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Histórias do viverTRANSCRIPT
HISTÓRIAS DO VIVER
JANDIR JOÃO ZANOTELLI
PELOTAS
2006
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© 2006 Jandir João ZanotelliDireitos reservados ao autor
Rua Jaguarão, 643 – Laranjal – Pelotas - RSE-mail: [email protected]) 32262662
Zanotelli, Jandir João Contos / Histórias do Viver. / Jandir
João Zanotelli. – Pelotas: 2006
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APRESENTAÇÃO
Sensibilidade à flor da pele. Espontâneo.
Sentimental. Saboroso e natural como pitangas colhidas no
pé - foi exatamente assim que senti "Histórias do Viver".
AQUI, A PALAVRA RESSOA E REFULGE... e
o leitor se enternece; comove-se!
De um jeito simples - até maroto algumas vezes -
JANDIR ZANOTELLI estréia oficialmente no mundo da
literatura. Conhecia versos feitos por ele... poemas bonitos,
bem trabalhados, envolventes sempre.
Agora tive a alegria de ler (quase em primeira
mão) seus escritos em prosa .
Não me cabe nenhuma análise acadêmica ou
erudita. Sou apenas alguém que tem por hábito, prazer e
profissão, LER. E exatamente por isso me sinto lisonjeada
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quando este exímio contador de histórias me convida para
apresentar seu trabalho... Quanta honra!
Compreendo que o escritor quis um leitor
comum, mas um ávido leitor, e por isso não me furtei à
nobre tarefa.
A palavra. A escrita. Olhos direcionados para a
leitura... e exatamente neste momento, acionam-se os
intrincados mecanismos mentais: a leitura utiliza a
percepção visual, a função optocinética; a apreensão de
formas; a organização espacial e a significação simbólica
dos elementos da linguagem escrita.
Irremediavelmente envolvida pela teia da prosa
de JANDIR ZANOTELLI - eis o sentimento que me
assomou; pronta para ser absorvida pelo texto do escritor
que se encanta com a vida e dela participa com
naturalidade, sem dramatizar (aliás, manifestação muito
própria de quem tem sabedoria!...)
Contos? Crônicas?
São histórias. Histórias do dia-a-dia. Das
pessoas, dos fatos, dos sentimentos. São homenagens. Às
vezes, documentários de uma vida de estesia, de
contemplação, de indagações. São meditações, confissões,
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exortações. Observações da realidade, seja esta amarga ou
cheia de doçuras.
Em Histórias do Viver há lembranças evocadas;
há encontros; há o amor apetecido.... comprovações, enfim,
de que o Homem é predominantemente emocional!
Leitor:
A palavra é forte! Ela "exorciza os fantasmas;
sagra os reis; efetiva os relacionamentos." A palavra
tem"mel e ferrão". Mas não me pairam dúvidas de que vais
te encontrar com narrativas impregnadas de emoção, de
estro descritivo com forma e fundo vazados e fixados em
sentimentos profundamente humanos. Muito afeto. Amor
como cachoeira!
Vais perceber momentos em que o texto soluça,
opostamente a outros em que a alegria transborda de
palavras benfazejas que embalam a alma, o coração, todo o
teu ser!
Vais te sentir ora protagonista, ora coadjuvante
em meio a estas histórias que mesclam o tradicional com o
moderno, o convencional com o contemporâneo. Mas uma
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coisa é certa: estarás nas entrelinhas, na face oculta de cada
palavra que teus olhos sorverão.Tudo isso porque a
experiência do autor funde-se com a expectativa do leitor!
" Histórias do Viver" chega para nos
dizer:"Como é bom ter um livro como este diante dos
olhos!"
E o mundo literário, neste momento
enriquecido, aplaudirá a criatividade de JANDIR
ZANOTELLI.
Lígia Antunes Leivas
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NOTA DO AUTOR
Estas são histórias vividas. Tem o sabor do contexto
familiar. De meu pai Leonel que as contava aos filhos e
netos com o sabor quente e fumegante do que os ouvidos,
as mãos, os olhos, a pele tocaram.
Três são os espaços imaginários, assim como três
momentos do viver: Um deles é Jacarezinho, município de
Encantado, no vale do rio Taquari, região de imigração
italiana (1882) derivada das primeiras levas localizadas em
Garibaldi, Bento Gonçalves e Caxias do Sul (1875). A vida
diária daqueles pequenos e orgulhosos agricultores com
suas memórias e temores transparece nos contos colhidos
de Leonel e Ana. O segundo é Bentevi, um pequeno
lugarejo de uma dúzia de casas, no interior do então
município de Erechim, à beira do rio Uruguai, onde hoje
está a barragem do Ita. Espaço de um terceiro momento da
imigração no Rio Grande do Sul a partir de 1928, realizada
por filhos e netos dos imigrantes de Garibaldi e Encantado.
As histórias de Bentevi trazem a marca do imaginário
infantil dos filhos de Ana e Leonel. Um terceiro momento
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acontece ao redor da lareira, nas rodas de chimarrão e na
experiência familiar nossa e de nossos filhos na região sul
do RS (1970 em diante).
Misto de realidade, memória e imaginação, porque o
caminho para a realidade é a imaginação e a poesia, como
diziam os tlamatinimes astecas.
Histórias, contos, cismares para que a relembrança
fecunde identidades e esperanças de filhos, netos, amigos,
de cada leitor.
Não têm pretensão de obra acabada. Apenas
liberdade, singela liberdade de contar a vida, com seus
sustos, suas surpresas, encantos, relações.
Têm o olho benévolo, a companhia do ler e reler, de
Ruth que, há quarenta anos sabe de nossos passos, de
nossos filhos, de nosso amor:
A Ruth com carinho.
Pelotas, julho de 2006.
Jandir João Zanotelli.
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ÍNDICE
1.Saudades do Bentevi.......................................................112.Zita..................................................................................153. Uruguai – ponto de balsa..... ..........................................214. A Volta do Uvá..............................................................295. O lagarto e a melancia....................................................416. Carrinhos de lomba........................................................467. O negro Pedro................................................................518. O baile do velho Simão..................................................619.A estátua..........................................................................7110. O moinho do Bortolotto...............................................7811. Missões na Barra do Rio Azul......................................8512. A seca...........................................................................9413. O temporal....................................................................9814. Pescaria na Barra do Paloma......................................10415. Chocolate....................................................................11716. A mudança..................................................................12317. O porco é a salvação da lavoura.................................12618. Cancha reta.................................................................13219. Eu vi Deus..................................................................13620. Quadra e meia em cancha reta....................................14021. Verdades de Pescador.................................................146
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22. O amor vem depois....................................................15423. O despertar de Ana.....................................................16624. Boitatá........................................................................17925. Torresmo....................................................................18526. Guerra........................................................................18927. A ferro frio.................................................................19328. Revolução de 23.........................................................19829. Traíra..........................................................................20630. Bem-querer.................................................................21031. O diabo no baile.........................................................21932. O moinho de Giácomo...............................................22433. Imaculada Conceição.................................................23034. O discurso de Ana......................................................23635. O sanguanel................................................................24336. Fecundidade...............................................................25337. Ana – Comeu tudo.-...................................................26038. Quero Ver...................................................................26239. Ana Catarina...............................................................26440. Daniel.........................................................................26841. Lica............................................................................27342. Vinícius......................................................................27943. A avó de Aninha.........................................................28244. Luciana.......................................................................28445. Domingo na casa do vô..............................................285
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SAUDADES DE BENTEVI
Cronos, o tempo, devora todas as coisas. Só as
pedras lhe são indigestas. E enquanto ele rói as pedras o
divino, o eterno, o definitivo lhe escapa. 1
Assim, por sobre as pedras, pairando sobre o arroio,
sobre os restos da cacimba, do tanque de lavar roupas e
lavar os pés ao fim da tarde, por sobre as uveiras japonesas
enfileiradas ao longo da estrada que, morro acima, conduzia
à roça nova, assim o amor, a juventude das relações
cordiais ainda permaneciam com a novidade de sempre.
Lá, ainda a palmeira ao final do amplo e fofo
gramado, com suas asas balançando ao vento tépido que
vem do Uruguai, asas que ainda seguram meninos e
meninas afoitamente girando no ar. E o tombo. E a risada.
Congraçamento.
1 Assim conta o mito grego: Zeus, o imortal deus grego, escapou dosdentes do tempo, Cronos, (o tempo não atinge Zeus, ele não morre)porque sua mãe Gea, ao invés de entregar o filho que nascia ao tempoque tudo devorava, deu a Cronos uma pedra
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Gino, devagarinho, parou a camioneta em meio à
estrada pedregosa, em frente onde era a casa ampla, de
madeira, coberta de zinco para a saudade do chiado da
chuva em manhãs de preguiça, porão alto, garagem de
caminhão e refúgio barulhento de cabritos com seus berros
e requebros atrás das cabras permanentemente em cio.
Abriu a porta. Mas não desceu. Ficou, olhos amplos,
ouvido aberto, narinas sôfregas, bebendo o ambiente de
infância. A memória ressuscitava cenas de brinquedos, de
lutas infantis, de trabalho sofrido de bois que não aceitavam
tanto peso na corroça, da egüinha baia que não perdia
carreira nos domingos à tarde nos poucos metros de estrada
reta enfrente à casa de Filbert, ao som das cachoeiras do rio
Uruguai.
Estava vívida a pescaria de jundiás, caçados debaixo
das pedras do arroio Encantado, logo após o almoço e com
a veemente proibição dos pais.
As aventuras com cavalos, com cobras corais
manuseadas como se fossem minhocas, e dos companheiros
de escola em grupos rivais, mas todos unidos contra as
meninas delatoras...
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Saudades da professora Zita, bela, esbelta, suave
nos gestos e firme nas atitudes, modelo para as meninas e
inspiração para os meninos quase adolescentes.
Ilva e Classi procuram à beira da estrada alguma
fruta daquele tempo. E vêm vitoriosas com quatro pequenos
e amarelos araticuns que recendem cheiros de vinculações
eternas da felicidade infantil. “Não o comerei. Levarei para
casa para que minha esposa sinta como era bela, como era
saborosa a minha infância”, pensei.
E Castilo insistindo que “aqui estava a cancha de
bochas”, logo ali a pinguela sobre o arroio, ali a ferraria do
Cauduro. Ali as casas enfileiradas dos Hendges com os
amigos Gilberto e Jaime, - o primeiro hoje prefeito de
Aratiba -, com a casa do padrinho cujo filho também é
Castilo.
E do vale da Esperança, e do vale do Encantado
endereçando-se ao Paloma e ao Uruguai, surgem vivas e em
torvelinho as tristezas, as alegrias, as esperanças, os rostos e
corações de encontros que salvam a vida adubada pelos
destroços que o tempo deixou.
Reencontrar tios, de tanto tempo, com os rostos
sulcados de canais que as lágrimas criaram: lágrimas de
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dor, lágrimas de rir, lágrimas de surpresa, lágrimas de
saudade, lágrimas quentes, salgadas, temperadas como a
vida, sempre lágrima, lágrimas... E estes rostos, estas mãos,
curtidos de verdades, de sabedorias, de trabalhos abraçam
fortemente a gente como se fosse a primeira vez de um
encontro feliz. E tio Emílio com um grande abraço e um
olhar profundo, que olha para além das cordilheiras e das
brumas do Uruguai, despediu-se. Uma semana depois
viajou... Certamente com saudades da Barra do Rio Azul,
do Paloma e do Uruguai.
E o tio Ângelo com seu gado branco povoando as
margens da Barragem do Itá, imaginando, lá do alto, sua
casa e suas terras que ficaram submersas, percebe que a
vida exige vôos sempre mais altos, para além do ter e do
juntar, à procura de corações e de ouvidos companheiros.
E tia Inês, com seus numerosos e generosos filhos
que param, se juntam, e recebem com intimidade primos,
amigos que, de há muito, são tão próximos como o amor
que gera saudades. Tudo tão singelo e tão completo como a
verdade e a paz.
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ZITA
Zita era loira. Vinte e cinco anos. Olhos azuis.
Azuis como os confins da serra quando toca o céu.
Alta, esbelta, bem feita. Cabelos soltos levemente
ondulados, em cachos sobre os ombros, um misto de ouro,
sol e mel.
Vestidos alegres, sempre claros, coloridos de
vermelho e azul balançando ao vento a cada passo num
farfalhar sedoso como o ciciar suave no trigo maduro. Ah!
Aquele vento era muito impertinente! E o olhar dela,
senhoril, sobranceiro, fazia do vento um cachorrinho
obediente ao gesto de seu passo e de sua mão.
Passos amplos, nem tão largos como a banalidade,
nem tão curtos como infantilidade. Firmes, seguros,
confiáveis, confiantes. Ancas esculturais sustentando a
beleza de nossa esperança. Promessa e garantia de um
futuro que se abria sobre a pobreza de nossas vidas, sobre
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os limites de nosso olhar. A presença corporal dela
emoldurava nossa escolinha de Bentevi com um halo de
companhia inefável que nos convocava a todos a aprender e
estudar. Zita era nossa professora.
Pele sedosa e macia como pêssego maduro. Lábios
delgados e sem baton, sempre entreabertos num prenúncio
de sorriso, deixavam à mostra dentes alvíssimos, parelhos,
bem cuidados. Unhas limpíssimas e bem aparadas. Sem
pinturas, sem realces, sem meneios, Zita era em pessoa um
chamado ao asseio e à simplicidade de ser. Recendia um
cheirinho quase imperceptível de limpeza e de sabonete
Gessy.
A casa dela, em meio às casas dos colonos, era
também de madeira, coberta de telhas vermelhas de barro,
bem alevantada do chão, com um porão para guardar
ferramentas, queijos, salames... Bem cuidada, pintada de
branco no meio do potreiro verde da colina além do riacho
Esperança, tinha janelas envidraçadas, largas sobre a
vizinhança e o arroio. O patamar no topo da escada era um
jardim permanentemente florido, um convite prazeroso a
chegar.
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As duas filhas, Joanita com três aninhos e Elizabeth
com cinco, pareciam duas bonecas em seus vestidinhos
coloridos e sapatinhos brancos. Como não se sujavam? Não
sei. E brincavam, cantavam e corriam como as outras
crianças. Choravam só quando se machucavam. Acho que a
mãe trocava a roupa delas duas vezes por dia.
Éramos quatro séries, na mesma sala, no mesmo
turno da escolinha municipal Tiradentes, cerca de trinta
crianças, cada uma com suas histórias, dificuldades e
necessidades. Zita atendia a todas ao mesmo tempo, dando
e tomando as lições de cada um e ocupando nosso tempo
com uma eficiência pedagógica extraordinária. Onde teria
aprendido a trabalhar assim? Ela mesma só tinha a quinta
série... Na primeira série todos se alfabetizavam. Na
segunda aprendíamos a tabuada, as operações matemáticas
fundamentais, noções de geografia e a copiar e escrever
ditados... Na terceira e quarta líamos a Seleta em Prosa e
Verso do Clemente Pinto, com seus Dervixe Astucioso, A
Família Reunida, O Filho Pródigo etc. etc. e compúnhamos
pequenos textos e cartas, além de aprofundar história,
geografia e cálculos necessários para a vida de um colono:
preços, juros, medição de terra, cubagem...
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A segurança no gesto e na voz garantiam a ordem,
dispensando o uso da vara que, como regra geral do
município, sempre deveria estar à vista ao lado do quadro
negro.
Uma vez, apenas, ela tentou utilizar esse último
recurso para resolver o clima de briga generalizada que
havíamos criado no recreio. Dois grupos rivais nos
engalfinháramos a pretexto de provocações levianas sobre
nossas irmãs. Zita pôs os meninos em fila, no corredor que
separava as estantes da esquerda (das meninas) e direita
(dos meninos) para dar uma varada em cada um:
- pode ser que assim vocês se lembrem de ser gente
e não apenas animais.
Eu era o primeiro. Quando a professora ergueu a
vara agachei-me de súbito fazendo com que a vara batesse
sobre a estante. A vara esfarelou-se porque estava seca de
tanto tempo sem uso. Uma risada geral. Ela mesma não
conseguiu evitar o riso. E nos mandou ficar de pé, em
silêncio, atrás do quadro negro, por meia hora. E depois deu
às nossas irmãs um bilhetinho para entregar aos pais. O
bilhete nunca chegou: negociações no caminho...
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Zita conseguia o milagre de reunir beleza,
delicadeza, bondade, firmeza e criatividade.
Naquela escolinha do interior, pertinho do rio
Uruguai, conseguíamos fazer teatro (lembro do Moinho
Remoçante), aprender a cantar todos os hinos: o nacional, o
da bandeira, o da independência.... A fazer festa no dia de
Tiradentes, no dia sete de setembro (com paus de sebo,
marchas, danças, brincadeiras) com a presença feliz de
todos os pais... Aprendíamos catequese, civilidade,
cidadania e a ler, escrever e contar.
Os examinadores municipais que vinham de
Erechim para as provas do final do ano, elogiavam muito a
escola Tiradentes e a eficiência de sua professora. Nosso
peito inchava de orgulho. Nosso respeito e admiração por
Zita crescia e fazia-nos crescer.
Zita era a mulher com quem cada menino gostaria
de casar, que cada menina quereria imitar e com quem
todos gostávamos muito de estar.
Pena que Zita casou com Bernardo! Era o contraste.
Embora eficiente no trabalho de carpinteiro e tivesse bom
gosto em fazer móveis, aparecia-nos como rude, tosco,
“grosso” como dizíamos. Silencioso, quase taciturno, de
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pouca conversa e poucas relações era, porém, cumpridor de
sua palavra, honesto em seus negócios e uma rocha a
amparar a mulher e as filhas. Elas eram a festa de sua vida.
Cinqüenta e cinco anos depois. Noite de chuva.
Castilo, sobrinho de Zita telefona de Londrina. Na lufada de
saudade e alegria que ele suscitou, lembrava-se do Bentevi,
de nossas traquinagens de infância:
- Você sabe que Zita ainda vive. Mora em Xapecó
com uma filha.
- Tens o telefone dela?, indaguei logo.
E falei. Recuperei raízes de esperança e bem-querer.
E, lá do fundo da infância, saltaram meninos, meninas,
saudades..., saudades e a Zita professora...
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URUGUAI – PONTO DE BALSA
Os Vioti definitivamente acamparam lá em casa.
Eram dois irmãos de Seara, Santa Catarina, a uns vinte
quilômetros além do Uruguai, além das densas matas das
infindas terras do velho Simão. Deixaram a família para
transportar madeira até a beira do rio. Hospedavam-se no
quarto grande do porão de nossa casa.
Cada um em seu caminhão Ford 47 com longo
reboque dependurado à carroceria, traziam dos pinhais da
Esperança 3, 4, e até 5 grossos toros em cada viagem.
Cinco metros e oitenta de comprimento por oitenta
centímetros, ou mais, de diâmetro. Três viagens por dia
desde a madrugada, até adentrada noite. À noite, avisavam
de longe desde quando desciam o cerro dos Berticelli, lá no
outro lado do vale Esperança, com seus faróis e uma sirene
ligada ao cano de descarga para diversão de crianças e
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velhos que acompanhavam das janelas aquele barulho e
aquele trabalho desbravador.
Quando a estrada, estreita, pedrenta e empoeirada,
enfrentava o Uruguai dobrando em cotovelo para o Itá, lá
do alto, os toros rolavam pelo Tombador, ladeira abaixo,
amontoando-se próximos à água do remanso enfrente ao
velho Simão.
E os irmãos Vioti voltavam cansados, esfolados
pelo trabalho e pela saudade de casa. Jantavam com prazer
a sopa de feijão que mamãe preparava, e aipins, e arroz e
carnes de galinha e peixe e saladas e pimentões e um copo
de vinho.
Depois um papo solto sobre negócios, sobre os
perigos do quase tombamento do caminhão, do atoleiro, do
peneu que estourou, da ponta de eixo que quebrou, do
pouco tempo para trazer os pinheiros para as balsas de
setembro. E da mulher e dos filhos pequenos que
esperavam semanas e semanas sem que eles pudessem
retornar para um abraço. Mamãe sempre destacava a
beleza de se ter uma família.
