*

Do mesmo modo, se um homem habituou-se ás con-siderações céticas sobre a incerteza e os estreitos limites da razão, ele não as esquecerá inteiramentequando dirigir sua reflexão para outros assuntos; aocontrário, em todos os seus princípios e raciocíniosfilosóficos - embora eu não ouse dizer que também

*Vain Wisdom all and false Philosophy. / Yet with a plea-sing sorcery could charm / Pain, for a while, or anguish; andexcite / Fallacious Hope, or arm the obdurate breast / Withstubborn Patience, as with triple steel.

( Milton, Paraíso Perdido, livro II.)

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em sua conduta cotidiana — ele se revelará comodiferente daqueles que nunca formaram quaisqueropiniões sobre o assunto, ou que alimentaram sen-timentos mais favoráveis á razão humana.

Admito que, seja qual for o ponto a que alguémleve seus princípios especulativos céticos, ele deveagir, viver e comunicar-se como qualquer outra pes-soa; e não está obrigado a dar qualquer outra razãopara sua conduta além da absoluta necessidade emque se encontra de assim proceder. Se ele chega aestender essas especulações para além do ponto aoqual essa necessidade o obriga, e passa a filosofar so-bre tópicos naturais ou morais, é porque se sente se-duzido pelo prazer e satisfação que encontra ao ocu-par seu tempo dessa forma. Ele considera, além dis-so, que todas as pessoas, mesmo em sua vida diária,são obrigadas a compartilhar mais ou menos dessafilosofia; que experimentamos, desde nossa mais ten-ra infância, um contínuo progresso na formação deprincípios mais gerais de conduta e raciocínio; que,quanto maior a experiência que adquirimos e maisforte a razão da qual estamos dotados, tanto maioré a generalidade e o alcance que atribuímos a nos-sos princípios; e que aquilo que denominamos filo-sofia nada mais é que uma operação mais regular emetódica desse mesmo tipo. Filosofar sobre tais tó-picos não se distingue essencialmente dos raciocíniosque realizamos na vida cotidiana, e, em função deseu modo mais exato e escrupuloso de proceder, po-demos esperar de nossa filosofia uma estabilidademaior, se é que não uma maior veracidade.

Mas quando estendemos o olhar para além dos

PARTE I 17assuntos humanos e das propriedades dos corpos aonosso redor, e dirigimos nossas especulações para asduas eternidades — antes e depois do estado atualdas coisas, para a criação e formação do universo,para a existência e as propriedades dos espíritos, pa-ra os poderes e operações de um Espírito universalonipotente, onisciente, imutável, infinito e incom-preensível, que existe sem ter um começo nem umfim, é preciso que nos tenhamos afastado muitíssi-mo de qualquer tendência ao ceticismo, por míni-ma que seja, para não experimentarmos o temor deque estamos aqui adentrando uma região que se si-tua muito além do alcance de nossas faculdades.Quando nossas especulações se restringem aos ne-gócios, á moral ou á política, podemos a cada ins-tante apelar para o senso comum e para a experiên-cia, que fortalecem nossas conclusões filosóficas eremovem (em parte, ao menos) a desconfiança queacertadamente experimentamos frente a todo racio-cínio demasiado sutil e refinado. No caso dos racio-cínios teológicos, contudo, não dispomos dessa van-tagem; e, ao mesmo tempo, estamos lidando comobjetos que são sem dúvida excessivamente vastospara que possamos apreendê-los, e que, de todos, sãoos que mais esforço exigem para que se tornem fa-miliares á nossa compreensão. Somos como foras-teiros em uma terra estranha, aos quais tudo parecesuspeito e que permanentemente correm o risco detransgredir as leis e os costumes das pessoas comquem convivem e se relacionam. Não sabemos emque medida deveríamos, nesses assuntos, confiar emnossos métodos usuais de raciocínio, dado que nãopodemos responder por eles nem mesmo na vida

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18 DIÁLOGOS SOBRE A RELIGIÃO NATURAL

ordinária e no domínio ao qual eles são especialmen-te apropriados, sendo inteiramente guiados, em seuemprego, por uma espécie de instinto ou necessidade.

Todos os céticos alegam que a razão, se consi-derada em abstrato, fornece argumentos irrespondí-veis contra si mesma, e que jamais poderíamos sus-tentar alguma convicção ou certeza, sobre qualquerassunto, se não fosse pelo fato de que os raciocínioscéticos, sendo tão refinados e sutis, são incapazes dese contrapor aos argumentos mais sólidos e natu-rais, derivados dos sentidos e da experiência. Masé claro que, no momento em que nossos argumen-tos perdem essa vantagem e se afastam da vida co-mum, eles se colocam em pé de igualdade com oceticismo mais refinado e não podem mais opor-sea ele e contrabalançá-lo. Ambos passam a ter o mes-mo peso, e a mente é levada a permanecer em sus-penso entre eles. E é exatamente essa suspensão, ouequilíbrio, que constitui o triunfo do ceticismo.

Cleantes: Noto porém, com relação a você,Filo, e a todos os céticos especulativos, que sua dou-trina e prática estão em franco desacordo, tanto nospontos mais abstratos da teoria quanto na condutada vida diária. Você aceita a evidência sempre queesta se lhe manifesta, não obstante seu pretenso ce-ticismo. E noto, também, que muitos da sua seitasão tão peremptórios quanto aqueles que emitem asmais expressas declarações de certeza e segurança.Não seria ridículo, na verdade, pretender rejeitar aexplicação oferecida por Newton para o admirávelfenômeno do arco-íris sob o argumento de que essaexplicação envolve uma dissecação minuciosa dosraios de luz, obviamente muito refinada para a com-preensão humana? E que diríamos a alguém que, sem

PARTE 1 19ter nada em especial a objetar aos argumentos de C o-pérnico e Galileu em favor do movimento da Ter-ra, se recusasse a aceitá-los com base no princípiogeral de que tais assuntos são demasiado grandiosose inatingíveis para serem explicados pela estreita eenganosa razão da humanidade?

Como você bem observou, há certamente umtipo de ceticismo brutal e ignorante, que inspira áspessoas ordinárias um preconceito geral contra aquiloque não podem entender com facilidade, e as faz re-jeitar todo princípio que exija um raciocínio elabo-rado para sua prova e estabelecimento. Essa espéciede ceticismo é fatal para o conhecimento, não paraa religião, pois se vê que aqueles que o professamcom mais fervor dão seu assentimento, não apenasás grandes verdades do teísmo e da teologia natural,mas até ás doutrinas mais absurdas que a supersti-ção tradicional lhes tenha recomendado. Eles crêemfirmemente em bruxas, embora não acreditem nemdêem atenção mais simples proposição de Eucli-des. Mas os céticos filosóficos e refinados sucumbema uma inconsistência de natureza oposta. Eles levamsuas investigações aos recantos mais intrincados daciência e, a cada passo, dão seu assentimento em pro-porção evidência que encontram. São até mesmoobrigados a reconhecer que os objetos mais enigmá-ticos e remotos são aqueles que a filosofia explicamelhor. A luz foi realmente dissecada, e o autênti-co sistema dos corpos celestes foi descoberto e veri-ficado. Mas a nutrição dos organismos pelos alimen-tos constitui ainda um mistério inexplicável, assimcorno é incompreensível a coesão das partes da ma-teria. Esses céticos são forçados, portanto, em todas

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as questões, a considerar separadamente cada evidên-cia particular, e a conformar seu assentimento aograu preciso de evidência existente. Essa é sua práti-ca em todas as ciências naturais, matemáticas, mo-rais e políticas. E por que não fazer o mesmo, eupergunto, no caso da teologia e da religião? Por queapenas as conclusões desta última espécie deveriamser rejeitadas com base na suposição geral de umainsuficiência da razão humana, sem qualquer discus-são específica da evidência pertinente? Não consti-tui essa conduta tão desigual uma prova manifestade preconceito e obsessão?

Você diz que nossos sentidos são enganadores,e que nossas idéias — mesmo dos objetos mais fa-miliares: extensão, duração, movimento — estãocheias de disparates e contradições. Desafia-me a re-solver as dificuldades ou reconciliar as oposições quenelas se encontram. Não tenho capacidade para umatarefa tão vasta, nem tempo para realizá-la; e perce-bo que ela é supérflua. Sua própria conduta, em to-das as circunstâncias, refuta os princípios que vocêproclama e demonstra a mais firme confiança nosditames usuais da ciência, da moral, da prudênciae do comportamento.

Jamais concordarei com a severa opinião daqueleautor celebrado2 , para quem os céticos são uma sei-ta, não de filósofos, mas apenas de mentirosos. Masposso afirmar (sem ofender, espero) que eles formamuma seita de galhofeiros e humoristas. De minha par-te, porém, sempre que me sentir inclinado ao pra-zer e á diversão, procurarei sem dúvida um entrete-

2. L'Art de penser.

PARTE I 21

nimento de natureza menos complicada e obscura.Uma comédia, um romance ou, no máximo, um li-vro de história parecem constituir uma recreaçãomais natural do que tais sutilezas e abstrações meta-físicas.

Em vão procurará o cético estabelecer uma di-ferença entre a ciência e a vida cotidiana, ou entreuma ciência e outra. Os argumentos que se empre-gam em todas elas, se corretos, são de natureza si-milar e contêm a mesma força e evidência. E, se hou-ver alguma diferença entre elas, a vantagem estaráinteiramente do lado da teologia e da religião natu-ral. Muitos princípios da mecânica baseiam-se emraciocínios extremamente complicados; não obstante,ninguém que aspire ao conhecimento científico, nemsequer um cético especulativo, alega manter a me-nor dúvida sobre eles. O sistema copernicano con-tém o paradoxo mais surpreendente e mais contrá-rio ás nossas concepções naturais, ás aparências e aosnossos próprios sentidos; apesar disso, até os mon-ges e os inquisidores estão hoje coagidos a suspen-der sua oposição a ele. E por que deveria Filo, umhomem de espírito tão liberal e instruído, abrigarindiscriminadamente escrúpulos gerais com relaçãoá hipótese religiosa, que se funda nos argumentosmais simples e óbvios, e que, a menos que se defrontecom obstáculos artificiais, goza de tão fácil acessoe admissão á mente humana?

E aqui podemos observar [dirigindo-se a Demea],uma circunstância bastante curiosa na história dasciências. Após a união da filosofia com a religiãopopular, á época do estabelecimento inicial da reli-gião cristã, nada foi mais usual, entre os que ensi-

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22 DIÁLOGOS SOBRE A RELIGIÃO NATURAL

navam a religião, do que as pregações contra a ra-zão, contra os sentidos e contra todos os princípiosderivados puramente da indagação e investigação hu-manas. Todos os tópicos dos antigos acadêmicos fo-ram adotados pelos Padres da Igreja, e desde entãoforam propagados, durante várias eras, a partir detodas as escolas e púlpitos da Cristandade. Os re-formadores abraçaram os mesmos princípios de ra-ciocínio ou, antes, de pregação; e todos os panegíri-cos sobre a excelência da fé estavam infalivelmentemesclados de alguns severos ataques satíricos á ra-zão natural. E mesmo um célebre prelado 3 da Igre-ja Romana, um homem de vasta erudição que es-creveu uma demonstração do cristianismo, compôstambém um tratado que incorpora todas as astúciasdo mais atrevido e deslavado pirronismo. Locke pa-rece ter sido o primeiro cristão que se aventurouabertamente a afirmar que a fé não era nada maisque uma espécie de razão, que a religião era apenasum ramo da filosofia e que uma cadeia de argumen-tos, similar á que servia para estabelecer qualquerverdade em moral, política ou física, era sempre em-pregada na descoberta de todos os princípios de teo-logia, natural e revelada. O mau uso que Bayle e ou-tros libertinos fizeram do ceticismo filosófico dosPadres da Igreja e dos primeiros reformadores difun-diu ainda mais o sentimento judicioso de Locke. Deum certo modo, todos aqueles que aspiram ao ra-ciocínio e á filosofia admitem hoje que ateu e céti-co são quase sinônimos. E, assim como é certo queninguém pode estar falando a sério ao se colocar en-

3. Mons. Huet.

PARTE I 23

tre os últimos, com muito gosto eu esperaria que fos-sem igualmente escassos os que seriamente se in-cluem entre os primeiros.

Filo: Você não se lembra da excelente afirma-ção de Lord Bacon sobre esse tópico?

Cleantes: Que a filosofia, quando é pouca, fazdo homem um ateu, e quando é muita, converte-oá religião.

Filo: Essa também é uma observação muito ju-diciosa, mas o que tenho em vista é outra passagem,na qual, tendo-se referido ao insensato que servia aDavi e que dissera em seu coração que não há Deus,esse grande filósofo observa que os ateus de hoje emdia revelam uma dupla dose de insensatez, pois nãose limitam a dizer em seus corações que não há Deus,mas proferem igualmente com seus lábios essa im-piedade, tornando-se com isso culpados de múltiplaindiscrição e imprudência. Pessoas desse tipo, pormais que estejam falando a sério, não podem ser,parece-me, muito temíveis.

Mas embora você me inclua nessa classe de in-sensatos, não posso deixar de referir-me a uma ob-servação que me ocorre em relação á história do ce-ticismo religioso e irreligioso com a qual você nosbrindou. Parece-me que há fortes sintomas de opor-tunismo clerical ao longo de todo esse processo. Du-rante as épocas de ignorância, tais como as que seseguiram á dissolução das antigas escolas, os sacer-dotes perceberam que o ateísmo, o deísmo ou qual-quer tipo de heresia só podiam provir do questio-namento presunçoso das opiniões recebidas e dacrença de que a razão humana estava á altura de qual-quer tarefa. A doutrinação tinha, então, uma pode-

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24 DIÁLOGOS SOBRE A RELIGIÃO NATURAL

rosa influência sobre os espíritos das pessoas e qua-se se igualava em eficácia aquelas recomendações dossentidos e do senso comum pelas quais até o céticomais resoluto deve deixar-se governar. Mas nos tem-pos presentes — nos quais a influência da doutrina-ção encontra-se muito diminuída e as pessoas, gra-ças a uma comunicação mais livre no nível mundial,aprenderam a comparar os princípios popularmen-te aceitos nas diversas nações e épocas — nossos sa-gazes teólogos modificaram inteiramente seu siste-ma filosófico e passaram a falar a linguagem dos es-tóicos, platônicos e peripatéticos, e não a dos pirrô-nicos e acadêmicos. Se não confiarmos na razão hu-mana, não nos restará agora qualquer outro princí-pio para conduzir-nos a religião. E assim, esses reve-rendos senhores — céticos em uma época, dogmáti-cos em outra — não hesitam em adotar seja qual foro sistema que melhor lhes convenha para obter as-cendência sobre a humanidade, convertendo-o emprincípio favorito e dogma assentado.

Cleantes: E muito natural que as pessoas ado-tem princípios pelos quais julgam melhor defendersuas doutrinas, não sendo necessário falar em opor-tunismo clerical para explicar uma atitude tão ra-zoável. E, com certeza, nada poderia fortalecer maisa suposição de que um dado conjunto de princípiosé correto e digno de aceitação do que observar queeles levam ã confirmação da verdadeira religião e ser-vem para derrotar as maquinações dos ateus, liber-tinos e livres-pensadores de toda espécie.

PARTE II

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Demea: Devo confessar que muito me sur-preende a maneira pela qual você, Cleantes, condu-ziu seu argumento ao longo da conversação. Pelo teorde seu discurso, poder-se-ia imaginar que você esti-vesse defendendo a existência de Deus contra os so-fismas dos ateus e infiéis, e precisasse converter-seem paladino desse princípio fundamental de todareligião. Mas isto, espero, não está de modo algumem questão entre nós. Estou convencido de que nin-guém ou, pelo menos, ninguém dotado de bom sen-so jamais manteve alguma dúvida diante de uma ver-dade tão certa e auto-evidente. A questão não dizrespeito . existência mas á natureza de Deus. E esta,eu afirmo, é-nos completamente incompreensível edesconhecida, dada a fragilidade do entendimentohumano. A essência dessa mente suprema, seus atri-butos, seu modo de existência e a natureza mesmade sua duração; esses e todos os outros aspectos par-ticulares de um ser tão divino são misteriosos para

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28 DIÁLOGOS SOBRE A RELIGIÃO NATURAL

os seres humanos. Criaturas finitas, débeis e cegasque somos, devemos humilhar-nos diante de sua au-gusta presença e, conscientes de nossas falhas, ado-rar em silêncio suas infinitas perfeições, que os olhosnão podem ver nem os ouvidos escutar e que ao co-ração humano não é dado conceber. Uma espessanévoa oculta-as da curiosidade humana, e tentar pe-netrar nessa obscuridade sagrada constitui profana-ção. A temeridade de perscrutar sua natureza e es-sência, desígnios e atributos, aproxima-se, de fato,da atitude ímpia de negar sua existência.

Mas para que você não pense que minha devo-ção levou aqui a melhor sobre minha filosofia, vouapoiar minha opinião, se é que ela precisa de apoio,na declaração de uma grande autoridade. Eu pode-ria citar todos os teólogos que, desde quase a funda-ção da Cristandade, já trataram deste ou de qualqueroutro assunto teológico, mas vou limitar-me, no mo-mento, a um que é célebre tanto pela devoção co-mo pela filosofia. Refiro-me ao padre Malebrancheque, segundo me recordo, assim se exprimiu4:"Deve-se dizer que Deus é um espírito não tantopara expressar positivamente o que ele é, mas paraindicar que ele não é matéria. Ele é um Ser infinita-mente perfeito — disso não podemos duvidar. Mas,do mesmo modo que não devemos imagina-lo, mes-mo supondo-o corpóreo, como revestido de um cor-po humano, como afirmaram os antropomorfistas,sob o pretexto de que essa é a figura mais perfeitade todas, também não devemos supor que o espíri-to de Deus entretém idéias humanas ou se asseme-

4. Recherche de la vérité, liv. 3, cap. 9.

PARTE II 29

lha de algum modo a nosso espírito, sob o pretextode que não conhecemos algo mais perfeito que o es-pírito humano. Devemos antes acreditar que, assimcomo ele contém as perfeições da matéria sem sermaterial ... ele também contém as perfeições dosespíritos criados sem ser espírito, tal como conce-bemos o espírito; e que seu verdadeiro nome é Aqueleque é, ou, em outras palavras, o Ser sem qualquerrestrição, Todo o Ser, o Ser infinito e universal?'

Filo: Em face de tão grande autoridade, comoessa que você, Demea, invocou, e de mil outras quevocê poderia invocar, pareceria ridículo de minhaparte acrescentar minha simpatia ou expressar mi-nha aprovação sua doutrina. Mas é claro que, quan-do esses assuntos são tratados por pessoas razoáveis,o que está em questão jamais pode ser a existência,mas apenas a natureza de Divindade. Como vocêbem observou, a primeira verdade é inquestionávele auto-evidente. Nada existe sem uma causa, e a causaoriginal deste universo (qualquer que ela seja) nósa denominamos Deus, e lhe atribuímos devotamen-te toda sorte de perfeições. Quem quer que hesitediante desta verdade fundamental merece todas aspunições que podem ser infligidas entre filósofos,a saber, o máximo de ridículo, desprezo e desapro-vação. Dado, porém, que toda perfeição é inteiramen-te relativa, jamais devemos imaginar que compreen-demos os atributos desse Ser divino, ou supor quesuas perfeições têm alguma analogia ou semelhançacom as perfeições da criatura humana. Sabedoria,pensamento, propósito, conhecimento — tudo istonós lhe atribuímos com justiça apenas porque taispalavras são honrosas entre os homens, e não dis-

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30 DIÁLOGOS SOBRE A RELIGIÃO NATURAL

pomos de outra linguagem ou de outros conceitospelos quais pudéssemos expressar nossa adoração porele. Mas é preciso que tenhamos cuidado para nãosupor que nossas idéias correspondam de algum mo-do a suas perfeições, ou que seus atributos tenhamalguma semelhança com essas qualidades tal comose manifestam nos seres humanos. Ele é infinitamen-te superior á nossa compreensão e visão limitadas,sendo muito mais um objeto de culto no templo doque de disputa nas escolas.

Na realidade, Cleantes, não é necessário recor-rer àquele ceticismo afetado que tanto o desagradapara chegarmos a esta conclusão. Nossas idéias sóchegam até onde chega nossa experiência, e não te-mos experiência de atributos ou procedimentos di-vinos. Não preciso levar meu silogismo à conclu-são — você mesmo pode extrai-la. E agrada-me mui-tíssimo (também a você, espero) que o raciocíniojusto e a sólida devoção coincidam, aqui, em suasconclusões, e que ambos estabeleçam a natureza ado-ravelmente misteriosa e incompreensível do Ser Su-premo.

Cleantes: [dirigindo-se a Demea]: Para não per-der tempo em rodeios, e menos ainda em réplicasá piedosa pregação de Filo, vou explicar rapidamentecomo vejo este assunto. Olhem para o mundo aoredor, contemplem o todo e cada uma de suas par-tes: vocês verão que ele nada mais é que uma gran-de máquina, subdividida em um número infinito demáquinas menores que, por sua vez, admitem no-vamente subdivisões em um grau que ultrapassa oque os sentidos e faculdades humanas podem des-cobrir e explicar. Todas essas diversas máquinas, e

PARTE II31

mesmo suas partes mais diminutas, ajustam-se umasàs outras com uma precisão que leva ao êxtase to-dos aqueles que já as contemplaram. A singular adap-tação dos meios aos fins, ao longo de toda a Natu-reza, assemelha-se exatamente, embora exceda-os emmuito, aos produtos do engenho dos seres humanos,de seu desígnio, pensamento, sabedoria e inteligên-cia. E, como os efeitos são semelhantes uns aos ou-tros, somos levados a inferir, portanto, em confor-midade com todas as regras da analogia, que tam-bém as causas são semelhantes, e que o Autor da Na-tureza é de algum modo similar ao espírito huma-no, embora possuidor de faculdades muito mais vas-tas, proporcionais á grandeza do trabalho que ele rea-lizou. E por meio deste argumento a posteriori —e apenas por meio dele — que chegamos a provar,a um só tempo, a existência de uma Divindade e suasemelhança com a mente e inteligência humanas.

Demea: Tomo a liberdade, Cleantes, de dizer-lhe que já de início não posso aceitar sua conclusãosobre a semelhança da Divindade com o ser huma-no, e muito menos aprovar os meios pelos quais vo-ce se esforça para estabelecê-la. Ora vejam! Nenhu-ma demonstração dedutiva da existência de Deus!Nenhum argumento formal! Nenhuma prova a prio-ri! Será que todas as demonstrações nas quais os fi-lósofos até agora tanto insistiram são apenas falácias,apenas sofismas? Será que não podemos, neste as-sunto, ir além da experiência e da probabilidade? Nãodirei que isso é uma traição à causa da Divindade,mas certamente, com essa presunçosa franqueza, vocêestá dando aos ateístas uma vantagem que eles ja-mais poderiam obter com o mero auxílio do argu-mento e raciocínio.

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32 DIÁLOGOS SOBRE A RELIGIÃO NATURAL

Filo: O que me causa mais escrúpulos neste as-sunto não é tanto o fato de que todos os argumen-tos religiosos tenham sido reduzidos por Cleantesá experiência, mas sim que, mesmo nessa categoriainferior, eles sequer pareçam ser dos mais certos eincontestáveis. Já observamos milhares e milhares devezes que uma pedra cai, que o fogo queima, quea terra tem solidez; e quando uma nova instânciadesse tipo se apresenta, fazemos sem hesitar a infe-rência costumeira. A exata similaridade dos casos dá-nos uma segurança perfeita da ocorrência de umevento similar; e jamais se procura ou se deseja umaevidência mais forte do que essa. Mas sempre quese afasta, por pouco que seja, da similaridade doscasos, diminui-se proporcionalmente a evidência; eela pode afinal ser reduzida a uma analogia muitotênue, reconhecidamente sujeita a erro e incerteza.Após termos observado a circulação do sangue emcriaturas humanas, não temos dúvida de que elaocorre em Tício e Mévio, mas a circulação do san-gue em sapos e peixes conduz, por analogia, apenasa uma suposição, embora forte, de que ela tambémocorre nos seres humanos e outros animais. O ra-ciocínio analógico é muito mais fraco quando infe-rimos a circulação da seiva nos vegetais a partir denossa experiência de que o sangue circula nos ani-mais; e experimentos mais acurados mostraram oequívoco daqueles que seguiram apressadamente es-sa analogia imperfeita.

Ao vermos uma casa, Cleantes, concluímos coma máxima certeza que ela teve um arquiteto ou cons-trutor, porque ela é exatamente a espécie de efeitoque, por experiência, sabemos que procede daquela

PARTE II 33espécie de causa. Mas certamente você não afirma-rá que o Universo guarda tanta semelhança com umacasa a ponto de podermos inferir, com a mesma cer-teza, uma causa similar; ou que a analogia seja, aqui,integral e perfeita. A desigualdade é tão marcanteque o máximo que você pode pretender, nesse caso,é conjeturar, supor ou presumir a existência de umacausa similar; e como essa pretensão será recebidapelas demais pessoas é algo que deixo á sua consi-deração.

Cleantes: Sem dúvida ela seria muito mal re-cebida; e eu seria merecidamente censurado e recri-minado se alegasse que as provas de uma Divinda-de não passam de suposições ou conjeturas. Mas se-rá de fato tão pequena a semelhança entre o ajusteintegral dos meios aos fins em uma casa e no Uni-verso? Entre a organização funcional de suas causasfinais? Entre a ordem, proporção e arranjo de cadauma de suas partes? Os degraus de uma escada estãoclaramente planejados para que as pernas humanaspossam utilizá-los para subir, e esta inferência é cer-ta e infalível. Também as pernas humanas estão pla-nejadas para caminhar e subir; e, embora eu conce-da que essa última inferência não seja tão inteiramen-te certa, dada a dissimilaridade que você observou,será isto suficiente para que ela mereça apenas o tí-tulo de suposição ou conjetura?

Demea: Bom Deus, a que ponto chegamos! De-fensores zelosos da religião admitindo que as pro-vas de uma Divindade não possuem perfeita evidên-cia! E você, Filo, com cujo apoio eu contava paraprovar o caráter adoravelmente misterioso da natu-reza divina, acaso você concorda com essas opiniões

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34 DIÁLOGOS SOBRE A RELIGIÃO NATURAL

desvairadas de Cleantes? Pois de que outro nome eupoderia chama-las? E por que poupar minhas cen-sums quando tais princípios são apresentados, e comtal autoridade, diante de um jovem como Panfilo?

Filo: Você parece não compreender que estouargumentando com Cleantes em seu próprio terre-no, e que, ao mostrar-lhe as perigosas conseqüênciasde suas teses, espero convertê-lo por fim às nossasopiniões. Mas o que mais o impressiona, segundovejo, é a apresentação feita por Cleantes do argumen-to a posteriori. Ao perceber que esse argumento amea-ça escapar-lhe das mãos e desvanecer-se no ar, vocêo supõe insincero, e quase não pode acreditar queele tenha sido exposto em suas verdadeiras cores. Ora,por mais que eu discorde, em outros aspectos, dosperigosos princípios de Cleantes, devo admitir queele apresentou corretamente esse argumento, e es-forçar-me-ei para expor-lhe o assunto de tal manei-ra que você não mais abrigara escrúpulos em rela-ção a ele.

Se alguém fizesse abstração de tudo o que sabeou viu, seria em absoluto incapaz de decidir, sim-plesmente a partir de suas próprias idéias, qual o ce-nirio que o Universo deveria exibir, ou de dar pre-ferência a uma situação ou estado de coisas entre ou -

tros. Pois, ji que nada daquilo que ele concebe cla-ramente pode ser tomado como impossível ou co-mo envolvendo uma contradição, todas as fantasiasde sua imaginação estariam em pé de igualdade; eele não seria capaz de oferecer qualquer razão im-parcial para aderir a uma idéia ou sistema e rejeitaroutros que são igualmente possíveis.