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Na verdade, Germano, o dono da madeira, pretendia
levar suas balsas para São Borja e São Tomé tão logo as
chuvas de setembro elevassem o rio ao ponto de balsa.
As chuvas vinham. Sempre vinham. Ou para o dia
12 ou para o dia 29, festa de São Miguel, padroeiro da
capela de Bentevi.
Elas não esperam. Quem se atrasa perde um ano
com o risco de os toros estragarem.
Nós crianças olhávamos para aqueles heróis, que,
como papai, eram peritos em domar seus caminhões,
enfrentar os perigos e ligar nosso mundo doméstico ao mais
longínquo rio-abaixo, para além do Salto Grande em
direção a São Tomé da Argentina.
O mês de agosto, com alguns frios ainda, com o
Uruguai enchendo suas margens de intensa serração até as
10 horas da manhã, os amarradores das balsas já iniciavam
sua labuta: amarrar os toros, com cipós e alguma soga de
cizal, em filas paralelas de 50 e depois juntar as filas uma
atrás da outra em balsas de até 12 ou 15 filas.
Assim, aquele comboio de toras, guiado por um
remo à frente e outro atrás seria conduzido por 3 ou 5
homens no lombo chucro, nervoso e atrevido do Rio
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Uruguai, vencendo os saltos alisados pela enchente,
cuidando das curvas e peraus, que eles tão bem conheciam,
sem parar, 5 dias e 5 noites, até o seu destino. Por mais
escura que fosse a noite Simão conhecia os acidentes do rio
apenas pelo ouvido. O Uruguai era um livro que ele
decifrava palmo a palmo.
Na fila do meio, uma pequena barraca desbotada de
lona, acobertava os víveres e alguma roupa para depois da
chuva fria.
A faina de caminhões rolando toras Tombador
abaixo, de juntas de bois acomodando-as à beira d´água, de
homens seminus a gritarem, a puxarem, a juntarem, a
amarrarem pinheiros e a enchente que logo viria muito
embora ainda não estivesse chovendo, povoava a
imaginação de todos com esperanças de sucesso, de
dinheiro que, certamente a cada ano deveria ser melhor.
Não cabia na imaginação a extinção dos pinheirais,
muito embora os exemplos de Erechim, Passo Fundo,
Carazinho e tantos outros lugares o demonstrassem.
Certa manhã, 6ª feira, por volta de 8 de setembro o
velho Simão foi até nossa casa que também era uma casa de
pequeno “comércio de secos e molhados” daquele interior,
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para pedir a papai se poderia guarnecer as 3 balsas que
zarpariam na quarta feira seguinte entre o meio dia e as seis
da tarde. Papai respondeu que sim e que deixaria o
mantimento no Tombador após o meio dia.
Papai, incrédulo, comentou com mamãe o absurdo
daquele pedido, mas vindo do velho Simão não poderia
deixar de atender. O rio estava abaixo do nível normal. Era
necessário que ele enchesse 7 metros acima do nível normal
para que ocorresse o ponto de balsa. Nem mais e nem
menos. Se fosse menos de 7 metros de água o Salto Grande
os destroçaria em redemoinhos infernais. Se fosse mais do
que a marca dos 7 metros o Uruguai não venceria a Volta
do rio Uvá e provocaria redemoinhos ainda piores. Era
preciso o ponto certo, o ponto de balsa.
E não estava chovendo nem havia sinal que deveria
chover. Mas, por via das dúvidas, Leonel providenciou
tudo: carne fresca, carne charqueada, arroz, feijão, pão,
farinhas, temperos, sal, açúcar, café etc... Os corotes2 de
cachaça viriam do alambique do próprio Simão.
E aguardou.
Sábado e domingo não choveu.
2 Corote: pequeno barril de 15 litros.
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A Segunda Feira amanheceu num toró contínuo.
Quarta feira ao meio dia o Uruguai estava em ponto de
balsa.
Abaixo de chuva, tudo bem protegido por lonas, lá
estava meu pai, no Tombador entregando o pedido.
Às 4 da tarde as balsas do velho Simão zarparam
soltando foguetes de festa e aventura.
Depois das balsas, quando o rio chegasse a 9 ou 10
metros acima do nível normal era a grande enchente. As
águas vinham roncando, rolando troncos de árvores
arrancados das margens, trazendo restos de casas de
madeira e móveis, mesas, armários, e um berço de criança
vazio..., vazio,... que andava sobre as águas como uma
pequena barca. Tudo, aquele rio do improviso,
manso e violento, tudo ele extorquia daqueles pobres
ribeirinhos descuidados do poder do Uruguai ou
empurrados pela pobreza às margens mais planas. E ai de
quem se atrevesse a interferir na sanha devoradora do rio.
Há 5 anos, dois dos mais experientes balseiros e nadadores
foram tragados e desapareceram para nunca mais quando
tentavam salvar alguns móveis da correnteza. E, com o
susto ante o indomável, vinha sempre uma prece para que
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os balseiros não fossem alcançados pela enchente maior
que os seguia e perseguia para acima e para além do ponto
de balsa.
Doze dias depois, lá estava de volta o velho Simão
para acertar as contas com meu pai. Pagou. Um sorriso
largo no rosto. Olhos brilhantes naquela pele curtida pelo
sol. Chapéu novo de feltro. Botas novas da Argentina e uma
lanterna potente, de três pilhas que perfuravam até a
serração do Uruguai por mais de 100 metros no escuro.
Tomaram um trago de cachaça boa com Bitter Águia, como
bons e velhos amigos.
E então veio a pergunta entalada na garganta de meu
pai:
- tudo muito bom, tudo certo, mas me explique:
como o senhor sabia que o Uruguai estaria em ponto de
balsa na quarta feira à tarde se o rio estava seco?
- É muito simples, seu Leonel. Faz mais de vinte
anos que eu corro balsas neste rio. E moro na barranca há
mais de 40 anos. Conheço suas curvas, suas manhas, seus
segredos mais do que me conheço a mim mesmo. E o sinal
da enchente é este: quando, de manhãzinha, um fiapo de
serração percorre o rio água acima e não mais alto do que
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10 metros é sinal certo de enchente na semana vindoura.
Cinco ou seis dias, depende da altura da serração em
relação à água. Naquela Sexta Feira em que eu vim aqui, a
serração subiu o rio a oito metros de altura.
A surpresa de meu pai converteu-se numa sonora
risada e no convite para mais um trago com Bitter por conta
da casa.
Lembro de um ponto de balsa no dia 29 de setembro
às 11, 30 da manhã e no ano seguinte às 12 horas do mesmo
dia 29. Sempre o mesmo reboliço, sempre as surpresas das
coincidências, sempre as promessas se a viagem fosse
exitosa, sempre os olhares de festa e de ansiedade com
aqueles amigos que se aventuravam a enfrentar o rio
Uruguai.
Hoje, o Tombador, o remanso do rio, a casa de
zinco do velho Simão em meio à densa mata de frutas e de
canelas, angicos, grápias, pinheiros, güajuviras...povoada
de pássaros, macacos, quatis e até onças, tudo foi sepultado
pela água da Barragem da Hidrelétrica do Itá. Bem no
fundo dessas águas, lá onde continuam morando os surubis,
os dourados, as piavas e grumatãs, estão plantadas e silentes
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as saudades do velho rio, do simples rio Uruguai com seu
ponto de balsa.
A VOLTA DO UVÁ
Segunda feira, ao clarear do dia, quando abri a porta
para tirar o leite da vaca Boneca, vi o negro Pitanga passar,
em sua egüinha tordilha, com a cabeça toda envolta em
panos em direção à sede distrital – Aratiba. Papai, que
ajoujava os bois para atrelá-los à carroça comentou:
- isto foi briga nas carreiras do Bastião Foz, na
barranca do rio.
Atirei para perto do cancela da mangueira um bom
feixe de ramas de batata doce e a Boneca veio fagueira com
seu ubre túrgido de leite. Esta vaca holandesa, era mansa a
tal ponto que jamais era amarrada para ser ordenhada.
Enquanto ela saboreava com ar calmo, plácido, pacífico,
quase maternal aquelas ramas, eu me apressava para retirar
de suas tetas bem lavadas e acariciadas, com as duas mãos e
o balde no meio das pernas, sentado numa pedra qualquer,
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dez canecas grandes de leite. Mais de meia lata de
querosene3. Ao contrário da Brasina, a vaquinha gersey
impertinente e irrequieta que só permitia ser ordenhada na
cocheira, amarrada, inclusive com o rabo preso a uma perna
e que só dava 4 ou 5 litros de leite, mais gordo é verdade, a
Boneca era a bondade e a mansidão em pessoa.
Sempre penso na Boneca quando descubro que os
hindus reverenciam a vaca como símbolo de Deus, pois
passa a vida inteira, generosamente a alimentar os outros.
Mamãe ajudava Gino e Irma a juntar, na mochila
improvisada, o livro, o caderno, o lápis e uma batata doce
assada no forno de barro depois de retirado o pão. Para a
merenda ou para nossas trocas comerciais de merendas na
hora do recreio. As trocas obviamente sempre aconteciam
ainda em aula, disfarçadamente, por debaixo dos bancos:
batata por rapadura, por bananas, por caquis e até por duas
fatias de pão recheadas de banha com açúcar que os
poloneses ou alemães traziam.
E retornávamos da escola, meninos e meninas que
moravam na costa do rio Uruguai, aos bandos, por entre
3 Uma lata de querosene é de 20 litros.
30
empurrões, provocações, desafios e alguma briga, tão
freqüente como os dias da semana.
À meia tarde, mamãe me incumbiu de levar à velha
Dalbert a máquina manual de costura que lhe havia pedido
emprestado. Os Dalbert moravam bem no alto da volta do
Uvá. O Uruguai circunda uma plataforma de montanha
alongada de mais de 5 quilômetros indo por um lado e
voltando pelo outro. Do alto avista-se duas vezes o mesmo
rio em todo o percurso que vai do Tombador até a casa dos
Dalbert. Na ponta, quando o rio faz uma curva de 360
graus, fica a barra do rio Uvá. Na enchente, o encontro das
águas do Uvá com as do Uruguai provoca, em pororocas,
torvelinhos que tudo absorvem e destroem.
Nas fraldas do morro, desde a barranca, sobem as
roças dos moradores com suas casas de madeira, cobertas
de zinco ou de tabuinhas de pinho. Pobres, aventureiros
imigrantes que vieram das terras velhas do Rio Grande do
Sul (Caxias, Garibaldi, Encantado, Guaporé...) para as
novas colônias abertas desde Erechim na década de 20 do
século passado.
Alguns fugitivos da polícia. Quase impossível
localizá-los na imensidão daquelas matas. Outros,
31
frustrados ou falidos de negócios ou de família, buscaram
apossar-se de terras que eram de ninguém.
Por fim vieram filhos e netos dos imigrantes
europeus, comprando uma colônia de empresas
colonizadoras.
Na história da origem de muitos ficava, nos esvãos
do silêncio, o mistério da desgraça ou da esperança que os
alimentava.
Intrigava-me sempre a história de Bastião.
Agricultor bem instalado em sua colônia4, nas cercanias da
cidade de Santa Cruz do Sul, era viciado em jogo de
corridas de cavalo. De posse de um excelente cavalo, tendo
como certa a vitória, apostou todos os bens inclusive as
terras nas patas do animal. Foi traído pelo jockey e pelo
juiz.
No desespero e na vergonha fugiu naquela noite.
Deixou a esposa com um casal de filhos de 2 e 4 anos e
sumiu sem nada dizer. Acompanhou-o nesta diáspora
desumana a cunhada solteira.
4 Colônia era na verdade uma fração de terra destinada a uma família naépoca da Imigração européia para o Rio Grande do Sul: até 1850 eramcerca de 70 hectares, depois a colônia contava entre 25 e 30 hectares.
32
A cavalo romperam os quase quatrocentos
quilômetros e, ao chegar à Volta do Uvá, imensidão de
mata cerrada, atravessaram o rio Uruguai e arrancharam por
lá.
Vivendo de caça e pesca abundantes, de uma
pequena plantação de milho, feijão e recolhendo bananas
nativas foram criando seus 6 filhos na clandestinidade.
Ninguém sabia de sua história. Até que um dia, 30
anos passados, um senhor, bem apessoado, alto, forte,
cabelos loiros e olhos azuis, apareceu lá em casa
perguntando se não conhecíamos um tal de Sebastião
Vosler. O delegado de política de Aratiba indicara papai
como quem poderia com segurança dar alguma informação.
Meu pai arrepiou.
E antes de arredondar a suspeita perguntou: de que
se trata? Algum caso de polícia?
- Não! respondeu Alfredo. Estou à procura de meu
pai que sumiu do Alto Taquari há trinta anos. Imaginei que
pudesse estar por estes lados.
Papai estendeu-lhe um chimarrão, olhou-o com
curiosidade infinita e repetiu em voz alta:
- Sebastião Vosler?
33
E pensou: não será o amigo Bastião Foz?
Conduziu-o a cavalo até a barranca do rio e disse:
grita por um caíco que ele vem te buscar.
- Sem me conhecer?
- Não é preciso. Aqui se vive da confiança.
Papai aguardou um pouco. Imediatamente um rapaz
loiro mas de pele crestada pelo sol do Uruguai, ágil no
remo, atravessava o rio.
Papai soube depois por Bastião, chorando como
criança, que Alfredo se apresentou como fiscal de terras,
assustando a todos porque aquelas terras eram de posse e
sem título nenhum. Aos poucos, foi perguntando por sua
vida pregressa, de onde viera, por que viera e se não deixara
parentes para trás... Depois de duas horas de silêncios e
interrogações indagou: não vê nenhum traço de semelhança
entre mim e o senhor?
Foi então que os olhos de Bastião se abriram.
Abriram-se, abriram-se... e se taparam de água:
- Alfredo?
E choraram abraçados. Sem falar. Longos minutos...
E dos olhos de todos explodiram cascatas de chuva,
como depois da tempestade.
34
No dia seguinte, papai e todos os vizinhos da
redondeza lá estavam para o grande churrasco.
-----------------------------------------------------
Mas nem todos eram Bastião ou seus filhos bem
educados e respeitosos. Alguns eram arredios,
desconfiados, não necessitando de muito assunto para
armar uma briga. Muitos ostentavam, como troféus,
cicatrizes de cortes de faca, facões, e de balas. Sempre
acrescentando que “o estrago no outro foi muito maior”.
No meio da lombada daquele platô em forma de
península, corria a estrada geral, que de geral só tinha o
nome, pois era uma estradinha estreita onde mal passava
uma carroça de bois ou um Jeep, ladeada de enormes
árvores cuja sombra escurecia o caminho quando ainda o
sol nem se tinha posto.
Mamãe recomendara que não tardasse distraído em
brinquedos com os filhos da velhinha Dalbert que era mais
velha porque pequena e magra do que por idade.
- Aquelas estradas e aquelas matas são muito
perigosas.
Mas os carrinhos de lomba foram mais tentadores.
35
Quando me apercebi as sombras já avançavam e
recobriam o Uruguai à direita. Era quase noite. Era preciso
voltar de pressa.
A egüinha baia parecia adivinhar. Em seu lombo,
em pêlo, apenas com meu velho peleguinho, num pulo
estaria em casa.
A baia era dócil de boca. Bastava inclinar as rédeas
para um lado e ela obedecia. Para freá-la era só um toque e
ela sentava nas patas de traz. Ligeira de marcha, nunca
troteava. Seu balanço suave como dança de valsa era a
delícia das mulheres. Mas também era rápida no galope.
Um grito convidativo de brrrr... e ela desandava em
disparada. Em cancha reta de quadra e meia dificilmente
um cavalo corredor daquelas plagas ganhava dela. Em tirão
mais longo já não tinha o mesmo sucesso porque era
relativamente baixa e seus pulos, embora rápidos, não eram
tão longos como o dos cavalos mais altos. Dócil e mansa
para se deixar prender, encilhar e montar. Era chamá-la e
ela vinha correndo, à espera, obviamente, do prêmio de
uma espiga de milho.
Subi rapidamente o caminho tortuoso e pedrento
que ligava a casa dos Dalbert à estrada geral. Depois de
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uma pequena roça de mandioca e milho a estrada afundava
de vez na mata escura. Sempre em marcha solta, as rédeas
levemente esticadas na mão esquerda, ia atento a qualquer
sinal. Atento especialmente às orelhas da baia que, diante
de qualquer perigo, sempre se empinavam.
Não havia percorrido 100 metros de mata e ouço
vozes. Gente conversando em voz baixa, quase em surdina
alguns passos adiante.
Estaquei.
Naquela estrada, uma semana antes, dois mulatos
esperaram um desafeto e o “desgalharam” a facão como se
comentou na venda lá em casa. Cortaram-lhe uma orelha,
quase lhe deceparam um braço além de marcá-lo com
”taios” pelas pernas, pelas costas... Estes comentários
assaltaram-me a mente e o coração. Tive medo.
A baia segura no freio, escutei atentamente. Nada se
ouvia. Mas eu tinha certeza que eram vozes. E lá, a uns 50
metros talvez, nas duas margens da estrada, duas luzinhas
estranhas piscavam. Um piscar longo ora de um lado ora do
outro. Não era luz de vagalume que essa eu conhecia muito
bem.
Animado pelo medo, perguntei em voz alta:
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- quem vem lá?
Nenhuma resposta. Silêncio completo. Nem a coruja
chiava dos lugares mais recônditos e de improviso só para
assustar a gente.
Tornei a perguntar ainda mais alto:
- quem vem lá?
O silêncio foi a resposta. Mas as luzinhas, a um
metro e meio do chão continuavam a piscar
provocadoramente.
Outra estrada não havia para retornar à minha casa.
Voltar à casa dos Dalbert era vergonha. Afinal eu já tinha
quase 10 anos. Que diriam de mim os colegas de escola se
me soubessem medroso?
Dei de rédeas e voltei para a entrada do mato.
Quebrei uma varinha flexível de maria-mole, ajustei bem as
rédeas na mão esquerda, apertei os pés na virilha da baia e
dei-lhe uma leve chicotada para dizer-lhe que era preciso
ter toda a atenção.Ela ergueu a cabeça, empinou as orelhas
em atenção máxima e, impacientemente, foi galopando
atravessada na estrada, pronta para disparar.
Fui entrando pela mata e pensando: se alguém
quiser me pegar, não saberia por quê, mas só teria duas
38
chances: ou estendendo uma corda cortando a estrada para
varrer-me do lombo da montaria, ou atravessando um
tronco para que nele a égua topasse e caísse comigo.
Juntei as duas hipóteses: da corda escapo deitando-
me rente ao pescoço da égua; do tronco a baia, alertada pelo
toque do freio, deveria dar conta sozinha.
Soltei o grito de guerra brrrr...e fulminei em direção
ao centro daquelas luzinhas que agora já não piscavam.
Passei como um raio, sem ver corda nem tronco.
Mas ouvi os palavrões todos de que tinha
conhecimento, por parte de quatro colegas de aula que
voltavam a pé para casa, dois deles, os das pontas
ensaiando fumar um palheiro vagabundo e que queriam me
assustar porque haviam reconhecido a minha voz. Como
eles conseguiram cair fora, não sei. Como a baia conseguiu
desviar deles, sem leva-los de roldão, também não sei. Ao
identificá-los no vozerio não falei. Não parei. Só parei em
casa suado pelo longo galope e pelo arrepio.
No dia seguinte, mal clareava o dia e, ao passarem
para a escola o grupo resolveu parar lá em casa e perguntou
à minha mãe:
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- Dona Ana, por acaso Jandir saiu ontem à noite, a
cavalo?
Mamãe, adivinhando e antecipando-se à
possibilidade de alguma encrenca, disfarçou:
- Acho que não. Por que?
- Por nada. É que um louco, pensamos que fosse o
Jandir, quase nos matou na estrada da Volta do Uvá ontem
à noite. Ele não vai à escola?
- Vai sim, eles ainda estão tomando o café.
Quando partiram, o olhar indagador de mamãe
perguntava por explicações dos perigos da Volta do Uvá.