Além disso, ao abrir os olhos e contemplar o

PARTE II 35mundo tal como realmente é, ser-lhe-ia impossívelidentificar de imediato a causa de um evento qual-quer, muito menos a causa da totalidade das coisas,ou do Universo. Ele poderia dar rédea larga à ima-ginação, e ela lhe poderia fornecer uma infinita va-riedade de relatos e representações, todos igualmen-te possíveis. Mas, por serem igualmente possíveis,ele não chegaria por si mesmo a uma explicação sa-tisfatória para o fato de preferir um deles aos res-tantes. E somente a experiência que pode apontar-lhe a verdadeira causa de qualquer fenómeno.

Note agora, Demea, que, de acordo com este mé-todo de raciocínio (e isto, na verdade, é tacitamenteadmitido pelo próprio Cleantes), se segue que a or-dem, o arranjo ou o ajustamento das causas finaisnão constituem por si sós a prova de um desígnio,mas apenas na medida em que ji se tenha constata-do pela experiência que eles procedem de um talprincípio. Por tudo que nos é dado saber a priori,a matéria pode conter originalmente em si mesmaa fonte ou o móvel da ordem, do mesmo modo quea mente os contém. Supor que os diversos elemen-tos — a partir de uma causa interna desconhecida— possam arranjar-se da maneira mais elaborada nãoé mais difícil do que imaginar que suas idéias, a partirde uma causa interna desconhecida semelhante, ve-nham a dispor-se dessa mesma maneira no interiorda grande mente universal. A igual possibilidade des-sas duas suposições é admitida; contudo, segundoCleantes, a experiência nos faz descobrir uma dife-rença entre elas. Lance ao ar um conjunto de diver-sas peças de aço, sem talhe ou forma: elas jamais searranjarão por si mesmas de modo a produzir um

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38 DIÁLOGOS SOBRE A RELIGIÃO NATURAL

verso, assim o calor ou frio, atração ou repulsão, ecentenas de outros que são diariamente observados.E uma causa ativa, pela qual algumas partes especí-ficas da Natureza produzem, como nos é dado ver,certas alterações em outras partes. Mas será legíti-mo transferir para o todo uma conclusão acerca daspartes? A disparidade entre os casos não será, por-ventura, tão grande a ponto de barrar toda inferên-cia e comparação? Será possível aprender algo acer-ca da geração de um ser humano observando o cres-cimento de um fio de cabelo? Obteríamos algumainformação sobre o desenvolvimento vegetativo deuma árvore a partir da maneira pela qual brota umafolha, ainda que conhecêssemos perfeitamente esseúltimo processo?

Admitindo-se, porém, que se tomem as opera-

ções de uma parte da Natureza sobre outra como ofundamento de nossos juízos acerca da origem dotodo (o que é inadmissível), por que se deveria sele-cionar um princípio tão insignificante, tão frágil, tãolimitado como o é a razão e o propósito dos ani-mais, tal como esse princípio se apresenta neste pla-neta? Que mérito especial tem essa diminuta agita-ção do cérebro que denominamos "pensamento",para que precisemos toma-la como modelo do Uni-verso por inteiro? Nossa parcialidade para com nósmesmos leva-nos constantemente a apresentar as coi-sas desse modo, mas a boa filosofia deve cuidadosa-mente guardar-nos contra uma ilusão tão natural.

Assim, longe de admitir que as operações de umaparte nos capacitem a concluir acertadamente sobreá origem do todo, recuso-me a aceitar que qualquerparte proporcione uma regra acerca de outra parte

PARTE II 39

se esta última for muito alheia á primeira. Que ba-se razoável haveria para concluir que os habitantesde outros planetas estão dotados de pensamento, in-teligência, razão ou de qualquer coisa semelhante aessas faculdades dos seres humanos? Seria possívelsupor que a Natureza copie incessantemente a si mes-ma ao longo de um Universo tão imenso, quandoseus modos de operação são tão extremamente di-versificados mesmo neste pequeno globo? E se, co-mo se pode muito bem supor, o pensamento esti-ver confinado apenas a este diminuto recanto, ten-do mesmo aí uma esfera de ação muito limitada, comque direito poderíamos toma-lo como a causa ori-ginária de todas as coisas? Comparada a isto, a pers-pectiva estreita do camponês que faz da sua admi-nistração doméstica a regra para o governo dos rei-nos chega a ser um sofisma desculpável.

Ainda que viéssemos a estar bastante seguros deque uma razão, ou pensamento, de características hu-manas estivesse distribuída por todo o Universo, eque sua atividade em outras regiões fosse muitíssi-mo maior e mais influente do que parece ser nesteglobo, mesmo assim não posso ver por que as ope-raçóes de um mundo já constituído, arranjado e ajus-tado poderiam ser apropriadamente estendidas a ummundo em estado embrionário, que ainda estivesseprogredindo em direção àquela constituição e arran-jo. A observação ensina-nos algo sobre a constitui-ção, o comportamento e a nutrição de um animaladulto, mas é preciso grande cautela ao se transferiressa observação para o desenvolvimento de um fetono útero, e mais ainda para a formação de um ani-málculo nas ilhargas de seu genitor. Mesmo nossa

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40 DIÁLOGOS SOBRE A RELIGIÃO NATURAL

limitada experiência nos mostra que a Natureza pos-sui um número infinito de princípios motores, quese exibem incessantemente em cada mudança de es-tado e situação; e daríamos mostra da mais extremaimprudência se pretendêssemos determinar quaisprincípios inusitados e desconhecidos teriam gover-nado sua ação em uma situação tão incomum e des-conhecida como a da formação do Universo.

Só nos é conhecida — e muito imperfeitamente— uma parte mínima desse grande sistema e duran-te um intervalo muito curto de tempo. Como en-tão poderíamos nos pronunciar conclusivamenteacerca da origem de seu todo?

Já que as pedras, madeira, tijolos, ferro e latãonão conseguem, na presente época e neste diminu-to planeta terrestre, dispor-se em arranjos e ordenar-sesem a arte e o engenho humano, chega-se á admirá-vel conclusão de que o Universo não poderia ter ori-ginalmente atingido sua ordem e arranjo sem algu-ma coisa semelhante ao artifício humano! Mas porque uma parte da Natureza deveria constituir umaregra para outra parte remotamente situada em re-lação á primeira? Por que deveria constituir uma re-gra para o todo? Uma parte ínfima pode prover aregra para o Universo? A Natureza em um dado es-tado pode constituir-se em uma regra certa para aNatureza em um estado imensamente distinto doprimeiro?

E você não pode culpar-me, Cleantes, se eu to-mo aqui como exemplo a prudente circunspeção deSimônides, que, de acordo com a célebre narrativa,ao ouvir de Hierão a pergunta: Que é Deus ?, pediuum dia para pensar sobre o assunto, e depois dois

FARTE II 41dias mais, prolongando dessa forma indefinidamenteo prazo, sem nunca chegar a apresentar sua defini-ção ou descrição. Poderia você censurar-me se eu ti-vesse respondido, logo de início, que eu não sabia.e que estava consciente de que esse assunto excedemuitíssimo o alcance de minhas faculdades? Vocêpode chamar-me quanto quiser de cético e brinca-lhão, mas o fato é que, tendo-me deparado em tan-tos outros assuntos muito mais familiares com as im-perfeições e mesmo contradições da razão humana,eu jamais poderia esperar, a partir de suas frágeis con-jeturas, obter qualquer bom resultado em um assuntotão elevado e tão distante da esfera de nossas obser-vações. Após a constatação de que duas espécies deobjetos surgem sempre associados, posso inferir, pelocostume, a existência de um deles onde quer que euveja que o outro está presente; e a isto chamo umargumento a partir da experiência. Mas seria difícilexplicar como esse argumento pode ser aplicado aum caso — como o que estamos presentemente con-siderando — no qual os objetos são singulares, indi-vduais, sem paralelo ou semelhança específica. Po-derá alguém dizer-me seriamente que um UniversoOrdenado deve provir de algum pensamento ou ar-tificio de tipo humano, porque disso temos expe-

A~`iencia? Para comprovar esse raciocínio, seria preci-

so que tivéssemos experiência da origem dos mun-das, e é claro que não basta ter visto navios e cida-A31-

es serem produzidos pela arte e engenho humanos...o; Filo prosseguia nesse estilo veemente, alternando,como me pareceu, ironia e seriedade, até que, perce-

rtdo que Cleantes dava alguns sinais de impaciên-calou-se de imediato.

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42 DIÁLOGOS SOBRE A RELIGIÃO NATURAL

Cleantes: O que eu tinha a sugerir é apenasque você não abuse das palavras e não faça uso deexpressões populares para subverter raciocínios filo-sóficos. Como você sabe, faz-se ordinariamente umadistinção entre razão e experiência, mesmo quandoo que está em jogo são questões de fato e existência,embora se descubra, ao analisar-se adequadamenteessa razão, que ela não é nada mais que uma espéciede experiência. Provar pela experiência que o Uni-verso tem uma origem mental não é mais contrárioao discurso comum do que provar pela experiênciao movimento da Terra. E um sofista poderia levan-tar contra o sistema copernicano essas mesmas ob-jeções que você apressou-se a oferecer aos meus ra-ciocínios. Há, por acaso, outras Terras — ele pode-ria perguntar — que você tenha visto mover-se? Há...

Filo: [interrompendo-o] Sim, há outras Terras!Não é a Lua uma outra Terra, que vemos girandoem torno de seu centro? Não é Vênus uma outraTerra, na qual observamos o mesmo fenômeno? Nãosão as revoluções do Sol também uma confirmação,por analogia, da mesma teoria? Todos os planetas,não são eles Terras que giram em torno do Sol? Eos satélites não são Luas que se movem em torncde Júpiter e Saturno e, em companhia desses plane-tas primários, em torno do Sol? Essas analogiassemelhanças, junto com outras que não mencioneisão as únicas provas do sistema copernicano, e cab(a você considerar se estão disponíveis analogias dc

mesmo tipo para sustentar sua teoria.Na realidade, Cleantes, o moderno sistema d

astronomia é hoje tão bem aceito por todos os in

PARTE H 43vestigadores, e tornou-se uma parte tão essencial danossa educação, mesmo a mais elementar, que nãosomos usualmente muito cuidadosos no exame dasrazões sobre as quais ele se funda. Hoje se tornoumera curiosidade o estudo dos que primeiro escre-veram sobre o assunto e que, encontrando os pre-

, conceitos ainda em pleno vigor, foram obrigados arevolver seus argumentos em todas as direções, a fimde torná-los populares e convenientes. Mas, se exa-minarmos atentamente os famosos Diálogos de Ga-lileu sobre o sistema do mundo, descobriremos queaquele grande gênio, um dos mais sublimes que ja-mais existiu, dedicou inicialmente todos os seus es-forços a provar que não havia fundamento para adistinção comumente feita entre as substâncias ele-mentares e as celestiais. As escolas, partindo das ilu-sões dos sentidos, tinham levado muito longe essadistinção e estabelecido que essas últimas substân-cias eram não-geráveis, incorruptíveis, inalteráveis,impassíveis, ao mesmo tempo que atribuíam ás pri-meiras todas as qualidades opostas. Galileu, por ou-tro lado, principiando pela Lua, provou sua seme-lhança com a Terra em todos os pormenores: suafigura convexa, sua obscuridade natural quando nãoiluminada, sua densidade, sua diferenciação em só-lido e líquido, as variações de suas fases, a mútuailuminação da Terra e da Lua, seus mútuos eclipses,as irregularidades da superfície lunar, etc. Em con-seqüência de muitos exemplos desse tipo, relaciona-dos a todos os planetas, as pessoas viram claramen-te que esses corpos tinham se tornado objetos pró-prios de experiência, e que a similaridade de sua na-tureza nos capacitava a estender os mesmos argumen-tos e fenômenos de um a outro.

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44 DIÁLOGOS SOBRE A RELIGIÃO NATURAL

No procedimento cauteloso dos astrônomos,Cleantes, você pode ler sua própria condenação, ouantes, pode ver que o assunto do qual você se ocupaexcede toda razão e investigação humanas. Pode vo-cê pretender exibir qualquer semelhança desse tipoentre a estrutura de uma casa e a geração de um Uni-verso? Acaso já se formaram mundos sob seus olhos,e pôde você observar com vagar o progresso com-pleto desse fenômeno, desde a primeira aparição daordem até sua consumação final? Se é assim, entãocite sua experiência e exponha sua teoria.

PARTE III

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Cleantes: É admirável como o argumento maisabsurdo, nas mãos de um homem engenhoso e in-ventivo, pode adquirir um ar de plausibilidade! Vo-cê não se dá conta, Filo, de que só foi necessário aCopérnico e a seus primeiros discípulos provar a se-melhança entre a matéria terrestre e a celestial por-que vários filósofos, ofuscados pelos antigos siste-mas e apoiados em algumas aparências sensíveis, ti-nham negado essa similaridade; mas que não é demodo algum necessário aos teístas provar a seme-lhança entre os trabalhos da Natureza e os da arte,pois esta similaridade é auto-evidente e inegável? Amatéria é a mesma, a forma é igual; que mais é pre-ciso para exibir uma analogia entre suas causas e pa-ra comprovar que todas as coisas se originam de umaintenção e propósito divinos? Suas objeções, devoser franco, não são melhores que os intrincados em-bustes daqueles filósofos que negavam o movimen-to, e merecem ser refutadas da mesma maneira: me-

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48 DIÁLOGOS SOBRE A RELIGIÃO NATURAL

diante ilustrações, exemplos e casos concretos, maisdo que pela argumentação séria e pela filosofia.

Suponha, então, que uma voz articulada se te-nha feito ouvir nas nuvens, muito mais forte e maismelodiosa do que qualquer outra que a arte huma-na pudesse produzir; suponha que essa voz se esten-desse ao mesmo tempo sobre todas as nações, e fa-lasse a cada uma em sua própria linguagem e diale-to; suponha ainda que as palavras pronunciadas nãoapenas contivessem um sentido e significado preci-sos, mas transmitissem alguma recomendação dig-na em todos os aspectos de um Ser benevolente, su-perior ã humanidade. Poderia você hesitar um sómomento acerca da causa dessa voz? Não lhe seriaimperioso atribuí-la instantaneamente a algum de-sígnio ou propósito? E, no entanto, não posso dei-xar de considerar que as mesmas objeções (se é quemerecem esse nome) que se podem opor ao sistemado teísmo também poderiam ser levantadas contraesta última inferência.

Não lhe seria possível dizer que todas as con-clusões relativas a fatos estão fundadas na experiên-cia; que, quando ouvimos uma voz articulada na es-curidão e inferimos daí a existência de um ser hu-mano, é apenas a semelhança dos efeitos que nos le-va a concluir que há também uma semelhança en-tre suas causas; mas que essa voz extraordinária, pe-la sua força, alcance e adaptabilidade a todas as lin-guagens, tem tão pouca analogia com qualquer vozhumana a ponto de não termos razões para suporqualquer analogia entre suas causas; e, por conse-guinte, que esse discurso racional, sábio e coerenteproveio, voce não sabe por que, de algum sibilo ca-

PARTE III 49

sual dos ventos, e não de alguma razão ou inteligênciadivinas? Nessas manobras você pode enxergar cla-ramente suas próprias objeções; e, segundo espero,também pode ver claramente que elas não poderiamter mais força em um caso do que no outro.

Para fornecer, porém, um exemplo que se apro-xima ainda mais da situação que presentemente ob-servamos no Universo, vou introduzir duas suposi-ções que não envolvem nada de absurdo ou impro-vável. Suponha que exista uma linguagem natural,universal e invariável, comum a todos os indivíduosda espécie humana, e suponha ainda que os livrossejam produtos naturais que se perpetuam da mes-ma maneira que os animais e vegetais, por descen-dência e propagação. Muitas expressões de nossos sen-timentos envolvem uma linguagem natural: todosos animais têm uma fala natural que, por limitadaque seja, é bastante inteligível para os de sua espé-cie. E, dado que há infinitamente menos partes e me-nos engenhosidade na mais refinada composição daeloqüência do que no organismo corporal mais tos-co, a propagação da Ilíada ou da Eneida é uma su-posição mais fácil do que a de qualquer planta ouanimal.

Suponha, portanto, que você entre em sua bi-blioteca, povoada de volumes naturais que encerrama razão mais refinada e a mais rara beleza. Seria vo-cê capaz de abrir um desses livros e duvidar de quesua causa original apresenta a mais forte analogia coma mente e a inteligência? Quando ele raciocina e dis-corre; quando discute, argumenta e impõe suas te-ses e pontos de vista; quando ele se dirige ãs vezesao puro intelecto, às vezes aos afetos; quando reúne,

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50 DIÁLOGOS SOBRE A RELIGIÃO NATURAL

organiza e torna atraentes todas as considerações ade-quadas ao assunto — poderia você persistir em afir-mar que tudo isso não tem, no fundo, realmente sen-tido, e que a primeira conformação desse volumenas ilhargas de seu antecessor original não procedeudo pensamento e do desígnio? Sei que sua obstina-ção não chega a esse grau de rigidez, e que mesmosua encenação e leviandade céticas ficariam enver-gonhadas diante de tão flagrante absurdo.

E entretanto, Filo, se há alguma diferença entreesta suposta situação e o caso real do Universo, avantagem está toda em favor deste último. A anato-mia de um animal fornece muitos exemplos maisfortes de desígnio do que o exame de Tito Lívio ouTácito; e qualquer que seja a objeção que você adiantecontra o primeiro caso, conduzindo-me de volta aoinusitado e extraordinário cenário da primeira for-mação dos mundos, essa mesma objeção será apli-cável à suposição da nossa biblioteca vegetativa. Es-colha, pois, o partido que lhe convém, Filo, sem am-bigüidade ou evasão; e afirme ou que um volumeracional não é prova de uma causa racional, ou en-tão admita que todas as obras da Natureza têm umacausa desse tipo.

Permita-me ainda observar aqui que este argu-mento religioso, longe de debilitar-se por esse ceti-cismo que tanto lhe agrada ostentar, é antes fortale-cido por ele, tornando-se mais firme e inquestioná-vel. Excluir todo argumento e raciocínio, qualquerque seja sua espécie, constitui afetação ou loucura.O que todo cético razoável preconiza é apenas re-jeitar os argumentos obscuros, remotos e demasia-do sutis; aderir ao senso comum e aos simples ins -

PARTEIII 51tintos da Natureza; e dar seu assentimento sempreque alguma razão o sensibilize tão fortemente queele não possa, sem extrema violência, deixar de fazê-lo. Ora, é claro que os argumentos em favor da reli-gião natural são desse tipo; e nada, a não ser a maisobstinada e perversa metafísica, pode recusá-los. Con-sidere, analise o olho; examine sua estrutura e seuplano, e diga-me com toda sinceridade se a idéia deum planejador não lhe ocorre imediatamente, comtanta força como a de uma sensação. A conclusãomais óbvia, com certeza, é em favor de um desíg-nio; e é preciso tempo, reflexão e estudo para cole-tar todas essas frívolas, ainda que intrincadas, obje-ções que podem dar apoio à descrença. Quem po-deria contemplar o macho e a fêmea de cada espé-cie, a correspondência entre suas partes e instintos,suas paixões e o processo integral da vida, antes edepois da geração, sem tornar-se sensível ao fato deque a propagação das espécies é tencionada pela Na-tureza? Milhões e milhões de casos semelhantes ma-nifestam-se em cada parte do Universo, e nenhumalinguagem pode transmitir um significado mais in-teligível e irresistível do que o peculiar ajustamentodas causas finais. Que grau de dogmatismo cego nãodeve, então, ter sido atingido por alguém que rejei-ta argumentos tão naturais e tão convincentes!

Podemos nos deparar com textos de grande be-leza que parecem contrariar as regras e que, em opo-sição a todos os cânones da crítica e à autoridadedos mestres reconhecidos da arte, tocam os sentimen-tos e estimulam a imaginação. Assim, se o argumentoem favor do teísmo contradiz, como você preten-de, os princípios da lógica, sua influência universal

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52 DIÁLOGOS SOBRE A RELIGIÃO NATURAL

e irresistível prova claramente que pode haver argu-mentos que compartilham da mesma natureza irre-gular. Por mais que se insista em raciocínios ardilo-sos, um mundo ordenado, bem como uma lingua-gem coerente e articulada, continuarão a ser aceitoscomo uma prova incontestável de desígnio e in-tenção.

Estou disposto a admitir que os argumentos re-ligiosos não exercem, algumas vezes, a devida influên-cia sobre um selvagem ignorante e bárbaro. Mas is-so ocorre não porque sejam obscuros e difíceis, masporque o selvagem jamais se faz qualquer perguntasobre eles. De onde surge a peculiar estrutura de umanimal? Da união de seus pais. Mas estes, de ondesurgem? De seus pais? Alguns poucos passos levamas coisas tão longe que desaparecem, para ele, emobscuridade e confusão; e tampouco lhe despertama curiosidade de seguir sua pista. Mas isto não é dog-matismo ou ceticismo, mas sim estupidez: uma con-dição mental muito distinta do espírito investigati-vo e perquiridor que o caracteriza, meu engenhosoamigo. Você pode rastrear as causas a partir dos efei-tos, você pode comparar os objetos mais distantese rL.notos, e seus maiores erros provêm não da este-rilidade do pensamento e da inventiva, mas sim deuma fertilidade por demais exuberante, que sufocaseu natural bom senso com uma profusão de escrú-pulos e objeções desnecessárias.

Pude notar nesse momento, meu caro Hérmipo,que Filo estava um pouco embaraçado e confuso. Mas,enquanto ele hesitava em prover uma resposta, Demeainterveio na discussão e, felizmente para ele, salvou-odo apuro.

PARTE III 53

Demea: Devo confessar que seu exemplo,Cleantes, ganha muita força por ter sido formuladoa partir de coisas familiares como livros e a lingua-gem. Mas não haveria também algum perigo nessaprópria circunstância, e não poderíamos ser levadospor esse argumento á presunção de imaginar quecompreendemos a Divindade e temos uma idéia cor-reta de sua natureza e atributos? Quando leio umlivro, penetro na mente e nas intenções do autor e,naquele momento, me converto, de certo modo, nelemesmo, experimentando uma percepção e com-preensão imediatas das idéias que percorriam suaimaginação enquanto ele se ocupava da redação da-quele texto. Mas é claro que nunca poderemos che-gar tão próximos da Divindade. Seus caminhos nãosão nossos caminhos; seus atributos, embora perfei-tos, são incompreensíveis. E o livro da Natureza con-tém um enigma muito mais vasto e inexplicável queo de qualquer discurso ou raciocínio inteligíveis.

Os mais religiosos e devotos de todos os filóso-fos pagãos foram, como você sabe, os antigos platô-nicos; não obstante, muitos deles, em particular Plo-tino, declararam expressamente que não se deve atri-buir intelecto ou entendimento á Divindade, e quea maneira mais perfeita que temos de adorá-la con-siste não em atos de veneração, reverência, gratidãoou amor, mas em uma espécie misteriosa de auto-aniquilação ou extinção total de todas as nossas fa-culdades. São idéias algo exageradas, talvez; mas é

, forçoso reconhecer que, ao representarmos a Divin-dade como sendo tão inteligível e compreensível, etão similar á mente humana, nos tornamos culpa-dos da mais grosseira e tacanha parcialidade e nosarvoramos em modelo de todo o Universo.

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54 DIÁLOGOS SOBRE A RELIGIÃO NATURAL

Todos os sentimentos da mente humana — gra-tidão, ressentimento, amor, amizade, aprovação, cen-sura, piedade, rivalidade, inveja — referem-se clara-mente ao estado e á condição do ser humano e es-tão calculados para preservar a existência e promo-ver as atividades desse ser nessas circunstâncias. Nãoparece razoável, portanto, transferir tais sentimen-tos ao Ser Supremo, ou supor que exerçam influên-cia sobre ele; e, além disso, os fenômenos do Uni-verso não fornecem apoio para uma teoria desse ti-po. Quanto ás nossas idéias derivadas dos sentidos,todas elas são reconhecidamente falsas e enganosas,e não podem ser consideradas, portanto, como ten-do lugar em uma Inteligência suprema. E como asidéias provenientes do sentido interior, somadas asdo sentido exterior, compõem toda a bagagem doentendimento humano, podemos concluir que ne-nhum dos materiais do pensamento é semelhante,sob qualquer aspecto, na inteligência humana e naInteligência divina. Considerando-se, por outro la-do, a maneira de pensar, como poderíamos estabe-lecer qualquer comparação entre essas inteligências,ou supo-las de algum modo semelhantes? Nosso pen-samento é vacilante, incerto, fugidio, consecutivo ecomposto; se removêssemos essas características, ani-quilaríamos completamente sua essência; e seria, nes-se caso, um mero abuso da terminologia aplicar-lheo nome de pensamento ou razão. Se ainda parecemais devoto e respeitoso (como realmente é) preser-var esses termos quando se menciona o Ser Supre-mo, devemos pelo menos reconhecer que seus sig-nificados são, neste caso, totalmente incompreensí-

PAR TE III 55veis; e que a debilidade de nossa natureza não nospermite apreender quaisquer idéias que tenham a mi-nima correspondência com a inexplicável grandio-sidade dos Atributos divinos.

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PARTE IV

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Cleantes: Parece-me estranho que justamentevocê, Demea, tão sincero na defesa dos interesses dareligião, continue mantendo que a natureza da Di-vindade é misteriosa e incompreensível, e insista comtanto zelo na afirmação de que ela não possui qual-quer espécie de paralelo ou semelhança com as cria-turas humanas. Estou pronto a admitir que a Di-vindade possui muitos poderes e atributos dos quaisnão temos compreensão; mas se nossas idéias, até on-de alcançam, não são corretas, adequadas ou perti-nentes no que diz respeito á sua real natureza, en-tão já não sei por que valeria a pena insistir nesteassunto. Por que um nome teria tão grande impor-tância, se está desprovido de significação? E comovocês, os místicos, que sustentam o caráter absolu-tamente incompreensível da Divindade, se distingui-riam dos céticos ou ateus, que afirmam que a causaoriginal de todas as coisas é desconhecida e ininteli-gível? Muito imprudente seriam eles se, após rejei-

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60 DIÁLOGOS SOBRE A RELIGIÃO NATURAL

tar a produção pela mente — quero dizer, mente si-milar á mente humana, pois não conheço outra —,pretendessem indicar com segurança alguma outracausa inteligível específica; e muito escrupulosos, defato, se se recusassem a dar a essa causa universal des-conhecida o nome de Deus, ou Divindade, e con-ceder-lhe todos os sublimes elogios e epítetos semsignificação que você quisesse exigir deles.

Demea: Quem poderia imaginar que Clean-tes, o sereno e filosófico Cleantes, tentaria refutarseus antagonistas afixando-lhes um rótulo; e, á ma-neira dos vulgares fanáticos e inquisidores da épo-ca, recorresse á afronta e á pregação ao invés do ra-ciocínio? Ou será que ele não percebe que esseslugares-comuns podem facilmente voltar-se contraele, e que a alcunha de antropomorf sta é tão avil-tante e de tão perigosas conseqüências quanto a demístico, com a qual ele nos honrou? Considere,Cleantes, aquilo que você está efetivamente afirman-do quando representa a Divindade como similar ámente e ao entendimento humanos. Que é a almado homem? Um composto de várias faculdades, pai-xões, sensações e idéias; unidas, é verdade, em umsó ego ou pessoa, mas ainda assim distintas umasdas outras. Quando ela raciocina, as idéias que sãoas partes de seu discurso arranjam-se em uma certaforma ou ordem, que não se preserva integralmentepor um só instante, mas dá lugar imediatamente aum outro arranjo. Novas opiniões, novas paixões,novas afecções, novos sentimentos surgem e alteramincessantemente o cenário mental, produzindo ne-le a maior diversificação e a mais rápida sucessão queé possível imaginar. Como isto poderia ser compa-

PARTE IV 61tivel com a perfeita imutabilidade e simplicidade quetodos os autênticos teístas atribuem á Divindade?Por um mesmo ato, dizem eles, ela contempla pas-sado, presente e futuro; seu amor e o io, sua miseri-córdia e justiça, são uma única operação individual.Ela está inteira em cada ponto do espaço, e está com-pleta em cada instante da duração. Nenhuma suces-são, nenhuma mudança, nenhuma aquisição ou di-minuição. O que ela é não contém qualquer som-bra. de distinção ou diversidade. E o que ela é nestemomento, sempre o foi e sempre o será, sem ne-nhum novo juízo, sentimento ou operação. Perma-nece fixa em um só estado, simples e perfeito, e nãose pode adequadamente dizer que este seu ato é di-ferente daquele outro, ou que este juízo ou idéiaformou-se há pouco e dará lugar, sucessivamente, aum distinto juízo ou idéia.