40
O LAGARTO E A MELANCIA
Fim de março. Calor mormacento nas encostas de
Bentevi, próximo ao Uruguai. Outono. Tempo da última
capina ao milharal que já está embonecando. O tempo de
frutas de verão já se foi. Melancias e melões findaram em
fevereiro, logo depois da uva e muito depois dos pêssegos,
das pitangas, das cerejas e guavirovas. Laranjas e
bergamotas só de maio em diante. Os poucos pés de
abacaxis de nossa lavoura amadureceram seus frutos em
janeiro. Restavam os caquis, algumas peras d´água, goiabas
amarelas que cresciam por toda a parte, araticuns com suas
sementes carnudas e doces e as jaboticabas negras,
agarradas ao tronco com sumo adocicado no início e
amarguinho quando se lhe mastigava a casca.
Eu pensava em frutas enquanto arrancava, à mão, os
inços que estorvavam o milho especialmente milhãs e
carurus no meio das pedras altas do fundo da lavoura,
pertinho do mato com seus perigos e seus mistérios..
Os tucanos voavam aos pares de nossa mata para as
do Benincá, lá no outro lado do vale. Ao longe a escala
41
ascendente do cantar dos inhambus fazia pano de fundo à
algazarra de bentevis, sabiás, almas de gato, tico-ticos,
papagaios, periquitos, gralhas, canários... E ao longe, lá
embaixo no arroio, saracuras anunciavam chuva, enquanto
os quero-queros vigiavam seu espaço de poder no potreiro
de Berticelli.
Apressava-me para terminar a tarefa que meu pai
me dera: limpar aquela área das pedras. Trabalhar era um
dever e, para mim, era um prazer colaborar com meu pai.
Afinal era o mais velho dos, então, oito filhos.
Estava suado, com sede. A fonte que brotava fresca
entre as pedras da beira do mato distava uns 500 metros.
E então a surpresa: à sombra de uma pedra mais
alta, escondidinha, estava uma bela melancia. Não chovera
muito. Não apodreceu. Fresquinha e apetitosa era uma
dádiva dos deuses naquela hora da tarde.
De um talho de facão abri-lhe o coração ao meio. E
sorvi, devagarinho, pedaço por pedaço, metade dela. A
outra metade levaria a papai que trabalhava na outra ponta
da lavoura, quase a um quilômetro dali.
Vermelha, sementes pretas, quase esfarinhava.
Nunca melancia fora tão doce em minha vida.
42
Sentado no alto daquela pedra eu contemplava o
horizonte e ouvia a música dos pássaros como se fosse um
rei.
Um ruído entre folhas secas à minha direita
despertou-me do encantamento. Um enorme lagarto, papo
amarelo, que todos diziam ser muito brabo, vinha do mato
em direção à lavoura. A cinco metros de mim, ao ver-me,
parou, levantou bem o peito e a cabeça e encarava-me de
língua de fora.
Ele parado e eu estatelado a olhar para ele.
Se ele quisesse, subiria na pedra onde eu estava.
Não era mais alta que um metro do chão. Pensei no facão
para a minha defesa. Estava longe da minha mão. Fiz um
ruído com a boca e um gesto com a mão como para
espantá-lo. Mas ele não se moveu.
Tomei, então, um pequeno disco da casca da
melancia, mirei bem e atirei em direção à sua cabeça. Errei.
A casca bateu no chão um pouco antes dele e saltou por
sobre ele sem atingí-lo. Imaginava eu que ele fugisse.
Enganei-me. Ficou furioso e veio em minha direção.
Disparei milharal afora, ladeira abaixo, em zigue-
zague, porque sabia que os lagartos têm muita dificuldade
43
de fazer curvas e, quando parei, quase sem fôlego, sobre o
tronco de uma árvore deitada, já não o via mais.
Respirei fundo. Escutei. Olhei. Nem sinal dele.
Ainda com a doçura da melancia na boca, pensei:
não posso deixá-la lá nas pedras. E papai certamente
apreciaria um pedaço dela. E o facão também estava lá.
Então, pé ante pé, olhos, ouvidos, tato e olfato bem
ligados, retornei.
Ele já não estava. Mas do alto da minha pedra ainda
o vi quando entrava em sua toca: um toro de canela cujo
miolo estava podre.
Facão em punho, fui chegando perto da tora. Ela
tinha um buraco de entrada por um lado e do outro lado
uma saída.
Lagarto não anda de ré, pensei. A toca é muito
estreita para que possa virar-se e retornar pela mesma
entrada. E então, com uma pedra que meus 9 anos
conseguiam transportar, tapei o buraco de saída.
Agora estava a salvo. Poderia retornar ao meu
trabalho descansado.
Foi então que o menino maroto e vingativo
despertou dentro de mim.
44
“Darei uma lição neste desgraçado”..., sismei.
Juntei palha seca na porta de entrada. Acrescentei
uns gravetos e fiz fogo.
A fumaça atormentava o lagarto que batia de
cabeça, inutilmente, na pedra que tapava a saída.
Saboreei aquela vingança, trompada por trompada,
até que ele parou de bater.
E então, com um bastão longo, empurrei de
vagarinho a pedra.
O lagarto saiu em disparada louca, sem parar, sem
afrontar ninguém, levando consigo o medo que ele me dera.
45
CARRINHOS DE LOMBA
Domingo à tarde.
Depois do terço das dez horas, combináramos, os
meninos da redondeza com menos de dez anos, um
campeonato de velocidade com carrinho de lomba. Iniciaria
logo depois do almoço. A pista: o potreiro do Germano.
Cada qual com o carrinho que ele próprio fabricara, sem
auxílio de ninguém. Quem tivesse contado com a ajuda de
irmão ou do pai não poderia concorrer.
Os incrementos contariam pontos: quem
conseguisse levar mais passageiros consigo, quem tivesse
freio acionado pelos pés, quem tivesse apoio para os pés
dos caroneiros, quem tivesse a direção guiada por cordas.
Ganharia quem conseguisse fazer melhor as curvas
desviando os inúmeros tocos de árvores ao longo do
percurso e chegasse mais rápido à beira do arroio sem cair
na água, sem perder passageiros pelo caminho e sem
tombar.
Dez carros ao todo. Cada qual com os eixos mais
engraxados com a banha furtada da cozinha da mãe, cada
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qual com maiores rodas, com tábua de assento para maior
número de passageiros. Cada um ostentando a tecnologia
mais avançada para a arte. Levar três, quatro e até cinco
caronas, morro abaixo, naquele gramado verde seria
vertiginoso: quanto maior o peso, maior a velocidade. O
problema era controlar a velocidade para as curvas e com a
inclinação dos passageiros para o lado certo.
Ah! Havia expectadores. Irmãos mais velhos e
meninos e meninas. Os pais e as mães não poderiam estar
sob pena de proibir tudo: é perigoso! Vão se matar! Vão se
sujar!... Eu sempre disse!..
O perigo era o encanto e o atrativo. Eram cem
metros de pura adrenalina.
Dois juizes escolhidos pelo voto de todos. Tinham
quatorze anos. Suas decisões seriam irrecorríveis e
inquestionáveis. Valia o que eles dissessem. O sorteio
determinaria a ordem de largada. A saída era no baixar do
braço. A velocidade e o tempo seriam calculados por olho e
por experiência.
Cada piloto dizia quantos levaria e quem eram eles.
Os mais magros tinham preferência, é óbvio. O mesmo guri
poderia ser passageiro de mais de um carro.
47
Darci seria o primeiro. Disse que levaria quatro,
cinco com ele: A tábua-assento e as rodas eram de grápia,
os eixos de angico vermelho, tudo à prova de resistência.
Não precisava de freio. A direção era nos pés mesmo.
Ao grito de todos, lá se foram gramado abaixo.
Contornaram bem o primeiro tronco. A velocidade
aumentou. Na segunda curva quase tombaram, mas
conseguiram retornar ao prumo. A terceira curva foi
impossível vencer. Rolaram uns sobre os outros e, sob a
expectativa de alguns, a preocupação das irmãs e a
gargalhada geral levantaram-se, semi-mancos tentando
limpar o verde das pernas, da roupa e da alma e todos
culpando todos: você fez a curva muito fechada... vocês não
acompanharam com o corpo... Lá ficou o rastro da
derrapada e do tombo... da festa de cair.
Décio levou só três, embora tivesse apoio de pés
para quatro. É melhor não arriscar. Ganha quem chega ao
fim. Tinha freio nas rodas da frente: ajudaria melhor nas
curvas. Foi o seu engano. Quando o carro ganhou
velocidade, depois da terceira curva e bem no meio da
quarta tentou frear. Foi um desastre. As rodas voltaram-se
48
bruscamente para dentro e eles tombaram mais feio que
Darci.
Pedrinho resolveu ir sozinho. Seu carro não era
muito grande. Tinha medo que a tábua de canela preta não
resistisse. Freava com palanca de mão numa das rodas de
trás. Foi de vagar, cauteloso. Venceu oito das dez curvas
sem maiores problemas. Depois, sentiu que andava muito
lento, soltou o freio no mais íngreme da rampa. A nova
curva esperava-o para o tombo fatal. Chegou a chorar de
raiva.
Gino era o último. Fez os cálculos: posso carregar
até cinco, mas a velocidade será incontrolável. Mesmo com
o freio de pé nas duas rodas trazeiras. Resolveu levar
apenas dois passageiros. Afinal ninguém tinha chegado à
meta final ainda.
Preparou-se. Recomendou aos amigos que se
agarrassem firmemente nele, que dobrassem o corpo como
ele dobraria e mantivessem os pés firmes nos apoios.
Não se importou com a torcida-contra dos colegas
que já tinham tombado. Levou controladamente sua
“viatura”, curva após curva, de uma a dez. Quando se viu
na reta final soltou seu carrinho a toda a velocidade e mirou
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seu bólido no juiz de chegada: só para dar um susto.
Antoninho saltou para o lado e Gino se foi em direção à
água.
Os juizes decretaram: empate geral, porque ninguém
chegou ao final. E todos se gabavam. Cada qual ria mais
dos outros pelos erros, pela má qualidade dos carros, pela
falta de braço...
Menos Gino. A calça nova de brim riscado que a
mãe lhe fizera para que cuidasse e durasse longo tempo
havia-se rasgado nas pedras do arroio. Que explicação daria
em casa?
50
O NEGRO PEDRO
De Erechim a Barão do Cotegipe. E então quarenta
quilômetros de estrada de chão, tortuosa, de poeira e
pedras soltas, e que insistia em ficar engarupada na crista
dos mais altos morros. Andávamos em direção a Itatiba do
Sul. Íamos matar saudades há cinqüenta anos sufocadas.
Dos dois lados da estrada, quase em precipício,
pastagens para o gado zebu e alguma pequena roça de
milho conquistada dos peraus e grandes pedras vulcânicas.
Em cada minúsculo altiplano um agrupamento de 4
ou 5 casas e uma venda. Um fusca e um motociclo num
armazém de casa antiga e sem pintura, com quatro velhotes
jogando bisca e dois rapazes de boné virado bebendo uma
cerveja, informaram que Itatiba ficava a 16 quilômetros.
Finalmente, lá no topo mais alto, com duas torres de
retransmissão de sinal de TV e telefonia apareceu a vila-
cidade.
De Itatiba, verdadeiro esconderijo no alto dos
montes, avista-se à direita, a menos de 10 km. a vila de
Barra do Rio Azul. Em frente, a trinta km, de cor-terra a
monumental muralha da Barragem do Itá. Um pouco
51
aquém, entre taperas de colonos que se foram, expulsos
pela afronta da barragem, está Bentevi, na barra dos arroios
Encantado e Esperança. À sua esquerda, lá onde os morros
se esgotam e se prostram como barrancas do rio Uruguai,
segue o verde escuro de matas que avançam para Santa
Catarina, de Seara em direção a Xapecó. À direita, após a
lâmina azul das águas da barragem, no cocuruto mais
evidente daqueles verdes está a nova Itá. A Itá da minha
infância afundou-se nas águas. Dela só restaram as duas
torres da igreja que insistem em manter-se acima do dilúvio
como curiosidade turística.
Itatiba, pequeno município que há 10 anos tinha 15
mil habitantes e hoje tem 7 mil, metade deles na cidade
com uma só rua calçada ou quase isso, com um colégio
estadual para onde afluem as quase 400 crianças dos
profundos vales ao redor, carregadas em kombis escolares,
e cujo diretor é orgulhosamente o primo Irino, é o lugar
onde vive Pedro.
Sobrevive. Abraçado às lembranças de infância e
juventude que ele curtiu no sentido mais imediato e chão
da palavra, no espaço do horizonte que ele descortina do
alto de Itatiba.
52
Irino conduziu-nos até a casinha de Pedro.
Minúscula, de madeira, de dois cômodos e uma latrina do
lado de fora. Duas cadeiras, um fogãozinho a lenha, uma
TV preto e branco de 14 polegadas, um radinho com as
tripas de fora sobre a mesinha, eis a mobília daquele ainda
solteiro meu amigo e companheiro de infância. No pequeno
açude a 10 metros da casa, três marrecos se espanejam
barulhentamente.
Algo assustado ante a camioneta branca de Gino
que mais parece uma ambulância, veio receber-nos na trilha
do gramado junto à cerca. Bermudas surradas, chinelos
moídos e desbeiçados pelas pedras da estrada, camisa
aberta ao peito onde pendia de uma cordinha preta uma
cruz de madeira de S. Francisco, cabelos branqueando nas
beiradas do telhado, sobrancelhas murchando na tentativa
incansável de esconder dois olhos pretos e vivos como os
de um guri, Pedro ensaiava perguntar quem éramos, quando
Irino atalhou caminho:
- Não os conheces? Olha bem para eles!... Zanotelli,
Jandir, Gino, Castilo, Ilva, Classi... do Bentevi!
- Não é possível! Filhos do Leonel, lá do Bentevi?
53
Depois de um abraço, braços ainda hirtos pela
surpresa e vontade de todos falarem ao mesmo tempo,
nosso papo se esparramou pelos fiapos de lembranças
novamente costurados com os infindos “te lembra daquela
vez...?” Já se passaram 50 anos que não nos víamos.
- Não mudaste. És ainda o “nego bom” de
antigamente.
- Depois que vocês voltaram para as terras velhas do
Taquari, trabalhei, dizia Pedro, pela Esperança, por Barra
Azul indicando com o dedo lá em baixo, vim parar aqui, no
meio desta gente amiga.
Na verdade ele ficara com quase nada. Nosso cavalo
encilhado e algumas patacas. Quase com tanto quanto tinha
quando chegara lá em casa. A pobreza de meu pai não
permitiu mais. Recusava-me, porém, impotentemente a
interpretar assim: ele não é apenas um filho de
criação...como tantos deserdados e injustiçados neste Rio
Grande do Sul! Mas Pedro não quis ir conosco porque suas
raízes e seus amigos estavam ali.
Enquanto olhava aquele amigo de infância, firme e
ereto como cerne de guajuvira, pensava comigo mesmo:
onde Pedro ancorou o navio de sua identidade, de sua
54
dignidade? Por que não sossobrou em meio a tantos
furacões?
Negro, pobre, órfão desde menino, em meio a um
ambiente racista de imigrantes alemães e italianos, como
pode firmar-se e afirmar-se?
É verdade que adotou o estratagema de branquear-se
falando melhor o italiano e o alemão que os imigrantes,
adotando e criando piadas sobre sua negritude, brincando
sobre as desgraças da vida...
Mas ele é mais do que isso. Não é apenas um herói,
um vencedor. Ele é meu amigo. Radicalmente amigo em
sua negritude, em sua força, em sua esperança em sua
companhia. Pedro encontrou um caminho: para ser não
basta opor-se, ser diferente ou ser igual. É preciso libertar-
se das amarras e dos aguapés e liberar-se à vida. Liberar-se
à verdade, à justiça, ao amor. Permitir-se operosamente
amar e ser amado.
Enquanto falávamos, apareceu, surpreendido o
chefe da comunidade católica de Itatiba perguntando:
- O que aconteceu? Vi a camioneta e pensei que
tivesse havido algo com Pedro. Porque o Pedro é pessoa
muito querida e estimada de nossa comunidade.
55
Na verdade, soubemos que ele participava
ativamente de toda a programação religiosa, social e
cultural da comunidade. Foi um bálsamo saber que Pedro
continuava a ser querido como nós o queríamos desde os
tempos antigos. Que ele estava integrado. Que, em sua
pobreza de aposentado de salário mínimo, era muito rico de
relações de amizade. E que a comunidade estava atenta a
tudo o que pudesse acontecer em sua velhice.
Era sábado à tardinha. A conversa com o presidente
da comunidade foi breve porque dizia que deveria trabalhar
nos preparativos da janta festiva que fariam logo após a
missa para celebrar a troca de padres: o de Itatiba ia para a
Barra do Rio Azul e o de lá viria para cá. Pedro também
deveria estar. E comeriam um cabrito assado.
- Por sinal, é uma pena que, por questões de ciúmes
políticos neste ano não acontecerá em Itatiba a festa
estadual do cabrito. Cabrito é só o que dá nestas
montanhas!, comentei a Pedro.
- É evidente que vou à missa e não perco a janta,
retrucou Pedro.
56
Pedro merecia a consideração. De uma honestidade
a toda a prova. De uma fidelidade absoluta a seus amigos,
parecia a muitos, quase ingênuo em sua fé e generosidade.
Mas Pedro sabia muito bem onde pisava. Quando
brincava que “era cristão fiel porque esperava a recompensa
no céu de 17 mocinhas virgens”, sabia muito bem que Deus
olha a interioridade de cada coração e não as aparências
sociais. Será por isto que não casou?
Pedro, órfão de pai e mãe, fora recomendado a meu
pai pelo velho Pitã como um bom menino para criar. E
poderia ser útil nos serviços de casa, pois era saudável,
obediente e de toda a confiança. Papai recebeu-o em
casa como a um filho. E eu fiz dele desde logo, o meu
irmão. Tinha 15 anos e eu 10. Para meu pai, um filho de
criação. Para minha mãe, um pobre mas querido menino a
ser educado e amparado. Para mim e depois para Gino,
Irma e os outros irmãos um companheiro, um ajudante, uma
companhia indispensável no trabalho e nos folguedos.
De uma força hercúlea em seus braços, rapidez nas
pernas e um sorriso contido como quem agradece em
silêncio, Pedro não falava de seus pais. Talvez nem os
tivesse conhecido. Fez de meu pai e minha mãe os seus
57
pais. Por isso adotou, para todos os efeitos, quando nos
fomos de Bentevi, o sobrenome de Zanotelli. Pedro
Zanotelli e, depois de muitos anos: Pedro Zanotelli da
Silva. Assim era conhecido. Por isso o reencontramos.
Das aventuras de infância vividas com Pedro como
as de tombar a carroça em meio à lavoura só para vê-lo
assustado, de caçadas aos nhambus e galinholas com
arapucas cavadas no chão e que Pedro jurava conter uma
cobra, das churrascadas nas festas da Esperança regadas a
cucas e com as quais ele se empanturrou a ponto de ser
levado às pressas ao hospital, das carreiras em cancha reta,
dos terços rezados à noite, depois do jantar, ajoelhado e
escorando os cotovelos no assento da cadeira e
adormecendo depois da segunda ave-Maria, do susto
ofegante depois de ingerir inteira uma pimentinha
vermelha, enfim da companhia permanente deste negro tão
próximo de nossos sonhos e saudades.
Lembro-me da tristeza conformada de seu olhar
quando meu pai o repreendeu por qualquer erro nas tarefas
diárias, dando a entender que ele era um negro. Na verdade,
meu pai, embora tratasse em pé de igualdade os negros que
conviviam conosco e que freqüentavam nossa casa,
58
incluindo obviamente Pedro, não deixava de, nas horas de
raiva e descontrole, revelar o conteúdo racista que os
imigrantes italianos trouxeram da Itália em guerra com a
Etiópia, e sabendo-se igualados aos negros a quem vieram
substituir nas lavouras do café e nas colônias do Rio
Grande do Sul. Mamãe, com alma menos racista e mais
compreensiva repreendeu carinhosamente meu pai:
- Ah! Nelo, se tu tivesses a infância que ele teve,
não errarias também?