Cleantes: Estou preparado para afirmar que to-dos os que sustentam a perfeita simplicidade do SerSupremo, no grau em que você a expôs, são remata--dos místicos, e devem responder por todas as con-seqüências que eu extraí de sua opinião. São, em umapalavra, ateístas, sem o saber. Pois, embora se devareconhecer que a Divindade possui atributos dossuais não temos compreensão, não nos é jamais per-mitido conferir-lhe atributos que são absolutamen-

'- te incompatíveis com a natureza intelectiva que lheé essencial. A mente cujos atos, sentimentos e idéiasriso são distintos e sucessivos — que é integralmen-te simples e totalmente imutável — não exibe pen--samento, nem razão, nem vontade, nem sentimen--to, nem amor, nem ódio. Em uma palavra, não émente, enfim. Dar-lhe esse nome é abusar das pala-

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62 DIÁLOGOS SOBRE A RELIGIÃO NATURAL

vras, e poderíamos, com o mesmo direito, falar deuma extensão limitada sem figura, ou de um núme-ro sem composição.

Filo: Peço-lhe, por favor, que você note contraquem suas censuras estão agora dirigidas. Você estáhonrando com a denominação de ateístas quase to-dos os teólogos íntegros e ortodoxos que já trataramdeste assunto; e acabará por ter que se considerar,pelas suas contas, como o único teólogo legítimodo mundo. Mas se os idólatras são ateístas, como

1 penso que é correto afirmar, e os teólogos cristãostambém o são, que restaria daquele célebre argumen-to baseado na concordância universal da huma-nidade?

Como sei, porém, que você não se deixa influen-ciar muito pelos nomes e pelas autoridades, esforçar-me-ei para mostrar-lhe, com um pouco mais de ni-tidez, as inconveniências do antropomorfismo quevocê adotou, e provar que não há razões para suporque a mente divina tenha formulado um plano domundo, constituído de distintas idéias, diferentemen-te arranjadas, de maneira análoga á de um arquitetoque formula em sua cabeça o plano de uma casa queele tenciona executar.

Não é fácil, confesso, ver o que se poderia ga-nhar com essa suposição, quer se julgue a questãopela razão, quer pela experiência. Continuamos aindaobrigados a subir mais alto, se quisermos descobrira causa dessa causa que você designou como satisfa-tória e conclusiva.

Se é que a razão (e me refiro aqui á razão abs-trata, derivada das investigações a priori) não emu-dece invariavelmente perante qualquer questão acerca

PARTE IV 63de causa e efeito, esta sentença, ao menos, ela se aven-turará a pronunciar: que um mundo mental ou umuniverso de idéias exige uma causa tanto quanto aexige um mundo material ou um universo de obje-tos; e, se seus arranjos forem similares, deverão re-querer causas similares. Pois o que haveria de espe-cial naquele domínio para proporcionar uma dife-rente conclusão ou inferência? Do ponto de vistaabstrato, eles são exatamente iguais, e não há difi-culdade que acompanhe uma suposição e que nãoseja comum a ambas.

Por outro lado, quando precisamos forçar a ex-periência a pronunciar alguma sentença, ainda queem assuntos que extrapolam sua esfera, tampoucoela pode perceber qualquer diferença significativa es-pecífica entre esses dois tipos de mundo, mas reco-nhece-os como governados por princípios semelhan-tes e dependentes, em suas operações, de um igualsortimento de causas. Temos espécimes em minia-tura de ambos os mundos: nossa própria menteassemelha-se ao primeiro; e um organismo, vegetalou animal, ao segundo. Que a experiência, portan-to, julgue a partir dessas amostras. Relativamente asuas causas, nada parece mais delicado que o pensa-

. mento; e, já que essas causas nunca operam da mes-ma maneira em duas pessoas, jamais encontramosduas pessoas que pensem de modo exatamente igual.Na verdade, nem sequer uma mesma pessoa pensa

- de maneira exatamente igual em quaisquer dois mo-- mentos distintos do tempo. Uma diferença de idade,

da-condição de seu corpo, de clima, de alimento, deT companhia, de livros, de paixões — qualquer um des-

ses aspectos particulares, e outros ainda mais dimi-

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64 DIÁLOGOS SOBRE A RELIGIÃO NATURAL

nutos, basta para alterar a peculiar maquinaria dopensamento e comunicar-lhe movimentos e opera-ções muito distintos. Tanto quanto podemos julgar,os organismos vegetais e animais não são tão deli-cados em seus movimentos, nem dependem de umavariedade tão grande de impulsos e princípios, ajus-tados de maneira tão peculiar.

Como, então, poderíamos nos dar por satisfei-tos com relação á causa daquele Ser que você tomacomo o Autor da Natureza, ou, de acordo com seusistema antropomórfico, daquele Mundo ideal noqual você encontra a origem do mundo material?Não teríamos iguais razões para buscar a origem des-se mundo ideal em outro mundo ideal, ou princí-pio intelectivo? Mas, se nos detemos em algum pontoe não avançamos mais, de que serve ter avançado atéaí? Por que não nos determos no próprio mundomaterial? Como poderíamos nos dar por satisfeitossem avançar in infinitum? E que satisfação, afinal,encontraríamos nessa progressão infinita? Recor-demo-nos da história do indiano e seu elefante: elanunca foi tão adequada como ao presente assunto.Se o mundo material repousa sobre um mundo idealsemelhante, este mundo ideal deve repousar sobrealgum outro, e assim indefinidamente. Seria melhor,portanto, jamais lançar os olhos para além do mun-do material presente. Ao supor que ele contém emsi mesmo o princípio de sua própria ordem, esta-mos, na realidade, afirmando que ele é Deus; e quan-to antes chegarmos aquele Ser Divino, tanto melhorpara nós. Quando você dá um passo além do siste-ma mundano, apenas excita uma disposição inqui-sitiva que jamais poderá ser satisfeita.

PARTE IV 65Dizer que as diferentes idéias que compõem a

razão do Ser Supremo se dispõem de maneira orde-nada por si mesmas e em virtude de sua própria na-tureza é, na realidade, falar sem saber muito bemo que se quer dizer. Se isso quer dizer algo, eu gos-taria muito de saber por que não haveria igualmen-te um sentido tão bom na afirmação de que as par-tes do mundo material se dispõem em ordem porsi mesmas e pela sua própria natureza. Será que umadas opiniões pode ser inteligível sem que a outra tam-bém o seja?

Temos, de fato, experiência de idéias que se dis-põem em ordem por si mesmas e sem nenhuma cau -

sa conhecida. Mas temos também, estou certo, umaexperiência muito mais vasta de um comportamen-to semelhante na matéria, a saber, em todos os ca-sos de geração e crescimento vegetativo, nos quaisa análise detalhada da causa excede toda compreen-são humana. E temos igualmente experiência de sis-temas particulares de pensamento e de matéria que

g sião apresentam ordem: do primeiro, na loucura, dosegundo, na corrupção. Por que, então, deveríamos

4, pensar que a ordem é mais essencial a um do quett ao outro? E, se ela requer em ambos uma causa, quept estaremos ganhando com nosso sistema, ao buscar

$ origem do universo de objetos em um universor.similar de idéias? Ao dar o primeiro passo, somos4orçados a prosseguir para sempre. Portanto, seriaprudente de nossa parte limitar nossas investigaçõesao mundo presente, sem dirigir o olhar para mais

ge. Nenhuma satisfação poderá jamais ser alcan-por meio dessas especulações, que tanto exce-os estreitos limites do entendimento humano.

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66 DIÁLOGOS SOBRE A RELIGIÃO NATURAL

Como você sabe, Cleantes, era usual entre os pe-ripatéticos, quando se pedia pela causa de algum fe-nômeno, recorrer a suas faculdades ou qualidadesocultas, e dizer, por exemplo, que o pão alimentavaem virtude de sua faculdade nutritiva, do mesmomodo que o sene purgava devido sua faculdade pur-gativa. Descobriu-se, porém, que esse subterfúgio na-da mais era que o disfarce da ignorância, e que essesfilósofos, embora menos francos, estavam na reali-dade dizendo a mesma coisa que os céticos ou as pes-soas comuns, que confessavam honradamente nãosaber a causa desses fenômenos. De maneira análo-ga, ao serem interrogados sobre a causa que produza ordenação das idéias do Ser Supremo, poderiamvocês, antropomorfistas, dar qualquer outra razãoque não a de que é uma faculdade racional, e de queessa é a natureza da Divindade? E difícil, contudo,determinar por que uma resposta semelhante nãoseria igualmente satisfatória para explicar a ordemdo mundo, dispensando o recurso a um criador in-teligente tal como esse em que você insiste. Bastariadizer que essa é a natureza dos objetos materiais, eque todos eles estão originalmente de posse de umafaculdade de ordem e proporção. Essas são simples-mente maneiras mais doutas e refinadas de confes-sar nossa ignorância, e a primeira hipótese não apre-senta qualquer vantagem genuína sobre a segunda,exceto sua maior conformidade com os preconcei-tos vulgares.

Cleantes: Você expôs esse argumento comgrande ênfase e parece não se dar conta de como éfácil contestá-lo. Se eu atribuo uma causa a um eventoqualquer, mesmo na vida cotidiana, seria porven -

PARTE IV b7

tura objetável, Filo, que eu não seja capaz de identi-ficar a causa dessa causa e de responder a todas as no-vas questões que incessantemente podem ser levan-tadas? Que filósofos poderiam submeter-se a uma re-gra tão rígida, sendo que confessam que as causas úl-timas são totalmente desconhecidas e estão conscien-tes de que os princípios mais aperfeiçoados, aos quaisremetem os fenômenos, continuam sendo para elestão inexplicáveis como aqueles mesmos fenômenoso são para as pessoas comuns? A ordem e arranjo daNatureza, o notável ajustamento das causas finais,os manifestos usos e propósitos de cada parte e cadaórgão; tudo isso proclama na linguagem mais claraa existência de um autor ou causa intelectiva. Os céuse a terra juntam-se no mesmo testemunho; o corointeiro da Natureza ergue um hino ás glórias de seuCriador. Somente você — ou quase — perturba estaharmonia geral, levantando complicadas dúvidas, so-fismas e objeções. Você me pergunta qual é a causadessa causa? Não sei, não me preocupo, isso não mediz respeito. Eu encontrei uma Divindade, e aqui de-tenho minha investigação. Que sigam adiante os queforem mais sábios ou empreendedores.

Filo: Não pretendo ser uma ou outra coisa, etalvez por isso mesmo jamais deveria ter tentadoir tão longe, especialmente porque me apercebo que,no final das contas, devo contentar-me com a mes-ma resposta com a qual, desde o início e sem maio-res aborrecimentos, eu poderia ter-me satisfeito. Setenho de permanecer na total ignorância das cau-sas, sem poder explicar absolutamente nada, que van-tagem haverá em livrar-me momentaneamente deuma dificuldade que, como você reconhece, reapa-

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68 DIÁLOGOS SOBRE A RELIGIÃO NATURAL

receri de imediato com toda sua força? É verdadeque os cientistas da Natureza explicam muito apro-priadamente efeitos particulares por meio de causasmais gerais, embora essas mesmas causas gerais este-jam destinadas, afinal, a permanecer totalmente inex-plicadas; mas certamente eles nunca pensaram queseria satisfatório explicar um efeito particular pormeio de uma causa também particular que não ad-mitiria uma explicação melhor que a do próprio efei-to. Um sistema de idéias que se auto-ordenasse semum desígnio prévio não seria minimamente mais ex-plicivel do que um sistema material que atingissedo mesmo modo sua ordenação; e não hi, na ver-dade, mais dificuldade na última suposição do quena primeira.

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PARTE V

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Filo: Mas, para mostrar-lhe ainda algumas ou-tras inconveniências de seu antropomorfismo, peço-1he que inspecione novamente seus princípios. Aigualdade dos efeitos prova a igualdade das causas. Esteé o argumento experimental; e também, como vo-cê diz, o único argumento teológico. Mas é certoque, quanto maior a igualdade dos efeitos que sãoobservados e a das causas que são inferidas, tanto.mais forte é o argumento. Qualquer afastamento, emcada um dos lados, diminui a probabilidade e tornao experimento menos conclusivo. Você não pode p6rem dúvida esse princípio, nem deve rejeitar suas con-sequencias.

De acordo com o verdadeiro sistema do teísmo,todas as recentes descobertas da astronomia que pro-vam a imensa grandeza e magnificência das obrasda Natureza constituem outros tantos argumentosadicionais em favor da Divindade. Contudo, segundosua hipótese de teísmo experimental, elas se tornam

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72 DIÁLOGOS SOBRE A RELIGIÃO NATURAL

outras tantas objeções, ao tornarem o efeito muitomenos semelhante aos efeitos da arte e engenho hu-manos. Pois, se Lucrécio, mesmo aderindo ao anti-go sistema do mundo, pôde exclamar:

Quis regere imrnensi summan, quis habere profundi,Indu manu validas potis est moderanter habenas?Quis pariter coelos omnes convertere? et omnesaetheriis terras suffire feraces? IgnibusOmnibus inve locis esse omni tempore praesto?*

Se Túlio considerou o seguinte raciocínio tão natu-ral a ponto de colocá-lo na boca de seu epicurista:

Quibus enim oculis animi intueri potuit vester Platofabricam illam tanti operis, qua construi a Deo at-que aedificari mundum facit? quae molitio? quae fer-ramenta? qui vectes? quae machinae? qui ministritanti numeris fuerunt? quemadmodum autem obedi-re et parere voluntati architecti aer, ignis, aqua, terrapotuerunt?**

* Quem é poderoso o bastante para reger o cume e paramanter sob seu controle as poderosas rédeas das profundezas?Para fazer girar ao mesmo tempo todo o céu, e aquecer comfogos etéreos todas as terras fecundas? E, ainda, para estar emtodos os lugares em todos os momentos?

(Lucrécio, De Rerum Natura, II.) (N.T.)** Qual foi, na verdade, a espécie de visão mental que per-

mitiu a seu mestre Platão contemplar o vasto processo arquite-tônico que se atribui a Deus na edificação do mundo? Que mé-todo de engenharia foi empregado? Quais ferramentas, alavan-cas e máquinas? Quais foram os executores de uma tarefa tãoimensa? E como foi possível ao ar, fogo, terra e água obedecere realizar a vontade do arquiteto?

(Cícero, De Natura Deorum, I.) (N.T.)

PARTEV 73Se esse argumento, eu repito, teve alguma força nasépocas anteriores, quão mais deve tê-la agora, quan-do os limites da Natureza se alargam infinitamentee um cenário tão magnífico se abre para nós! Torna-seainda menos razoável moldar nossa idéia de uma cau-sa tão ilimitada a partir de nossa experiência dos re-duzidos produtos do cálculo e inventividade huma-nas.

As descobertas feitas por meio do microscópio,medida que revelam um novo universo em minia-

tura, tambem constituem objeções, de acordo comvocê; e argumentos, do meu ponto de vista. Quan-to mais longe levarmos as pesquisas desse tipo, maisseremos forçados a inferir que a causa universal detudo é imensamente distinta da humanidade, ou dequalquer objeto da experiência ou observação hu-manas.

E o que tem você a dizer acerca das descobertasem anatomia, química, botânica?...

Cleantes: Essas certamente não constituem ob-jeções, mas apenas revelam novos exemplos de artee engenho. Mais uma vez, trata-se da imagem da men-te refletindo-se sobre nós a partir de inúmerosobjetos.

Filo: Acrescente mente como a humana.Cleantes: Não conheço outra.Filo: E quanto mais se iguale a ela, melhor.Cleantes: Certamente.Filo: [Com um ar alegre e triunfante] E agora,

tes, observe as conseqüências. Em primeiro lu-, com esse método de raciocínio, você renuncia

brida pretensão de infinitude em qualquer dos atri-tos da Divindade. Pois, como a causa deve estar

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74 DIÁLOGOS SOBRE A RELIGIÃO NATURAL

em proporção apenas ao efeito, e este, á medida quecai sob nosso conhecimento, não é infinito, de quemodo poderíamos pretender, com base em nossassuposições, aplicar aquele atributo ao Ser Divino?Você deverá manter que, ao apartá-lo tanto de todasemelhança com as criaturas humanas, entregamo-nos á mais arbitrária das hipóteses e enfraquecemos,ao mesmo tempo, todas as provas de sua existência.

Em segundo lugar, não há razão, em sua teoria,para que você atribua perfeição á Divindade — mes-mo em sua capacidade finita —, ou para que a supo-nha isenta de todo erro, engano ou incoerência emsuas realizações. Há, nas obras da Natureza, muitasdificuldades que são inexplicáveis, mas que, se ad-mitirmos que a existência de um autor perfeito é pro-vada a priori, solucionam-se facilmente e revelam-se como dificuldades que surgem apenas em virtu-de da limitada aptidão do ser humano, que não con-segue esquadrinhar relações infinitas. No entanto,de acordo com seu método de investigação, todasessas dificuldades se tornam reais. Talvez se insistaque elas fornecem novos exemplos de semelhançascom as obras do artifício e talento humanos; masvocês está obrigado a reconhecer, ao menos, que nosé impossível distinguir, a partir de nossa perspecti-va limitada, se esse sistema contém ou não gravesdefeitos, ou qual o grau de louvor que merece, emcomparação com outros sistemas possíveis ou mes-mo reais. Se lêssemos a Eneida para um camponêsque jamais teve contato com qualquer outra obra li-terária, seria ele capaz de julgar esse poema comoabsolutamente impecável, ou mesmo determinar aposição que lhe cabe dentre as produções do espíri-to humano?

PARTE V 75Mas ainda que este mundo fosse um produto tão

perfeito, persistiria a incerteza sobre se todas as ex-celências da obra podem com justiça ser atribuídasao artífice. Ao inspecionarmos um navio, que idéiaelevada não formaremos da engenhosidade do car-pinteiro que fabricou uma máquina tão complica-da, útil e bela? E qual surpresa não devemos sentirao descobrir que ele é um mecânico estúpido, queapenas imitou outros e copiou uma arte que, atra-vés de uma longa sucessão de épocas, e após múlti-plas tentativas, erros, correções, decisões e contro-vérsias, foi-se aperfeiçoando gradualmente? Muitosmundos poderiam ter sido toscamente elaboradose remendados ao longo de uma eternidade, antes dedelinear-se o presente sistema; muito trabalho podeter-se perdido, muitas tentativas infrutíferas realiza-das, e um lento mas ininterrupto progresso pode tertido lugar, através de eras infinitas, na arte de cons-truir mundos. Quem pode determinar, em tais as-suntos, onde reside a verdade; ou sequer conjeturarb que é mais provável, dentre o grande número dehipóteses que se poderia propor, e o número aindamaior das que poderiam ser imaginadas?

E que sombra de argumento poderia você ofe-recer, a partir de sua hipótese, para provar a unida-de da Divindade? Um grande número de homensreúne-se para construir uma casa ou um navio, paraedificar uma cidade, para fundar um Estado; por queflão poderiam várias deidades associar-se para con-ceber e forjar um mundo? Isso nos conduziria, defato, a uma semelhança ainda maior com o que ocor-re nos empreendimentos humanos. Ao dividir o tra-balho entre muitas deidades, poderíamos limitar em

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76 DIÁLOGOS SOBRE A RELIGIÃO NATURAL

muito os atributos de cada uma delas e nos livrar-mos daquele vasto poder e inteligência que seria pre-ciso supor no caso de uma única; e que, em relaçãoao que você propõe, serve apenas para enfraquecera prova de sua existência. Se criaturas estúpidas e cor-rompidas como os seres humanos podem, mesmoassim, unir-se freqüentemente para traçar e execu-tar um plano, com muito maior razão poderiam fazê-lo essas deidades ou demiurgos, a quem podemos atri-buir alguns graus a mais de perfeição.

Multiplicar as causas desnecessariamente é, naverdade, contrário a genuína filosofia; mas, no pre-sente caso, tal princípio não se aplica. Se sua teoriativesse permitido provar com anterioridade a exis-tência de uma única Divindade, possuidora de to-dos os atributos requeridos para a produção do Uni-verso, seria então, eu confesso, desnecessário (masnão absurdo) supor a existência de alguma outra dei-dade. Mas, enquanto estiver pendente a questão so-bre se todos esses atributos estão unidos em um únicosujeito ou dispersos entre vários seres independen-tes, quais são os fenômenos da Natureza que nos per-mitiriam decidir a controvérsia? Quando vemos umcorpo erguer-se no prato de uma balança, ficamosseguros de que há, no prato oposto — por mais ocul-to que esteja á nossa vista — algum contrapeso equi-valente; mas permanece a dúvida sobre se esse con-trapeso consiste em um agregado de vários corposdistintos ou de uma única massa uniforme e coesa.E, se o peso requerido é muito maior do que qual-quer outro que já tivemos ocasião de encontrar reu-nido em um só corpo, a primeira suposição se tor-na ainda mais provável e natural. Um ser inteligen -

PARTE V 77te dotado de um poder e capacidade tão vastos co-mo seria necessário para engendrar o Universo, ou— para usar o termo filosófico da Antigüidade —um animal tão prodigioso, ultrapassa toda analogiae mesmo toda compreensão.

Além disso, Cleantes, seres humanos são mor-tais, e renovam sua espécie pela geração; e isto é co-mum a todas as criaturas vivas. Como disse Milton,os dois grandes sexos — masculino e feminino — ani-mam o mundo. Por que, então, se deveria excluiressa condição, tão universal e essencial, daquelas dei-dades numerosas e limitadas? Eis aí, portanto, a teo-gonia dos tempos antigos trazida de volta para nós.

E por que não se tornar um antropomorfistacompleto? Por que não considerar a deidade, ou dei-dades, como sendo corpóreas, tendo olhos, um na-riz, boca, ouvidos, etc? Epicuro sustentava que nin-guem tinha observado a razão a não ser em uma fi-gura humana; assim os deuses devem ter figura hu-mana. E esse argumento, merecidamente tão ridicu-larizado por Cícero, torna-se, de acordo com você,sólido e filosófico.

Numa palavra, Cleantes: alguém que siga sua hi-pótese é capaz, talvez, de asseverar ou conjeturar queo Universo surgiu em algum momento a partir dealgo semelhante a um desígnio, mas, como não po-de certificar-se de nenhuma circunstancia para alémdessa situação, só lhe resta, a seguir, fixar todos osoutros pontos de sua teologia utilizando, com a má-xima liberdade, a imaginação e as hipóteses. Estemundo, por tudo que ele sabe, é muito falho e im-perfeito se comparado a um padrão superior; e é ape-

F nas a obra de alguma deidade pueril que o abando-

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78 DIÁLOGOS SOBRE A RELIGIÃO NATURAL

nou a seguir, envergonhada de sua desastrada reali-zação. E meramente o trabalho de alguma deidadeinferior e subalterna e constitui motivo de chacotapara seus superiores. É o produto da velhice e seni-lidade de alguma deidade decrépita e está, desde suamorte, entregue ao próprio destino, movendo-se peloprimeiro impulso e força ativa que dela recebeu...E justo que você dê mostras de horror, Demea, emface destas extravagantes suposições; mas estas, e miloutras mais, são suposições de Cleantes, não minhas.Todas elas surgem a partir do momento em que sesupõe que os atributos da Divindade têm caráter fi-nito. E não posso conceber, de minha parte, que sus-tentar um sistema teológico tão assombroso e trans-tornado seja, sob qualquer aspecto, preferível a nãosustentar nenhum.

Cleantes: Rejeito absolutamente tais suposi-ções, embora elas não me provoquem horror, espe-cialmente sob a forma casual e descuidada com quevocê as despeja. Ao contrario, elas me dão prazer,quando vejo que mesmo a maxima licença de suaimaginação não lhe permite livrar-se da hipótese dodesígnio no Universo, mas obriga-o, a cada passo,a lazer uso dela. A essa admissão eu me apego fir-memente; e considero-a como uma fundação sufi-ciente para a religião.

PARTE VI

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Demea: Muito frágil deve ser a estrutura quepode ser erguida sobre uma fundação tão instável.Enquanto estivermos incertos sobre se há uma oumuitas deidades, se a deidade ou deidades a que de-vemos nossa existência são perfeitas ou imperfeitas,subordinadas ou superiores, vivas ou mortas, quecrédito ou confiança poderemos depositar nelas?Que devoção ou adoração dirigir-lhes? Que obediên-cia ou veneração prestar-lhes? A teoria da religiãofaz-se completamente inútil para todos os propósi-tos da vida; e, mesmo em relação ás conseqüênciasespeculativas, sua incerteza, de acordo com você, devetorná-la de todo precária e insatisfatória.

Filo: Para torná-la ainda mais insatisfatória,ocorre-me ainda uma outra hipótese, que certamenteganhará um ar de plausibilidade a partir do méto-do de raciocínio em que Cleantes tanto insiste. Oprincípio que ele toma como fundamento de todareligião é o de 'que causas iguais produzem efeitos

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82 DIÁLOGOS SOBRE A RELIGIÃO NATURAL

iguais. Mas há outro princípio do mesmo tipo, quenão é menos certo e que deriva da mesma fonte ex-perimental, a saber: que, sempre que se observa quevárias circunstancias conhecidas sao similares, en-tão também as circunstâncias desconhecidas se re-velarão similares. Assim, se vemos os membros deum corpo humano, concluímos que ele estará dota-do também de uma cabeça humana, ainda que ocultaá nossa visão. Do mesmo modo, se vemos uma pe-quena porção do Sol através de uma fresta na pare-de, concluímos que, se a parede fosse removida, ve-ríamos o Sol por inteiro. Em suma: este método deraciocínio é tão óbvio e familiar que não é possívelalimentar o menor escrúpulo com relação á suasolidez.

Ora, se inspecionarmos o Universo até onde nosé dado apreendê-lo, veremos que ele guarda umagrande semelhança com um animal ou corpo orga-nizado e parece obedecer a um princípio semelhan-te de vida e movimento. Assim, uma contínua cir-culação de matéria não produz nele desordem algu-ma; o constante desgaste de todas as partes é inces-santemente compensado; observa-se, através de to-do o sistema, a mais estreita interdependência, e ca-da parte ou membro, ao desempenhar suas funçõespróprias, atua tanto em favor de sua própria pre-servação como em favor da preservação do todo. In-firo, portanto, que o mundo é um animal e que aDivindade é a alma do mundo, pondo-o em movi-mento e sendo por ele afetada.

Você é muito instruído, Cleantes, para surpre-ender-se minimamente com esta opinião, que foimantida, como você sabe, por quase todos os teís-

PARTE VI 83tas da Antigüidade, e que ocupa uma posição pre-ponderante em seus discursos e raciocínios. Pois, em-bora os filósofos antigos tenham algumas vezes con-siderado o mundo como um artefato produzido porDeus, parece que a idéia mais favorecida por eles éa de tomá-lo como sendo o corpo da Divindade, or-ganizado de modo a tornar-se subserviente a ela. Edeve-se confessar que, dado que o Universo se asse-melha mais a um corpo humano do que ás obrasda arte e do engenho humanos, a inferência maiscorreta parece ser em favor da teoria antiga, e nãoda moderna; se é que nossa limitada analogia pode,de alguma forma, ser apropriadamente estendida áNatureza como um todo.

Há também muitas outras vantagens na primeirateoria que a recomendavam aos olhos dos antigosteólogos. Nada poderia ser mais repugnante a todasas suas concepções — porque nada é mais repugnanteá experiência comum — do que a idéia da mente exis-tindo sem um corpo; uma pura substância espiritualque não se manifestava a seus sentidos ou á sua com-preensão, e da qual jamais tinham observado um úni-co exemplo em toda a Natureza. Eles conheciammente e corpo porque percebiam ambos; e, pela mes-ma razão, sabiam igualmente da existência, em am-bos, de uma ordem, arranjo, organização, ou meca-nismo interno. E não poderia deixar de parecer-lhesrazoável transferir essa experiência ao Universo e su-por que também o corpo e a mente divinos são con-temporâneos, apresentando, ambos, uma ordem earranjo que lhes são naturalmente inerentes e inse-paráveis.

Eis aqui, portanto, uma nova espécie de antro-

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pomorfismo, Cleantes, sobre o qual você bem po-deria refletir; e uma teoria, além disso, que não pa-rece apresentar qualquer dificuldade importante. Vo-cê, com certeza, está suficientemente acima dos pre-conceitos sistemáticos para encontrar mais dificulda-des na idéia de que um corpo animal possa estar,por si mesmo ou em virtude de alguma causa des-conhecida, dotado originariamente de ordem e or-ganização do que na suposição de que a mente apre-sente uma ordem similar. Mas o preconceito vulgar,segundo o qual corpo e mente devem estar sempreacompanhados um do outro, não deve, na minhaopinião, ser inteiramente negligenciado, dado quese funda na experiência comum, isto é, no único guiaque você admite seguir em todas essas investigaçõesteológicas. E se você afirmar que nossa experiêncialimitada não constitui um padrão aceitável para jul-gar sobre a extensão ilimitada da Natureza, estaráabandonando inteiramente sua própria hipótese ini-cial e será obrigado a adotar, daí em diante, nossomisticismo — como você o denomina — e a reco-nhecer a absoluta incompreensibilidade da Nature-za Divina.

Cleantes: Admito que essa teoria, embora bas-tante natural, nunca me ocorreu antes; e não posso,com base em um exame e reflexão tão breves, darde imediato minha opinião sobre ela.

Filo: Você está sendo, na realidade, muito es-crupuloso. Se me coubesse examinar qualquer siste-ma apresentado por você, eu não procederia commetade dessa cautela e reserva ao levantar-lhe obje-ções e dificuldades. Apesar disso, se alguma coisa lheocorre, você poderia fazer-nos a gentileza de apre-sentá-la.

PARTE VI 85Cleantes: Se é assim, parece-me que, embora

o mundo se assemelhe em muitos aspectos ao cor-po de um animal, a analogia falha em muitos pon-tos de extrema importância: não há órgãos senso-,riais, não ha uma sede do pensamento ou razão, e

f,. não há uma origem única e precisa do movimentoe da ação. Ele parece, em suma, apresentar uma se-melhança mais pronunciada com um vegetal do quecom um animal; e, nessa medida, sua inferência emfavor da alma do mundo seria inconclusiva.

Em segundo lugar, sua teoria parece implicar aeternidade do mundo, e esse é um princípio que temcontra si, segundo penso, as mais fortes razões e pro-babilidades. Para ver isso, vou sugerir um argumen-to que, segundo creio, nenhum autor jamais enfati-zou. E verdade que aqueles que baseiam seus argu-mentos na origem tardia das artes e ciências, embo-ra suas inferências não careçam de vigor, podem tal-vez ser refutados por meio de considerações deriva-das da natureza da sociedade humana, que oscila semcessar entre a ignorância e o conhecimento, a liber-

t dade e a escravidão, a prosperidade e a pobreza; detal modo que não nos é possível, a partir de nossalimitada experiência, prognosticar com segurançaquais eventos podem ou não ser esperados. A sabe-doria e a história da Antigüidade parecem ter cor-rido sério risco de perecer inteiramente após a inva-.isão dos povos bárbaros; e, caso essas convulsões setivessem prolongado um pouco mais, ou sido umpouco mais violentas, provavelmente não teríamoshoje conhecimento do que se passou no mundo pou-cos séculos antes de nossa época. Mais ainda, se não

.• fosse pela superstição dos papas — que preservaram

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86 DIÁLOGOS SOBRE A RELIGIÃO NATURAL

algum latim estropiado para manter a aparência deuma igrej a antiga e universal — aquela língua pode-ria ter-se perdido por inteiro; nesse caso, o mundoocidental, mergulhado em completa barbárie, nãoestaria adequadamente preparado para receber o idio-ma e o saber dos gregos, que lhe foram transmiti-dos após o saque de Constantinopla. Se o conheci-mento e os livros tivessem sido aniquilados, até mes-mo as artes mecânicas viriam a experimentar umadecadência considerável; e é facilmente imaginávelque a lenda ou tradição pudessem chegar a atribuir-lhes uma origem muito mais tardia do que realmenteé o caso. Assim, o tipo comum de argumento con-tra a eternidade do mundo aparenta ser um tantoprecário.

Mas parece haver, aqui, a base para um argumen-to melhor. Lúculo foi o primeiro a trazer as cerejei-ras da Asia para a Europa, embora essa árvore pros-pere tão bem em muitos climas europeus a pontode crescer nos bosques, sem qualquer cultivo. Seriapossível que, durante uma eternidade inteira, ne-nhum europeu jamais tivesse passado pela Asia e pen-sado em transplantar um fruto tão delicioso para suaprópria terra? Ou, se essa árvore já tivesse algumavez sido transplantada e difundida, como poderiater-se extinguido a seguir? Impérios podem erguer-se e tombar, liberdade e escravidão sucederem-se al-ternadamente, ignorância e sabedoria darem lugaruma á outra, mas a cerejeira continuará a existir nosbosques da Grécia, Espanha e Itália, sem jamais serafetada pelas oscilações da sociedade humana.

Não se passaram ainda dois mil anos desde queas vinhas foram transplantadas para a França, em-

PARTE VI 87born não haja no mundo clima que lhes seja maisfavorável. Há três séculos, cavalos, vacas, ovelhas, suí-nos, cães e cereais eram desconhecidos na América.Será possível que, durante os ciclos de toda uma eter-nidade, nunca tenha surgido um Colombo que inau-gurasse a comunicação entre a Europa e aquele con-

` tinente? Seria o mesmo que imaginar que as pessoaspudessem usar meias por dez mil anos sem nuncaterem pensado em inventar ligas para prendê-las. To-das estas parecem constituir provas convincentes dajuventude, ou mesmo infância do mundo, dado queestão baseadas na operação de princípios mais cons-tantes e estáveis do que os que dirigem e governama sociedade humana. Nada menos do que uma con-vulsão total dos elementos seria requerida para a des-

' truição de todos os animais e vegetais de origem eu-ropéia que hoje são encontrados em todo o mundoocidental.

Filo: E qual é o argumento de que você dispõecontra tais convulsões? Provas poderosas e quase in-questionáveis podem ser recolhidas por toda a Ter-ra para o fato de que cada uma das partes deste glo-

' bo permaneceu por muitas eras inteiramente sub-mersa em água. E, ainda que se supusesse que a or-dem é inseparável da matéria, e inerente a ela, a ma-téria pode ser suscetível de muitas e vastas pertur-

; bações, através dos infinitos períodos da duração eter-l na. As mudanças incessantes ás quais cada parte da

matéria está sujeita parecem sugerir a ocorrência detransformações gerais desse tipo, embora se possa ob-servar, ao mesmo tempo, que todas as mudanças edegradações das quais temos experiência não são mais

i do que passagens de um estado de ordenação para

I

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88 DIÁLOGOS SOBRE A RELIGIÃO NATURAL

outro; e que a matéria não pode jamais permanecerem um estado de total deformidade e confusão. Oque observamos nas partes podemos inferir em re-lação ao todo; pelo menos, esse é o método de ra-ciocínio no qual você baseia toda a sua teoria. E seeu estivesse obrigado a defender algum sistema par-ticular dessa natureza (o que jamais faria de bom gra-do), não haveria nenhum que eu considerasse comomais plausível do que o que atribui ao mundo umprincípio de ordem eterno e inerente, embora acom-panhado de grandes e ininterruptas perturbações ealterações. Isto solucionaria de uma vez todas as di-ficuldades; e se a solução, por ser tão geral, não éinteiramente completa e satisfatória, é pelo menosuma teoria á qual cedo ou tarde precisaremos recor-rer, seja qual for o sistema que tivermos adotado.De que forma as coisas poderiam ter chegado a sercomo são se não houvesse em algum lugar, no pen-samento ou na matéria, um princípio ordenador ine-rente e originário? E indiferente a qual dos dois con-cedemos nossa preferência. Em qualquer hipótese,cética ou religiosa, o acaso não pode ter lugar. Tudoestá certamente governado por leis fixas e inviolá-veis; e, se a essência mais recôndita das coisas viessea abrir-se para nós, descobriríamos então um cená-rio do qual presentemente não podemos ter a me-nor idéia. Em lugar de admirar a ordem dos seresnaturais, veríamos claramente que lhes teria sido ab-solutamente impossível apresentar, no mais ínfimodetalhe, qualquer outra disposição.

Se alguém desejasse reviver a antiga teologia pa-gã que sustentava, como lemos em Hesíodo, que es-te globo era governado por trinta mil deidades, nas -

PARTE VI 89cidas dos poderes desconhecidos da Natureza, vo-cê, Cleantes, naturalmente retrucaria que nada se lu-cra com essa hipótese; e que é igualmente fácil su-por que todos os homens e animais — seres maisnumerosos, mas menos perfeitos — tenham brota-do sem intermediação de uma fonte desse tipo. Le-ve essa mesma inferência um passo adiante e vocêconstatará que uma sociedade de numerosas deida-des é tão compreensível quanto uma única deidadeuniversal que contenha em si mesma os poderes eperfeições daquela sociedade como um todo. Vocêdeverá admitir, assim, que todos estes sistemas — oceticismo, o politeísmo e o teísmo — estão, de acor-do com os princípios que você defende, em pé deigualdade; e que nenhum deles apresenta qualquervantagem sobre os outros. E disto você poderá con-cluir que seus princípios são falaciosos.

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PARTE VII

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Filo: Ao examinar, contudo o antigo sistemada alma do mundo, surge-me de súbito uma novaidéia que, se for correta, deve levar quase ruína to-dos os seus raciocínios e destruir até mesmo as infe-rências mais primordiais s quais você dedica tantaconfiança. Se o Universo apresenta uma maior se-melhança com organismos animais e vegetais do quecom os produtos do artifício humano, é provávelque sua causa se assemelhe mais ás causas dos pri-meiros do que ás dos segundos; e sua origem deve-ria ser atribuída mais apropriadamente geração ouvegetação do que razão ou desígnio. Sua conclu-são, mesmo de acordo com seus princípios, surgeentão como falha e defeituosa.

Demea: Peço-lhe que estenda um pouco esseargumento, pois não posso compreendê-lo muitobem na forma concisa em que voce o expressou.

Filo: Nosso amigo Cleantes, como você bemouviu, parte da suposição de que toda questão de

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94 DIÁLOGOS SOBRE A RELIGIÃO NATURAL

fato só pode ser decidida pela experiência para de-clarar que é apenas por esse meio que se pode pro-var a existência de Deus. O mundo, diz-nos ele,assemelha-se aos produtos do engenho humano; suacausa, portanto, também deve assemelhar-se ás des-ses produtos. Aqui se poderia observar que a opera-ção de uma parte muito pequena da Natureza — asaber, o ser humano — sobre outra parte igualmen-te pequena — a saber, a matéria inanimada que estáao alcance desse ser — é a regra pela qual Cleantesjulga acerca da origem do todo; e que objetos tãodesproporcionais são aferidos por ele segundo o mes-mo padrão individual. Deixando de lado, porém,as objeções que vão nessa direção, eu afirmo que háoutras partes do Universo (além das máquinas re-sultantes da invenção humana) que guardam umasemelhança ainda maior com a textura do mundo,e que, por essa razão, dão ensejo a uma conjeturamais plausível acerca da origem universal desse sis-tema. Essas partes são os animais e os vegetais. E evi-dente que o mundo é mais semelhante a um animalou vegetal do que a um relógio ou tear; assim, é maisprovável que sua causa se assemelhe causa dos pri-meiros, que é a geração, ou vegetação. Podemos in-ferir, assim, que a causa do mundo é alguma coisasimilar ou análoga geração ou vegetação.

Demea: Mas como conceber que o mundo pos-sa surgir de algo semelhante á vegetação ou geração?

Filo: Muito facilmente. Do mesmo modo queuma árvore espalha suas sementes nos campos vizi-nhos e ocasiona o surgimento de outras árvores, as-sim também o grande vegetal — o mundo, ou estesistema planetário — produz dentro de si certas se-

PARTE VII 95mentes que, dispersando-se no caos circundante, fa-zem germinar novos mundos. Um cometa, porexemplo, é a semente de um mundo; e, após atingiro pleno amadurecimento, pela passagem de um sola outro e de uma estrela a outra, é finalmente lança-do em meio aos elementos informes que jazem portoda parte ao redor do Universo, fazendo brotar ime-diatamente um novo sistema.

Ou então, se supusermos (pelo gosto da varie-dade, pois não vejo outra vantagem) que este mun-do é um animal, um cometa será o ovo desse ani-mal; e, assim como um avestruz põe seu ovo na areia,a qual, sem nenhum cuidado posterior, choca o ovoe produz um novo animal, da mesma forma...

Demea: Compreendo-o agora. Mas que supo-sições desatinadas e arbitrárias são essas? De que da-dos dispõe você para tão espantosas conclusões? Es-sa semelhança superficial e imaginária do mundo aum vegetal ou um animal seria porventura suficientepara ratificar a mesma inferência em relação a am-bos? Será que objetos que são em geral tão ampla-mente distintos deveriam ser tomados como padrãoum para o outro?

Filo: Precisamente! Esse é o ponto sobre o qualvenho insistindo durante todo o tempo. Afirmei,além disso, que não dispomos de dados para decidiracerca de qualquer sistema de cosmogonia. Nossaexperiência, em si mesma tão imperfeita e tão limi-tada tanto em alcance como em duração, não nospode oferecer qualquer conjetura plausível acerca datotalidade das coisas. Se, porém, formos obrigadosa nos fixar em alguma hipótese, qual seria a regra,eu pergunto, pela qual deveríamos guiar nossa esco-

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96 DIÁLOGOS SOBRE A RELIGIÃO NATURAL

lha? Há qualquer outra regra, que não a grande si-milaridade dos objetos comparados? E não é verda-de que uma planta, ou um animal, procedente dageração ou vegetação, guarda uma semelhança maismarcante com o mundo do que a observada em qual-quer máquina artificial, procedente da razão e dodesígnio?

Demea: Mas o que é essa vegetação e geraçãode que você fala? Pode você explicar suas operaçõese dissecar a refinada estrutura interna de que elas de-pendem?

Filo: Ao menos tanto quanto Cleantes pode ex-plicar as operações da razão, ou dissecar a estruturainterna da qual ela depende. No entanto, quandoeu vejo um animal, posso inferir, sem qualquer des-sas laboriosas investigações, que ele proveio da ge-ração; e isso com uma certeza tão grande quantoaquela com que você conclui que uma casa foi er-guida pelo desígnio. Estas palavras, "geração" e "ra-zão", indicam somente certos poderes e atividadesnaturais, cujos efeitos conhecemos, mas cuja essên-cia nos é incompreensível; e nenhum desses princí-pios, mais do que o outro, se destaca o suficientede modo a ser tomado como um padrão para a Na-tureza em sua totalidade.

Na realidade, Demea, pode-se razoavelmente es-perar que, quanto mais ampla a perspectiva com queencararmos as coisas, melhor ela nos guiará em nos-sas conclusões acerca desses assuntos extraordináriose magníficos. Há, apenas neste pequeno recanto domundo, quatro princípios: razão, instinto, geração evegetação, que são similares uns aos outros e são cau-sas de efeitos semelhantes. Que número de outros

PARTE VII 97

princípios não poderíamos naturalmente supor co-mo existindo na imensa extensão e variedade do Uni-verso, se nos fosse dado viajar de um planeta a ou-tro, e de um sistema a outro, a fim de examinar ca-da parte dessa trama prodigiosa? Qualquer um des-ses quatro princípios mencionados acima (e cente-nas de outros que se abrem á nossa conjetura) é ca-paz de nos fornecer uma teoria para julgar sobre aorigem do mundo; e constitui uma flagrante e ex-traordinária parcialidade restringir por completo nos-sa perspectiva ao princípio que governa a operaçãode nossas próprias mentes. Se esse princípio se tor-nasse com isso mais inteligível, tal parcialidade po-deria ser de algum modo desculpável. Mas a razão,na sua trama e estrutura internas, é-nos na verdadetão pouco conhecida quanto o instinto e a vegeta-ção; e talvez nem mesmo a palavra "natureza" —esse termo vago e indeterminado ao qual o vulgotudo refere — seja, no fundo, mais inexplicável. Osefeitos desses princípios são-nos todos conhecidospela experiência; mas os princípios mesmos, e suamaneira de operar, são totalmente ignorados. E di-zer que o mundo proveio da vegetação não é me-nos inteligível, ou menos conforme à experiência,do que dizer que ele proveio de uma divina razãoou invenção, no sentido em que Cleantes a concebe.

Demea: No entanto, parece-me que, se o mun-do tivesse uma qualidade vegetativa e pudesse semearas sementes de novos mundos em meio ao caos in-finito, esse poder constituiria, mais uma vez, um ar-gumento adicional para a existência de um propósi-to em seu autor. Pois de onde poderia originar-seuma faculdade tão admirável, se não do desígnio?Ou ainda, como poderia a ordem brotar de algo que

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98 DIÁLOGOS SOBRE A RELIGIÃO NATURAL

é incapaz de perceber a ordem que está fazendosurgir?

Filo: Basta apenas que você olhe ao seu redorpara obter a resposta a essa questão. Uma árvore con-fere ordem e organização a uma outra árvore quedela procede sem ter qualquer conhecimento dessaordem. O mesmo ocorre a uma animal em relaçãoa sua prole, e a um pássaro em relação a seu ninho;e casos dessa espécie são até mais freqüentes no mun-do do que aqueles em que a ordem surge da razãoe do artifício. Dizer que toda essa ordem caracterís-tica dos animais e vegetais provém, em última ins-tancia, do desígnio é pressupor a própria tese quese deseja estabelecer. Não podemos decidir essa im-portante questão a não ser provando a priori quea ordem está inseparavelmente ligada, por sua pró-pria natureza, ao pensamento; e que ela, por si mes-ma ou com base em princípios fundamentais des-conhecidos, não pode jamais ser inerente á matéria.

Além disso, Demea, uma objeção como essa quevocê levantou não poderia de modo algum ser uti-lizada por Cleantes, pois equivaleria a renunciar auma defesa que ele já empregou contra uma de mi-nhas objeções. Quando lhe perguntei pelas causasdaquela suprema razão e inteligência á qual ele re-duz todas as coisas, ele observou que a impossibili-dade de responder satisfatoriamente a tais questõesnão poderia jamais ser admitida como uma objeçãoem qualquer espécie de filosofia. "Devemos pararem algum lugar", diz ele, "pois jamais estará ao al-cance da capacidade humana explicar as causas fun-damentais ou exibir as derradeiras conexões de quais-quer objetos. E suficiente que cada um dos passos

PARTE VII 99esteja apoiado, até onde pudermos chegar, pela ex-periência e observação:" Ora, é inegável que a vege-tação e a geração fazem parte, tanto quanto a razão,dos princípios ordenadores da Natureza que nos sãorevelados pela existência. Se eu baseio meu sistemacosmogônico nos primeiros, de preferência ao últi-mo, isso e uma simples decorrência da minha esco-lha: a questão parece ser inteiramente arbitrária. Equando Cleantes me pergunta pela causa dessa grandefaculdade vegetativa ou gerativa, tenho o mesmo di-reito de pedir-lhe a causa de seu grande princípioracional. Tanto eu como ele já concordamos em evi-tar esse tipo de questões; e no presente caso é de seuespecial interesse manter-se fiel ao acordo, pois, a jul-gar pela nossa experiência imperfeita e limitada, ageração apresenta algumas vantagens sobre a razão,já que diariamente presenciamos o surgimento des-ta última a partir da primeira, e nunca o contrário.

Compare, eu lhe peço, as conseqüências de ca-da uma das posições. O mundo, digo eu, parece-sea um animal; portanto ele é um animal; portantoproveio da geração. São passos amplos, confesso, mascada qual preserva uma pequena aparência de ana-logia. Para Cleantes, o mundo parece-se a uma má-quina; portanto ele é uma máquina; portanto pro-veio do desígnio. Também aqui os passos são am-plos, sendo a analogia, contudo, menos convincen-te. E, se ele pretende levar minha hipótese um passoadiante, remetendo o grande princípio da geraçãoque eu defendo ao desígnio ou razão, eu posso, commaior autoridade, usar da mesma liberdade paraacrescentar um passo a mais em sua hipótese e re-meter seu princípio racional a uma geração divina,

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100 DIÁLOGOS SOBRE A RELIGIÃO NATURAL

ou teogonia. Tenho, a meu favor, pelo menos umaleve sombra de evidência experimental, o que cons-titui o máximo que se pode alcançar no presente as-sunto: há incontáveis casos em que se observa a ra-zão surgindo do princípio de geração, mas não te-mos nenhuma experiência de seu surgimento a par-tir de qualquer outro princípio.

Hesíodo e todos os demais mitólogos da Anti-güidade ficaram tão fascinados com essa analogia aponto de explicarem universalmente a origem da Na-tureza por meio de um nascimento e copulação ani-mal. Também Platão, tanto quanto nos é possívelcompreendê-lo, parece ter adotado uma idéia seme-lhante em seu Timeu.

Os brâmanes asseveraram que o mundo surgiude uma aranha infinita, que teceu de suas entranhastoda essa complicada massa, e que a seguir o aniqui-la, no todo ou em parte, reabsorvendo-o e dissol-vendo-o em sua própria essência. Temos aqui umaespécie de cosmogonia que nos parece ridícula, poisuma aranha é um animal pequeno e desprezível, cujasoperações jamais estaremos inclinados a tomar co-mo um modelo para o Universo inteiro. Contudo,mesmo em relação ao que se observa em nosso mun-do, também há, neste caso, uma nova espécie de ana-logia. E se existisse um planeta habitado exclusiva-mente por aranhas (o que é bem possível), essa infe-rência pareceria ali tão natural e inquestionável co-mo a que, em nosso planeta, atribui a origem de to-das as coisas ao desígnio e inteligência, conforme aconcepção de Cleantes. E lhe será difícil dar umaboa razão para não admitir que um ventre seja ca-paz, tão bem quanto um cérebro, de tecer um siste-ma ordenado.

PARTE VII 101Cleantes: Sou obrigado a confessar que a ta-

refa de levantar dúvidas e objeções á qual você, Fi-lo, se propôs convém-lhe melhor do que a qualquerdos homens que presentemente vivem, e parece ser-lhe, de um certo modo, natural e inevitável. Tao gran-de é a fertilidade de sua invenção que não me en-vergonho de admitir meu despreparo para resolvermetodicamente, de imediato, todas as inauditas di-ficuldades que você incansavelmente suscita contramim, mesmo percebendo claramente, de modo ge-ral, que elas são falaciosas e errôneas. E não tenhonenhuma dúvida de que você próprio — não tendoa solução tão a seu alcance quanto a objeção — estápresentemente na mesma condição; e deve do mes-mo modo reconhecer que tanto o senso comum co-mo a razão lhe são inteiramente contrários e que asexcentricidades que você nos propõe podem talvezlevar á perplexidade, mas nunca ao convencimento.

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PARTE VIII

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Filo: Aquilo que você atribui á fertilidade deminha invenção deve-se inteiramente ã natureza doassunto. Nos assuntos adequados ao âmbito estrei-to da razão humana só há, normalmente, uma úni-ca conclusão que traz consigo plausibilidade ou con-vencimento; e todas as outras suposições que nãoaquela parecem, a uma pessoa de bom juízo, total-mente absurdas e fantasiosas. Mas em questões co-mo as de que presentemente nos ocupamos, cente-nas de perspectivas contraditórias podem preservarum certo grau de analogia imperfeita, e a inventivi-dade dispõe aqui de um amplo campo para exercer-se. Acredito que eu poderia, sem grande esforço in-telectual, propor agora mesmo outros sistemas cos-mogônicos que teriam uma leve aparência de ver-dade, embora as chances de que o seu sistema, ouqualquer um dos meus, seja o sistema verdadeiro se-jam de mil, de um milhão contra um.

E se eu revivesse, por exemplo, a velha hipótese

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106 DIÁLOGOS SOBRE A RELIGIÃO NATURAL

epicurista? É comum considera-la — e creio que comjustiça — como o sistema mais absurdo que já foiproposto, mas não estou certo de que, com algumaspoucas alterações, ela não possa vir a adquirir umaligeira aparência de plausibilidade. Em vez de suporque a matéria é infinita, como o fez Epicuro, vamossupô-la finita. Um número finito de partículas sóé suscetível de finitas transposições; e, em uma du-ração eterna, deve ocorrer que cada ordem ou posi-ção possível seja exemplificada um número infinitode vezes. Nosso mundo, portanto, com todos seuseventos, mesmo os mais insignificantes, já foi ante-riormente produzido e destruído, e o será de novo,sem qualquer limite ou restrição. Ninguém que te-nha uma clara concepção dos poderes do infinito,em comparação ao finito, poderá jamais duvidar des-ta conclusão.

Demea: Mas isto pressupõe que a matéria po-de adquirir movimento sem que intervenha um agen-te, ou primeiro motor, dotado de vontade.

Filo: E que dificuldade haveria nessa suposição?Qualquer acontecimento, antes de ser experimen-tado, é igualmente obscuro e incompreensível, e to-dos eles, após a experiência, surgem como igualmenteclaros e inteligíveis. O movimento, em muitos ca-sos, seja pela gravitação, pela elasticidade ou pela ele-tricidade, inicia-se na matéria, sem que se conheçaum agente que o tenha voluntariamente iniciado; esupor que nesses casos sempre há um tal agente nãoseria mais do que mera hipótese, e uma hipótese quenãd traz consigo qualquer vantagem. O início domovimento na própria matéria é a priori tão con -

PARTE VIII 107cebível quanto sua comunicação a partir da mente,ou da inteligência.

Além disso, por que o movimento não poderiater-se propagado por impulso, através de toda a eter-nidade, de modo que a mesma porção dele, ou qua-se a mesma, ainda se preserve no Universo? Tudoo que se perde pela composição do movimentoganha-se em sua resolução. E, sejam quais forem ascausas disto, é certo que a matéria esta, e sempre es-teve, em contínua agitação, até onde se pode saberpela experiência humana ou pela tradição. Não ha,provavelmente, em todo o Universo, uma só partí-cula de matéria que esteja, neste momento, em re-pouso absoluto.