Depois do estranhamento, Pedro se recompunha,
como se nada houvesse acontecido justificando-se que a
reprimenda fora merecida.
A imagem de Pedro, porém, que mais povoa a
memória de minha infância no Bentevi é a do salto
espetacular na beira do arroio. No fundo de uma ladeira,
Pedro roçava uma capoeira. Gino e eu, lá no alto, sem que
fôssemos notados por ele, resolvemos assustá-lo. Porque
Pedro assustado ficava mais próximo de nós. Menino como
nós.
Balançamos e balançamos uma pedra mais pesada
do que nós, até que ela se desprendeu da terra e
empurrâmo-la, ladeira abaixo, só para ver os olhos
59
arregalados de Pedro. Mas a pedra, ao invés de descer em
linha reta como pensávamos, foi tomando a direção de
Pedro. Foi então que a aflição e o desespero se apoderou de
nós. Assustados, paralisados pelo estupor da possibilidade
de ferir e até de matar a Pedro, mal conseguimos sussurrar e
depois gritar, e depois berrar:
- Pedro, olha a pedra! Pedro olha a pedra! Peeeedro,
olha a peeedra!
E a pedra, num último e certeiro salto ia exatamente
na direção da cabeça de nosso amigo e irmão. Foi então que
vimos o mais ágil golpe de vista de que nem poderíamos
sonhar.
Pedro, apoiando a foice no chão, como se fosse uma
vara de saltar em altura, voou mais alto que a pedra
enquanto essa lhe roubava a foice da mão.
Corremos morro abaixo. Mas ele já estava de pé.
Ao invés de nos xingar, de nos bater como
merecíamos, ele deu uma gargalhada, daquelas que
explodem, logo depois de um grande susto:
- Oigatê, nego bom!
- E ligeiro, acrescentamos nós, em coro e aliviados.
60
O BAILE DO VELHO SIMÃO
Do outro lado do rio. Bem em frente ao Tombador e
ao remanso do Uruguai onde eram preparadas as balsas.
Abaixo daquele largo poço, vinham as cachoeiras com a
garganta de água volumosa e perigosa no lado direito, por
onde os caícos nem desciam e nem subiam. Para subir era
preciso escolher o lado oposto do rio onde as pequenas
cachoeiras intercalavam águas mansas e onde o sucesso da
pescaria de dourados, surubis e cascudos era sempre
garantida.
No meio da mata virgem pontilhada aqui e ali pela
clareira de uma pequena lavoura, no topo de suave colina
que morria nas margens do rio, estava a casa do velho
Simão. O grande telhado de zinco de 20 por 20 metros
escondia uma casa de madeira feita a capricho pelas mãos
habilidosas daquele imigrante bávaro. Rodeada em toda a
extensão por uma alta varanda de três metros de largura,
tinha no centro uma grande sala com amplas janelas de
61
vidro. Uma espaçosa cozinha. O fogão de barro coberto por
uma chapa de ferro de dois metros por um, aquecido com
troncos de lenha de mais de metro de comprimento, e
permanentemente aceso mantinha nas beiradas as panelas
sempre quentes e, no centro, uma chaleira de água sempre
pronta para o chimarrão. Os quatro quartos desembocavam
junto à mesa e ao fogão. Assim o aquecimento no inverno
era garantido para o casal e os seis filhos daquela casa, dois
rapazes e quatro mocinhas. Ao fundo, um paiol, tão grande
quanto a casa, onde Simão armazenava o milho, o feijão, o
trigo, arreios e ferramentas. Um pouco adiante a estrebaria
e o chiqueiro.
Saudáveis árvores frutíferas sombreavam
saborosamente seus páteos. E inhambus, jacus, pombas,
sabiás, bentevis, papagaios, periquitos e uma infinidade de
pássaros mansos como se fossem galinhas de angola que
Rita, a mulher de Simão criava, viviam e conviviam ao
redor da casa. Pacas, quatis, veados, antas e a mais variada
fauna faziam daquele paraíso a tentação de todo caçador.
Simão insistia em não deixar ninguém caçar em suas terras.
Motivo: o desaforo que uns caçadores lhe fizeram, há
algum tempo. Os porongos que Simão usava como bóias às
62
linhas de espera, na pescaria de surubis, uma manhã
apareceram afundadas nas águas porque perfuradas com
balaços. Prometera a si próprio que não deixaria mais
ninguém caçar ou pescar.
Meu pai era um caçador e um pescador inveterado.
Mal chegou em Bentevi, enamorou-se dos matagais de
Simão. Era preciso conquistar sua boa vontade. Sua
permissão. E lá foi ele, a cavalo. Desceu a trilha que, do
Tombador dava ao remanso. Amarrou o cavalo à soga para
que pastasse um pouco. Assobiou e pediu passagem a
Simão. O filho de 13 anos correu ao caíco e 15 minutos
depois Leonel já estava do outro lado.
- Papai não está em casa, disse o menino, mas em
minutos ele estará aqui.
Foi até o fundo da sala, apanhou uma corneta de
chifre de boi e buzinou estridentemente 3 vezes. Um
cachorro galgo, latiu, como se tivesse sido chamado.
Enganou-se. O chamado a que respondiam os cães era uma
buzinada longa seguida de três curtas.
- Não é necessário que ele venha. Eu posso ir até a
roça onde ele está. Não tenho tanta pressa, disse Leonel.
63
- Mas ele faz questão de receber e falar com um
vizinho novo, insistiu o rapaz.
Vinte minutos depois apareceu o velhote, baixo,
forte, olhos azuis, com um enorme feixe de canas de milho
às costas. Botas embarradas. Chapéu de palha sobre o feixe.
Jogou o pasto perto do chiqueiro. Lavou as mãos e o rosto
suado no tanque onde escorria permanentemente água
limpa e fresca vinda das pedras da coxilha e encanada em
canaletas de bambu.
- Bom dia!
- Bom dia!
- O senhor é o vizinho que comprou as terras do
Ritzel de Bentevi?
- Sou sim, Leonel Zanotelli, ao seu dispor. Peço
desculpas por estorvá-lo a estas horas da manhã e retirá-lo
de seu trabalho.
- Eu já não sabia como inventar um motivo para
deixar de capinar e vir embora tomar um trago com alguém,
disse Simão. Está muito calor...
Papai agradeceu e disse que vinha apresentar-se ao
vizinho e oferecer-lhe os serviços do armazém que estava
abrindo. Queria saber também onde conseguiria uma boa
64
cachaça e um bom vinho para a venda. Ele já tinha ouvido
falar que a cachaça do Simão era de especial qualidade, mas
se fez de desentendido.
Sentaram na varanda frente ao rio. Uma brisa fresca
trazia o rumorejar das cachoeiras e molhava a alma de
serenidade para uma boa conversa.
Simão alcançou um copo de cachaça levemente
amarelada e que formava uma corola de pequenas bolhas na
parte superior, os sinais mais evidentes da excelência do
produto segundo a ciência de Leonel:
- prove e diga se essa cachaça é ou não é boa.
Papai sorveu um bom gole, passou-o pelos quatro
cantos da boca, sentiu o gosto do barril de canela e carvalho
e sentenciou:
- É boa. Onde o senhor consegue esta cana?
- No porão da minha casa, disse Simão.
E levou meu pai a ver a cantina, com dez pipas de
mil litros cada uma.
- Estas três são do ano passado, estas duas do ano
retrasado, neste lado estão as deste ano.
- E o senhor vende? Perguntou Leonel, como se não
soubesse...
65
- Vendo quase tudo. Guardo uns duzentos litros para
mim.
- E o preço? Inquiriu meu pai.
- Eu vendo a dois mirréis5 o litro, mas se meu
vizinho se interessar, vendo-lhe a um e oitenta.
- Depende um pouco se me der algum prazo.
Digamos que, a cada quinze dias eu leve um ou dois barris
e no final de cada mês acertamos as contas.
- Feito o negócio, disse Simão. E quanta caninha
quer?
Leonel fez rapidamente seu cálculo: 100 litros por
semana, (segundo lhe informaram os beberrões do lugar),
quatrocentos e cinqüenta por mês, cinco mil e quinhentos
por ano, pensou e disse:
- Seis mil litros em 12 meses.
Simão, feliz, arrematou:
- Assim é que se faz negócio.
Quiseram-se bem, desde então. Papai não conseguiu
fugir ao convite para o almoço: um dourado assado, arroz e
5 Um mil réis transformou-se em um cruzeiro em 1942. Estávamos em 1947. Ocostume de chamar a moeda de réis permanecia. Um mil réis ou um mirréis.
66
batatas. Jurou que há muito tempo não comia um peixe tão
gostoso...
Ao despedir-se, insinuou que gostava de pescar e
caçar. E Simão convidou:
- Vejo que o senhor é uma pessoa séria e
respeitadora. Quando quiser pescar ou caçar por aqui, basta
assobiar lá do Tombador que eu lhe mando um caíco. Se
vier algum companheiro, cuide para que seja como o
senhor.
Papai agradeceu quase como uma criança que
recebe o presente mais esperado e garantiu que, se fosse,
levaria alguém que merecesse a confiança.
Ao apanhar o cavalo que pastava satisfeito, montou
lépido e faceiro, e veio assobiando até em casa sua modinha
preferida “Saudades do matão”.
Um mês depois, logo após a Páscoa, Simão
promoveu um baile em sua casa e convidou o já amigo
Leonel e esposa. E poderia convidar quem quisesse,
contanto que fosse conhecido e avalizado por meu pai. Só
havia uma lei: nenhuma moça ou mulher seria obrigada a
aceitar dançar com quem quer que fosse contra a vontade.
Nenhum homem, casado ou solteiro, poderia levar como
67
desfeita, como ofensa, a recusa para dançar. Quem não
levasse par deveria contar com a boa vontade da outra
parte. Vinho, cachaça, gasosa e janta eram livres, de graça.
Era uma festa para os 15 anos da filha.
Mamãe, um pouco adoentada, disse que não poderia
ir, mas insistiu que Leonel fosse. Era importante conhecer e
fazer amigos.
Com papai foram três casais vizinhos, a filha de
Strenghini e Antônio, o peão de Lucca, um mulato alto,
bem apessoado, trabalhador e tido como respeitador. Ao
serem convidados, todos foram alertados das normas da
casa de Simão.
Dois caícos transportavam os visitantes pelo
remanso do rio.
Simão recebia a todos. Todos entregavam suas
armas, revólveres, facas, adagas etc. que seriam devolvidas
ao final da festa.
Um gaiteiro e dois violonistas que também
cantavam, era o suficiente para animar o baile. Iniciou
cedo, antes das 10 horas da noite. À meia noite, uma
pequena pausa de 20 minutos para os músicos descansarem
68
enquanto os convivas se serviam de galinhas, porco e
cabrito assado. E muita cuca e sobremesa de sagu.
Antônio, que tinha entornado quase um litro de
cachaça e outro de vinho, jantou e animou-se a pedir a mão
de Angelina para um xote. Angelina, tímida, sobrinha de
Simão, recusou dizendo que ele estava bêbado. E que
convidasse outra.
Antônio insistiu elevando a voz e dizendo que não
era qualquer égua que lhe negava o estribo. E levantou a
mão ameaçando dar-lhe um tapa. Mas nem conseguiu
elevar o braço acima da cabeça e já estava seguro por três
homens, inclusive meu pai.
Levaram-no com calma para a varanda. Sentou num
longo banco de madeira encostado à parede. E papai em
frente, sem falar, mas com toda a vontade do mundo de
quebrar-lhe a cara. Era um convidado seu. De sua
responsabilidade.
- O que aconteceu, Antônio?
- Eu me perdi. Bebi um pouco demais e abusei.
Peço desculpas.
69
- Mas não é a mim que tu deves desculpas. É ao
amigo Simão e à sua sobrinha. Que vergonha! E agora? Por
favor, te manda daqui! E nunca mais venha a baile comigo!
Nisto chega Simão:
- Não, seu Leonel! Não precisa ir embora não. Que
ele fique sentado aí, por uma hora. Até curar um pouco essa
tontura. E depois que vá pedir desculpa à minha sobrinha e
pode ficar na festa. Isto por causa da amizade que tenho
com Leonel.
Antônio, lá ficou sentado como criança em castigo.
Uma hora depois, lavou o rosto, entrou na sala de cabeça
baixa, foi até onde estavam a sobrinha de Simão e suas
amigas que o olhavam espantadas e em silêncio, e disse:
- Angelina, te peço desculpa, eu me passei!
Angelina, quase sem saber o que dizer, balbuciou:
- Não foi nada. A bebida, às vezes, descontrola.
Simão olhou-o e abanou com a cabeça.
Já era dia alto quando os últimos atravessaram o
Uruguai, ouvindo o ronco surdo da garganta da cachoeira.
70
A ESTÁTUA
As três balsas de toros de pinho correram
maravilhosamente neste ano, para Germano. O Uruguai,
como nunca esteve bem comportado. O Salto Grande estava
liso como lagoa. Nem choveu durante a viagem.
Germano não era de descumprir uma promessa. De
São Borja foi direto a Porto Alegre. Na casa Bergmann que
fabricava e vendia estátuas de santos escolheu a da
Medianeira de Todas as Graças quase em tamanho natural.
E era bonita. Feições maternais, de uma beleza pura,
transcendente que comovia. Era para a capela de São
Miguel, do Bentevi.
Mandou levá-la por transportadora com todo o
cuidado. Queria vê-la inteirinha, para a alegria e devoção
do povo.
Era também uma surpresa para o padre vigário que
se queixava que Germano não comparecia à missa. Não
adiantava argumentar que tinha muitos negócios...
71
Especialmente depois que enviuvou e se juntou com uma
mulher casada.
Mas desta vez ele iria se dobrar, dizia para seus
botões. A estátua falaria por si mesma. E, afinal, era Nossa
Senhora. Ela iria protegê-lo.
De retorno, foi tomar uns tragos na venda de
Leonel. Propôs-lhe armarem juntos umas balsas para o ano
seguinte:
- É negócio que dá dinheiro e não as pataquinhas do
armazém ou da roça.
Os olhos de Leonel brilharam de curiosidade mas
retornava sempre à realidade quando pensava que tinha oito
filhos para criar: o homem foi feito para trabalhar na terra e
não para brincar nas águas violentas do rio. Não valeria a
pena arriscar-se tanto. E mesmo o dinheiro que tinha era
pouco para jogá-lo numa aventura.
Germano falava das maravilhas da Argentina, com
sua finíssima e branca farinha de trigo, com seu azeite puro
de oliva, com os peneus muito mais baratos que aqui:
- Na volta poderíamos trazer um caminhão
carregado de tudo isso.
72
- De contrabando? Perguntou Leonel. E se nos
pegarem? Se não formos mortos, seremos presos como
bandidos, além de perder o pouco que juntamos?!
No quarto trago Germano já estava alegre, de língua
solta e, então sussurrou a Leonel:
- Eu tenho um segredo pra te contar – e olhou-o
devagar, quase sorrindo – comprei uma linda estátua pra
capela... Agradecimento... Afinal um homem que não é
grato, não merece viver... não é? Chega esta semana. Não
arrisquei trazê-la comigo, poderia quebrar... Quero só ver se
o padre vai ou não vai ficar contente... e me agradecer.
Leonel que conhecia bem o severo padre
fransiscano, vigário da paróquia de Rio Novo (Aratiba)
comentou para ajudar a preparar o coração do amigo:
- Pode ser. Nem sempre porém, os padres
compreendem as intenções da gente. Deus sempre sabe o
que vai em nosso interior.
Germano olhou para Leonel, o sorriso de surpresa
mudando em estupefação e encaminhando-se para raiva
perguntou:
73
- Você acha que ele não vai gostar? Seria uma
ingratidão não aceitar uma oferta de um paroquiano. Nem
vou dizer quanto custou... o segredo fica comigo.
No dia primeiro de novembro, festa de todos os
santos, haveria missa na capela São Miguel.
Todas as famílias compareceram. Alguns vieram de
fora. No dia seguinte era dia de finados e a visita ao
cemitério era sagrada.
Quando o sacerdote chegou em seu Jeep verde com
o teto de lona, os fabriqueiros6 esperavam na frente da
porta. Germano com eles. O padre saudou a cada um com
um aperto de mão e um “louvado seja Nosso Senhor Jesus
Cristo”. Ao chegar em Germano, ao invés de “louvado
seja...” disse-lhe:
- Ué! O filho pródigo retornando à casa do Pai?
Germano não sabia se era reprimenda ou
acolhimento. Aproveitou para responder no teor da mesma
história que ainda lembrava:
- Éh! Quando o pai espera na cochilha, o filho sente
saudade de voltar...
6 Fabriqueiro é o membro da comissão de coordenação das atividades efinanças da capela
74
E foram entrando na capela de madeira de pinho
pintada de verde claro por dentro e por fora e, no teto azul
estrelinhas brancas em profusão.
Quando o padre viu a estátua ao lado do altar, parou
no meio do corredor e perguntou em voz alta:
- Quem pôs esta estátua aí? Sem falar com o padre,
nem nada? E está benta? Vai ver que algum benzedeiro a
benzeu...
Leonel e Valdomiro saltaram logo em defesa de
Germano:
- Não, senhor padre. Não é o que o senhor está
pensando. É um presente que Germano trouxe para a
capela. Ação de graças pelo sucesso das balsas. Pensamos
que o senhor a benzeria hoje.
- Do Germano? Retrucou o vigário. Ele ainda está
amigado com aquela mulher casada? E ele dá uma estátua à
igreja pensando que a gente vai esquecer tudo? Mas isto
aqui não é a casa da sogra... Onde é que se viu!...
Germano vermelho e sem fala, todos pensavam que
iria desmaiar. Levaram-no à porta da capela para tomar um
ar e ver se conseguiam contornar o incidente. Quando
conseguiu falar, urrou:
75
- Isto não vai ficar assim, eu mato este padre! É isto
que Cristo mandou ele ensinar?
Depois de um mal-estar enorme, no silêncio
sepulcral em que todos se olhavam e olhavam sem saber o
que pensar e muito menos o que dizer, começou a missa.
Germano no lado de fora, seguro por três ou quatro amigos,
até que o vigário mudou de tom:
- Peço desculpa a vocês todos, porque me excedi,
começou. Peço desculpas também ao Germano. Afinal não
há nada de errado oferecer uma estátua à igreja. E esta é
verdadeiramente muito bonita. Peçam ao Germano que
entre...
Germano relutava entre entrar ou não entrar.
Finalmente, ouviu o amigo Leonel e resolveu entrar e ouvir
calado. Depois da missa acertariam tudo com calma.
O padre voltou a desculpar-se no sermão. Antes de
terminar a missa abençoou a estátua, convidou a todos a
rezarem uma Ave Maria e a cantar “Com minha mãe
estarei...”
Depois da missa o sacerdote alegou que tinha pressa
para atender outra capela e zarpou sem falar com ninguém.
76
Os fabriqueiros não sabiam como descascar o
abacaxi.
Germano não sabia se rosnava, se roncava ou se
berrava. Resolveu tomar um senhor pileque.
Ao final da tarde dois amigos ajudaram-no a chegar
em casa.
77
O MOINHO DO BORTOLOTTO
- Os guris já chegaram da escola? Perguntou meu
pai que acabava de chegar com a carroça atopetada de
mandioca e que Pedro descarregava perto do chiqueiro.
- Já, respondeu mamãe lá da cozinha mexendo a
polenta para o almoço e controlando as panelas de arroz,
feijão e carne de porco.
- Jandir, chamou papai, pegue o cavalo tordilho para
a Irma ir ao moinho. Enquanto isso, Gino, vá até o Locatelli
e pergunta se ele precisa do dinheiro nesta semana.
O arisco cavalo tordilho era matreiro para se deixar
apanhar. Gino já descobrira. Para prendê-lo, não se poderia
levar, à vista, nem corda, nem cabresto e muito menos
freio. Uma espiga de milho e ele vinha. Se conseguisse a
espiga de longe, fugiria com ela. Era preciso que ele viesse
pegá-la bem perto do corpo da gente. E então, jogar a
espiga no chão. Enquanto ele se abaixasse para abocanhá-
la, era agarrá-lo pelo pescoço, cruzar as pernas sobre ele e
78
subir em seu lombo. Tapeando-lhe as orelhas suavemente
ele viria conduzido até a cancela e se deixaria embuçalar.