E esta mesma consideração, com a qual nos de-paramos no curso do argumento, sugere ainda umanova hipótese cosmogônica que não é de modo al-guma absurda e improvável. Haveria um sistema,uma ordem, uma organização das coisas mediantea qual a matéria pudesse preservar essa agitação in-cessante que lhe parece essencial e, ao mesmo tem-po, manter constantes as formas que ela produz? Eclaro que ha uma tal organização, pois é isso, de fa-to, o que sucede em nosso mundo presente. O mo-vimento incessante da matéria deve, portanto, emum número finito de transposições, chegar a pro-duzir essa ordem ou organização; e essa ordem, umavez estabelecida, deve se auto-sustentar, pela sua pró-pria natureza, ao longo de muitas eras ou mesmoda eternidade. Ora, onde quer que a matéria se equi-libre, arranje e ajuste de modo a preservar, apesarde seu contínuo movimento, uma constância nas for-mas, sua disposição devera necessariamente apresen-

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108 DIÁLOGOS SOBRE A RELIGIÃO NATURAL

tar a mesma aparência de arte e engenho que pre-sentemente observamos. As partes de cada forma de-vem manter uma relação entre si e com o todo; eeste, por sua vez, deve estar relacionado com as ou-tras partes do Universo, com o meio no qual a for-ma subsiste, com os materiais de que se serve parareparar seu desgaste e deterioração, e com toda ou-tra forma que lhe seja hostil ou favorável. Uma fa-lha em quaisquer desses aspectos destrói a forma;e a matéria da qual ela se compõe libera-se e fica maisuma vez á mercê de movimentos e agitações irregu-lares, até que venha a unir-se a alguma outra formaregular. Se nenhuma forma desse tipo estiver pre-parada para recebê-la, e se houver uma grande quan-tidade dessa matéria degradada no Universo, entãoo próprio Universo estará inteiramente desordena-do, quer se trate do frágil embrião de um mundoem seus primórdios que é desse modo destruído, ouda carcaça apodrecida de um mundo debilitado pe-la velhice e enfermidade. Em qualquer dos casos so-brevém o caos, até que um número finito, mas in-contável de circunvoluções produza, por fim, algu-mas formas cujas partes e órgãos estejam ajustadosde modo a sustentar as formas em meio a um fluxocontínuo de matéria.

Suponha-se (pois nos esforçaremos para variaro modo de expressão) que a matéria tivesse sido lan-çada em uma posição qualquer por uma força cegae não-direcionada; é evidente que esta primeira po-sição será, com toda probabilidade, a mais confusae desordenada que se pode imaginar, sem qualquersemelhança com as obras do engenho humano que,paralelamente simetria das partes, revelam um acor-

PARTE VIII 109do dos meios aos fins e uma tendência á autopreser-vação. Se a força atuante cessar após essa operação,a matéria deverá permanecer para sempre em desor-dem, persistindo um imenso caos desprovido dequalquer medida ou atividade. Suponha-se porémque a força atuante, seja ela qual for, continue pre-sente na matéria: a primeira posição dará lugar ime-diatamente a uma segunda que será igualmente, comtoda probabilidade, tão desordenada como a primei-ra, e assim por diante, através de uma longa suces-são de mudanças e circunvoluções. Nenhuma ordemou posição particular permanece inalterada sequerpor um momento. A força original, mantendo-se ematividade, transmite uma agitação permanente á ma-téria; e cada uma das situações possíveis se produze é instantaneamente destruída. Se um vislumbre ouesboço de ordem assoma por um momento, é ins-tantaneamente afastado e confundido pela força in-cessante que opera sobre todas as partes da matéria.

Assim prossegue o Universo por muitas eras, nu-ma sucessão contínua de caos e desordem. Mas nãoseria possível que ele viesse por fim a estabilizar-se,sem perder seu movimento e atividade (que, comosupusemos, são inerentes a ele), mas preservando,apesar disso, uma aparência uniforme em meio á mu-dança e flutuação contínuas de suas partes? De fato,vemos que isso é o que ocorre em nosso presenteUniverso. Cada indivíduo está em perpétua mudan-ça, bem como cada parte de cada indivíduo; mas otodo, não obstante, permanece aparentemente o mes-mo. Não seria razoável esperar a ocorrência de umasituação desse tipo, ou mesmo estar seguro dela, apartir das circunvoluções eternas da matéria não-

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110 DIÁLOGOS SOBRE A RELIGIÃO NATURAL

direcionada? E não poderia ser esta a explicação detoda a aparente sabedoria e engenho que se mani-festa no Universo? Basta uma pequena consideraçãodeste assunto para se perceber que esse ajuste, casose alcance por meio de uma estabilidade aparentenas formas, associada a um movimento real e per-pétuo das partes, proporciona uma solução plausí-vel, se não verdadeira, da dificuldade.

E fútil, portanto, insistir sobre a serventia daspartes nos animais ou vegetais e sobre o singular ajus-te de umas ás outras. Muito me agradaria saber co-mo seria possível a subsistência de um animal cujaspartes não estivessem assim ajustadas! Pois não ve-mos que sua morte segue-se de imediato sempre quecessa esse ajuste, e que sua matéria, degradando-se,procura alguma nova forma? Ocorre, na verdade, queas partes do mundo estão tão bem ajustadas que umaforma regular se apropria imediatamente dessa ma-téria corrompida. E poderia o mundo subsistir, seas coisas não se passassem dessa maneira? Não deve-ria ele dissolver-se, tanto quanto o animal, e passarpor novas situações e arranjos, até que, em um nú-mero imenso, mas finito de etapas, reassumisse, porfim, a ordem presente, ou alguma ordem semelhante?

Cleantes: Você fez bem em dizer-nos que essahipótese ocorreu-lhe repentinamente no curso da dis-cussão. Se você a tivesse examinado com vagar, lo-go descobriria as insuperáveis objeções a que ela es-tá exposta. Você diz que nenhuma forma pode sub-sistir a menos que possua os poderes e órgãos reque-ridos para sua subsistência; alguma nova ordem ouorganização deve ser tentada, e assim por diante, seminterrupção, até que se chegue, por fim, a alguma

PARTE VIII 111ordem que possa sustentar-se e manter-se. Mas deonde proviriam, de acordo com essa hipótese, as mui-tas conveniências e vantagens que os seres humanose todos os animais possuem? Dois olhos e dois ou-vidos não são absolutamente necessários para a sub-sistência da espécie. A raça humana poderia ter-sepropagado e preservado sem cavalos, cães, vacas, ove-lhas e todos os inumeráveis frutos e produtos queservem ao nosso gozo e satisfação. Se os camelos nãotivessem sido criados para que os homens os empre-gassem nos desertos arenosos da Africa e da Arábia,teria o mundo se dissolvido por causa disso? Teriama sociedade e a espécie humanas se extinguido ime-diatamente se não houvesse os ímãs que comunicamá agulha sua extraordinária e utilíssima direção? Ain-da que os ditames da Natureza se caracterizem emgeral pela frugalidade, exemplos desse tipo estão lon-ge de serem raros, e qualquer um deles constitui umaprova suficiente de designio, e de um designio be-nevolente, que deu origem á ordem e arranjo doUniverso.

Filo: Pelo menos você pode inferir com segu-rança que a hipótese precedente é, nessa medida, in-completa e imperfeita, o que não hesito em conce-der. Mas seria razoável esperar obter um sucessomaior em qualquer tentativa desta natureza? Pode-ríamos pretender edificar um sistema cosmogónicoimune a toda objeção e isento de qualquer aspectoincompatível com nossa limitada e imperfeita expe-riência da analogia da Natureza? Sua própria teorianão pode, com certeza, atribuir-se qualquer uma des-sas vantagens, ainda que você tenha recorrido ao an-tropomorfismo para melhor preservar um acordo

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112 DIÁLOGOS SOBRE A RELIGIÃO NATURAL

com a experiência comum. Vamos pô-la prova no-vamente. Em todos os exemplos que já presencia-mos, as idéias são copiadas dos objetos reais e sãoectípicas, não arquetípicas, para expressar-me em ter-mos eruditos. Você reverte essa ordem e dá prece-dência ao pensamento. Em todos os casos que pre-senciamos, o pensamento não tem influência sobrea matéria, exceto naqueles em que essa matéria estáde tal modo conjugada ao pensamento a ponto deexercer igualmente uma influência recíproca sobreele. Nenhum animal pode mover alguma coisa semintermediação, a não ser os membros de seu corpo;e, na verdade, a igualdade entre ação e reação pareceser uma lei universal da Natureza. Sua teoria, po-rém, está em contradição com esta experiência. Es-ses exemplos, e muitos outros que seria fácil coligir(particularmente a concepção da mente, ou sistemade pensamento, como algo eterno; em outras pala-vras, um animal não-gerado e imortal), esses exem-plos, repito, poderiam ensinar-nos a ser sóbrios emnossas condenações mútuas e fazer-nos ver que, as-sim como nenhum sistema desse tipo deve jamaisser aceito com base em uma frágil analogia, do mes-mo modo nenhum deles deve ser rejeitado por cau-sa de uma pequena incongruência. Pois essa é umainconveniência da qual, com justiça, pode-se decla-rar que nenhum sistema está isento.

Admite-se que todos os sistemas religiosos estãoexpostos a grandes e insuperáveis dificuldades. Ca-da um dos competidores experimenta por sua vezo triunfo enquanto se empenha na ofensiva e denun-cia os absurdos, as barbaridades e as doutrinas per-niciosas de seu antagonista. Mas todos eles, em con-

PARTE VIII 113junto, proporcionam um triunfo completo ao céti-co, que lhes diz que nenhum sistema deve ser ado-tado com relação a esses tópicos; e isto pela simplesrazão de que não se deve jamais dar o assentimentoa um absurdo, em qualquer assunto que seja. Umasuspensão integral do juízo é, para nós, o único re-curso razoável nestes casos. E se, como normalmentese observa, todos os ataques entre teólogos são bem-sucedidos e nenhuma defesa o é, quão completa nãoserá a vitória daquele que, junto com toda a huma-nidade, se mantém sempre na ofensiva e não ocu-pa, de sua parte, um terreno fixo ou residência per-manente que estivesse em todas as ocasiões obriga-do a defender!

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PARTE IX

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Demea: Mas se são tantas as dificuldades queacompanham o argumento a posteriori, não seria me-lhor apegarmo-nos ao simples e sublime argumen-to a priori, o qual, ao oferecer-nos uma demonstra-ção infalível, elimina desde o início todas as dúvi-das e dificuldades? Além disso, este argumento per-mite-nos provar a infinitude dos atributos divinos,coisa que, segundo receio, jamais poderia ser esta-belecida com certeza a partir de qualquer outra con-sideração. Pois como poderia um efeito que é finitoou, por tudo que sabemos, poderia sê-lo; como po-deria um tal efeito, eu repito, servir de prova parauma causa infinita? E também é muito difícil, se nãoabsolutamente impossível, deduzir a unidade da na-tureza divina simplesmente a partir da contempla-ção das obras da Natureza; e mesmo a uniformida-de por si só do plano, admitindo-se que haja tal uni-formidade, não nos dá qualquer garantia desse atri-buto. Ao passo que o argumento a priori...

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118 DIÁLOGOS SOBRE A RELIGIÃO NATURAL

Cleantes: Você parece raciocinar como se es-sas vantagens e conveniências do argumento em abs-trato fossem provas plenas de sua solidez. Mas, emminha opinião, é preciso inicialmente decidir qualé, dentre os argumentos dessa espécie, aquele ao qualvocê escolheu referir-se. Trataremos, em seguida, dedeterminar qual o valor que devemos atribuir-lhe,julgando-o por si mesmo e não pela utilidade de suasconseqüências.

Demea: O argumento no qual insisto é aque-le comumente reconhecido. Tudo o que existe deveter uma causa ou razão para sua existência, pois éabsolutamente impossível que alguma coisa produ-za a si mesma, ou seja causa de sua própria existên-cia. Ao remontar, assim, dos efeitos ás causas, ou bemprosseguimos através de uma sucessão infinita, semjamais alcançar uma causa última, ou bem temos derecorrer por fim a uma causa última que existe ne-cessariamente. Mas pode-se provar que a primeira su-posição é absurda, pois, na cadeia ou sucessão infi-nita de causas e efeitos, cada efeito singular tem suaexistência determinada pelo poder ou eficácia daque-la causa que o precede imediatamente, ao passo quea cadeia ou sucessão eterna, tomada em conjunto,não terá qualquer causa ou determinação. E, no en-tanto, é evidente que ela requer uma causa ou ra-zão, tanto quanto qualquer objeto particular que co-meça a existir no tempo. E razoável perguntar porque essa particular sucessão de causas teria existidodesde a eternidade, e não qualquer outra sucessão,ou mesmo nenhuma sucessão. Se não há um ser ne-cessariamente existente, qualquer suposição que sepossa formular é igualmente possível; assim, que nada

PARTE IX 119tivesse existido desde toda a eternidade não seria umabsurdo maior do que a existência dessa sucessão decausas que constitui o Universo. O que foi, então,que determinou que algo existisse em vez de nada,e que conferiu um ser a uma possibilidade particu-lar, excluindo as restantes? Supusemos que não hácausas externas, e o acaso é uma palavra sem signifi-cação. Foi, talvez, o nada? Mas este jamais poderiaproduzir qualquer coisa. E precise, portanto, recorrera um Ser necessariamente existente, que traga a ra-zão de sua existência em si mesmo; e que só á custade uma flagrante contradição se poderia supor quenão existisse. Há, conseqüentemente, um tal Ser —ou seja, há uma Divindade.

Cleantes: Não vou permitir a Filo (embora sai-ba que nada lhe agrada mais do que levantar obje-ções) apontar a fraqueza desse raciocínio metafísi-co. Ele me parece tão obviamente infundado e, aomesmo tempo, de tão pouca relevância para a causada verdadeira devoção e religiosidade, que eu mes-mo vou aventurar-me a mostrar sua falácia.

Começo por notar que há um absurdo eviden-te na pretensão de demonstrar uma questão de fato,ou de prová-la por meio de qualquer argumento apriori. Nada é demonstrável a menos que seu con-trário implique uma contradição. Nada que é dis-tintamente concebível implica uma contradição. Tu-do que concebemos como existente também pode-mos conceber como inexistente. Assim, não há qual-quer ser cuja não-existência implique uma contra-dição. Conseqüentemente, nenhum ser pode ter suaexistência demonstrada. Apresento este argumentocomo totalmente decisivo, e estou disposto a baseara controvérsia inteira sobre ele.

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120 DIÁLOGOS SOBRE A RELIGIÃO NATURAL

Supõe-se que a Divindade é um ser necessariamen-te existente, e busca-se explicar a necessidade de suaexistência pela asserção de que, se conhecêssemos in-tegralmente sua essência ou natureza, perceberíamosque é tão impossível que ele não exista como que duasvezes dois não sejam quatro. Mas é claro que isso ja-mais poderá ocorrer enquanto nossas faculdades per-manecerem tal como presentemente são. Sempre nosserá possível, a qualquer momento, conceber a não-existência daquilo que antes supusemos existir; e tam-pouco está a mente submetida á necessidade de su-por que qualquer objeto persistirá existindo para sem-pre, da maneira pela qual estamos submetidos á ne-cessidade de supor sempre que duas vezes dois são qua-tro. Assim, as palavras "existência necessária" não têmsignificação; ou, o que dá na mesma, não têm nenhu-ma significação que seja consistente.

Mas, além disso, por que não poderia esse Sernecessariamente existente, de acordo com essa pre-tensa explicação de necessidade, ser constituído pe-lo próprio universo material? Não ousamos afirmarque conhecemos todas as qualidades da matéria; e,por tudo que podemos decidir, ela pode possuir al-gumas qualidades que, se fossem conhecidas, fariamsua não-existência aparecer como uma contradiçãotão grande como a de que duas vezes dois sejam cin-co. Só tenho conhecimento de um único argumen-to empregado para provar que o mundo material nãoé o Ser necessariamente existente; e esse argumentoderiva-se da contingência tanto da matéria como daforma do mundo. "Qualquer partícula de matéria",diz-se 5 , " pode ser concebida como sofrendo aniqui-

5. Dr. Clarke.

PARTE IX 121lação, e qualquer forma pode ser concebida comosofrendo alteração. Tal aniquilação ou alteração nãoé, portanto, impossível" No entanto, pareceria gran-de parcialidade não reconhecer que o mesmo argu-mento se estende igualmente á Divindade, tantoquanto nos é dado concebê-la; e que a mente pode,pelo menos, imaginá-la como não-existente, ou co-mo tendo seus atributos alterados. Se algo faz essanão-existência aparecer como impossível, ou seusatributos como inalteráveis, deve tratar-se de certasqualidades desconhecidas e inconcebíveis; e não hárazão para que tais qualidades não possam perten-cer também á matéria, pois, dado que são comple-tamente desconhecidas e inconcebíveis, não se po-derá jamais provar que elas lhe sejam incompatíveis.

Acresça-se a isto o fato de que, ao se esquadri-nhar uma sucessão eterna de objetos, parece absur-do perguntar por uma causa geral, ou primeiro au-tor. Como poderia haver uma causa de algo que exis-te desde a eternidade, se essa relação envolve umaprioridade no tempo e um começo de existência?

Além disso, em uma tal cadeia ou sucessão deobjetos, cada parte é causada pela precedente e é causada que lhe vem a seguir. Onde está, pois, a dificul-dade? Mas o todo, você diz, precisa ter uma causa.Minha resposta é que a união dessas partes em umtodo, assim como a união de várias províncias dife-rentes em um reino, ou de vários membros distin-tos em um corpo, realiza-se simplesmente por umato arbitrário da mente e não tem influência sobrea natureza das coisas. Se eu lhe tivesse mostrado ascausas particulares de cada indivíduo de uma cole-ção de vinte partículas materiais, seria muito pou-

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122 DIÁLOGOS SOBRE A RELIGIÃO NATURAL

co razoável que você me perguntasse, a seguir, pelacausa das vinte como um todo. Pois ela já foi sufi-cientemente explicada ao se explicarem as causas daspartes.

Filo: Embora os raciocínios apresentados porvocê, Cleantes, sej am suficientes para eximir-me delevantar novas dificuldades, não posso deixar de res-saltar ainda um tópico adicional. Aqueles que se ocu-pam da aritmética observam que os produtos de 9,se se adicionam os algarismos de que são formados,resultam sempre em 9 ou em algum outro produtode 9 menor do que aquele de que se partiu. Assim,a partir de 18, 27, 36, que são produtos de 9, obtém-se9 pela adição de 1 a 8, 2 a 7, 3 a 6. Do mesmo mo-do, também 369 é um produto de 9, e a adição de3, 6 e 9 resulta em 18, que é um produto de 9 me-nor do que aquele de que se partiu 6. Um observa-dor superficial poderia, ao contemplar uma regula-ridade tão admirável, tomá-la como o resultado doacaso ou de um desígnio, mas um algebrista com-petente a reconhece imediatamente como obra danecessidade, e pode demonstrar que ela resulta in-variavelmente da natureza desses números. Não éplausível, pergunto, que a organização integral doUniverso seja regida por uma necessidade semelhan-te, embora nenhuma álgebra humana possa forne-cer uma chave para a solução da dificuldade? E, emvez de nos admirarmos com a ordem dos seres na-turais, não poderia ocorrer que — caso pudéssemospenetrar na natureza recôndita dos corpos — che-gássemos a ver claramente a razão pela qual seria ab-

6. République des Lettres, agosto de 1685.

PARTE IX 123solutamente impossível que eles viessem, alguma vez,a admitir qualquer outra disposição? Como é peri-gosa a introdução da idéia de necessidade na presentediscussão, e quão naturalmente ela leva a uma infe-rência diretamente oposta à hipótese religiosa!

Deixando de lado, porém, todas essas abstraçõese limitando-nos a tópicos mais familiares, eu meaventuraria a observar, adicionalmente, que o argu-mento a priori raras vezes tem sido considerado mui-to convincente, exceto por pessoas de inclinações me-tafísicas que estão acostumadas a raciocínios abstra-tos e que, descobrindo com auxílio da matemáticaque o entendimento leva freqüentemente á verdadeatravés de caminhos obscuros e em oposição ás pri-meiras aparências, transferem o mesmo hábito depensamento a assuntos nos quais ele não deveria terlugar. Outras pessoas, mesmo dotadas de bom sen-so e bastante inclinadas á religião, sempre reconhe-cem alguma deficiência em tais argumentos, aindaque não sejam capazes, talvez, de explicar claramenteonde ela reside; o que é uma prova certa de que aspessoas sempre derivaram e sempre derivarão sua re-ligiosidade de fontes que não se confundem com estaespécie de raciocínio.

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I

PARTE X

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Demea: Confesso que também sou de opiniãoque cada pessoa, de um certo modo, experimentaem seu próprio peito a verdade da religião; e, a par-tir do conhecimento de sua própria estupidez e mi-seria, de preferencia a qualquer raciocínio, e levadaa buscar a proteção daquele Ser do qual ela e todaa Natureza dependem. Mesmo os melhores momen-tos da vida estão impregnados de angústia e aborre-cimento, de tal maneira que o futuro continua sen-do o objeto de todas as nossas esperanças e temores.Estamos incessantemente olhando á frente, e esfor-çando-nos por apaziguar, por meio de orações, cul-tos e sacrifícios, aqueles poderes desconhecidos quesabemos, por experiência, serem muito capazes denos atormentar e oprimir. Que recurso restaria a nós,criaturas tão desgraçadas, se a religião não nos suge-risse alguns métodos de expiação e não aplacasse osterrores que constantemente nos assaltam e ator-mentam?

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128 DIÁLOGOS SOBRE A RELIGIÃO NATURAL

Filo: Estou na verdade convencido de que o me-lhor e, de faco, o único método de despertar em to-das as pessoas um correto sentimento 'de religiosi-dade é a descrição imparcial da miséria e perversi-dade dos seres humanos. E, para essa finalidade,requer-se muito mais o talento da eloqüência e daimaginação vivida do que a habilidade nos raciocí-nios e argumentos. Haveria necessidade de provaraquilo que todos já sentem dentro de si mesmos?O que é necessário, simplesmente, é fazer-nos, se pos-sível, sentir isso de maneira mais íntima e ajuizada.

Demea: Na realidade, as pessoas já estão sufi-cientemente convencidas dessa grande e melancóli-ca verdade. As misérias da vida, a infelicidade do serhumano, as corrupções gerais de nossa natureza, ogozo insatisfatório dos prazeres, riquezas e honras:tais frases já se tornaram quase proverbiais em to-das as linguagens. E quem poderia pôr em dúvidaaquilo que todas as pessoas proclamam com baseimediata em seus próprios sentimentos e expe-riências?

Filo: Neste ponto, os sábios e o vulgo estão emperfeito acordo; e toda a literatura, sacra ou profa-na, tem insistido sobre o tópico da miséria huma-na, com a eloqüência mais patética que a dor e amelancolia podem inspirar. Os poetas, que falam apartir do sentimento, sem dispor de um sistema, ecujo testemunho tem, portanto, maior autoridade,excedem-se em imagens desse tipo. Desde Homeroaté o dr. Young, toda a tribo dos inspirados semprereconheceu que nenhuma outra forma de represen-tar as coisas poderia convir ao sentimento e obser-vação de cada indivíduo.

PARTE X 129

Demea: Quanto ás autoridades, nem é preci-so que você as procure. Lance os olhos por esta bi-blioteca de Cleantes. Eu me atreveria a afirmar que,com exceção dos autores de ciências especializadas,tais como a química ou a botânica, os quais não têmoportunidade de tratar da vida humana, dificilmentehaverá um único desses inumeráveis autores que nãotenha sido levado, pelo sentimento da miséria hu-mana, a expressar, em uma ou outra passagem, umaqueixa ou confissão dessa miséria. Todas as proba-bilidades, pelo menos, estão a favor disso, e não possorecordar-me de nenhum autor que tenha sido tãoextravagante a ponto de negar tal coisa.

Filo: Quanto a isso, peço-lhe que me desculpe,mas Leibniz negou-o, e foi talvez o primeiro 7 a ar-riscar uma conjetura tão ousada e paradoxal; ou, pelomenos, o primeiro a fazer dela algo essencial paraseu sistema filosófico.

Demea: E exatamente por ser o primeiro nãodeveria ele ter-se dado conta de seu erro? Será esteum assunto no qual os filósofos podem propor-sea fazer descobertas, especialmente em época tão tar-dia? E poderia alguém esperar, mediante um sim-ples desmentido (pois o assunto dificilmente admi-te argumento), pôr abaixo o testemunho unânimeda humanidade, fundado no sentimento e na re-flexão?

E por que deveria o ser humano pretender es-capar do fado de todos os outros animais? Acredite-me, Filo, a Terra inteira está amaldiçoada e corrom-

7. Essa opinião foi sustentada, antes de Leibniz, pelo dr.King e por um pequeno número de outros autores, embora ja-mais por alguém tão célebre como aquele filósofo alemão.

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130 DIÁLOGOS SOBRE A RELIGIÃO NATURAL

pida. Uma guerra perpétua está deflagrada entre to-das as criaturas vivas. A necessidade, a fome e a pri-vação estimulam os fortes e corajosos; o medo, a an-siedade e o terror inquietam os fracos e tímidos. Oingresso na vida angustia o recém-nascido e seus in-felizes pais. A debilidade, a impotência e a afliçãoacompanham cada estágio da vida, que termina, porfim, em agonia e horror.

Filo: Observe ainda os singulares artifícios em-pregados pela Natureza para amargurar a vida de to-do ser vivo. Os mais fortes lançam-se sobre os maisfracos e mantêm-nos em perpétuo terror e ansieda-de. Os mais fracos, por sua vez, atacam muitas ve-zes os mais fortes e os atormentam e importunamsem descanso. Considere a raça inumerável dos in-setos, que se procriam no corpo de cada animal ouque, voando ao seu redor, cravam-lhe seus aguilhões.Esses insetos têm outros, ainda menores que eles pró-prios, que, por sua vez, os atormentam. Assim, deum lado e de outro, frente e atrás, acima e abaixo,cada animal está cercado de inimigos, dedicados semcessará sua desgraça e destruição.

Demea: Somente o ser humano parece cons-tituir-se numa exceção parcial a essa regra. Pois, pe-la reunião em sociedade, ele pode facilmente domi-nar leões, tigres e ursos, cuja maior força e agilidadeos capacitariam naturalmente a fazer dele sua presa.

Filo: Pelo contrário, é principalmente aqui quese tornam mais visíveis as máximas uniformes e igua-litárias da Natureza! E verdade que o ser humanopode, pela associação, sobrepujar todos os seus ini-migos reais e tornar-se senhor de toda a criação ani-mal. Mas também não é verdade que ele imediata -

PARTE X 131mente cria para si inimigos imaginários, os demô-nios de sua fantasia, que o perseguem com terroressupersticiosos e arruinam todos os deleites da vida?Seu prazer, segundo ele imagina, torna-se um crimeaos olhos desses demônios; seu alimento e repousoaparecem-lhes como desrespeitoso e ofensivo. Mes-mo o sono e os sonhos fornecem novas ocasiões deterror angustiante; e a própria morte, seu refúgiocontra todos os outros males, só tem a lhe oferecero temor de penas inumeráveis e eternas. A afliçãoque o lobo traz ao rebanho medroso não é maiordo que a que a superstição produz no coração an-gustiado dos miseráveis mortais.

Considere além disso, Demea, a própria socie-dade por meio da qual conseguimos sobrepujar aque-les animais selvagens, nossos inimigos naturais: quan-tos novos inimigos ela não levanta contra nós, e quan-tas penas e aflições ela não ocasiona? O homem éo maior inimigo do homem. Opressão, injustiça, des-prezo, ultraje, violência, sublevação, guerra, calúnia,traição, fraude: tudo isto serve aos seres humanos paraatormentarem-se mutuamente; e a sociedade que for-maram logo seria por eles dissolvida, se não fossepelo temor dos males ainda maiores que devem ne-cessariamente resultar de sua separação.

Demea: Contudo, embora esses ataques exter-nos por parte de animais, de homens e de todos oselementos formem um terrível catálogo de desgra-ças, eles não são nada em comparação com aquelesque surgem dentro de nós mesmos, provenientes dacondição desequilibrada de nossa mente e nosso cor-po. Quantos não estão submetidos ao prolongadotormento das enfermidades? Ouça a enumeração pa-tética do grande poeta:

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132 DIÁLOGOS SOBRE A RELIGIÃO NATURAL

Pedra interna e úlcera, cólicas agudas,Furor demoníaco, melancolia prostrante,E demência lunática, atrofia corrosiva,Extenuação e pestilência devastadora.A agitação era horrível, e profundos os gemidos;O Desespero cuidava dos enfermos, correndo de leito

[em leito.E, por sobre eles, a Morte triunfante seu dardoBrandia, mas tardava a ferir, embora amiúde invocadaCom juras, como o maior bem e derradeira esperança*

As desordens mentais, embora mais ocultas, nãosão talvez menos lúgubres e opressivas. Remorso, ver-gonha, angústia, cólera, desilusão, ansiedade, medo,desalento, desespero: quem já terá passado pela vidasem ter sido cruelmente assaltado por esses atormen-tadores? E quantos não são os que dificilmente che-gam a experimentar qualquer sensação melhor doque essas? A labuta e a pobreza, tão detestadas portodos, são o destino inescapável da imensa maioria;e os poucos privilegiados que gozam de ócio e opu-lência jamais alcançam a satisfação ou a verdadeirafelicidade. Todos os bens da vida, em conjunto, nãoseriam suficientes para tornar alguém muito feliz,mas todos os males juntos torna-lo-iam sem dúvidamuito desgraçado; e qualquer um deles (e quem es-taria livre de todos?), mais ainda: a mera ausência

* Intestine stone and ulcer, colic-pangs, / Demoniac frenzy,moping melancholy, / And moon-struck madness, piningatrophy, / Marasmus, and wide-wasting pestilence. / Dire wasthe tossing, deep the groans: Despair / Tended the sick, bu-siest from couch to couch. / And over them triumphant Deathhis dart / Shook: but delay'd to strike, though oft invok'd /With vows, as their chief good and final hope.

(Milton, Paraíso Perdido, livro XI.)

PARTE X 133

de um bem (e quem poderia possuí-los todos?) é mui-tas vezes suficiente para tornar a vida indesejável.

Se um estranho chegasse de súbito a este mun-do, eu poderia exemplificar seus males mostrando-lhe um hospital cheio de doentes, uma prisão api-nhada de malfeitores e endividados, um campo debatalha salpicado de carcaças, uma frota naufragan-do no oceano, uma nação desfalecendo sob a tira-nia, fome ou pestilência. Mas para onde deveriaconduzi-lo se quisesse revelar-lhe o lado alegre davida e dar-lhe uma idéia de seus prazeres? A um baile,a uma ópera, á corte? Ele poderia muito bem pen-sar, e com razão, que o que lhe esta sendo exibidoe apenas uma nova variedade de pesares e desgostos.

Filo: Não é possível escapar desses exemploschocantes, a não ser por meio de apologias que agra-vam ainda mais a denúncia. Por que, eu me pergun-to, teriam todas as pessoas se queixado incessante-mente, em todas as épocas, das misérias da vida?...Alguém poderia dizer que ' elas não têm uma boarazão para isso, e que essas queixas procedem ape-nas de um caráter descontente, lamuriento e ansio-so... Mas poderia haver, eu replico, uma garantia maiscerta dessa miséria do que esse temperamento des-venturado?

Contudo, poderia dizer meu antagonista, se elessão realmente tão infelizes quanto pretendem ser, porque insistem em permanecer vivos?...

Insatisfeitos com a vida, temerosos da morte*

* Not satisfied with life, afraid of death.

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134 DIÁLOGOS SOBRE A RELIGIÃO NATURAL

Este, eu afirmo, é o grilhão oculto que nos mantémaprisionados. Não e o suborno, mas o terror quenos faz perseverar em nossa existência.

Meu antagonista poderia insistir em que essasqueixas se difundiram por toda a espécie humanasimplesmente a partir de uma susceptibilidade equi-voca, com a qual se comprazem alguns espíritos re-finados... Mas qual é essa susceptibilidade, eu per-gunto, que se está acusando? Não é ela senão umamaior sensibilidade a todos os prazeres e sofrimen-tos da vida? E se as pessoas de temperamento deli-cado e refinado, ao estarem tão mais dotadas de vi-da que as demais, só conseguem ser muito mais in-felizes, que opinião deveremos formar da vida hu-mana em geral?

Que as pessoas permaneçam em repouso, diznosso adversário, e elas se sentirão aliviadas. Elas sãoos agentes espontâneos de sua própria miséria... Não!eu respondo. Um torpor angustiado será a conse-qüência de seu repouso, assim como a desilusão, con-trariedade e transtorno se seguem de sua atividadee ambição.

Cleantes: Posso observar em algumas pessoasalgo semelhante ao que vocês mencionam, mas con-fesso que sinto pouco ou nada disso em mim mes-mo, e espero que não se trate de algo tão comumcomo vocês o representam.

Demea: Se você não experimenta em si mes-mo a miséria humana, permita-me congratulá-lo portão feliz peculiaridade. Outros, aparentemente osmais venturosos, não se envergonharam de procla-mar suas queixas nos tons mais melancólicos. Con-sideremos o caso do grande e afortunado imperadorCarlos V, no momento em que, cansado das glórias

PARTE X 135humanas, renunciou a todos os seus imensos domí-nios em favor de seu filho. No último discurso querealizou, naquela ocasião memorável, ele confessoupublicamente que as maiores felicidades que já tinhaexperimentado estiveram mescladas com tantas adver-sidades que ele podia verdadeiramente dizer que nun-ca tinha gozado de qualquer satisfação ou alegria. Eteria ele obtido alguma felicidade maior na vida re-clusa em que buscou abrigar-se? Se pudermos darcrédito ao relato de seu filho, seu arrependimentoteve início no próprio dia da renúncia.

A ventura de Cicero alçou-se, desde inícios mo-destos, até o máximo brilho e renome, mas quão pa-téticas são as queixas sobre os males da vida conti-das em suas cartas privadas, assim como em seus dis-cursos filosóficos! E, em conformidade com sua pró-pria experiência, ele nos apresenta Catão, o grande,o afortunado Catão, assegurando em sua velhice que,se lhe fosse oferecida uma nova vida, ele rejeitariaa de que presentemente dispunha.

Pergunte a você mesmo, pergunte a qualquer deseus conhecidos, se eles concordariam em viver denovo os últimos dez ou vinte anos de suas vidas.Não! Mas os próximos vinte anos, eles dizem, se-rão melhores:

E do aluvião da vida esperam obterO que as primeiras e vivazes correntezas não

puderam ofertar.*

* And from the dregs of life, hope to receive/What thefirst sprightly running could not give.

(Dryden, Aurengzebe, ato IV, cena 1.)

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136 DIÁLOGOS SOBRE A RELIGIÃO NATURAL

E assim descobrem, por fim (tal é a extensão da mi-séria humana: ela reconcilia até mesmo as contradi-ções), que se queixam simultaneamente da brevida-de da vida e de sua frivolidade e tristeza.

Filo: Será possível, Cleantes, que, após todas estasreflexões, e infinitas outras que se poderia sugerir,você possa ainda perseverar em seu antropomorfis-mo e declarar que os atributos morais da Divinda-de, sua justiça, benevolência, misericórdia e retidão,tenham a mesma natureza dessas virtudes nas cria-turas humanas? Seu poder, admitimos, é infinito: tudoo que ela quer é executado. Mas nem o ser humanonem qualquer outro animal é feliz; portanto, ela nãoquer sua felicidade. Sua sabedoria é infinita: ela nuncase engana na escolha dos meios para um certo fim.Mas o curso da Natureza não tende para a felicidadehumana ou animal; portanto, esse curso não foi es-tabelecido com tal propósito. Não há, em todo o âm-bito do conhecimento humano, inferências mais cer-tas e infalíveis que estas. Em que aspecto, então, suabenevolência e misericórdia se assemelhariam á be-nevolência e misericórdia humanas?

As velhas questões de Epicuro permanecem semresposta.

A Divindade quer evitar o mal, mas não é ca-paz disso? Então ela é impotente. Ela é capaz, masnão quer evitá-lo? Então ela é malévola. Ela é capazde evitá-lo e quer evitá-lo? De onde, então, provémo mal?

Você, Cleantes, atribui um propósito e intençãoá Natureza (e creio que com justiça). Mas qual, eulhe pergunto, é o objetivo desse artifício e mecanis-mo singulares que ela nos exibe em todos os animais?A mera preservação dos indivíduos e a propagação

PARTE X 137das espécies? Se esse é o seu propósito, basta, á pri-meira vista, que tais classes de seres sejam meramentepreservadas no Universo, sem qualquer cuidado oupreocupação pela felicidade dos membros que ascompõem. Nenhum recurso destinado para esse fim,nenhum mecanismo que vise simplesmente a darprazer ou conforto, nenhum cabedal de pura alegriaou contentamento, nenhuma gratificação sem algu-ma carência ou necessidade que a acompanhe. Ou,pelo menos, os poucos fenômenos desta espécie sãocontrabalançados por fenômenos opostos de impor-tância ainda maior.

Nosso sentido da música, da harmonia, e, na ver-dade, de todos os tipos de beleza, proporciona satis-fação sem que seja absolutamente necessário para apreservação e a propagação da espécie. Por outro la-do, como são atrozes os padecimentos que provêmda gota, dos cálculos, das enxaquecas, das dores dedentes e do reumatismo; todos estes sendo casos emque o dano ao mecanismo animal é ou pequeno ouincurável. A alegria, o riso, os divertimentos e fol-guedos parecem satisfações gratuitas que não têmconseqüências adicionais; o mau-humor, a melan-colia, o descontentamento e a superstição são sofri-mentos com a mesma característica. Como, então,a benevolência divina poderia exibir-se no sentidoem que vocês, antropomorfistas, a concebem? So-mente nós, os místicos, como lhe agrada chamar-nos, podemos dar conta dessa estranha mescla de fe-nômenos, ao derivá-la de atributos infinitamente per-feitos, embora incompreensíveis.

Cleantes: [sorrindo] E terá você, Filo, finalmen-te revelado suas verdadeiras intenções? Fiquei, de fato,um pouco surpreendido pelo seu longo acordo

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138 DIÁLOGOS SOBRE A RELIGIÃO NATURAL

com Demea, mas percebo que você estava, durantetodo esse tempo, montando ocultamente a artilha-ria contra mim. E devo confessar que você se depa-rou, agora, com um assunto digno de seu nobre es-pírito de oposição e controvérsia. Se lhe for possí-vel estabelecer este ponto e provar que a humanida-de é infeliz ou corrompida, isso trará imediatamen-te o fim de toda religião. Pois de que valeria estabe-lecer os atributos naturais da Divindade se seus atri-butos morais permanecem duvidosos e incertos?

Demea: Você se choca muito facilmente comopiniões as mais inocentes e mais geralmente difun-didas, mesmo entre pessoas pias e religiosas; e é muitosurpreendente que um tópico como este, referenteá maldade e miséria humanas, receba as acusaçõesde ateísmo e profanação. Pois não é verdade que to-dos os mais devotos teólogos e pregadores que já exer-citaram sua retórica nesse fértil assunto chegaram fa-cilmente a encontrar a solução de todas as dificul-dades que possivelmente o acompanham? Este mun-do não é senão um ponto em comparação com oUniverso; esta vida, apenas um momento em com-paração com a eternidade. Os fenômenos malignospresentes serão, portanto, corrigidos em outras re-giões e em alguma época futura da existência. E en-tão, com os olhos abertos para uma perspectiva maisampla das coisas, os seres humanos perceberão a co-nexão integral das leis gerais e serão capazes de iden-tificar, cheios de veneração, a benevolência e a reti-dão da Divindade, através de todos os labirintos emeandros de sua providência.

Cleantes: Não! Não! Essas suposições arbitrá-

PARTE X 139rias não podem jamais ser admitidas, já que contra-dizem os fatos visíveis e inquestionáveis. Como sepoderia conhecer alguma causa se não a partir deseus efeitos conhecidos? Como se poderia provar al-guma hipótese se não pelos fenômenos que presen-ciamos? Fundar uma hipótese sobre outra é cons-truir inteiramente sobre o ar, e o máximo que po-demos atingir por meio de tais conjeturas e ficçõesé a determinação da mera possibilidade de nossa opinião, mas jamais nos será possível, com base nisso,estabelecer sua realidade.

O único método para dar suporte benevolên-cia divina (e é deste que estou disposto a fazer uso)é negar completamente a miséria e a maldade hu-manas. Suas descrições são exageradas, suas concep-ções melancólicas são na maior parte imaginárias,e suas inferências contradizem os fatos e a experiên-cia. A saúde é mais comum que a doença, o prazeré mais comum que a dor, e a felicidade e mais co-mum que a miséria. E, para cada dissabor que expe-rimentamos, obtemos, ao final das contas, uma cen-tena de alegrias.

Filo: Admitindo-se esse seu ponto -de vista, queé, no entanto, extremamente duvidoso, você deve aomesmo tempo reconhecer que a dor, ainda que sejamenos freqüente que o prazer, é infinitamente maisviolenta e duradoura. Uma hora de sofrimento émuitas vezes capaz de suplantar um dia, uma sema-na, um mês de nossas triviais e insípidas alegrias;e quantos já não passaram dias, semanas ou mesesem meio aos mais agudos tormentos? Dificilmentehaverá um único caso de prazer em que se atinja oêxtase ou arrebatamento; e em nenhum caso essa sen-

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sação poderia manter-se por muito tempo em seugrau mais intenso e elevado. Os humores se evapo-ram, os nervos relaxam, o organismo se desordena,e o gozo rapidamente degenera em fadiga e descon-forto. Mas freqüentemente a dor — Deus meu, quãofreqüentemente! — cresce até se tornar uma torturae agonia; e, quanto mais ela se prolonga, mais se con-verte em genuína agonia e tortura. A paciência seexaure, a coragem desfalece, somos tomados pelaprostração, e nada pode interromper nosso sofrimen-to a não ser a remoção de sua causa, ou então aque-le evento que é o único remédio para todos os ma-les, mas que, devido ã nossa natural insensatez, en-caramos com horror e consternação ainda maiores.

Contudo, para não insistir mais nesses assuntos— embora sejam óbvios, corretos e importantes aoextremo — permito-me censura-lo, Cleantes, por terconduzido a controvérsia para uma questão perigo-síssima e instaurado, sem se dar conta, um ceticis-mo total com relação aos tópicos mais essenciais dateologia natural e revelada. Que diz você?! Que oúnico método de estabelecer uma base sólida parae religião exige admitir que a vida humana é afortu-nada e que a perpetuação da existência, neste mun-do presente, com todas as suas dores, enfermidades,tormentos e desatinos, é desejável e digna de prefe-rência! Mas isto é contrario ao sentimento e expe-riência de todos, e contrario, portanto, a uma auto-ridade tão bem estabelecida a ponto de não podersofrer qualquer abalo. Contra essa autoridade, ne-nhuma prova decisiva poderá jamais ser apresenta-da, nem e possível que você chegue a calcular, ava-liar e comparar todos os sofrimentos e prazeres dasvidas de todos os homens e animais. Por conseguinte,

PARTE x 141ao fazer com que o sistema da religião se baseie porinteiro em um tópico que, pela sua própria nature-za, deve permanecer para sempre incerto, você estátacitamente confessando que esse próprio sistema éigualmente incerto.

Concedendo-lhe, porém, esse ponto que jamaispoderá ser digno de crédito — ou, pelo menos, parao qual você jamais será capaz de fornecer uma pro-va —, a saber, que a felicidade dos animais, ou pelomenos dos seres humanos, excede, nesta vida, a so-ma de seus sofrimentos, isso ainda não lhe servirapara nada. Pois isso não é de modo algum aquiloque deveríamos esperar de uma potência, sabedoriae bondade infinitas. Por que haveria, afinal, qual-quer desgraça no mundo? Certamente, não por acaso.Ela deve, então, provir de alguma causa. Será prove-niente da intenção da Divindade? Mas ela é perfei-tamente benévola. Será contrária a suas intenções?Mas ela é onipotente. Nada pode abalar a solidezdeste raciocínio, tão conciso, claro e convincente, amenos que se declare que esses assuntos estão forado alcance de qualquer faculdade humana, e que nos-sos padrões habituais de verdade e falsidade a elesnão se aplicam. Tal é o ponto sobre o qual venhocontinuamente insistindo, mas que você, desde o iní-cio, rejeitou com desprezo e indignação.

Não me oponho, porém, a recuar voluntaria-mente desta minha posição, embora negue que vo-cê possa forçar-me a tanto. Concederei, assim, queo sofrimento ou a desgraça dos seres humanos é com-patível com o infinito poder e benevolência da Di-vindade, mesmo no sentido que você dá a esses atri-butos. Mas de que lhe serve essa concessão? Não basta

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a mera possibilidade dessa compatibilização: você de-ve provar a vigência desses atributos puros, simplese incondicionais, partindo dos fenômenos mescla-dos e confusos que presenciamos e apenas a partirdeles. Que belas esperanças você pode alimentar!Ainda que tais fenômenos fossem totalmente purose não mesclados, o fato de que são finitos os torna-ria insuficientes para essa finalidade. Quão mais di-fícil, então, será a tarefa, dado que eles também apre-sentam tamanho desacordo e discrepância!

Neste ponto, Cleantes, sinto-me bem á vontadeem meu argumento. Aqui, a vitória é minha. Quan-do discutíamos, antes, os atributos naturais de inte-ligência e propósito, tive que mobilizar todas as su-tilezas céticas e metafísicas para escapar dos apurosem que você me colocou. Em muitos aspectos doUniverso e de suas partes, especialmente destas úl-timas, a beleza e a adequação das causas finais im-pressionam-nos com uma força irresistível, a tal pon-to que todas as objeções aparecem-nos como merosardis e sofismas (de fato, segundo creio, é isso queelas realmente são), e não podemos sequer imagi-nar como nos seria possível atribuir-lhes alguma im-portância. Mas não há qualquer aspecto da vida hu-mana ou da condição da humanidade a partir doqual, sem cometer a máxima violência, pudéssemosinferir os atributos morais ou chegar a conheceraquela infinita benevolência, associada a um podere sabedoria infinitos, que apenas os olhos da fé nospermitem discernir. E a sua vez, agora, de empunhareste pesado remo e esforçar-se para defender suas su-tilezas filosóficas contra os ditames da simples ra-zão e experiência.

PARTE XI

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Cleantes: Não tenho escrúpulos em admitirque sempre estive inclinado a suspeitar que a repe-tição freqüente da palavra "infinito"; com a qual nosdeparamos em todos os autores teológicos, mais seaproxima do discurso laudatório do que daquele pro-priamente filosófico; e que todos os propósitos doraciocínio, e mesmo da religião, estariam melhor ser-vidos se nos contentássemos com expressões maisprecisas e moderadas. Os termos "admirável", "ex-celente", "sumamente grande", "sumamente sábio"e "sumamente santo" bastam para preencher a ima-ginação das pessoas; e tudo que os ultrapassa, alémde conduzir a absurdos, não tem qualquer influên-cia sobre os afetos e sentimentos. Assim, ao aban-donarmos toda a analogia humana neste assunto, co-mo parece ser sua intenção, Demea, estaremos, eutemo, abandonando toda religião e privando-nos dequalquer idéia do grandioso objeto de nossa adora-ção. Se, por outro lado, preservarmos a analogia hu-

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mana, jamais nos será possível conciliar os atribu-tos infinitos com qualquer mistura de maldade noUniverso, e muito menos provar a vigência dessesatributos a partir dessa mistura. Supondo-se, no en-tanto, que o Autor da Natureza seja finitamente per-feito, embora excedendo em muito a humanidade,será possível fornecer, então, uma justificação satis-fatória da maldade natural e moral, e qualquer fe-nômeno renitente passa a ser passível de explicaçãoe ajuste. Um mal menor pode então ser escolhidocom o fito de evitar-se outro maior, e certas incon-veniências podem ser aceitas para que se atinja umfim desejável. Em uma palavra, a benevolência, re-gulada pela sabedoria e limitada pela necessidade, po-deria produzir um mundo exatamente como este queconhecemos. Ficarei muito satisfeito, Filo, em ou-vir de você — que sempre está tão disposto a ofere-cer perspectivas, reflexões e analogias — uma opi-nião acerca desta nova teoria, de maneira detalhadae sem interrupções. Se, posteriormente, considerar-mos que essa teoria é merecedora de nossa atenção,poderemos, com mais vagar, retomá-la de forma maismetódica.

Filo: Não há razão para que eu crie um misté-rio em torno de minhas opiniões; assim, vou expor,sem qualquer cerimônia, aquilo que me ocorre comrelação a essa proposta. Penso que é preciso admitirque, se uma inteligência muito limitada e comple-tamente não familiarizada com o Universo estives-se segura de que ele é o produto de um ser muitobenévolo, sábio e poderoso, embora finito, ela for-maria de antemão, a partir dessas conjeturas, umaidéia do Universo muito diferente daquela que nós,

PARTE XI 147por experiência, temos dele; e não poderia jamaisimaginar, simplesmente a partir das informações deque dispõe acerca dos atributos da causa, que o efei-to, tal como nos aparece nesta vida, poderia contertantos vícios, miséria e desordem. Suponha-se ago-ra que essa pessoa fosse trazida ao mundo, ainda se-gura de que ele é o produto de um tal ser sublimee benévolo. Ela poderia, talvez, ficar surpreendidae desapontada, mas nem por issgseria levada a aban-donar sua crença anterior se essa crença estivesse fun-dada em algum argumento bastante sólido, pois umainteligência limitada deve reconhecer sua própria ce-gueira e ignorância e deve admitir que pode havermuitas explicações para esses fenômenos, embora taisexplicações escapem para sempre sua compreen-são. Suponhamos, porém, que essa criatura, assimcomo de fato ocorre no caso dos seres humanos, nãoesteja antecedentemente convencida da existência deuma inteligência suprema, benevolente e poderosa,mas precise chegar a essa crença a partir das coisastal como elas lhe aparecem. E claro que isto alteracompletamente o quadro, pois ela jamais encontra-rá qualquer razão que dê apoio a uma tal conclu-são. Ainda que ela esteja plenamente convencida daestreiteza de seu entendimento, isso não a ajudaráa formular alguma inferência sobre o caráter benig-no dos poderes superiores, já que essa inferência de-ve basear-se naquilo que lhe é conhecido, e não emalgo que ela ignora. Quanto mais você exagerar suafraqueza e ignorância, mais desconfiada ela se tor-nará, e maiores serão suas suspeitas de que assuntoscomo esses estão fora do alcance de suas faculdades.Você está obrigado, portanto, a argumentar com ela

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partindo apenas dos fenômenos conhecidos e a dei-xar de lado toda suposição ou conjetura arbitrárias.

Se eu lhe mostrasse uma casa ou um palácio on-de não houvesse um único aposento confortável ouaprazível, onde as janelas, portas, lareiras, corredo-res, escadas e toda a organização do edifício fossemcausa de ruído, confusão, fadiga, obscuridade, e ca-lor e frio extremados, você com certeza culparia oprojeto do edifício, sem perder tempo em maioresaveriguações. Seria inútil que o arquiteto exibisse suaperspicácia provando que maiores males decorreriamda alteração desta porta ou daquela janela. Pode serque tudo o que ele diz seja estritamente verdadeiro,e que a alteração de um pormenor, mantendo-se asdemais partes do edifício, só pudesse conduzir aoagravamento das inconveniências. Mesmo assim, vo-cê provavelmente declararia que, se o arquiteto fos-se competente e bem-intencionado, ele poderia terplanejado o conjunto e ajustado suas partes de talmodo que todas essas inconveniências, ou a maio-ria delas, fossem corrigidas. O fato de que tanto elecomo você próprio ignorem como poderia ser esseplanejamento não constitui, de nenhum modo, umargumento contra sua possibilidade. Ao constatarquaisquer inconveniências ou defeitos na constru-ção, você invariavelmente culpará o arquiteto, sementrar em maiores considerações.

Repito, em suma, a questão. O mundo, consi-derado globalmente e da maneira pela qual ele nosaparece nesta vida, não é porventura diferente da-quilo que um ser humano, ou um ser igualmentelimitado, poderia esperar de antemão do produto deuma Divindade muito poderosa, sábia e benevolen -

PARTE XI 149te? Somente um estranho preconceito poderia levaralguém a negar tal coisa. Disso concluo que, por maisque ele seja consistente — dadas certas suposiçõese conjeturas — com a idéia de uma Divindade dessetipo, o mundo jamais será capaz de nos proporcio-nar uma inferência relativa á existência dessa Divin-dade. Meras conjeturas, em especial quando está ex-cluída a infinitude dos atributos divinos, talvez pos-sam ser suficientes para provar uma consistência, masjamais poderão prover as bases de um inferência co-mo aquela.

Parece haver quatro circunstâncias das quais de-pendem todos ou a maior parte dos males que afli-gem as criaturas sensíveis; e não é impossível quetodas essas circunstâncias sejam necessárias e inevi-táveis. Sabemos tão pouco acerca daquilo que ultra-passa a vida cotidiana, ou mesmo acerca da própriavida cotidiana, que, no que diz respeito á organiza-ção do Universo, não há conjetura, por extravagan-te que seja, que não possa ser correta e, reciproca-mente, que não possa ser errônea, por mais plausí-vel que seja. Ao entendimento humano, mergulha-do nesta profunda ignorância e obscuridade, con-vém apenas ser cético ou, pelo menos, cauteloso enão admitir nenhuma hipótese, muito menos hipó-teses que não estejam apoiadas em alguma aparên-cia de plausibilidade. Ora, afirmo que essa é preci-samente a situação de todas as hipóteses relativas áscausas do mal e ás circunstâncias de que ele depen-de. Nenhuma delas aparece minimamente á razãohumana como necessária ou inevitável, e é só a maisextrema liberdade da imaginação que pode levar-nosa supô-las como tal.

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PARTE XI 151leis gerais; e isto não parece de modo algum neces-sário para um ser perfeito em alto grau. É verdadeque, se tudo fosse governado por volições particula-res, o curso da Natureza se veria constantemente in-terrompido e ninguém poderia empregar sua razãona condução de sua vida. Mas não poderia essa in-conveniência ser corrigida por meio de outras voli-ções particulares? Em suma, não poderia a Divin-dade ter exterminado todo o mal, onde quer que elese encontrasse, e produzido todo o bem, sem qual-quer preparação ou longas sucessões de causas eefeitos?

Além disso, é preciso que se considere que, deacordo com a presente organização do mundo, o cur-so da Natureza, embora suposto como exatamenteregular, não nos aparece, porém, dessa forma. Mui-tos eventos são incertos, e muitos frustram nossasexpectativas. A saúde e a doença, o bom tempo eas tempestades, em conjunto com infinitos outrosacidentes cujas causas são desconhecidas e variáveis,exercem grande influência tanto sobre a sorte daspessoas individuais como sobre a prosperidade dasassociações públicas. E, na verdade, toda a vida hu-mana depende, de um certo modo, desses acidentes.Portanto, um ser que conhecesse os princípios se-cretos do Universo poderia facilmente, através devolições particulares, direcionar todos esses aciden-tes para o bem da humanidade e tornar o mundointeiro feliz, sem se revelar em nenhuma dessas ope-rações. Uma frota cujos propósitos fossem benéfi-cos á sociedade poderia encontrar sempre ventos fa-voráveis, príncipes benevolentes poderiam gozar deboa saúde e viver uma vida longa, pessoas nascidas

150 DIÁLOGOS SOBRE A RELIGIÃO NATURAL

A primeira circunstância que abre caminho pa-ra o mal é aquela disposição ou organização da cria-ção animal pela qual tanto a dor como.o prazer sãoempregados para estimular todas as criaturas á açãoe para torná-las atentas á grande tarefa da autopre-servação. Mas o simples prazer, em seus diversosgraus, parece, ao entendimento humano, suficientepara esse propósito. Todos os animais poderiam mui-to bem permanecer em um estado de gozo contí-nuo e, ao serem instados por alguma das necessida-des da Natureza, tais como a sede, fome e cansaço,poderiam sentir, em vez de dor, uma diminuição deprazer que seria suficiente para levá-los a buscar oobjeto necessário á sua sobrevivência. Os seres hu-manos perseguem o prazer tão avidamente quantoevitam a dor; ou, pelo menos, poderiam ter sidoconstruídos para agir desse modo. Parece, assim, queseria perfeitamente possível dar prosseguimento a to-das as atividades necessárias á vida sem que a dorj amais interviesse. A que se deve, então, o fato deos animais estarem sujeitos a uma tal sensação? Selhes é possível viver uma hora sem ela, eles pode-riam muito bem gozar de uma isenção perpétua. Aprodução desse sentimento exigiu um arranjo de seusórgãos que é tão específico como aquele necessáriopara dotá-los da visão, audição òu qualquer um dossentidos. Deveremos, sem dispor de qualquer razãovisível para isso, supor que urn tal arranjo era neces-sário? E seria aconselhável construir algo sobre essaconjetura, como se se tratasse da verdade mais in-questionável?