Naquele dia, como advertira Gino que tinha raiva
daquele cavalo, ao sentir que eu estava sobre ele, enveredou
para um túnel formado pelos galhos de um grande pé de
lima e um de bergamota e onde mal passava ele, afim de
descarregar a incômoda mochila que carregava às costas.
Deitado ao lado de seu pescoço, senti os galhos rasparem
minhas pernas e seu lombo, mas não caí.
Já ultrapassado o perigo vibrei-lhe dois bons tapas
nas orelhas e então ele obedeceu.
Meu pai observava de longe e disse:
- Assim vocês acostumam mal o cavalo!
Não descobri se era elogio ou reprimenda. Amarrei
o grande, forte, ossudo tordilho, que não conseguia
marchar. Só a passo, trote ou galope. Bom para carregar
peso. Só papai gostava de andar nele. Acho que suas
esporas botavam ordem em seu andar.
Depois do almoço papai ditou a agenda para a tarde:
- Irma vai ao moinho dos Bortolotto, lá na
Esperança Alta. Pedro carrega o tordilho com um saco de
milho que debulhamos ontem à noite, um saco de trigo, -
79
três latas bem cheias - daquele do canto do paiol. Cuida que
as metades sejam bem divididas para que não caia a carga
no caminho. Jandir e Gino vão comigo cortar e carregar
cana para o melado e o açúcar de amanhã. Prometi cinco
latas de melado e duas de açúcar.
Enquanto Pedro jogava sobre o cavalo o milho e o
trigo em longos sacos brancos torcidos ao meio para que
metade ficasse a cada lado do cavalo, a chincha bem
apertada, mamãe protestava insistindo com papai:
- Nelo, para quê mandar a Irma? Ela é apenas uma
criança. E menina. Se a farinha não ficar pronta na hora e
ela precisar esperar, ficará noite. E ela na estrada... Afinal
são oito quilômetros. Manda um menino!
Meu pai, acostumado com a dureza que ele próprio
viveu na infância, foi intransigente:
- A Irma já tem quase oito anos. E eu preciso dos
guris e do Pedro para dar conta da encomenda.
Vendo-se vencida, mas obediente ao marido como
ensinavam os padres, o avô e a tradição, fez mil
recomendações à minha irmã:
- Vai ligeiro e não te distraias pelo caminho. Anda
sempre no meio da estrada para que os sacos não encostem
80
em barrancos ou em alguma cerca de arame farpado. Reze
para Nossa Senhora que ela cuidará de ti. E volta cedo.
As sombras do morro do Paloma já cobriam todo o
nosso vale do Bentevi quando chegávamos em casa. A
carroça perigosamente carregada de cana em pé, a ponto de
quase tombar nas valetas da estradinha da roça. Pedro, Gino
e eu, descarregamos tudo ao lado da moenda. Mamãe
esperava aflita, à porta da venda que ela cuidava enquanto
amamentava o último filho, limpava os penúltimos,
preparava a comida, cuidava da roupa de todos e das
galinhas e de fazer o queijo e de governar a casa.
Irma ainda não havia chegado. Em seguida
escureceria. E não havia lua.
- Ela chega em seguida, disse eu para consolá-la.
Tratamos os porcos, ordenhamos as vacas,
distribuímos pasto de “leofante” e ramas de batata doce
para os animais na mangueira, lavâmo-nos no tanque...
E nada de Irma.
Fez-se noite.
Papai também não chegava. Fôra, da lavoura, até o
compadre e visinho Cauduro conversar sobre negócios e
amarrar uma caçada.
81
Mamãe já estava ansiosa, rezando para que Irma
chegasse de uma vez. Em circunstâncias assim, o coração
dela disparava em taquicardia que durava horas e a deixava
cansada mais que todos os trabalhos.
Quando meu pai chegou, eu já estava montado na
egüinha baia, em pelo e buçal para ir saber da irmã.
- Não é preciso, ela já deve estar chegando, atalhou
Leonel.
- Não, retrucou mamãe magoada e sofrida. O Jandir
vai rápido que já é tarde.
- Mas por qual das estradas estaria vindo? Perguntei.
Pois para ir aos Bortolotto havia uma estrada a cada
lado do arroio Esperança. Encontravam-se lá perto do
capitel. Mas, pensei comigo: Irmã não deve ter atravessado
o Esperança para vir pela estrada dos Benincá. É mais
estreita e tem mais mato. Vou, portanto pela estrada dos
Basso. E lá me fui a quase galope.
Há três quilômetros de casa encontrei Irma que
vinha chorando, chicoteando o cavalo, lerdo de cansaço sob
a carga de 150 quilos. Chorou ainda mais quando me ouviu
e me viu.
82
No Bortolotto não precisou esperar. Havia farinha
pronta para trocar. O moinheiro ficara com o farelo como
pagamento pela moagem. Assim eram 24 quilos a menos a
pesar sobre o cavalo. Mesmo assim só conseguiu sair do
moinho, sol já posto.
Descuidou-se de andar pelo meio da estrada. O
arame farpado rasgou o saco da farinha de trigo. A carga
caiu. Ela não sabia o que fazer senão chorar.
Depois de um longo tempo, passou um cavaleiro,
um Berticelli, que a ajudou a repor tudo no lugar,
mandando dizer ao pai que era louco mandar uma menina
de noite ao moinho.
Voltamos de vagar. Ela na frente e eu insistindo que
cavalgasse pelo meio da estrada. Ao passar pelo cemitério
minha irmã fingiu voltar-se para conversar comigo só para
não ver nem ouvir o que quer que fosse. Depois da
amargura da viagem, sua alma infantil até podia se dar ao
luxo de ter medo de fantasmas.
Antes de passar o arroio, há uns 300 metros de casa
eu já fui assobiando como para anunciar que tudo estava em
paz.
83
Chegamos. Todos estavam esperando na frente da
casa. Enquanto mamãe abraçava a filha, meu pai, como
para arrancar do fundo do seu medo uma desculpa
esfarrapada, foi dizendo:
- Você não cuidou para o cavalo não encostar na
cerca?
A janta tardou um pouco. E ao rosário que se seguia
todas as noites ao jantar, mamãe fez questão de acrescentar
um Pai Nosso e uma Salve Rainha de agradecimento.
84
MISSÕES NA BARRA DO RIO AZUL
Os padres vinham de fora. Capuchinhos. Vinham de
Veranópolis e Garibaldi. Eram três. Impressionavam pela
longa barba, pela batina marron com um cordão na cintura
cheio de nós, sandálias comuns nos pés.
O calmo padre Egídio da paróquia de Barra Azul
convidara-os para pregar missões e sacudir o marasmo
religioso dos colonos. Todos católicos sim, que rezavam o
terço à noite debulhando ave-Marias e Pai-Nossos sem
pensar muito no que diziam, mas que blasfemavam morro
acima e morro abaixo a pretexto de qualquer contrariedade
e de qualquer alegria. Confissão e comunhão?: uma vez por
ano conforme mandava a Santa Madre Igreja. Fidelidade
sexual e conjugal? Esta sim era controlada por todos desde
os gestos, as saídas à noite até o olhar mais inocente dos
rapazes, das mocinhas e muito mais dos casados. Vencer a
tentação da carne era o que importava. Muito embora a
conversa sobre relações genitais fosse escancarada entre os
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casados como a da mulher que, ao fazer o banho sumário
no tanque, ao retornar da roça, perguntava ao marido: te la
dopéri sta será? (Usá-la-ás esta noite?), referindo-se
obviamente à genitália feminina. Se a resposta fosse ´sim´,
o banho deveria ser mais completo. Ou da mãe que deixava
as filhas terminando de preparar o almoço porque:
- o pai está chamando. Devo subir para satisfazê-lo.
Os rapazes e as moças aproximavam as falas
indiretas o quanto podiam até quase sentirem
palpavelmente o de que falavam. E riam, cada qual
completando com a imaginação o que as entrelinhas, se é
que as havia, insinuavam ou quase diziam. Depois,
obviamente, iam à confissão declarar que tiveram maus
pensamentos e sonhos pecaminosos.
Aqueles colonos, famílias enormes com dez ou mais
filhos, trabalhavam, do nascer ao por do sol, para recolher
100 sacos de trigo, outro tanto de feijão, e milho para
engordar porcos e alimentar vacas e bois. Sobrava sempre
quase metade da produção para vender aos dois ou três
comerciantes da vila que lucravam e enriqueciam com a
intermediação. Só eles tinham caminhão para levar o
produto a Erechim e os porcos gordos para Concórdia em
86
Santa Catarina. E vendiam caro as mercadorias que traziam
para os agricultores: sal, tecidos, chinelos, tamancos, café,
louças e ferramentas... E a balança quase sempre
adulterada. E as anotações no caderno com suas somas com
leves enganos sempre em desfavor daqueles pobres e
barulhentos homens da terra que mal sabiam ler e escrever
e que jogavam ´mora´, bochas e quatrilho depois da missa
de domingo enquanto cantavam as ´virginelas´ e os
´mazzolin di fiori´.
- Era preciso atacar também a ganância dos
comerciantes, dos moinheiros, dos intermediários, pensava
Padre Egídio. Era preciso insistir com o costume das
orações em família, com a observância dos mandamentos
de Deus e da Igreja, para manter aquele rebanho reunido e a
salvo do demônio. Era preciso preparar os meninos e
meninas para a primeira comunhão e para a crisma com
seus padrinhos, fortalecendo ainda mais os laços sociais. E
insistir para que os rapazes e as moças casassem virgens,
porque a virgindade era santidade que atraía as bênçãos de
Deus. Que o casamento era até a morte. E recriminar
também dois ou três ajuntados lá da costa do Uruguai que
viviam como bichos, sem matrimônio. Era preciso
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incentivar os meninos e as meninas para a vocação
religiosa, a mais honrosa, a mais alta e a mais santa
possibilidade de vida.
Uma semana de missões era uma renovação para a
paróquia. Mudanças de horários, de roupas, de encontros.
Os pregadores iam durante o dia em cada uma das capelas,
reunindo a todos e incitando à vivência religiosa. À noite,
na igreja matriz, havia pregação mais insistentes, mais
incisivas e candentes com apelos que iam desde a danação
ao fogo do inferno até a descrição pormenorizada das dores,
da paixão e morte de Cristo por nós.
Era especificada para os diversos grupos: para
homens, para mulheres, para rapazes, para moças,
culminando sempre com confissões, longas e detalhadas e
que se prolongavam até depois da meia noite. A missa do
dia seguinte era às 7 horas para que entre a confissão e a
missa os homens não pecassem e pudessem comungar.
A sexta feira era reservada para crianças até 11
anos.
Mamãe, que participara das missões de segunda a
quarta feira, hospedando-se em casa de sua irmã Maria,
retornou ao Bentevi na quinta feira ao meio dia. E já foi
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dizendo que o pai e eu deveríamos participar também.
Papai alegou negócios urgentes em Xapecó.
- Se o Jandir quiser, pode ir.
Voltei da roça mais cedo. Tomei um bom banho no
arroio. Não aceitei calçar sapatos porque me doeriam os
pés. Iria mesmo de chinelos. Minha mãe preparou minha
melhor muda de roupa: calça comprida de brim cáqui,
camisa branca e até casaco cinza que eu quase nunca usava.
Não sentia frio.
Montei na egüinha baia marchadeira, parti para
Barra Azul. Já era noite fechada.
- Como está escuro! Eu disse, resumindo a
apreensão e um pouco de medo que me assaltava.
- Não precisa ter medo, disse mamãe. Terás umas
duas horas de lua nova que, pelo menos ilumina um pouco.
Já tens 10 anos e o motivo é santo. Vai direto à casa da tia
Maria. Tem lugar para ti.
Apesar das pedras soltas e os buracos da estrada, a
egüinha marchava solta e serena.
Venci a estrada da Esperança, subi a lomba que a
separava do Pinhão. Um fiapinho de lua mal permitia
divisar as casas no vale. Desci, passei em frente à casa de
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vovô, na expectativa de que arranjasse companhia para ir
até a Barra. Mas nada. Só os cachorros acordavam o
silêncio. Os quero-queros respondiam lá em baixo no
potreiro. Nenhuma lamparina acesa nas casas. Ninguém na
estrada.
Reuni minhas coragens e valentias de menino e
pensei:
“Já venci 14 quilômetros. Só faltam 8. E a estrada
agora é melhor. E lá terei os primos para ver e acompanhar
nas missões”.
Assim fui passando e reconhecendo as casas dos
Rech, dos Bagatini, dos Pilati, dos Munari, dos Rosa, pois,
quando morávamos no Pinhão,muitas vezes, aos domingos,
havia ido à missa na Barra.
Era quase meia noite quando cheguei à casa de tio
Emílio e tia Maria, dois quilômetros além da Barra.
Receberam-me pressurosos:
- Tão tarde? Aconteceu alguma coisa? O pai não
veio? Queres comer alguma coisa?
Expliquei. Agradeci. Indicaram-me um colchão ao
lado dos 5 primos que dormiam no assoalho de um quarto
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grande e só acordei com uma sacudida do primo Irino,
dizendo que já era tarde e que a missa começava às 8.
Lá fomos a pé, um bando de 12 meninos e meninas,
entre primos e vizinhos para as ´santas missões´.
A igreja lotou. Nunca vi tanta meninada junta. Era
um empurrando o outro para caber nos bancos. Meninos de
um lado, meninas do outro. Assim como na escola, os
meninos ficavam à direita do corredor, as meninas à
esquerda. Era indecente, vergonhoso e castigo um menino
ter que sentar no lado das meninas.
Tocou a campainha. O padre. Alto, magro, quase
calvo e mais calvo parecia porque tinha o cabelo cortado
em grande tonsura. Restava-lhe a periferia do “telhado” e a
longa e honorável barba. Sério, como convinha tratar
crianças, pois ´a disciplina é a mãe de todas as virtudes´,
iniciou a missa. A cada passo parava para explicar o que
acontecia: agora é o ato penitencial, agora é a vez de ouvir a
palavra de Deus, agora é o ofertório, a consagração, a
comunhão... e tudo à altura da compreensão das crianças e
jovenzinhos que éramos. O sermão de quase duas horas
tomou como modelo a infância do menino Jesus: que era
obediente, que ajudava seus pais, que ia com os pais ao
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templo, que não fazia crueldade para os animais, que não
brigava, que era estudioso, que respeitava os mais velhos e
que depois morreu na cruz por causa de nossos pecados.
Era um pouco e em tudo, o contrário do que nós fazíamos.
Assim ficava marcado indelevelmente na alma o que era e
o que não era pecado, chamando-nos à penitência e a mudar
de vida.
Lembro-me que eu refletia comigo mesmo: como é
que ele sabe tanta coisa do menino Jesus. Na História
Sagrada que nós líamos na escola não constava tudo aquilo.
Em todo caso, ele sabe porque estudou. E padre não mente.
Estranhava também que ele parasse na crucificação e morte
de Cristo. E a Ressurreição festiva e alegre cheia de alegria
e esperança e de presentes seria um episódio inútil para a
salvação?
O certo é que aqueles severos sermões, seguidos de
confissão à tarde e de comunhão festiva no dia seguinte,
fazia bem. Freava nossos ímpetos e ganas. Acomodava tudo
no seu devido lugar. Mas abichornava nossos sonhos. Ou
melhor, transformava-os em sonhos de religiosidade.
De volta, convenci-me que deveria ser padre.
Mamãe concordou, antes que eu terminasse a frase. Afinal,
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foi o sonho que ela sempre teve. Quando o padre veio rezar
missa na capela do Bentevi, convidou-me para o seminário
e eu aceitei.
- Mas não temos dinheiro, disse mamãe ao
sacerdote.
- Não faz mal. Deus providenciará.
No último dia de fevereiro deste mesmo ano, meus
avós deixaram-me à porta do Seminário Menor de Tapera.
Papai ficara em Passo Fundo para uma cirurgia.
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A SECA
Era fevereiro. Desde agosto não chovia. Uma
chuvinha no Natal só serviu para queimar ainda mais a
pastagem. As fontes se ressentiam. Só as mais valentes
mantinham um filete d´água que empossava aqui e ali. O
milho do cedo encharutou e secou. O feijão nem nasceu. A
grama dos potreiros esfarelava como pó ao andar dos
animais. As mutucas proliferaram infinitamente e
encurralavam os bois e as vacas para dentro dos capões. Só
os cabritos, que se nutrem até de gravetos, sobreviviam
bem. A desolação morava no canto dos olhos dos
agricultores e agricultoras de Bentevi.
Disseram que há uns 80 quilômetros dali, entre
Concórdia e Joaçaba havia chovido bem, na semana
anterior. Mas, do céu, não vinha sinal algum de esperança.
A lua cheia rodeada por um halo alaranjado prometia mais
seca. O nascer do sol na limpidez de um céu azul e o pôr de
sol com um avermelhado esparso, também indicavam
ausência de chuvas por mais dias. O Uruguai estava abaixo
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do nível normal e quase não se ouviam as cachoeiras abaixo
do Tombador. O dia dois de fevereiro, festa de Nossa
Senhora dos Navegantes, passara literalmente em brancas
nuvens. Só restava rezar.
O padre, no sermão de domingo, deixara entrever
que a seca poderia bem ser um castigo pelos inúmeros
pecados cometidos. E eu ficava pensando que, se a chuva é
bênção, não deveria chover na roça dos pecadores.
Na hora dominical do terço na escola que
funcionava como capela enquanto esta estava em
construção, por proposta da professora Zita, todos
concordaram que se deveria fazer uma novena de terços
para pedir chuva.
Quando iniciava escurecer, de todos os lados, quase
em silêncio vinham todos à novena. Comentários tristes,
compungidos. Só as crianças pequenas acompanhadas de
um adulto ou irmão mais velho, ficavam nas casas.
Na escolinha para 30 alunos, apinhavam-se quase
100 pessoas, ajoelhadas no chão e apoiando os braços nas
estantes, nas paredes ou no vizinho à frente.
Ave Maria... Santa Maria... Salve Rainha...
Ladainhas de Nossa Senhora...com seus “rogai por nós”,
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Pai Nossos em intenção especial. Mas especialissimamente
para que Deus se dignasse a não olhar os nossos pecados e
a mandar a esperada chuva.
Um dia... dois dias... e nem um sinal de chuva. Deus
parecia testar a fé daquele povo pobre e simples, que não
sabia tanta teologia, mas que confiava e aguardava.
Ricieri, meu colega e vizinho, tinha a minha idade.
Dez anos. Estávamos ajoelhados no fundo da escola,
logo à direita da porta. Ele comera batata doce assada ao
forno ao meio dia. Barriga estufada, não sabia como
controlar sua flatulência. Passou-lhe então pela cabeça o
seguinte estratagema:
- Se eu esperar a “Santa Maria” que todos rezavam
em coro e em voz alta, logo depois que o puxador
terminasse a “Ave Maria”, poderia desfazer-me dos gases
porque no meio de tantas vozes ninguém notaria.
E preparou-se, engatilhou para disparar logo que o
rezador chegasse ao “ventre Jesus”.
Eis, porém, que ele se atrapalhou. Calculou mal o
tempo e as circunstâncias: o estrondo espocou exatamente
no intervalo entre o fim da reza do puxador e o começo da
resposta da comunidade.
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Foi um Deus nos acuda. A criançada rindo, os
adultos entre rindo e severamente repreensivos, todos se
voltavam para o canto onde Ricieri, vermelho como
pimentão não sabia se pedia para morrer ou para fugir.
Tio José que estava à nossa frente, no espírito mais
bonachão do mundo que lhe era próprio, sussurrou ao
infeliz:
- Ricieri, não é assim que se responde a “Ave
Maria”.
Domingo de madrugada iniciou a chover
torrencialmente.
Alguns nem vieram ao terço das 10 horas.
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O TEMPORAL
Final de novembro. Sol muito quente. Um
abafamento excepcional. Fora de época.