Mas a simples capacidade para sentir dor não po-deria produzir a dor se não fosse pela segunda cir-cunstância, a saber, que o mundo está governado por

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para o comando e o exercício da autoridade pode-riam ser dotadas de bom temperamento e disposi-ções virtuosas. Uns poucos eventos como estes, con-duzidos de maneira regular e ajuizada, modificariama face do mundo; e, no entanto, não parecem ser maisaptos a perturbar o curso da Natureza ou confun-dir a conduta humana do que a presente organiza-ção das coisas, onde as causas são secretas, variáveise complexas. Alguns pequenos toques efetuados nocérebro de Caligula, durante sua infância, poderiamtê-lo convertido em um Trajano. Uma onda um pou-co mais alta que as demais, ao sepultar César e seudestino no fundo do oceano, poderia ter restituídoa liberdade a uma parcela considerável da humani-dade. Por tudo que sabemos, pode haver boas razõespelas quais a Providência não interveio dessa maneira,mas nós as desconhecemos. E, embora a mera su-posição de que tais razões existem possa ser suficientepar" resguardar a conclusão relativa aos atributos di-vinos, ela não pode, com certeza, ser suficiente paraestabelecer essa conclusão.

Se tudo no Universo é regido por leis gerais, esP ns animais são suscetíveis á dor, parece inescapa-vel a conclusão de que alguns males devem originar-se nos diversos choques de matéria e nas diversasconfluências e oposições das leis gerais; mas esses ma-les seriam, ainda assim, muito raros, se não fosse pelaterceira circunstância que me proponho a examinar,isto é, a grande parcimónia com que todos os pode-res e faculdades estão distribuídos entre os seres par-ticulares. Os órgãos e as capacidades de todos os ani-mais estão tão bem ajustados, e atendem tão bemás exigências de sua preservação que, até onde alcan-

PARTE XI 153çam a história e a tradição, não parece haver umaúnica espécie no Universo que se tenha extinguido.Cada animal tem todos os dotes requeridos, mas es-ses dotes estão distribuídos segundo uma economiatão escrupulosa que qualquer diminuição significa-tiva leva á completa aniquilação da criatura. Ondequer que haja aumento de um poder, há um decrés-cimo proporcional dos outros. Animais que se so-bressaem pela velocidade são, normalmente, despro-vidos de força. Aqueles que possuem ambas, ou bemapresentam alguma imperfeição em seus órgãos dossentidos, ou bem são afligidos pelas necessidades maisinsaciáveis. A espécie humana, que se destaca prin-cipalmente pela razão e sagacidade, é, de todas, a maisnecessitada e a mais deficiente em vantagens corpo-rais: carece de vestuário, armas, alimento, habitaçãoe não dispõe de nenhuma das conveniências da vi-da, exceto as que obtém por meio de sua própriahabilidade e engenho. Em suma, a Natureza pareceter feito um cálculo exato das necessidades de suascriaturas e, como um amo inflexível, concedeu-lhespoderes e recursos pouco maiores que os estritamentesuficientes para cobrir essas necessidades. Um pai con-descendente, ao contrário, teria fornecido uma largaprovisão para precaver contra acidentes e assegurara felicidade e bem-estar da criatura mesmo na maisdesafortunada conjunção de circunstâncias. Os ca-minhos da vida não estariam todos tão rodeados deprecipícios, a ponto de o menor desvio do caminhoseguro, por engano ou necessidade, ser o bastantepara conduzir-nos á miséria e á ruína. Alguma re-serva, alguns recursos adicionais deveriam ter sidoprovidenciados para garantir a felicidade, e não de-

Disserta Final
Highlight
Uns poucos eventos como estes, conduzidos de maneira regular e ajuizada, modificariam a face do mundo; e, no entanto, não parecem ser mais aptos a perturbar o curso da Natureza ou confundir a conduta humana do que a presente organização das coisas, onde as causas são secretas, variáveis e complexas. Alguns pequenos toques efetuados no cérebro de Caligula, durante sua infância, poderiam tê-lo convertido em um Trajano. Uma onda um pouco mais alta que as demais, ao sepultar César e seu destino no fundo do oceano, poderia ter restituído a liberdade a uma parcela considerável da humanidade. Por tudo que sabemos, pode haver boas razões pelas quais a Providência não interveio dessa maneira, mas nós as desconhecemos. E, embora a mera suposição de que tais razões existem possa ser suficiente par" resguardar a conclusão relativa aos atributos divinos, ela não pode, com certeza, ser suficiente para estabelecer essa conclusão.
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veria ter havido uma economia tão rígida no ajustedos poderes ás necessidades. O Autor da Naturezaé inconcebivelmente poderoso; admitese que sua for-ça é grande, se não de todo inexaurível, e não há qual-quer razão, até onde podemos julgar, para que eleobserve essa estrita parcimônia no trato com suascriaturas. Teria sido melhor, caso seu poder fosse ex-tremamente limitado, que ele tivesse criado um me-nor número de animais e os dotado de mais facul-dades para sua felicidade e preservação. Não se po-derá jamais considerar como prudente um constru-tor que se compromete com um plano que vai alémdaquilo que seus recursos lhe permitiriam concluir.

Não estou exigindo, para remediar a maior par-te dos males que afligem o ser humano, que ele de-va possuir as asas da águia, a velocidade do cervo,a força do boi, as garras do leão, a couraça do croco-dilo ou do rinoceronte; e muito menos reclamo asabedoria de um anjo ou querubim. Contento-meem escolher a intensificação de um único poder oufaculdade de sua alma. Que ele seja dotado de umamaior propensão para a operosidade e o trabalho,de uma motivação e atividade mental mais vigoro-

Isas, de uma inclinação mais constante para o desem-penho e a concentração. Que a espécie inteira pos-sua naturalmente uma diligência semelhante áque-la que muitos indivíduos conseguem cultivar pelohábito e reflexão, e as mais benéficas conseqüências,sem qualquer mescla de dissabor, serão o resultadoimediato e necessário desse dote. Quase todos os ma-

les morais da vida humana, assim corno os naturais,surgem da indolência; e se nossa espécie, pela cons-tituição original de suas disposições, estivesse imu -

ARTE XI 155ke a esse vício ou enfermidade, seguir-se-iam ime-liatamente o cultivo perfeito da term, a melhorialas artes e manufaturas e a execução precisa de to-lo ofício e tarefa; e os homens poderiam atingir pie-tamente e de súbito aquele estágio de sociedade quenesmo o governo mais disciplinado só consegue al-ançar de forma imperfeita. Mas como a diligênciaum poder, e o mais valioso de todos, a Natureza

larece determinada, em conformidade com suas di-etrizes costumeiras, a distribuí-la entre os homensla maneira mais parcimoniosa possível e a puni-loseveramente pela sua deficiência ao invés de recom-,ensá-los pelas suas realizações. Ela moldou as dis-■osições humanas de tal maneira que só a mais vio-enta necessidade pode obrigá-los a trabalhar, e mo-,iliza todas as outras carências para sobrepujar, pe-

menos em parte, a falta de aplicação e para dotá-Ds de alguma parcela dessa faculdade da qual ela jul-ou conveniente despojá-los naturalmente. Deve-seeconhecer, aqui, que nossas exigências são muitonodestas e, por isso mesmo, tanto mais razoáveis.e estivéssemos reclamando os dotes de uma argú-ia e julgamento superiores, de uma apreciação maisefinada da beleza e de uma sensibilidade mais agu-ada para a benevolência e a amizade, poderíamos,uvir, como resposta, que estamos impiamente pre-2,ndendo romper a ordem da Natureza, que quere-

alçar-nos a um grau mais elevado de existência,que as dádivas que solicitamos, não sendo adequa-as a nosso estado e condição, só nos poderiam serocivas. Mas é penoso, ouso repeti-lo, é penoso oato de que, estando mergulhados em um mundo10 repleto de carências e necessidades, no qual quase

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todos os seres e elementos ou são nossos inimigosou recusam-nos sua assistência, tenhamos tambémque lutar contra nosso próprio temperamento e es-tejamos privados dessa faculdade que, apenas ela, po-deria fazer frente a esses múltiplos males.

A quarta circunstância da qual provêm a misé-ria e os males do Universo é a operação imprecisade todos os dispositivos e princípios que compõema grande máquina da Natureza. Deve-se reconhecerque há poucas partes do Universo que, á primeiravista, não servem a algum propósito e cuja remo-ção não acarretaria um visível defeito ou desordemno todo. As partes relacionam-se todas umas ás ou-tras, e não se pode tocar em nenhuma delas sem queas outras sejam afetadas, em maior ou menor grau.Mas deve-se ao mesmo tempo observar que nenhu-ma dessas partes ou princípios, por mais útil que seja,está tão perfeitamente ajustada a panto de manter-se precisamente dentro dos limites compatíveis comsua utilidade; mas todas elas arriscam-se, a qualquermomento, a tombar em um extremo ou outro.Poder-se-ia imaginar que essa grande obra não rece-beu os retoques finais de seu construtor, tão mal-acabadas são todas as suas partes e tão grosseiros ostraços de sua execução. Os ventos, por exemplo, sãorequeridos para fazer circular os vapores pela super-fície do globo e para ajudar os homens na navega-ção. Quantas vezes, porém, erguendo-se em tempes-tades e furacões, eles não se tornam perniciosos? Aschuvas são necessárias para nutrir todas as plantase animais da Terra; mas quantas vezes elas não es-casseiam e quantas vezes não se tornam excessivas?O calor é exigido por toda a vida e vegetação, masnem sempre ele é encontrado na proporção devida.

PARTE XI 157Da mistura e secreção dos humores e sucos do cor-po depende a saúde e o desenvolvimento do animal,mas as partes não desempenham regularmente suasfunções próprias. Que poderia ser mais útil do queas paixões da mente: ambição, vaidade, amor, cóle-ra? E, no entanto, quantas vezes elas não excedemseus limites e ocasionam as maiores convulsões nasociedade? Nada há de tão vantajoso no Universoque não se torne com freqüência nocivo, por seuexcesso ou falta; e a Natureza tampouco se resguar-dou, com o devido cuidado, contra toda desordeme confusão. A irregularidade talvez não seja jamaistão grande a ponto de causar a destruição de umaespécie, mas é muitas vezes suficiente para trazer aruína e a miséria aos indivíduos.

Da confluência, portanto, dessas quatro circuns-tâncias depende todo o mal natural, ou sua maiorparte. Se todas as criaturas vivas fossem incapazes desentir dor, ou se o mundo pudesse ser administra-do por volições particulares, o mal não poderia ja-mais ter tido acesso ao Universo. E, se os animaisestivessem dotados de uma ampla provisão de po-deres e faculdades, maior do que a requerida pelaestreita necessidade, ou se os vários dispositivos eprincípios do Universo estivessem ajustados de modoa preservar para sempre o correto equilíbrio e meio-termo, deveria haver muito pouco malefício em com-paração ao que presentemente experimentamos. Quedevemos, então, concluir em tal situação? Diríamosque essas circunstâncias não são necessárias e que po-deriam facilmente ter sido alteradas durante o pro-jeto do Universo? Esta parece ser uma decisão de-masiado presunçosa para criaturas tão cegas e igno-

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rantes. Sejamos mais modestos em nossas conclusões.Admitamos que, se a benevolência da Divindade(entendendo-se uma benevolência semelhante hu-mana) pudesse ser estabelecida com base em quais-quer razões aceitáveis a priori, esses fenômenos, porinconvenientes que fossem, não bastariam para sub-verter aquele princípio e poderiam facilmente, dealguma maneira insuspeitada, ser reconciliados comele. Mas não deixemos também de afirmar que, co-mo essa benevolência não pode ser estabelecida deantemão, mas deve ser inferida dos fenômenos, nãopode haver nenhum fundamento para essa inferên-cia enquanto existirem tantos males no Universo eenquanto esses males — na medida em que se per-mita ao entendimento humano julgar sobre esses as-suntos — nos aparecerem como tão facilmente re-mediáveis. Sou suficientemente cético para conce-der que as aparências perversas podem ser compatí-veis, apesar de todos os meus raciocínios, com atri-butos do tipo que você supõe, mas com certeza ja-mais poderão provar a vigência desses atributos. Umaconclusão como essa não pode provir do ceticismo,mas deve ter origem nos fenômenos e em nossa con-fiança nos raciocínios que deduzimos desses fe-nomenos.

Olhe para o Universo ao nosso redor. Que quan-tidade imensa de seres, animados e organizados, sen-síveis e ativos! Você admira essa prodigiosa varieda-de e fecundidade. Observe, porém, mais de perto asexistências dotadas de vida, que são os únicos seresdignos de consideração. Como são hostis e destru-tivas umas para com as outras! Quão incapazes, to-das elas, de proverá sua própria felicidade! Como

PARTE XI 159são odiosas e desprezíveis aos olhos do observador!Tudo isso não nos oferece senão a idéia de uma Na-tureza cega, embebida de um grande princípio vivi-ficador, que despeja de seu regaço sua prole defei-tuosa e degenerada, sem qualquer discernimento oucuidado maternal!

E aqui que o sistema maniqueísta surge comouma hipótese apropriada para resolver a dificulda-de. E, sem dúvida, ele é em vários aspectos muitosedutor e mais plausível que a hipótese comum, aofornecer uma explicação viável para a estranha mis-tura de bem e mal que a vida nos apresenta. Masse considerarmos, por outro lado, a perfeita unifor-midade e concordância das partes do Universo, nãodescobriremos aí quaisquer sinais do combate en-tre um ser maligno e outro benéfico. Há, na verda-de, uma oposição entre as dores e os prazeres nossentimentos das criaturas sensíveis; mas não são, afi-nal, todas as operações da Natureza levadas a cabopor meio de uma oposição de princípios, a saber,quente e frio, úmido e seco, leve e pesado? A con-clusão correta é que a fonte original de todas as coi-sas é inteiramente indiferente a todos esses princí-pios e não tem o bem em maior estima que o mal,assim como não lhe importa o calor sobre o frio,a aridez sobre a umidade ou a leveza sobre o peso.

Podem-se formular quatro hipóteses relativas áscausas primeiras do Universo: que estão dotadas debondade perfeita, que são perfeitamente malévolas,que estão em oposição e apresentam tanto bondadecomo malícia, e que não possuem nem uma nemoutra. Fenômenos mesclados são incapazes de for-necer uma prova para os dois primeiros princípios,

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que não apresentam mistura. Por outro lado, a uni-formidade e estabilidade das leis gerais parecem opor-se ao terceiro. E o quarto princípio, portanto, quesurge de longe como o mais plausível.

O que foi dito acerca do mal natural aplica-se,com pouca ou nenhuma variação, ao mal moral; enão temos mais razões para inferir que a retidão doSer Supremo assemelha-se á retidão humana do queteríamos para afirmar que sua benevolência se asse-melha á benevolência humana. E de se supor quehá até mesmo mais razão para recusar-lhe sentimen-tos morais do tipo dos que experimentamos, poiso mal moral, na opinião de muitos, predomina muitomais sobre o bem moral do que o mal natural so-bre o bem natural.

Mas ainda que não se deva admitir isto, e aindaque a virtude existente na humanidade deva ser re-conhecida como excedendo em muito seus vícios,mesmo assim os antropomorfistas como você con-tinuarão experimentando grande embaraço frente aoproblema de dar uma explicação para a existênciadesses vícios, enquanto houver a menor porção de-les no Universo. Uma causa deve ser-lhes atribuída,sem que se possa recorrer á causa primeira. Mas co-mo todo efeito deve ter uma causa, e essa uma ou-tra, vocês serão obrigados a conduzir a progressãoin infinitum, ou então, a deter-se naquele princípiooriginal que é a causa última de todas as coisas.

Demea: Pare, contenha-se! Para onde o carre-ga sua imaginação? Aliei-me a você para provar quea natureza do Ser Divino é incompreensível e pararefutar os princípios de Cleantes, que pretendia me-dir tudo pelas regras e padrões humanos. Mas agora

PARTE XI 161descubro que você está mobilizando todos os tópi-cos dos maiores infiéis e libertinos e traindo aquelacausa sagrada que aparentemente defendia. Será vo-cê, então, secretamente, um inimigo ainda mais pe-rigoso que o próprio Cleantes?

Cleantes: E você demorou tanto tempo parapercebê-lo? Acredite-me, Demea, seu amigo Filo estádesde o início divertindo-se ás nossas custas; e deve-se reconhecer que os argumentos. pouco cuidadososda nossa teologia vulgar forneceram-lhe uma exce-lente ocasião para exercitar sua zombaria. E certa-mente estranho que doutores e teólogos ortodoxostenham acalentado tão afetuosamente tópicos comoa total fragilidade da razão humana, a incompreen-sibilidade absoluta da natureza divina, a misériaimensa e universal dos seres humanos e sua perver-sidade ainda maior. E verdade que em épocas de es-tupidez e ignorância esses princípios podem ser abra-çados sem perigo, e talvez nenhum outro ponto devista seja mais adequado para promover a supersti-ção do que aquele que encoraja a admiração cega,a desconfiança e a melancolia da humanidade. Nãoobstante, nos tempos presentes...

Filo: Não dirija tantas censuras á ignorância des-ses reverendos senhores. Eles sabem muito bem co-mo adaptar seu estilo aos novos tempos. A caracte-rização da vida humana como fútil e miserável e oexagero dos males e sofrimentos a que os seres hu-manos estão sujeitos foram tópicos extremamentepopulares nas épocas passadas. Contudo, nos últi-mos anos, percebe-se que os teólogos começam a re-cuar dessa posição e a manter, embora ainda comalguma hesitação, que há mais benefícios do que ma-

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les, e mais prazeres que sofrimentos, mesmo nestavida. Quando a religião dependia exclusivamente dotemperamento e da doutrinação, julgou-se apropria-do encorajar a melancolia, pois é certo que essa éa disposição de espírito que mais prontamente levaa humanidade a recorrer aos poderes superiores. Mascomo as pessoas aprenderam agora a formular prin-cípios e a derivar conseqüências, tornou-se necessá-rio rearranjar as fortificações e lançar mão de argu-mentos capazes de resistir a pelo menos algum exa-me e esquadrinhamento. Essa é a mesma mudança(e provém das mesmas causas) a que já me referi emconexão com o tópico do ceticismo.

E assim Filo levou até o fim seu espírito de oposi-ção e sua censura às opiniões estabelecidas. Mas, comopude observar, Demea não ficou nada satisfeito comessa última parte da discussão e, valendo-se de um pre-texto qualquer, logo a seguir abandonou nossa com-panhia.

PARTE XII

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Após a saída de Demea, Cleantes e Filo continua-ram a palestra da seguinte maneira.

Cleantes: Temo que nosso amigo estará poucodisposto a tratar mais uma vez deste tema em suapresença, Filo; e eu mesmo, para dizer-lhe a verda-de, preferiria discutir com cada um de vocês em se-parado um assunto tão sublime e interessante. Seuespírito de controvérsia, aliado ã sua aversão pelasuperstição vulgar, leva-o a singulares extremos quan-do envolvido em um debate; e não há nada que vo-cê poupe nessas ocasiões, por mais sagrado e vene-rável que seja, mesmo a seus próprios olhos.

Filo: Devo confessar que sou menos cautelosoem questões de religião natural do que em quaisqueroutros assuntos; de um lado porque sei que, nesteponto, jamais poderei corromper os princípios dequalquer pessoa de bom senso; e, de outro, porqueninguém que me considere uma pessoa de bom senso

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irá, estou certo, interpretar mal minhas intenções.Você, em particular, Cleantes, com quem convivoem uma intimidade sem reservas, sabe muito bemque, apesar das liberdades que tomo nas discussõese da minha predileção por argumentos inusitados,ninguém tem um sentimento religioso mais profun-damente inculcado em seu espírito, nem dedica umaadoração mais profunda ao Ser Divino, tal como elese revela á razão através do inexplicável plano e ar-tifício da Natureza. O pensador mais desatento e es-túpido depara-se em toda parte com um propósito,uma intenção, um desígnio; e isto não pode ser per-manentemente rejeitado mesmo pelos mais empe-dernidos defensores de sistemas absurdos. A máxi-ma de que a natureza nada faz em vão foi sanciona-da por todas as escolas a partir da mera contempla-ção das obras da Natureza, sem nenhuma finalida-de religiosa; e a firme convicção de sua veracidadefa, com que um anatomista, ao observar algum no-vo órgão ou canal, não se sinta satisfeito até que te-nha descoberto também sua utilidade e propósito.Um dos grandes fundamentos do sistema coperni-

é a máxima de que a natureza age pelos méto-dos mais simples e escolhe os meios mais apropriadosa um fim qualquer, e freqüentemente os astrónomosformulam, sem que se dêem conta disso, este sólidofundamento da devoção e religiosidade. O mesmose observa nas outras partes da filosofia; e, dessa for-ma, todas as ciências nos levam quase insensivelmen-te ao reconhecimento de um Autor originário e in-teligente, sendo a autoridade dessas ciências tantomaior á medida que não professem explicitamenteessa intenção.

PARTE XII 167É com satisfação que ouço Galeno discorrer so-

bre a estrutura do corpo humano. Ele nos diz8 quea anatomia do homem revela a presença de mais de600 músculos diferentes; e quem quer que os exa-mine com a devida atenção descobrirá que há, emcada caso, pelo menos dez diferentes circunstânciascujo ajuste precisou ser efetuado pela Natureza pa-ra que se atingisse o fim que ela tinha em vista: for-ma adequada, tamanho justo, exata localização dasdiversas extremidades, a posição mais alta e mais bai-xa do todo, a necessária inserção dos vários nervos,veias e artérias; de tal modo que terá sido necessá-rio formular e executar, apenas no caso dos múscu-los, mais de 6000 diferentes objetivos e intenções.Quanto aos ossos, ele calculou que são 284; e os di-versos propósitos visados pela estrutura de cada umsão aproximadamente quarenta. Que prodigiosa exi-bição de engenhosidade, mesmo nessas partes sim-ples e homogêneas! E, se considerarmos a pele, osligamentos, os vasos, as glândulas, os humores, osdiversos membros e extremidades do corpo, a quegrau não se elevará nosso assombro, em proporçãoao número e á complexificação das partes tão habi-lidosamente ajustadas! Ao avançarmos mais e maisnessas pesquisas, descobrimos novas exibições de en-genho e sabedoria; mas continuamos a vislumbrar,a distância e fora de nosso alcance, novos espetácu-los na refinada estrutura interna das partes, na orga-nização do cérebro, no tecido dos vasos seminais.Todos esses engenhosos dispositivos repetem-se emcada uma das diversas espécies de animais, com ad-mirável diversidade e exata adequação, de modo a

8. De forrnatione foetus.

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168 DIÁLOGOS SOBRE A RELIGIÃO NATURAL

convir aos diferentes propósitos com que a Nature-za engendra cada uma dessas espécies. E se a irreli-giosidade de Galeno, mesmo na época em que essasciências naturais estavam ainda imperfeitamente de-senvolvidas, não pôde opor-se a tão notáveis mani-festações, a que nível de teimosa obstinação não teráchegado um filósofo de nossa época que seja capazde pôr hoje em dúvida uma Inteligência Suprema!

Se me fosse dado encontrar um filósofo dessaespécie (e agradeço a Deus por serem eles tão raros),eu lhe dirigiria a seguinte pergunta: supondo-se quehouvesse um Deus que não se revelasse de maneiraimediata aos nossos sentidos, poderia ele fornecerprovas de sua existência mais fortes do que tudo is-so que aparece no cenário da Natureza? Pois que ou-tra possibilidade restaria a tal Ser Divino senão re-produzir a organização presente das coisas, exibin-do de maneira suficientemente óbvia sua engenho-sidade em um grande número de casos de modo quemesmo os mais estúpidos não possam equivocar-seacerca deles, permitindo vislumbres de talentos aindamais grandiosos, que demonstram sua prodigiosa su-perioridade diante da nossa estreita compreensão, emantendo muitas outras coisas completamente ocul-tas aos olhos dessas criaturas imperfeitas? Ora, deacordo com todas as regras do raciocínio correto, ca-da fato deve ser considerado inquestionável quan-do recebe apoio de todos os argumentos pertinen-tes á sua natureza, ainda que esses argumentos nãosejam, em si mesmos, muito numerosos ou conclu-dentes. E quão mais inquestionáveis não serão, por-tanto, no caso em pauta, no qual o número de argu-mentos não pode ser calculado pela razão humana,e sua força não pode ser avaliada pelo entendimento!

PARTE XII 169Cleantes: A tudo isso que você tão bem enfa-

tizou, eu ainda acrescentaria que uma grande van-tagem do princípio teísta é a de ser o único sistemacosmogônico que pode ser tornado inteligível e com-pleto, sem no entanto deixar de preservar, sob to-dos os aspectos, uma forte analogia com aquilo quediariamente observamos e experimentamos em re-lação ao mundo. A comparação do Universo a umamáquina produzida pelo artifício humano é tão ób-via e natural, e justifica-se por tantos exemplos deordem e propósito na Natureza, que deve sensibili-zar imediatamente todas as imaginações não precon-ceituosas e obter aprovação universal. Ninguém quese esforce por enfraquecer essa teoria pode preten-der ter sucesso por meio de sua substituição por ou-tra teoria precisa e determinada. Basta-lhe levantardúvidas e dificuldades e alcançar, por meio de ima-gens estranhas e abstratas, aquela suspensão do jul-gamento que constitui, neste caso, o limite extremode suas aspirações. Mas esse estado de espírito, alémde ser em si mesmo insatisfatório, não poderia demodo algum ser sustentado com firmeza em facedas espantosas manifestações que nos impelem con-tinuamente na direçãoda hipótese religiosa. A na-tureza humana, movida pela força do preconceito,é capaz de aderir com teúacidade e perseverança . aum sistema falso e absurdo; mas penso que é abso-lutamente impossível sustentar ou defender qualquersistema que esteja em oposição a uma teoria funda-da em razões vigorosas e manifestas, em uma pro-pensão natural e na educação que se recebeu desdea infância.

Filo: De minha parte, estou tão pouco inclina-

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do a admitir a possibilidade de uma suspensão dojulgamento no presente caso que chego a suspeitarque esta controvérsia abriga, antes, urha disputa ter-minológica, e em grau maior do que usualmente seimagina. E evidente que as obras da Natureza apre-sentam uma grande analogia com os produtos doartifício humano; e, de acordo com todas as regrasdo raciocínio correto, deveremos inferir, se porven-tura as tomarmos como tópico de argumentação, quesuas causas são análogas na mesma proporção. Con-tudo, dado que também existem diferenças conside-ráveis, temos razões para supor que as causas serãoproporcionalmente diferentes, e, em especial, temosque atribuirá Causa Suprema um grau de poder eatividade muito maior do que o que já se teve oca-sião de observar na humanidade. Assim, a existên-cia de uma Divindade está aqui plenamente atesta-da pela razão; e se levantamos a questão sobre se éou não adequado, com base nessa analogia, deno-miná-la mente ou inteligência, não obstante a vastadiferença que se pode razoavelmente supor entre elae as mentes humanas, que será isto senão uma sim-ples controvérsia verbal? Ninguém pode negar asanalogias entre os efeitos, e seria quase impossívelfurtarmo-nos á investigação acerca das causas. A con-clusão legítima dessa investigação é que também ascausas apresentam uma analogia. E se não nos con-tentarmos em atribuirá causa primeira e supremao nome de Deus, ou Divindade, mas quisermos va-riar a designação, que nos restaria senão chamá-laMente, ou Pensamento, dado que se supõe com jus-tiça que ela guarda uma considerável semelhançacom essas coisas?