Meu pai e Pedro estão cortando o trigo maduro, a
mão, no topo do cerro dos Buttini, lá na Esperança. Um
saco de trigo semeado e plantado a enxada e recolhido a
foicinha, na mão rápida e gabola do pai. A previsão é que
renderia mais de 40 sacos.
Estavam há quase 5 quilômetros de casa. Dormiriam
a semana todo lá, até terminar de roçar, juntar os feixes em
meadas que, bem amarradas em forma de funil de boca para
baixo, protegeriam o trigo da chuva por uma ou duas
semanas até que a máquina trilhadeira pudesse chegasse.
Retornados da escola, almoçamos logo e nos
encaminhamos para o fundo da roça nova, mamãe, e os 7
irmãos. Castilo ainda mamava. Olir, Lírio e Dinacir
nasceriam depois. Um cesto de vime servia de berço ao
bebê enquanto Ite vigiava seu sono à sombra de uma
laranjeira. Nossa mãe estimulava a todos a que
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trabalhássemos rápido para limpar aquele meio hectare de
milho novo e que cuidássemos para não arrancar os pés de
melancia plantados no dia de finados. Se terminássemos
mais cedo, mais cedo iríamos para casa, mesmo porque
ameaçava chover.
Uma hora depois, armou-se um temporal imenso lá
nos fundos do Uruguai na direção da Barra do Paloma.
Escureceu de repente. Aqui o vento parou. Como assustado
e em expectativa tudo parou. Mas lá na lomba de matagal
da costa do Paloma, um torvelinho de vento, nuvens, poeira
roncava ensurdecedor. Era a fúria do inferno avançando
sobre o mundo. Um surdo quebrar-se de árvores torcidas,
arrancadas, em roldão. Era um tufão. Eu nunca havia visto e
ouvido tamanho temporal.
Mamãe, assustada, lembrou-se que a casa ficara
completamente aberta. Era preciso correr e fechar as janelas
a começar pelo lado de onde viria o vento. Nossa casa, no
coração do vale, receberia em cheio aquele vendaval.
- Jandir corre! Gino e Irma me ajudem a levar as
crianças.
Desatei a correr morro abaixo, descalço, na
velocidade toda de minhas pernas de 10 anos, pisando na
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ponta das pedras sem dar-lhes tempo para que elas
ferissem os pés.
Em menos de 5 minutos entrava em casa. Subi num
relâmpago ao sobrado. Fechei as duas janelas e desci.
O vendaval já vinha potreiro afora.
No primeiro piso daquela casa de madeira com seu
alto porão, eram 4 janelas do lado do vento. Passei a
taramela na primeira, na segunda e na terceira... Quando,
porém, cheguei à última janela, na cozinha, o vento já
havia chegado.
Em vão tentava aproximar as duas folhas para
passar-lhes a tranca. Encostei os ombros e multipliquei
minha força por dez, - e eu não era fraco -, mas uma lufada
tremenda de vento arrancou a janela e me jogou com ela
aos fundos da cozinha, contra a parede. Pelo buraco
escancarado o vento entrou como um demônio solto.
Arrancou o forro e levantou o telhado de zinco num
estrondo só.
Deitado no chão, eu tentava arrastar-me contra o
vento para ter acesso à sala da frente onde funcionava a
venda, contando que minha mãe e os irmãos já tivessem
chegado. Entre duas ondas de vento consegui safar-me.
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Mamãe, os irmãos agarrados nela, rezava em voz alta e
tentava acender uma vela.
A casa balançou. O grito foi abafado pelo espanto
parado nos olhos muito abertos de todos. Nem havia tempo
para chorar.
E, de repente, tanto quanto violenta foi sua chegada,
o vento serenou. E iniciou a chuvarada. Dilúvio. Só então
ouviram-se os trovões.
A casa permanecia de pé. Eu tinha medo de retornar
à cozinha. Mamãe tinha medo de ficar na casa. E todos
tinham medo de tudo.
- Demos graças a Deus que estamos salvos, rezou
mamãe. E o pai e Pedro como estarão?
Destelhada em mais de metade, a casa chovia a
cântaros. Só não chovia na sala da venda.
- Jandir, te animas a ver se ainda resta alguma roupa
de cama enxuta para trazer até aqui?
Mostrando-me o “homem da casa”, afinal eu era o
mais velho, examinei o que pude. A cama do casal estava
encharcada. Só os travesseiros se salvavam da inundação.
As camas das meninas, por incrível, estavam secas.
Sobracei o que deu e, em duas viagens, trouxe até a sala da
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frente. O quarto meu e de Gino ficava no sobrado. Olhei
para meu irmão e rimos um do outro.
- Acho que a sala é um bom lugar de dormir! Disse
eu.
- Dormir, agora? Falou mamãe. Nada disso. Vamos
ver o que poderemos fazer. Gino, pega a egüinha e vai
chamar o pai, antes que anoiteça de vez. Jandir, sobe de
vagarinho ao sobrado e vê se é possível ajeitar o telhado.
Os outros ajudem para levantar as coisas sobre as mesas e
bancos.
- Mãe, gritei eu lá de cima, impossível arrumar o
telhado. Metade dele se foi. Olhe lá no umbu: três folhas de
zinco cravadas como se fossem facas. E lá adiante, para
além do arroio há folhas de zinco espalhadas. Ainda bem
que a parte da frente está inteira. A parede que sustenta a
comieira a isolou.
Ao sair da porta da frente, percebi que a casa não
era a mesma. O degrau tinha qualquer coisa de estranho. E
então vi que o vento deslocara a casa inteira uns 15
centímetros. As vigas de madeira mantinham a casa em seu
limite sobre os pilares. Mais 5 centímetros e ela teria
desabado.
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Não dormimos em casa. Fomos dormir no paiol. Era
mais seguro. Sofreu menos danos. As árvores que o
rodeavam protegeram-no.
Papai que vira o tufão passar pelo vale, nada sofreu
e imaginou o mesmo para nós. Quando Gino chegou
rompendo a estradinha por entre taquaras e troncos caídos,
meu pai receou.
- O que houve? Algum problema?
- Agora não, disse Gino. A casa é que sofreu. O
telhado voou. Chove por tudo. Mas ninguém se machucou.
- Então tu ficas aqui na barraca com Pedro, que eu
vou a cavalo. Chego antes.
No dia seguinte, com a ajuda de vizinhos, a casa
voltou ao lugar.
E eu, para sempre bani do meu peito, o medo de
temporal. Voltando da roça, a cavalo, eu lembro, abria a
camisa ao peito para apanhar a chuva direta, fria, linda
como lágrimas de felicidade.
103
PESCARIA NA BARRA DO PALOMA
Aquele sábado de fim de abril amanhecia cerrado,
úmido, ensopado. A neblina baixa e densa como chuvisco
só deixava a descoberto o cocuruto escuro das matas da
lombada do Uruguai. As cachoeiras da Volta do Uva
roncavam baixinho, surdamente, clamando pelo sol que
dissipasse aquela névoa. Não era porém o estrondo claro
que denunciasse chuva. O dia seria quente. A lua
minguante, quase nova, nascia como um risco de
sobrancelha tímido. Dia ideal para pescar.
Depois da chaleira de chimarrão com Ana, antes do
amanhecer, Leonel organiza rápido as fainas da casa:
- Diz ao Jandir que traga uma carroça daquela cana
já cortada e faça quatro latas de melado. Que o Pedro cuide
do pasto das vacas. Volto amanhã de manhã. Estou na
Barra do Paloma.
Ana, conformada com sua vida de casada, com suas
oito crianças, sua miséria e suas orações, pediu-lhe que se
cuidasse, que rezasse a Nossa Senhora e a Santo Antônio.
104
Olhou-o com olhos de namorada que admira a energia, a
vitalidade, a alegria de seu parceiro por uma aventura e
desejou-lhe com simplicidade “uma boa pescaria”.
Quando o Jeep Willis do dentista Frederico,
esparramando as pedras soltas da estrada parou diante da
porta, Leonel já estava pronto:
- Bom dia, bom dia! disse Frederico a dona Ana,
sem descer.
- Um chimarrão? Perguntou Leonel...
- Não, obrigado! Vamos que já é tarde. Em meia
hora amanhece.
- A Barra do Paloma deve estar baixa, comentou
Leonel, faz dez dias que não chove, os dourados devem
estar quase de cabeça de fora...
Quando o ronco do Jeep se perdeu atrás do cerro
que deriva para o rio, Ana acordou as crianças. Pedro já
trazia duas latas de água para a cozinha. Os quatro mais
velhos iriam à escola. Os outros poderiam dormir um pouco
mais enquanto ela arrumasse a casa.
Antes de tudo, porém, era preciso dar ração aos
porcos, pasto aos bois, vacas e cavalos, milho e quirela aos
pintos. Jandir já ordenhava a Boneca que, nesta época se
105
mostrava generosa: mais de dez litros de leite à noite e
outro tanto pela manhã.
Uma caneca de leite quente, uma fatia de pão com
melado, salame e queijo e estava feito o café. Pés descalços,
uma lousa de pedra em cada sacola, uma batata doce tirada
do forno de barro para a merenda e lá se iam os quatro
barulhentos para a escola. E Ana a recomendar todos os
dias:
- Cuidado! Não briguem e nem desobedeçam à
professora.
- Tá, mãe! Os outros é que brigam, a gente só se
defende!...
Lá fora, no portão da mangueira o negro Pedro,
quinze anos taludos, ajouja os bois para trazer a cana
cortada e empilhada no dia anterior. Cana caiana grossa e
doce, de um escuro quase violeta. Varas longas de mais de
três metros que se dobram depois sobre si mesmas sem
parar de crescer, porque o Uruguai com sua cerração não
permite a geada que queima o pé da cana e da mandioca.
- Vem Alegre! Vai Rio Grande! E a junta de zebus,
imponentes como suas guampas arrastam pachorrentamente
a carroça morro acima como se ela não pesasse nada.
106
Pedro carrega. A cana arrumada, de pé sobre a
carroça, forma um volume de mais de seis metros cúbicos.
Um perigo para tombar. Pesada para arrastar da lavoura
para a estrada e da estrada para casa. Mas Rio Grande e
Alegre não se dobram. Pedro vai à frente. Fala aos bois
como se eles fossem gente:
- E então, meus amigos, quero ver se vocês são
valentes ou não! Vamos lá!...
Os bois se esticam, ajoelham na terra fofa, mas
arrancam a carroça para a estrada. As palavras estimulam,
dão mais força e lá se vai Pedro com a carroça rumo ao
engenho. E vai pensando que os bois sentem na alma
quando alguém lhes quer bem. E ajudam. Colaboram.
Obedecem. “Com a gente também deveria ser assim”.
Antes de descer o morro é preciso fechar bem o
breque, fazendo os tamancos de madeira colarem nas rodas
trazeiras. Quase travadas, elas andarão de vagar. O resto do
peso os bois seguram no pescoço.
- Devagar! Devagar! Segura Rio Grande!... E
aqueles monumentos de carne, firmam os cascos nas pedras
e agüentam o peso para a carroça não disparar.
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Enquanto Pedro descarrega, às braçadas, a cana ao
lado do engenho, os bois pastam com sofreguidão a grama
alta e tenra, como algo merecido.
O engenho, fabricado por Leonel com ajuda do
visinho Estrenghini, - obra artesanal de quem sabe dar
conta dos instrumentos essenciais de trabalho - consiste em
três rolos de grápia, que rodam de pé, apertados entre si
em função de seus dentes de madeira engrenados e dos
sulcos da canga que mantêm os eixos de cima e de baixo
aproximados. Preso ao rolo do meio, um cambão gira
fazendo os três rolos rodarem em conjunto, espremendo a
cana que se lhes pôe no meio. A cana vai pelos rolos da
direita e retorna pela esquerda. É preciso cuidado e atenção
para que os rolos não engulam a mão com a cana. Ana
lembra sempre os exemplos dos meninos sem braço direito,
desgraçados por engenhos e pelo descuido que fez sangue e
garapa esguicharem misturados antes que parassem os bois.
Tudo a postos. Depois do almoço começa a liça do
sábado à tarde. Os bois puxam o cambão ao redor do
engenho. A garapa jorra em borbotões para a bacia de
madeira e daí para as latas. Das latas para os tachos negros
colocados e nivelados sobre três pedras grandes para
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permitir o fogo com três troncos grossos que se cruzam
debaixo deles. Três tachos ao mesmo tempo. E haja lenha, e
haja garapa...Duas horas de moenda, de “vamos boi” e
“cuidado com as mãos” e a garapa está toda nos tachos.
E então é cuidar do fogo, do mexer e remexer o
caldo que ferve e se evapora, para não pegar no fundo. Aos
poucos o melado está viscoso, na espessura certa, para que
caia sobre o pão como o mel de camoatim. O açúcar
moreno vem depois, suficientemente seco para não
empaçocar e que é quase uma rapadura. Quatro latas de
vinte quilos de melado, cinco latas de açúcar e está na hora
de limpar tudo, despejar o bagaço no potreiro para que os
animais aproveitem o último sumo da cana e guardar tudo
nas prateleiras do porão.
E, sem ouvir recomendações da mãe, era correr para
o arroio onde o buliço de vinte guris da vizinhança
anunciava a festa do banho. A noite caia depressa demais
para permitir mais mergulhos e brincadeiras. De alma
refeita chegava-se em casa onde a mãe, de baldes na mão
ordenava as últimas tarefas do dia: a ordenha das vacas
“Jandir com a Boneca, Pedro com a Brasina”, o pasto aos
cavalos e bois, “Gino e Irma: água e lenha para a cozinha”.
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O perfume da sopa de feijão com “talhadele”,
polenta fumegante sobre o “tabiel” para cortar em fatias
com linha de costurar, carne de porco dourada, molhos
cheirando a alho e cebolas com temperos da horta, salames
e saladas fez todos se apressarem.
- Gino! Comer sem rezar!? ,ataca Ana. Pelo menos
uma Ave Maria para que o pai vá bem de pescaria...
- Será que é só com reza que ele consegue pescar?,
provoca Gino.
- Sempre que vai pescar com o dentista volta
carregado de peixe, disse Ana. Pudera, ele tem todos os
apetrechos necessários!
Aquela janta era um banquete para crianças em
idade de digerir pedras. Os olhos de Pedro se iluminavam
de prazer; repetiu três vezes a sopa e depois acampou-se na
polenta e porco. Ana incentivava:
- Comam que vocês precisam ter força...
A paz caía como um chumbo sobre aquela casa.
Enquanto isso, no remanso em que o rio Paloma
encontra o Uruguai, Frederico, Leonel e Bastião acabavam
de examinar as redes: três lindos dourados beirando a cinco
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quilos cada um, seis piavas e oito grumatãs. Já tinham
pescado mais de cinqüenta peixes naquele dia.
- O melhor vem hoje à noite, comentou Bastião
- Impressionante, mas nem uma traíra, falou Leonel.
É verdade que o dourado é ótimo, mas não há peixe que
bata a carne de traíra.
- Se caírem alguns surubis nos espinhéis ou nas
linhas de espera a pescaria estará perfeita, arriscou
Frederico. Eu queria levar um dourado e um surubi, só para
mexer com os colegas de Erechim. Eles não sabem a beleza
que é uma pescaria!
Ao redor do fogo, os três sentados em suas cadeiras-
catre e um pelego - que é tudo o que têm para dormir -,
saboreiam com olhos reluzentes, quase infantis, o dourado
assando de vagar. Concentrados na labareda luxuriante do
fogo, suas piadas rodam por caminhos inimagináveis do
viver. Um garrafão de vinho da colônia Esperança, um litro
da “melhor cachaça da região” fabricada e trazida por
Bastião, e riem quase por nada, por qualquer motivo que
permita rir.
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O sininho de uma linha de espera trilou nervoso... e
foi aquele tumultuado corre-corre na escuridão. Bastião
resvala água adentro...Frederico grita:
- É na minha, e é grande...
- Comerei assado no dedo, zombam os outros.
Era um surubi. Bonito surubi. Lutou para fugir. Mas
depois de dez minutos Frederico arrastava-o para a grama.
Negro como a escuridão, as pintas brancas deixavam-no
mais preto ainda. E todos aplaudiam:
- Este merece um copo de vinho.
- Quanto quilos, Leonel?, dizia Frederico orgulhoso
de si e de sua façanha.
- Uns oito, calculo, disse Leonel, não passa de nove
e nem tem menos de sete.
- Leonel sabe das coisas, comenta Bastião. É
açougueiro. Nunca vi ele errar de cinco quilos no cálculo de
peso de uma novilha viva.
- E é o primeiro surubi, destacou Frederico.
- Mas não será o último provocou Leonel. Este rio
tem muito surubi e bem maiores do que este. Já pesquei um
de vinte e dois quilos.
112
- Pesquei vários acima de trinta, instigou Bastião.
Surubi como este nós quase usávamos para isca.
Enquanto isso o dourado ao fogo já virava carvão.
- Tá aí no que dá a gente ficar falando à toa e
contando lorotas, disse Frederico.
- Mas nem tudo se queimou atalhou Leonel.
E apanhou um bom naco ressequido, limpou as
escamas com a faca e mascava com saboroso enlevo aquela
delícia sapecada com um bom gole de canha. Todos
comeram e acharam bom. E riram como meninos que se
agarram à infância e à felicidade de viver.
Domingo de manhã, escuro ainda, Ana acorda
Jandir e Gino, estimula-os e ajuda a encilhar o cavalo
tordilho e a egüinha baia para que, pelo menos eles estejam
na missa pela família.
São quatorze quilômetros de estrada pedrenta e
montanhosa para chegar a Rio Novo (que agora chamam de
Aratiba). É preciso apressar-se. A missa é às dez horas.
Gino, Jandir, Nelson e Olavo, em tropelias e jogos
de carreira morro acima e morro abaixo, sempre chegam
cedo à matriz.
113
Todos sabiam que era preciso ficar atento ao
evangelho e ao sermão para poder traduzi-lo às mães
quando retornassem. Assim elas permaneciam vinculadas
ao eixo religioso de sua fé.
Finda a missa, no quiosque em frente à praça da
matriz, um, dois ou três sorvetes e voltar a galope para casa.
Galinha ao molho que só Ana sabia fazer e aipim manteiga,
e saladas verdes de “radici” fresco temperado ao vinagre de
vinho tinto e rodelas mínimas de toucinho frito com alhos e
cebolinhas e sobremesa de sagu tudo era uma festa
dominical.
- E então, o que o padre disse? Que recomendações
ele fez. E o Evangelho... de que parte vocês mais
gostaram?...
Assim os filhos iam aprendendo o quanto era
valiosa a missa aos domingos, e o evangelho e a palavra do
sacerdote que se acatava sem discutir.
- O principal da vida está aí, dizia Ana.
Leonel voltara antes do almoço. Bastião, que
morava à beira do rio, ficara com um surubi para o almoço
com seus dez filhos. Não queria mais. Uma noite dessas
jantaria uns peixes com Leonel. Frederico, apenas almoçou
114
e partiu. Queria chegar mais cedo em casa. Só levou um
belo dourado de seis quilos e o surubi que ele mesmo
pescara na véspera.
- Leonel fará melhor proveito com os outros peixes,
dizia. Aliás, nem pesco para levar peixes. Eu gosto da festa,
do companheirismo à beira d´água e do almoço de dona
Ana.
Leonel, que aprendera dos pais e avós imigrantes
que “é um pecado jogar fora alimento”, guardava feliz,
como menino que ganhou um campeonato, o restante dos
peixes. Mais de sessenta incluindo os doze grumatãs
(corimbas7) que ninguém aprecia porque têm gosto de
barro. “É que eles não sabem prepará-los, pensava”.
De calção, sem camisa, um boné velho na cabeça, à
beira do tanque de água corrente que vem fresca das pedras
do cerro, disseca a preciosidade de sua conquista. Abre os
peixes pelo lombo, retira-lhes as entranhas e a espinha por
inteiro e contempla com prazer aquelas largas mantas que
salga e estende sobre um cavalete de madeira para escorrer.
Primeiro os dourados, os mais saborosos, os mais lindos.
Depois as piavas (vieram poucas porque não caem na linha
7 Nome popularizado de corumbatá.
115
e dificilmente se enredam). Depois os surubis, os primeiros
a serem comidos, porque sua gordura e sua pele resistem à
salga. Facilmente estragam. Depois os corimbas dos quais
Leonel retirava com cuidado os dois filetes de barro que
trazem no lombo e sem os quais têm o gosto de piava. Os
cascudos escuros e espinhentos, mas cuja carne branca não
tem espinhos, era para a festa da criançada.
À tardinha, todos eram convocados para transportar
as mantas escorridas e salgadas para a parte superior do
sobrado, onde, em uma série de cavaletes pertinho do
telhado de zinco secavam em uma semana. Ana, num misto
de prazer e queixa notava:
- A casa toda vai cheirar a peixe.
Não era, porém, para reprovar. Era apenas para
avisar ao destino a consciência do desconforto de viver.
E ela participava, com olhos que então se faziam
mais claros, quase azuis, iluminando seu rosto cúmplice
com a conquista de seu herói pescador.
À noite, ela já sabia, ele viria, com toda a pujança
em busca de seu corpo e do delírio.
Não antes, porém, de rezar o terço depois da janta.
116
CHOCOLATE
- Jandir, disse meu pai, pega o cavalo tordilho, um
saco de milho e um de trigo e vai depressa ao moinho do
Manoel Leite. A Ester do Estrenghini também vai. Cuidem-
se ao atravessar o rio. O vau é perigoso especialmente
depois da chuva de ontem.
Tudo foi rápido. Pedro ajudou-me. Em dez minutos
estava na estrada pedregosa que desce até o Tombador do
rio Uruguai e, então desvia para a esquerda até o passo do
rio Paloma que, entre muitos arroios tributários também
recebe as águas do Encantado, do Esperança e do Rio Azul.
Atravessá-lo a cavalo é fácil quando está baixo. A água
escorre, em suave cachoeira, com profundidade de menos
de meio metro, por cascalhos que favorecem a travessia.
Quando chove, porém, rapidamente suas águas sobem e, se
o animal não se mantiver firme nos cascalhos cai para
dentro de um poço muito profundo e longo. Era preciso
manter-se na borda de cima da cachoeira.
117
Além do dinheiro da moagem que mamãe me
alcançara, apanhei na gaveta da venda mais dois cruzeiros,
sem pedir nem avisar a ninguém. Na venda do Valdomiro
comprei com eles uma bela barra de chocolate. Convidei
Ester com um pedaço e devorei logo a preciosidade.
Esperamos uma hora para que a farinha ficasse
pronta. Quarenta e cinco quilos de farinha era um excelente
rendimento para um saco de 60 quilos de trigo. Além disso
vinha o farelo para os leitões bem como alguma quirela do
milho. O cavalo era forte para agüentar 120 quilos de
produto e meu peso que não baixava de 40.
Chegamos, de retorno, ao passo do Paloma que
tínhamos vencido à tarde sem muita dificuldade. Agora
suas águas barrentas subiram.
- Vamos! Disse Ester.
- Vamos, disse eu para não mostrar medo nem
passar vergonha diante de uma mocinha.
Ester tinha 14 anos e eu 10.
Estava escurecendo.
Ester foi à frente, como para indicar o caminho,
mantendo as rédeas curtas de sua égua brasina, sempre na
beira de cima da correnteza. Eu fui atrás. Mas meu cavalo
118
tinha mais peso no lombo. Imaginei dar-lhe rédeas soltas e
bater com os pés na barriga para que ele seguisse a égua.
O tordilho entrou na água. Quando sentiu que a
correnteza lhe dava acima da virilha, tentou baixar-se como
para iniciar a nadar. Ester gritou de lá:
- ele se deita!
E eu entendi:
- deite-se!
Meu cavalo quase tombou correnteza abaixo.
Um pouco de sorte, um pouco de proteção do anjo
da guarda (eu deveria cansar uma dúzia por dia), um pouco
de instinto do animal fez com que ao dobrar-me para trás,
puxasse as rédeas e o cavalo sentindo-se instigado,
aprumou-se e enfrentou a passagem. Suspirei fundo. Ester
riu.
Já na margem ela considerou:
- molhamos, no mínimo, metade da farinha.
Já era escuro quando chegamos. Mamãe esperava na
porta:
- Ainda bem que chegaram. Estava apreensiva.
Ester, você quer que Jandir te acompanhe até em casa?
119
Ester disse que não era necessário e que ela
conhecia bem o caminho, mesmo na estradinha do mato.
Mamãe entendeu logo porque a farinha molhou.
Separou a farinha seca da molhada. Com esta propôs fazer
logo uma fornada de pão a mais e usá-la em primeiro lugar.
Enfim, tudo parecia estar no devido lugar. Nem tudo,
porém.
Valdomiro era muito amigo de meu pai. E à
tardinha quando se encontraram, compadres que eram, e
zelosos ambos pela educação dos filhos (Valdomiro tinha
16), ele contou a papai a história da barra de chocolate:
- Não quero intrometer-me na vida do compadre e
de seus filhos, mas acho que tenho obrigação de avisar
(gostaria que fizesse o mesmo com meus filhos) que Jandir,
cada vez que vai ao moinho, pára aqui na venda e leva uma
barra de chocolate. Eu ganho com isso. Mas, não sei se ele
tem autorização tua ou se o dinheiro é dele. É apenas por
amizade.
Papai agradeceu sinceramente.
Antes da janta, mamãe sussurrou-me perto do
fogão:
120
- Que é aquilo das barras de chocolate? Prepára-te
para a surra. Valdomiro contou tudo ao pai.
Sentamos à mesa grande no canto da sala com seus
dois bancos de madeira encostados à parede em L, e
jantamos como se nada houvesse. Excelente sopa de feijão,
saladas, polenta com galinha ao molho, arroz, feijão,
pimentões... Eu já não tinha fome, olhando sempre para o
cinto dependurado na parede em frente, como se fôra o
símbolo da autoridade do pai e o tormento para nossas
traquinagens.
Terminada a janta com calma papai falou:
- Jandir, (eu tremi nas bases), vem cá ao meu lado.
Eu queria mesmo conversar contigo.
E iniciou, com a calma que eu nunca vira em sua
fala:
- Você sabe que, somos pobres, muitas bocas e
necessidades, mas a gente luta para dar conta como pode.
Muitas vezes, na roça, passo a manhã inteira sem tomar
água para não interromper o trabalho e ir até a fonte beber.
Fica longe. E vocês estão na escola. E é preciso que vocês
estejam na escola e aprendam um pouco para viver. Mas
121
um pouco de sacrifício faz parte da vida. E eu o faço por
vocês.
Eu não imaginava, olhar atento, medroso, confesso,
por onde iria chegar ao assunto...
- Quando, porém, alguém está doente, fraco,
anêmico,- continuou ele,- é preciso dar mais atenção,
reforçar a alimentação também.
Eu me sabia forte como um tourinho... onde é que
ele quereria chegar?
- Assim, prosseguiu ele com serenidade, se você se
sentir doente ou fraco, pode pedir um chocolate que a gente
se esforça e consegue. Está bem?
Nada mais falou. Não bateu. Não ralhou como seria
de esperar e era de seu costume. Minhas pernas afrouxaram.
Sentei-me no banco sem balbuciar sílaba.
Entendi. Foi muito mais forte e eficaz do que ter
levado uma surra. Quem ensinara a meu pai tanta
pedagogia?
122
A MUDANÇA
O caminhão encostou de ré na porta superior do
sobradinho de madeira em que morávamos no Pinhão..
Pertinho da Igreja. Eu tocava o sino. Seis da manhã,
meio dia e seis da tarde. Todo vale ouvia e parava para a
Ave Maria. O ritual e o som do sino enchia a vida dos
velhos, jovens e crianças. Era o ritmo da vida. Sentia-me
importante. Como se todos obedecessem ao gesto de
minhas mãos.
E havia o toque de agonia, de falecimento – batida
única, espaçada, triste -, de convocação para o terço e a
missa – eram três vezes de badaladas soltas e uma de
repique para indicar que a cerimônia já ia começar. Os
meninos de minha idade invejavam, ajudavam,
atrapalhavam e o padre reclamava da desordem.
Agora, era a mudança.
Iríamos morar no Bentevi. 14 quilômetros
Esperança a baixo, na Barra do Encantado. Pertinho do
Uruguai. Papai conseguira comprar pouco mais de 15
hectares, com um armazém na mesma casa de moradia, por
4 contos de réis. O amigo Rech emprestara-lhe o valor, de
123
boca, para devolver em 3 anos, pagando 8 por cento de
juros ao ano. Era pouco. Mas dava para recomeçar a vida
depois que um parente safado lhe negara a dívida de 28
contos de um empréstimo que deveria ser honrado com o
fio do bigode. Não contava que os tempos mudavam.
Muitos raspavam a barba e o bigode. Entre cobrar a dívida
a bala ou recomeçar, mamãe aconselhara a recomeçar. Ela
ajudaria. Deus abençoaria. Ele tinha muito mais a dar.
Ameaçava chover. Papai encarregou um peão
amigo, Bastião, para que, comigo, tropeasse as poucas rezes
que tínhamos (três vacas de leite, uma junta de bois
mansos, dois terneiros e 3 cavalos) até o Bentevi. Que não
esperássemos a chuva. Eles iriam depois.
Mal estávamos no alto do cerro que dá para a linha
Esperança e desabou a chover. Andávamos de vagar.
Chegamos, quase noite. Ensopados de corpo e alma. Eu
tiritava de frio.
Abrigados no porão alto da casa que servira de
garagem a um caminhão, Bastião, expedito, pôs logo ordem
nas coisas. Trocou um dos dois litros de cachaça que trazia
por dois bons feixes de canas de milho com as espigas bem
granadas. As canas e as palhas eram para as vacas e
124
terneiros, as espigas eram para nós. Os bois e cavalos foram
soltos no potreiro.
O vizinho Cauduro veio dar-nos boas vindas e
trouxe salame feito por ele e um pão de forma. Em troca
levou dois baldes de leite. Ficamos com dois litros para
jantar. Ordenhadas, as vacas e terneiros foram à estrebaria.
Um fogo bem no meio da garagem, para evitar
incêndio. E a janta: espigas de milho assadas nas brasas,
pão novo e fofo como carinho de mãe, salame com gosto
forte de pimenta e noz-moscada, e leite ainda morno. Era
um banquete.
Nossas roupas secando ao fogo, eu olhava para as
labaredas tão amigas, tão familiares e aconchegantes e
aquecia o coração na espera da mudança que não chegava.
- Eles não virão hoje, chove demais, disse Bastião.
- E onde vamos dormir? Perguntei. A casa está
vazia.
- No quarto grande, aqui ao lado, no porão, tem
palha seca de milho, falou ele, piscando um olho como um
convite à superação do medo.
Um pelego sobre as palhas foi a mais fofa cama que
o menino de 8 anos poderia desejar.
125
O PORCO É A SALVAÇÃO DA LAVOURA
- A gente cansa de trabalhar e não ganhar nada. É
que nós colonos somos muito burros, dizia a Leonel o
vizinho Estrenghini. No ano passado o trigo rendeu muito
bem: um saco de trigo Fontana produziu mais de quarenta,
meio saco de pelado me deu 32 sacos na trilhadeira. Mas na
hora de vender é que a gente vê a exploração. O preço
baixou a quase metade do ano anterior. Resultado, ganhei
menos do que no outro ano e as mercadorias que a gente
compra sobem, sobem e não param de subir... Temos que
encontrar outro caminho.
- Eu já tenho outro rumo para este ano, replicou
Leonel. Vou engordar porcos. Os Locatelli, os Buttini
foram muito bem vendendo porco gordo para os frigoríficos
de Concórdia, ali em Santa Catarina. Comprei os dois
alqueires8 de mandioca de 3 anos do Nelson Danner9,
8 O alqueire de referência de Leonel é 2,43 hectares.9 Em regiões muito frias, a mandioca deve ser arrancada a cada anoporque o gelo mata o pé. Na costa do rio Uruguai, porém, a neblinaimpede a formação de geadas, permitindo que a cana de açúcar e amandioca possam continuar crescendo por 2, 3 ou mais anos.
126
plantei mais 4 alqueires de milho, batata doce e abóboras
tenho de sobra, alguns sacos de soja e está feita a
alimentação para cento e vinte ou cento e trinta suínos.
Logo depois de outubro comprarei uns 150 porcos magros,
de preferência duroc. Vou tentar.
- Quem sabe não esteja aí a salvação da lavoura,
como dizem os políticos na hora dos votos!, acrescentou
Estrenghini.
- Especialmente aqueles que nunca trabalharam e
que pregam a policultura, isto é um pouquinho de cada
coisa (trigo, milho, arroz, batata, galinha, uns porquinhos,
uma vaca de leite...) e que mantém a gente sempre pobre e
na miséria, disse Leonel. Eu quero concentrar o fogo no
porco. Se a sorte me ajudar e o preço não cair na hora da
venda, acho que vou me safar bem. É lógico que as galinhas
e os ovos sempre desapertam para comprar um carretel de
linha, um quilo de sal, um metro de chita. Uns sacos de
trigo para o pão, o milho para a polenta sempre haverá.
Mas, pra vender, terei porco gordo.
Enquanto falava, entre uma baforada e outra de seu
palheiro com o fumo especial de Sobradinho, os olhos de
Leonel quase se fechavam. Vislumbravam os caminhões
127
que encostariam no chiqueiro carregando suínos já antes do
inverno. Escutava os guinchos agudos da porcada que
resistia a ser encantonada e arrastada para a viagem. E o
controle no pêndulo da balança e na anotação dos pesos
porque os comerciantes são rápidos e espertos em suas
contas.
No início de novembro, com as tábuas de duas
enormes grápias arrastadas desde o fundo da roça por três
juntas de bois e entregues aos Berticelli para serrar a meia,
Leonel arrumou e ampliou o chiqueirão. Assoalho a um
metro do chão para permitir a limpeza, cochos compridos
ao redor de toda a parede e estreitos o suficiente para
apenas permitir ao porco comer e beber e não deitar-se nele
sujando o alimento e a água corrente. Uma aba de telhado
para proteger do sol. Tonéis de aço de duzentos litros para
cozinhar mandioca (crua pode matar) e batata misturadas ao
milho e soja. Tudo para evitar o improviso.
Domingo à tarde, depois do terço na capela,
enquanto jogava um quatrilho na venda do Valdomiro,
buscou informações de quem teria porcos magros para
vender. Soube de uma dúzia de vizinhos nas linhas
Esperança, Encantado, Volta do Uvá, que tinham alguns.
128
Evitou o assunto, camuflou seu interesse. Despertaria a
cobiça.
Segunda feira, antes do sol, já apeava de seu cavalo,
em frente à casa de Minela, lá na Volta do Uvá:
- Ei, seu Carlos, ainda temos chimarrão, ou a água
terminou? Foi gritando espalhafatosamente Leonel.
- Chegue,..Chegue no mais, amigo, que o chimarrão
recém foi encilhado! Mas... a que devo o prazer desta
visita? Vejo que também por lá o sol nunca pega ninguém
na cama...
Depois das introduções, da narração entusiasmada
da última pescaria, cujo troféu (um belo dourado de 12
quilos) pendia sobre o fogão a lenha para secar... depois das
notícias sobre a próxima festa do padroeiro e das carreiras
vindouras, entraram logo no assunto:
- O senhor tem algum porco magro que queira
vender...iniciou Leonel.
- Pois olha, não tinha pensado, mas tenho alguns
capados que posso vender.
- E o preço? O gordo está valendo um e vinte.
- Vendo pelo mesmo preço. Vendo doze.
129
- Sem pechincha. Feito o negócio. Postos lá em
casa... pode ser amanhã à tarde? Tenho balança. Pago na
hora, terminou Leonel.
- Combinado.
Numa semana lá estavam 165 porcos, magros,
esquálidos, ossudos, mais feios que a tuberculose. Nenhum
parecia doente. Mas, por via das dúvidas, Leonel aplicou-
lhes uma semana de dieta de milho e abóboras cruas:
“semente de abóbora é o melhor vermífugo”.
Quinze dias depois a pele deles começou a alisar-se
os ossos a esconder-se e a gritaria por comida a aumentar.
Dois meses depois não pareciam os mesmos. A
maior parte do tempo permaneciam deitados. O peso
triplicou. Leonel mostrava satisfeito o resultado para os
vizinhos.
- Mais vinte dias e estarão prontos. E o preço está
bom, comentava. O filho mais velho, acompanhado pelos
avós que retornavam para Jacarezinho, iria para o internato
em Tapera com duas mudas de roupa numa sacola
improvisada de uma fronha. O dinheiro para comprar suas
roupas e pagar a pensão iria logo depois da venda dos
porcos. Afinal, as coisas começam a mudar.
130
Passou-se um mês. Quarenta e cinco dias. E, para o
filho, nem uma notícia de casa. O inverno chegava.
Dinheiro não veio. A aflição do fê-lo escrever a terceira
carta. Uma semana depois a resposta a lápis, papel de
embrulho, poucas linhas. Quase um telegrama:
- Meu filho, não esperes dinheiro. Os porcos
morreram todos. Foi a peste. Perdemos tudo o que
investimos. Mas, fazer o quê? Deus há de providenciar.
O frio daquele inverno foi menos frio e dolorido do
que saber da tristeza e desilusão do pai que pensou que a
“o porco fosse a salvação da lavoura”.
CANCHA RETA
131
Cinco da manhã. Final de abril. Ainda escuro. Os
galos do vale respondiam uns aos outros as provocações de
seus qui-qui-ri-quiiii...A lua cheia descambava atrás do
morro do velho Germano. Os olhos adivinhavam os vultos
das casas, árvores e animais do vale. A serração do
Uruguai se adensava e molhava como chuva fina.
- Jandir, chamou Ana, de sua cama, no andar de
baixo do sobrado de madeira.
Fingi que não ouvi. E, olhos abertos, degustava o
morno acariciante da cama.
- Jandir, insistiu ela.
- Âhhhh... espichei eu.
- Levanta que é quase dia e é preciso encontrar e
trazer a vaca!
Boneca, a vaca holandesa de estimação, prenhe e
chegadinha, como dizia meu pai, não viera à mangueira
aquela noite como de hábito. Deveria ter parido abrigando-
se em algum caponete lá nos fundos do potreiro. Se o
terneiro mamasse seria um trabalho dobrado desmamá-lo
depois. Por isso papai, depois da janta, recomendou que,
132
antes do clarear do dia a Boneca fosse encontrada e
conduzida à estrebaria.
A egüinha baia estava perto da porteira. Uma espiga
de milho, o bucal, e lá fui eu, em pelo, à cata da holandesa.
Atravessei o arroio, chamei, percorri a cancha de
corridas de cavalo que se estendia ao fundo do potreiro por
duas quadras, formando dois sulcos retos, paralelos, 30
centímetros de profundidade e lá, depois do partidor
encontrei a Boneca lambendo seu lindo e desajeitado
bezerrinho.
Foi fácil encaminhá-la para casa.
Mas, guri de 10 anos, não me contive. Passar pela
cancha reta sem dar um galope na egüinha era demais!
Voltei. Afastei o gado, que estava deitado ou
pastando, para longe da cancha. Fui até o partidor.
Enquadrei a baia. Puxei-a no buçal para prepará-la. E, com
um aceno largo de braço e o grito de guerra “brrrr.... “ que
ela bem conhecia, dei-lhe rédeas e apertei os calcanhares.
Era um gozo inebriante, quase orgástico, sentir a
égua encompridar-se baixinha no empenho de correr
desabridamente.
133
Inclinado para frente, quase deitado sobre seu
pescoço, para não oferecer barreira ao vento, a serração
fresca e molhada lavando a cara e eriçando o cabelo, eu
vinha confiante e feliz no lombo da minha baia.
Vencida mais de metade da raia, porém, de súbito,
eis que surge, logo ali, a metros de distância um vulto
humano parado no meio da trilha em que eu vinha.
- Um louco, pensei.
E, num relance, no golpe de vista mais rápido que já
fizera, instintivamente, confiando absolutamente na
capacidade e na docilidade de minha montaria, puxei a baia
para a esquerda, jogando na mesma inflexão todo o meu
peso para arrancá-la da pista.