PARTE XII 171As disputas verbais, tão abundantes nas investi-

gações filosóficas e teológicas, desagradam ás pessoasde juízo saudável; e sabe-se que o único remédio pa-ra esse abuso deve provir das definições claras, docaráter preciso das idéias postas em jogo pela argu-mentação e do uso rigoroso e uniforme dos termosque são empregados. Mas há um tipo de controvér-sia que, pela própria natureza da linguagem e dasidéias humanas, está envolvida.em perpétua ambi-güidade e é totalmente incapaz de atingir uma cer-teza ou precisão razoáveis, a despeito de todas as pre-cauções e definições. Trata-se das controvérsias liga-das aos graus de qualquer qualidade ou aspecto. Pode-se discutir por toda a eternidade sobre se Aníbal foium homem ilustre, ou muito ilustre, ou sumamen-te ilustre, sobre qual o grau de beleza possuído porCleópatra, sobre qual o título de louvor atribuívela Tito Lívio ou Tucídides, sem que a controvérsiachegue a qualquer decisão. Em tais casos, as partespodem estar de acordo quanto ao sentido e divergirquanto aos termos, ou vice-versa, e serem incapazes,no entanto, de definir seus termos de modo que umadelas possa ter acesso ao significado que a outra lhesatribui. A razão disso é que os graus dessas qualida-des não são suscetíveis, como a quantidade e o nú-mero, de qualquer mensuração exata que pudesse for-necer um padrão para a controvérsia. No caso dadisputa relativa ao teísmo, mesmo um exame extre-mamente superficial já é suficiente para revelar queela e dessa natureza e, por conseguinte, meramenteverbal; ou talvez, que ela é ainda mais incuravelmenteambígua, se é que isso é possível. Pergunto ao teísta

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se ele não admite que há uma diferença enorme eimensurável — dado que incompreensível — entrea mente humana e a divina. Quanto, mais devotoele for, tanto mais prontamente decidirá pela afir-mativa e mais disposto estará a engrandecer a dife-rença. Ele chegará até mesmo a afirmar que a natu-reza da diferença é tal que não poderia ser exagera-damente ampliada. Dirijo-me em seguida ao ateísta— o qual, eu afirmo, s6 o é nominalmente e jamaispoderia sê-lo com sinceridade — e pergunto-lhe senão há, em vista da coerência e da visível harmoniade todas as partes deste mundo, um certo grau deanalogia entre todas as operações da Natureza, emtodas as épocas e ocasiões; e se a decomposição deum nabo, a geração de um animal e a estrutura dopensamento humano não seriam atividades que man-têm, com toda probabilidade, alguma analogia re-mota umas com as outras. Ser-lhe-á impossível ne-gar tal coisa; ele prontamente o reconhecerá. Ten-do obtido essa concessão, obrigo-o a recuar aindamais, perguntando-lhe se não é provável que o prin-cípio que inicialmente produziu essa ordem e con-tinua a mantê-la neste Universo não manteria igual-mente alguma analogia remota e insondável com asoutras operações da Natureza e, de resto, com a or-ganização da mente e do pensamento humanos. Pormais que relute, ele deverá finalmente dar seu assen-timento. Mas então — pergunto a ambos os antago-nistas — qual é precisamente o ponto sobre o qualos senhores divergem? O teísta concede que a inte-ligência original é muito diferente da razão huma-na, ao passo que o ateísta admite que o princípiooriginal ordenador mantém com ela alguma analo-

PARTE XII 173gia remota. Estarão os cavalheiros dispostos a pole-mizar sobre gradações e a embarcar em uma dispu-ta que não tem um significado preciso e que não per-mite, conseqüentemente, qualquer conclusão? Nãome admiraria, caso sejam tão obstinados, vê-los ado-tar insensivelmente a posição oposta, passando o teís-ta a exagerar a dissimilaridade entre o Ser Supremoe as criaturas frágeis, imperfeitas, inconstantes, efê-meras e mortais, e o ateísta, por sua vez, a engran-decer a analogia entre todas as Operações da Natu-reza, em quaisquer épocas, situações e circunstân-cias. Considerem, portanto, onde reside o verdadei-ro núcleo da controvérsia; e, se não lhes for possí-vel abandonar tais disputas, procurem ao menoscurar-se de seus ressentimentos.

E aqui, Cleantes, devo igualmente reconhecerque, assim como as obras da Natureza mantêm umaanalogia muito maior com os efeitos de nossa artee engenho do que com os de nossa benevolência ejustiça, temos razões para inferir que os atributos na-turais da Divindade apresentam, relativamente aosatributos humanos, uma semelhança maior do quea que se manifesta entre seus atributos morais e asvirtudes da humanidade. Mas qual é a conseqüên-cia disto? Simplesmente que as qualidades morais doser humano são, em sua esfera, mais imperfeitas quesuas capacidades naturais. Pois, dado que se admiteque o Ser Supremo é perfeito em absoluto e por in-teiro, aquilo que dele mais se diferencia estará, pro-porcionalmente, mais afastado do padrão supremode retitude e perfeição9 .

9. Parece evidente que a disputa entre céticos e dogmáti-cos é inteiramente verbal ou, pelo menos, só diz respeito aos

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Essas, Cleantes, são minhas opiniões sinceras so-bre este assunto; opiniões que, como você bem sa-be, sempre abriguei e defendi. Mas minha venera-ção pela genuína religiosidade é proporcional ao meurepúdio pelas superstições vulgares; e não posso ne-gar que experimento um prazer especial em exacer-bar estes últimos princípios de modo que dêem lu-gar ás vezes ao absurdo, ás vezes á impiedade. E.vo-cê sabe que todos os fanáticos, embora professemmais aversão por esta última do que pelo primeiro,com freqüência são igualmente culpados de ambos.

Cleantes: Devo dizer que tendo a pensar demaneira oposta. A religião, por mais corrompida queesteja, ainda é melhor que a ausência total de reli-gião. A doutrina de uma condição futura é uma ga-rantia tão forte e necessária da moral que jamais po-deríamos abandoná-la ou dar-lhe pouca importân-cia. Observamos diariamente os grandes efeitos pro-duzidos pelas recompensas e punições temporáriase finitas; quão maiores, então, não serão os resulta-

graus de dúvida e convicção que devemos admitir em relaçãoa todos os raciocínios; e tais disputas, em última análise, sãohabitualmente verbais, não permitindo qualquer conclusão pre-cisa. Nenhum filósofo dogmático recusa a presença de dificul-dades, tanto com relação aos sentidos como em relação a todaciência, nem nega que essas dificuldades sejam completamenteinsolúveis através de um método regular e lógico. E nenhumcético contesta o fato de que essas dificuldades não nos eximemda absoluta necessidade de pensar, acreditar e raciocinar acercade assuntos de toda espécie, e, até mesmo, de dar muitas vezesnosso assentimento de maneira confiante e segura. Assim, a únicadiferença entre essas seitas, se é que merecem esse nome, é queo cético, movido pelo hábito, capricho ou inclinação, insistemais nas dificuldades, ao passo que o dogmático, pelas mesmasrazões, privilegia a necessidade.

PARTE XII 175dos que se poderia esperar daquelas que são infini-tas e eternas?

Filo: Se a superstição vulgar é de fato tão sau-dável para a sociedade, como explicar que a histórianos forneça tantos exemplos de suas conseqüênciasnefastas para os assuntos públicos? Tumultos, guer-ras civis, perseguições, derrubadas de governo, tira-nia e escravidão, tais são as funestas conseqüênciasque têm lugar sempre que a mente humana a ela sesubmete. Se, em qualquer narração histórica, o es-pírito de religiosidade é alguma vez mencionado, po-demos estar certos de nos deparar, logo a seguir, comum detalhamento das desgraças que o acompanham.E nenhuma época pode ser mais feliz ou mais pros-pera do que aquelas que não o levam em conta, ouque o ignoram.

Cleantes: A razão disso é óbvia. A função pró-pria da religião é disciplinar o coração humano, hu-manizar a conduta das pessoas, infundir o espíritoda sobriedade, ordem e obediência. E, como sua ope-ração é silenciosa e apenas reforça os preceitos da mo-ralidade e da justiça, ela corre o risco de passar des-percebida e de confundir-se com esses outros pre-ceitos. Quando chega a sobressair-se e a atuar sobreos homens como um princípio separado, é porqueela se afastou de sua esfera própria, tornando-se me-ro disfarce para a facciosidade e a ambição.

Filo: E esse será o destino de toda religião,a menos que seja do tipo filosófico e racional. E maisfácil escapar de seus raciocínios, Cleantes, do que demeus fatos. Que recompensas e punições finitas etemporárias tenham tão grande influência não nosautoriza a inferir que aquelas infinitas e eternas se-

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rão ainda mais eficazes. Considere, eu lhe peço, oapego que temos pelas coisas do presente e o poucointeresse que manifestamos por objetos muito remo-tos e incertos. Quando os teólogos invectivam a for-ma mundana de agir e comportar-se, sempre repre-sentam esse princípio como sendo o mais forte quese pode imaginar (o que de fato ele é) e descrevemquase toda a humanidade como jazendo sob a in-fluência dele e submersa na mais profunda letargiae despreocupação perante seus interesses religiosos.No entanto, esses mesmos teólogos, ao contestar seusantagonistas especulativos, supõem que os motivosda religião são tão poderosos a ponto de, sem eles,ser impossível a subsistência da sociedade civil e nãosentem o mínimo constrangimento diante de tão pa-tente contradição. A experiência atesta que a menorparcela de honestidade e benevolência naturais temmais efeito sobre a conduta humana do que as maispomposas considerações sugeridas pelas teorias e sis-temas teológicos. A inclinação natural de uma pes-soa exerce sobre ela uma influência constante, estásempre presente ã mente e mescla-se a todas as suasidéias e decisões, ao passo que os motivos religio-sos, nos casos em que chegam a ter algum efeito, ope-ram apenas de maneira intermitente, e é muito difí-cil que o espírito venha a habituar-se completamentea eles. A mais potente força gravitacional, dizem osfilósofos, é infinitamente pequena em comparaçãoao impulso mais tênue; no entanto, não há dúvidade que a gravidade mais fraca chegará, por fim, aprevalecer sobre um grande impulso, porque ne-nhum golpe ou empurrão pode repetir-se com a mes-ma constância da atração e da gravitação.

PARTE XII 177Outra vantagem da inclinação é que ela põe a

seu serviço toda a inventiva e engenhosidade da men-te e, quando contraposta aos princípios religiosos,procura todos os métodos e artifícios para contorná-los — no que quase sempre é bem-sucedida. Quempode explicar o coração humano, ou dar a razão detodos os estranhos pretextos e desculpas que as pes-soas usam como justificativa para seguir as inclina-ções que se opõem a seus deveres religiosos? Isto ébem entendido na sociedade; e só os tolos deposita-riam menos confiança em um homem simplesmentepor ter ouvido dizer que, em virtude do estudo eda filosofia, ele alimenta algumas dúvidas especula-tivas acerca de assuntos teológicos. E quando temosde lidar com uma pessoa que faz grande alarde desua religiosidade e devoção, qual é o efeito disso so-bre muitos que são considerados prudentes, se nãoo de pó-los em guarda para não serem logrados e ilu-didos por ela?

Note-se ainda que os filosófos, que cultivam arazão e a reflexão, têm menos necessidade de moti-vos desse tipo para manter-se dentro dos limites damoral, e que as pessoas comuns, que são as únicasque poderiam necessitar de tais estímulos, são com-pletamente incapazes de aderir a uma religião tãodepurada a ponto de propor que o único meio deagradar ã Divindade é comportar-se de maneira vir-tuosa. Supõe-se, em geral, que rituais frívolos, êxta-ses arrebatados ou uma credulidade fanática podemconseguir os favores do Ser Divino. Não é necessá-rio recuar ã Antigüidade ou percorrer regiões lon-gínquas para encontrar exemplos dessa degenerescên-cia: entre nós mesmos já houve quem se tornasse

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culpado do ato abominável — do qual não há para-lelo entre as superstições egípcias e gregas — de vo-ciferar expressamente contra a moralidade, afirmandoque o menor crédito ou confiança nela depositadoacarretará seguramente a perda do favor divino.

Mas mesmo que a superstição ou o fervor nãose coloquem em direta oposição á moralidade, o me-ro desvio da atenção, a instituição de uma nova efútil espécie de mérito e a absurda maneira pela qualclassificam o que é digno de louvor ou censura tra-rão, com certeza, as mais perniciosas conseqüênciase enfraquecerão ao extremo o apego das pessoas aospreceitos naturais de justiça e humanidade.

Da mesma forma, dado que esse princípio deação não se identifica com nenhum dos motivos fa-miliares que regem a conduta humana, ele só podeoperar sobre o caráter de forma intermitente, e ne-cessita de um esforço constante para sua ativação,de modo a fazer com que o zeloso fanático se sintasatisfeito com sua própria conduta e seja levado acumprir suas tarefas votivas. Muitas atividades reli-giosas são executadas com aparente fervor, emborao coração esteja, durante esse tempo, frio e inerte.Adquire-se gradualmente o hábito da dissimulação,e a fraude e insinceridade tornam-se o princípio do-minante. Daí a razão do reparo, tão comum, de queo mais elevado zelo religioso e a hipocrisia mais pro-funda, longe de serem incompatíveis, estão em ge-ral e com freqüência unidos na mesma personalida-de individual.

Os efeitos perversos desses hábitos, mesmo navida ordinária, são fáceis de imaginar. Quando, po-rém, interesses religiosos estão envolvidos, não há

PARTE XII 179moralidade que seja suficientemente forte para coi-bir o fanático ardoroso, e o caráter sagrado da causaglorifica todos os meios dos quais se pode lançar mãopara promove-la.

A atenção dirigida de maneira fixa e exclusivapara um assunto tão importante como a salvaçãoeterna tende a extinguir os sentimentos benevolen-tes e a engendrar um egoísmo estreito e mesquinho.E essa disposição de espírito, ao ser encorajada, con-segue esquivar-se facilmente de todos os preceitos ge-rais de caridade e benevolência.

Assim, os motivos ligados á superstição vulgarnão têm grande influência sobre a conduta geral, esua operação, nos casos em que chegam a predomi-nar, tampouco favorece a moralidade.

Haveria, em política, algum princípio geral maiscerto e infalível do que o que recomenda que tantoo número como a autoridade dos sacerdotes sejammantidos dentro de limites muito estreitos, e que omagistrado civil impeça, em todas as circunstâncias,que o feixe de varas e a machadinha venham a cairem tão perigosas mãos? Contudo, se o espírito dareligião popular fosse tão benéfico á sociedade, é cla-ro que um princípio oposto deveria prevalecer, poisum número maior de sacerdotes, dotados de maiorautoridade e riqueza, produzirá, em qualquer oca-sião, um crescimento do espírito religioso. E se ca-be aos sacerdotes dirigir esse espírito, por que nãodeveríamos esperar uma vida sumamente santifica-da e uma maior benevolência e moderação da partede pessoas devotadas á religião, que estão continua-mente inculcando-a nos demais e que devem, elasmesmas, estar embebidas de uma boa parte dela?

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Qual é então a razão para que, de fato, o máximoque um hábil magistrado pode pretender com rela-ção á religião popular seja tirar dela algum proveitoe evitar, na medida do possível, as conseqüências per-niciosas que ela pode trazer para a sociedade? E, mes-mo tendo em vista um objetivo tão modesto, todosos meios que ele emprega para atingi-lo estão cerca-dos de inconveniências. Se ele só permite uma úni-ca religião para seus súditos, deverá sacrificar, em no-me de uma incerta perspectiva de tranqüilidade, to-das as considerações relativas á liberdade pública, áciência, a razão e a inventividade — e ate mesmosua própria independência. Se, por outro lado, elefor condescendente para com diversas seitas (o queconstitui a atitude mais prudente), deverá preservaruma indiferença perfeitamente filosófica em relaçãoa todas elas e refrear cuidadosamente as pretensõesda seita dominante; caso contrário só poderá espe-rar infindáveis disputas, alterações, facciosismos, per-seguições e levantes civis.

Concedo que a verdadeira religião não tem es-sas conseqüências nocivas; mas o que devemos le-var em conta é a religião tal como ela habitualmen-te tem sido encontrada no mundo. Não me ocupo,tampouco, da doutrina especulativa do teísmo, oqual, sendo uma espécie de filosofia, deve compar-tilhar da influência benéfica desta, embora esteja, aomesmo tempo, sujeito a idêntica inconveniência deachar-se sempre restrito a um número muito peque-no de pessoas.

E verdade que todas as cortes judiciais requeremjuramentos, mas é questionável se a autoridade des-sas cortes provém de qualquer religião popular. E

PARTE XII 181a solenidade e a importância da ocasião, o cuidadocom a reputação e a reflexão sobre os interesses ge-rais da sociedade que constituem os principais fato-res limitativos que operam sobre a humanidade. Pou-ca importância é atribuída aos juramentos alfande-gários e políticos, mesmo por parte de alguns quetêm a pretensão de seguir os princípios de honesti-dade e religião. E, entre nós, a declaração de um qua-cre é posta em pé de igualdade-com o juramento dequalquer outra pessoa. Bem sei que Políbio atribuiua má fama dos testemunhos dos gregos a preponde-rância da filosofia epicurista; mas também sei queos testemunhos dos cartagineses tinham, nos tem-pos antigos, uma reputação tão baixa quanto a dosdepoimentos dos irlandeses na época presente, em-bora estas observações vulgares não devam ser ex-plicadas pelas mesmas razões. Sem dizer, além dis-so, que o testemunho dos gregos já era mal-afamadoantes do advento de Epicuro; e Eurípedes 10, em umapassagem para a qual chamo sua atenção, desferiuum admirável golpe satírico contra sua nação, comreferência a essa característica.

Cleantes: Tenha cautela, Filo, tenha cautela!Não leve as coisas tão longe e não deixe que seu ze-lo contra a falsa religião ponha a perder seu respei-to pela que é verdadeira. Não abandone esse princí-pio, o primeiro, o único grande consolo na vida enosso principal apoio em meio a todas as investidasda adversidade. A consideração mais satisfatória quepode ser sugerida pela imaginação humana é a dogenuíno teísmo, que nos representa como a obra de

10. Ifigênia em Tauris.

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um Ser perfeitamente bom, sábio e poderoso, quenos criou para a felicidade e que, tendo implantadoem nós um imenso desejo pelo bem, irá prolongarnossa existência por toda a eternidade e transportar-nos para uma variedade infinita de cenários, a fimde satisfazer esse desejo e tornar nossa felicidade com-pleta e duradoura. A condição mais afortunada quenos é possível imaginar, em seguida a desse próprioSer (caso se permita a comparação), é de estar sobsua guarda e proteção.

Filo: Essas aparências são atraentes e sedutorasao extremo; e, no que diz respeito ao verdadeiro fi-lósofo, são mais do que simples aparências. Mas aqui,assim como no caso anterior, ocorre que, ao se le-var em conta a maioria da humanidade, as aparên-cias são enganosas, e os terrores da religião habitual-mente prevalecem sobre seus consolos.

Admite-se que as pessoas nunca estão tão dispos-tas a recorrer ás práticas devotas como quando aba-tidas pelo desgosto ou prostradas pela enfermidade.Não é isto uma prova de que o espírito religioso nãose acha tão intimamente unido á alegria quanto áaflição?

Cleantes: Mas os seres humanos, quando afli-tos, encontram alívio na religião.

Filo: Algumas vezes; mas é natural supor queeles formarão, desses seres desconhecidos, uma idéiacondizente com o estado de espírito triste e melan-cólico com que se dirigem á sua contemplação. Emconseqüência disto, vê-se que as imagens terríveis pre-dominam em todas as religiões; e mesmo nós, apóstermos empregado as mais sublimes expressões emnossas descrições da Divindade, caímos na mais re -

PARTE XII 183les contradição ao afirmar que os condenados sãoinfinitamente mais numerosos que os eleitos.

Posso mesmo dizer que nunca houve uma reli-gião popular que tenha descrito a condição das al-mas dos que morreram em cores capazes de desper-tar, na humanidade, o desejo de que haja efetivamen-te uma condição como essa. Tais modelos refinadosde religião são meramente o produto da filosofia.Pois a morte se interpõe entre os filhos e a perspec-tiva de um estado futuro, e esse acontecimento é tãoofensivo á Natureza a ponto de lançar forçosamen-te uma sombra sobre todas as regiões que se situampara além dele e sugerir á maioria da humanidadeas idéias de Cérbero e as Fúrias, demônios e torren-tes de fogo e enxofre.

E verdade que tanto o medo como a esperançatêm lugar na religião, pois essas duas paixões, emocasiões diversas, excitam o espírito humano; e ca-da uma delas constrói o tipo de divindade que lheé mais conveniente. No entanto, sempre que um ho-mem se achar aprazivelmente disposto, ele estarápronto para os negócios, para visitas, ou para qual-quer espécie de entretenimento, e naturalmente seempenhará nessas atividades, sem sequer pensar emreligião. Se estiver melancólico e deprimido, não teránada a fazer a não ser meditar sobre os terrores domundo invisível e mergulhar ainda mais fundo na afli-ção. Pode certamente ocorrer que, após ter assim gra-vado profundamente as opiniões religiosas em seupensamento e imaginação, sobrevenha uma mudançaem sua saúde ou nas circunstâncias capaz de resta-belecer seu bom humor e, oferecendo-lhe agradáveisperspectivas para o futuro, faça-o passar para o ou-

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tro extremo de alegria e triunfo. Mas ainda assimse deverá reconhecer que, como o terror é o princí-pio primordial da religião, ele também é a paixãoque nela predomina, não admitindo senão breves in-tervalos de satisfação.

Nem é preciso dizer que esses acessos de alegriaexcessiva e entusiástica, ao debilitar os humores, pre-param o caminho para acessos semelhantes de ter-ror e prostração, e que só um estado de espírito cal-mo e equilibrado e capaz de proporcionar o máxi-mo de felicidade. Mas é impossível que alguém semantenha nesse estado enquanto se sentir mergu-lhado em tão profunda obscuridade e incerteza, sus-penso entre uma eternidade de alegria e uma eter-nidade de sofrimentos. Não surpreende que uma talopinião conduza desarticulação do arcabouço men-tal, lançando-o na confusão mais extremada. E, em-bora essa opinião raramente opere de forma tão cons-tante a ponto de exercer sua influência sobre a tota-lidade das ações, ela é, no entanto, capaz de ocasio-nar uma considerável ruptura no temperamento, pro-

duzindo aquela tristeza e melancolia tão notáveis emtodas as pessoas devotas.

E contrário ao senso comum nutrir apreensõese temores por conta de uma opinião, qualquer queseja ela; ou imaginar que o uso de nossa razão, pormais livre que seja, possa trazer-nos algum riscoquanto vida futura. Tal idéia envolve tanto um ab-surdo como uma incoerência. E um absurdo acre-ditar que a Divindade tenha paixões humanas, e lo-go uma das mais vis dentre elas, como o apetite in-saciável pelos aplausos. E é incoerente supor que,tendo essa paixão humana, a Divindade não tenha

PARTE XII 185também outras, em especial, um desprezo pelas opi-niões de criaturas que lhe são tão manifestamenteinferiores.

"Conhecer Deus", diz Sêneca, "é adorá-lo."Qualquer outra espécie de adoração é, na verdade,absurda, supersticiosa e até mesmo ímpia. Ela o de-grada vil condição da humanidade, que se deleitacom súplicas, pedidos, presentes e adulações. Aindaassim, essa é a menor das impiedades das quais a su-perstição é culpada. Em geral, ela rebaixa a Divin-dade a uma condição muito inferior á dos seres hu-manos, representando-a como um demónio capri-choso que exerce seu poder de forma irracional edesumana. Se esse Ser Divino estivesse propenso aofender-se com as maldades e loucuras dos estúpi-dos mortais que ele mesmo criou, os adeptos damaioria das superstições populares estariam certa-mente em péssima situação. E, dentre os membrosda raça humana, só uns poucos mereceriam sua gra-ça, a saber, os teístas filosóficos, que abrigam, ou an-tes, se esforçam por abrigar idéias adequadas acercade suas divinas perfeições. Do mesmo modo, as úni-cas pessoas que fariam jus sua compaixão e indul-gencia seriam os membros da seita — igualmente rara— dos céticos filosóficos, os quais, devido a uma des-confiança natural acerca de sua própria capacidade,suspendem ou se esforçam por suspender todo equalquer julgamento relativo a assuntos tão subli-mes e extraordinários.

Se a teologia natural, como parecem sustentaralguns, se resolve inteiramente na simples proposi-ção (embora algo ambígua ou pelo menos indefini-da) de que a causa ou as causas da ordem no Univer-

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so mantêm provavelmente alguma analogia remotacom a inteligência humana; se essa proposição nãoé capaz de ser estendida, variada ou explicada de ma-neira mais particularizada; se ela não pode dar lu-gar a qualquer inferência concernente á vida huma-na, nem funcionar como o princípio de qualqueração ou abstenção; e se a analogia, ainda que imper-feita, não pode ser conduzida para além da inteli-gência humana nem ser plausivelmente transferidaás outras qualidades da mente; se tudo isto, então,é realmente o caso, que restaria ás pessoas mais in-dagativas, contemplativas e religiosas senão dar umassentimento pleno e filosófico a essa proposição,todas as vezes em que ela ocorre, e acreditar que osargumentos sobre os quais ela se baseia superam asobjeções que podem ser contra ela levantadas? E cer-to que alguma dose de espanto resultará naturalmenteda grandiosidade do assunto, alguma melancolia desua obscuridade, e alguma frustração da razão hu-mana do fato de não ser capaz de fornecer uma so-lução mais satisfatória para uma questão de tal mo-do extraordinária e majestosa. Mas acredite-me,Cleantes, o sentimento mais natural que um espíri-to corretamente disposto experimenta nessa ocasiãoé o de um ardente desejo e expectativa de que os céusse dignem a dissipar ou, pelo menos, a aliviar estaprofunda ignorância, fornecendo á humanidade al-guma revelação mais específica e proporcionandodescobertas da natureza, atributos e operações do di-vino objeto de nossa fé. Uma pessoa acostumada áavaliação imparcial das deficiências da razão natu-ral lançar-se-á com a maior avidez á verdade revela-da; ao passo que o dogmático orgulhoso, persuadi -

PARTE XII 187

do de que os simples instrumentos da filosofia lhesão suficientes para edificar um sistema completo deteologia, desdenhará qualquer auxílio adicional e re-jeitará essa instrução adventícia. Ser um cético filo-sófico é, em um homem de letras, o primeiro e omais importante passo para tornar-se um cristão au-têntico e confiante — uma proposição que de bomgrado recomendo á atenção de Panfilo, esperandoque Cleantes me desculpe por.intrometer-me dessamaneira na educação e ensino de seu discípulo.

Cleantes e Filo não se estenderam por muito maistempo nessa conversação; e como jamais algo me im-pressionou mais fortemente do que todos os raciocí-nios que ouvi nesse dia, devo confessar que, com baseem uma revisão atenta de tudo o que foi dito, não possodeixar de pensar que os princípios de Filo são maisplausíveis que os de Demea, mas que os de Cleantesse aproximam ainda mais da verdade.