Seria possível? Naquela velocidade? A cabresto?
Tudo faiscou como um relâmpago na minha mente.
Só restava tentar o impossível. Apoiei a mão direita
bem na direção da junção das patas dianteiras e na hora em
que elas batiam firmes no chão, levantei meu corpo,
tentando liberar a égua do peso do para o próximo pulo...
E a baia conseguiu. Saltou para fora da raia. Três
longos pulos em roda. E estacou. Eu, os braços em volta de
134
seu pescoço, dei uma volta completa sobre ele e voei
derrapando sentado pelo gramado úmido.
Não me machuquei. O susto, porém, foi grande.
A egüinha permanecia estática, à espera., como que
a dizer: “eu não fui a culpada, eu fiz o que pude”.
No meio da raia, boquiaberto, petrificado como um
fantasma estava o negro Pedro.
- Que fazes aí, animal! Resmunguei. Não viste que
eu vinha?
- Ouvi a zoada, balbuciou, e fiquei curioso. Nem me
dei conta que estava no meio da trilha. Eu vinha pegar os
bois para a carroça.
Os quero-queros pareciam mais furiosos aquela
manhã.
Não falei nada a ninguém.
135
EU VI DEUS
Noite clara de lua. Final de novembro. Mês dos
finados. De todos os santos. Ninguém de aniversário. Uma
brisa suave e fresca espantava o mormaço daquela tarde.
Voltava da costa do Uruguai em minha egüinha
baia. Fora levar uns recados de negócio que meu pai
mandava para os Deval.
Marcha solta e serena. Rédeas frouxas na mão. As
cachoeiras do rio ressoando suave e plenamente na
amplidão da cabeça. Grilos eufóricos. Pirilampos em
miríades salpicavam os campos e as lavouras de luzes
infantis.
Eu vinha pensando em nada. Simplesmente sentido
o frescor da noite e admirando minha egüinha, de pelo cor
de ouro e sol, um baio doirado, lourice de animal. Tão
rápida, tão mansa, tão prestativa. Ela e eu nos entendíamos,
pela voz, pelo gesto, pelo contato de pernas, calcanhares,
pelo olhar. Bater nela? Sofrená-la? Para que? Não era
necessário. Bastava insinuar e ela correspondia.
136
Vencera os potreiros e as roças dos Filbert, a curva
fechada da sanga dos Locatelli, estava no plano aberto e
alto dos Berticelli. De um lado a cerca do potreiro limpo do
Esperandio, com gado pastando, do outro a lavoura de
mandioca de Ranner, tudo iluminado pela lua cheia.
Quando, ao final daquele altiplano, a estrada
iniciava a descer para a minha casa, uma surpresa. Bem no
meio da estrada, a uns três metros alto do chão, com
aquelas barbas e vestimentas brancas que aparecem na
primeira página da Bíblia, estava Deus, de braços abertos.
O rosto, os braços largos, as vestes, os pés quase
transparentes, eram tais e quais.
Gelei.
Como a baia não parasse, nem desse sinal algum de
estranheza, o que ela fazia sempre empinando bem as
orelhas, freei.
Olhava para aquele Deus a me esperar. Fugir?
Desviar? Sem chance.
Agarrei a minha vida de guri de 10 anos com as
duas mãos da consciência. Examinei-a pelo lado direito e
pelo avesso, e pensei: Ele vai me pedir contas dela. Pensei
em todos os pecados que eu poderia ter, desde as mais leves
137
às mais endiabradas traquinagens. Fiz um ato de contrição.
Pedi perdão e suspirei.
Parado, tartamudo, esperei.
Mas aquela figura não se mexia. Não avançava. Não
recuava. Não se elevava. Não baixava. Tremendamente
fixa, à minha frente.
Depois de um tempo, que me parecia infinito em
minha pressa de menino para sair do impasse e chegar em
casa, resolvi agir: vou passar, aconteça o que acontecer.
Segurei a egüinha no freio para ver se ela percebia
alguma coisa. Mas suas orelhas davam sinal de nada.
Certamente, raciocinei, os animais não são capazes de ver e
entender a Deus...
E então, lentamente fui passando, passando...
Ao passar, estaquei e dei, por dentro de mim, a
risada mais gostosa de muito tempo. Em silêncio, para que
a baia não risse de mim.
Lá à frente estava a lua cheia. Em volta dela uma
pequena e solitária nuvem branca. A lua e a nuvem
projetadas sobre os galhos de um loureiro à beira da
estrada, faziam a imagem do Deus Pai criador e juiz do
mundo.
138
Não me conformei. Voltei. Queria ver se era
verdade.
E lá estava desenhada a figura de Deus, de braços
abertos, vestes brancas esvoaçantes. Tal e qual.
Fui rindo até em casa. Rindo de mim e rindo de
nosso vizinho que, alguns dias antes, dera um tiro numa
folha de bananeira que balançava ao vento e nela ele vira a
cara, o corpo, a mão e arma de um bandido.
139
QUADRA E MEIA EM CANCHA RETA
Sábado à tardinha. Final de janeiro. O grupo de
sempre na venda de meu pai em Bentevi. Quinze homens
conhecidos, reconhecidos e até amigos das vizinhanças.
Dois grupos de quatro jogam “nove” numa atenção
solene como se disso dependesse o destino de suas vidas.
- Peço uma carta...
- Eu não quero carta...
- Eu estou fora...
E espreitam as cartas, leque quase fechado na mão,
olhos miudinhos, cerrados para a alta concentração... e
mostram o resultado:
- Eu tenho sete
- Eu tenho um quatro, um cinco e uma velha...
melhor que este nove só este nove.
E riem, garganteiam e provocam:
- Desconheço galo que cante no meu terreiro.
Entre um trago e outro de canha com Bitter, Bastião
levanta a voz pedindo atenção:
140
- Domingo, daqui a 15 dias, tem carreiras, lá na
minha várzea...
- Que carreiras estão atadas? Pergunta Alcides.
- Temos várias carreiras: O cavalo do Cauduro com
a égua do Estrenghini. Esta é a principal. É pra levantar
poeira e apostas. Depois tem o cavalo do Minella com o do
Berticelli; o meu zaino com o potrilho do Deval e outros
matungos mais.
- Matungo por matungo, gritou Pedro Deval eu
desafio qualquer um para uma corrida a pé. E em quadra e
meia, com apostas, juiz e tudo o mais. Jogo um churrasco
encilhado pra 15 pessoas com bebida e sobremesa.
A estranha proposta causou estupefação...
Todos se entreolhavam. Ninguém se propunha a
enfrentar a aposta. Ninguém arriscava, considerando a fama
de corredor que Pedro tinha.
Leonel, oitavado no balcão, uma toalha atirada
sobre o ombro esquerdo, coçou o queixo e lascou:
- Eu gosto de comer churrasco, especialmente se é
de graça. Se ninguém se anima, eu aceito o desafio.
Todos pararam e se voltaram para Leonel com um
misto de estupefação e de dúvida: ele deve estar brincando!
141
Como, porém, a fisionomia dele estava impávida e resoluta,
entre risos que não se sabia se eram de pena ou de
encorajamento, todos bateram palmas.
- Isto mesmo, Leonel. Eu conheço tuas corridas
atrás das lebres e veados por estas canhadas. Aposto em
você, compadre, disse Valdomiro.
E toda a atenção, até noite adentro se voltou para a
estranha corrida que se atara para dali a 15 dias. Seria na
cancha reta do Bastião.
Depois dos trabalhos da lavoura, ao escurecer,
durante dez dias Leonel treinou-se na cancha dos fundos do
potreiro.
Sábado ao meio dia, véspera da corrida, Leonel já
estava com a mercadoria sobre a carroça para armar a copa
no outro lado do Uruguai: 20 caixas de cerveja, 10 de
gasosa, um barril de cachaça, Bitter, framboeza, e biscoitos,
rapaduras e um saco de pães grandes, fofos, feitos por Ana
e outras miudezas.. A carne do churrasco Bastião
providenciaria.
Antes do escurecer a ramada para a copa já estava
armada. Palmas de coqueiro por cima, uma tábua para
142
balcão em toda volta, um tonel de gelo mergulhado na
serragem, que veio de Erechim, para refrigerar a bebida.
Agora, era descansar sobre um pelego, ouvindo o
som do Uruguai na cachoeira a duzentos metros dali,
esperando o momento de mostrar como é capaz de correr
um trabalhador calejado de 40 anos.
O dia amanheceu devagar. O sol esforçava-se para
infiltrar-se e dissipar um pouco, aos pedaços, o lençol denso
de neblina baixa que amordaçava e molhava prometendo
um dia quente e abafado. Do meio da serração, como
fantasmas, surgiam de toda parte cavaleiros de chapéu
grande esporeando valentemente suas montarias.
Quando o sol conseguiu varrer a neblina, impôs-se a
rachar. Não eram 11 horas, a canha rolava solta, as vozes
cresciam de entusiasmo, os meninos apostavam carreiras
com seus petiços...
A primeira corrida oficial, às 11 e meia, seria a de
Pedro e Leonel, pés descalços, em quadra e meia. Depois a
areia estaria demasiado escaldante para correr a pé.
As apostas eram uma festa: “jogo dez no Leonel e
dou um metro de vantagem”; “aposto vinte no Pedro e dou
dois metros de luz”; “aposto 50 no Leonel nos primeiros
143
cem metros”... Uma pessoa de confiança para ambos ficava
com o valor das apostas para pagar no resultado.
Onze e quinze e já estavam os dois no partidor.
Germano era o juiz da largada. Um tiro de revólver era o
sinal. A multidão se espremia na cabeceira da pista. O juiz
Estrenghini auxiliado por Alfredo procurava afastar a todos,
“pelo menos dois metros... por favor... pelo menos dois
metros da raia”.
Germano, revólver para cima:
- O pé atrás da linha... E é um... é dois.... e buhm...
- E lá vieram, gritou Alfredo e todos gritaram.
Pedro pulou na frente. Leonel não se importou:
- Corrida curta é pra petiço, gritou...
E apertou o passo.
Aos 50 metros vinham juntos, parelhos, orelha a
orelha,... até o cem metros. Leonel tenteava os passos de
Pedro para verificar se era tudo o que ele podia dar. E então
reuniu todas as ganas de guri que ainda moravam em seu
peito e suas pernas que acompanhavam os veados,
distanciou-se um, dois, quatro metros... E manteve o ritmo.
Um riso grande misturado com suor e esforço iluminava
144
sua façanha. E assim, debaixo de um vozerio infernal de
torcedores cruzaram a linha de chegada.
Erguido nos braços pelos companheiros, no delírio
de sua vitória, Leonel lembrava de sua cançoneta preferida:
“... oi que cavalo bom!...”
As outras carreiras, foram retardadas para o final do
dia para que o sucesso da primeira não ofuscasse o brilho e
a importância das principais.
Ao retornar, sol já posto, nenhuma garrafa cheia, na
travessia do rio, quase lhe cai a carroça da barca. Esqueceu
de calçá-la. E não era para esquecer?
145
VERDADES DE PESCADOR
- É verdade! Dizia, com convicção, Joanin aos
compadres Leonel e Luiz. É a pura verdade! Vocês não
acreditam? Pensam que eu sou mentiroso? É um desaforo!
- De forma nenhuma! Retrucou Leonel. Onde é que
se viu pensar que nós possamos desconfiar de ti, Joanin? É
que ficou tão engraçado que até parece impossível. Mas,
toma lá o chimarrão, que eu vou contar também o que me
aconteceu. Quando eu ri, é porque me lembrava disso.
Antes, porém, de Leonel falar, sentados à sombra
frondosa do cinamomo-sombrinha, em frente à casa, os três
compadres fizeram um pacto entre si. Cada um poderia
contar o que de fato lhe aconteceu, e, por mais
extraordinário que fosse ou parecesse, ninguém poderia rir-
se ou por em dúvida a palavra do outro.
Ana, que encaminhava umas costuras na saleta ao
lado e que escutara o pacto dos três, debruçou-se na janela
dizendo:
146
- Eu também quero ouvir. Em seu olhar risonho,
confiado e matreiro estava toda a aposta do mundo...
- Então, eu começo, disse Luiz, ajeitando a palha de
milho atrás da orelha e, pernas dobradas, ia picando o fumo
amarelinho na palma da mão.
- Foi no ano passado. Fomos pescar, um pouco
abaixo das cachoeiras do velho Bastião. O tempo estava p
´ra chuva. A pescaria prometia. Fomos quatro: O Bépi, o
Tonhon, o Alfredo da Joana e eu. O fogo, na clareira do
caponete logo acima da barranca e o poço fundo à nossa
frente. Nem esperei o mate que Alfredo me oferecia:
primeiro as linhas, logo vai escurecer.
Enguliu a saliva para marcar a seriedade do que
viria:
- Tomei a linha mais grossa, que parece um sovéu
de 80 metros de comprimento, engatei nela o maior anzol
que mais parecia um gancho de dependurar carne em
açougue, espetei nele um muçum inteiro de quase meio
metro como isca, segurei a linha em rodilhas na mão
esquerda, rodopiei três vezes a ponta sobre a cabeça, como
quem laça, e joguei. Escutei o “blum....”, lá no meio da
água funda. Deixei correr um pouco para que o anzol se
147
situasse no fundo e estiquei para sentir o puxão do surubi
das profundezas. Enlacei duas vezes e amarrei bem a linha
num ingazeiro de três metros de altura e dez centímetros de
diâmetro.
E ficou parado, atento, como se escutasse aquele
ruído:
- Agora sim, prosseguiu. Puxei uma pedra e sentei
perto do fogo para o chimarrão. Ali ficamos... Palheiro,
canha e rapadura... Até pouco mais da meia noite. Nas
linhas, nem um beliscão. Nada. Só mosquitos a ferroar as
costas. E então, eles também pararam. Os sininhos quietos.
- Acho que perdemos a viagem, disse Tonhon.
- A noite é escura e sem lua, o peixe grande só anda
à cata de comida na madrugada, atalhei. E eu só quero
peixe grande.
E continuou, olhar perdido na narrativa:
- Alfredo riu, espichou-se num pelego e roncou em
seguida. Bépi, três linhas na mão, no alto da barranca
esperava qualquer sinal.
- E então, acrescentou, em suspense, a minha linha
esticou, um puxão, dois puxões e a disparada do animal que
fez os galhos do ingazeiro baterem n´água.
148
- Oigaletê, gritei aos pulos para o lado da barranca.
- Pus a mão na linha. Esticada como corda de
violão. Só que a música era diferente. Sentia a corrida do
peixe para um lado e para o outro no fundo do poço. Tentei
puxar. A força dele era maior. Tentei uma, duas, três vezes
e nada. E então pensei:
- Cansarás, danado! A linha é grossa e o ingazeiro é
forte.
- De repente a linha afrouxou. Fui recolhendo
rapidamente e senti que o surubi, - só podia ser surubi e dos
grandes -, vinha para o meu lado. Aproveitei para enrolar a
linha recolhida no tronco. Deixei sempre um pouco de folga
para o caso de ele se atirar em fuga e, no tirão, não estourar
a linha. E assim, aos tironaços e às chegadas, fui cansando
o bicho. Quando o sol apareceu, eu ainda lidava com o
peixe que andava de cá para lá, quase à flor da água. Cada
volta que dava provocava um redemoinho no poço.
Assim fui, eu cansando e ele cansado até às 10 da
manhã.
Leonel e Joanin disfarçavam o riso, mordendo os
lábios e Luiz presseguia:
149
- Foi então que, no desespero final, e sentindo que
não conseguia fugir para o largo nem para o fundo, o peixe
enveredou para o cascalho da barranca. Quando aquele
enorme peixe saltou em terra, montei no lombo dele e
segurei-o pelas orelhas. Compadres: queee pinotes!
Leonel e Antônio escutavam. Olhos vivos de guris.
E lá no fundo do olho, um risinho maroto com vontade de
vir à tona. Mas fora proibido pelo pacto. Ninguém poderia
duvidar.
Antônio partiu para outra:
- Não vou falar de pescaria. Vou contar um fato que
me aconteceu no ano passado. Vocês sabem que eu gosto
de caçar. Minha espingarda 16, de dois canos, dependurada
atrás da porta, está sempre carregada para a eventualidade
de aparecer um veado perto das casas. Aliás, eu gosto muito
de bichos, mas caçar é outra coisa. Senti muito quando a
gata angorá que vinha em cria, desapareceu de casa.
Certamente escolhera um lugar sossegado para ter seus
filhotes.
- Mas voltemos ao assunto, continuou. Certa manhã
de domingo, por volta das 11 horas ouvi meus dois
cachorros levantando uma corrida de veado, lá no alto, na
150
roça de milho perto do mato. Sabia que o veado acossado
viria direto para o arroio. Assim, apanhei a espingarda e
corri para perto das lages abertas que dão para o poço onde
a gurizada sempre toma banho.
E se fez enfático:
- Dito e feito. O veado vinha quase 50 metros à
frente dos cachorros. Quando chegou às lages parou para
atirar-se à água. Levantei a espingarda e disparei os dois
canos. Compadres: era só gata e gatinhos voando pelo ar!
- Mas como é possível? Reclamou Joanin, a gata
dentro dos canos?
- Eu também não te perguntei como seguravas o
peixe pelas orelhas, retrucou Luiz.
E, em silêncio, fingiram não rir. Não se podia
duvidar.
Leonel, torceu-se na cadeira, passou um chimarrão
para Luiz, esfregou o queixo e a nuca e começou:
- Meu caso é diferente. Nasceu de uma necessidade
real que eu tive.
E iniciou:
- Há pouco mais de um mês, estava em casa
sozinho. Ana fora à cidade e só voltaria à noite. As crianças
151
foram para a casa da avó e voltariam no dia seguinte.
Estava só, eu e meus pensamentos. Digo melhor, eu e a
necessidade de preparar algo para comer no almoço.
Deu uma longa tragada em seu palheiro:
- Não havia carne em casa. O charque tinha
terminado. Os salames do porão e os toucinhos também.
Não queria matar uma galinha porque eram poucas e
forneciam os ovos.
- Como se fosse verdade, cortou Ana, lá da janela.
- Você não está na conversa e nem no pacto que
fizemos, retrucou Leonel.
- Está bem. Escutarei em silêncio, concluiu ela.
- Pois bem, continuou Leonel, lembrei que eu
poderia caçar um marrecão no banhado bem pertinho de
casa. Peguei minha espingardinha 36, de um só cano. Só
tinha uma bala. Mas, para quem se garante na pontaria, uma
bala é o que importa.
E olhava para os colegas como pedindo
confirmação:
- E lá fui, em direção ao banhado, por dentro de um
caponete sujo. Pé ante pé. Não poderia assustar a caça.
Todos sentiam o caminhar na ponta dos pés:
152
- Foi assim que, numa clareira de aguapés, a 10
metros de mim apareceu o primeiro e lindo marrecão.
Levantei o cano de vagar. Mirei... Emartilhei... Antes,
porém, de disparar, vi, logo adiante outros dois e maiores.
Mudei a mira para eles. Enquanto, fazia isso, porém, pisei
em falso num galhinho seco e ele estalou e quebrou.
Seus olhos pararam como a esperar o estalido:
- O ruído espantou minha caça. Eram 12 lindos
marrecões que decolaram e, em revoada passaram por sobre
o banhado e vieram altos, sobre mim. Um ao lado do outro.
E ao fazerem a volta ficaram um acima do outro.
Enfileirados. Não tive dúvidas, apontei e atirei. A bala
certeira derrubou os 12.
- Os doze? suspirou Luiz!
- E eram grandes, prosseguiu entusiasmado Leonel.
E ao caírem em tumulto sobre os galhos secos de uma
árvore, o galho se partiu e bateu no chão. Pois,não é que, ali
estava dormindo uma lebre!? O pau caiu bem na cabeça
dela... No estertor de morte a lebre saltou longe e bateu no
meu peito... Caí na água... Compadres: saí da água com os
bolsos cheios de peixe.
Minha mãe gargalhava... Mas era proibido duvidar.
153
O AMOR VEM DEPOIS
Leonel saiu cedo de Campo Novo, interior do já
município de Fontoura Xavier, perto de Soledade. Veio,
com seu caminhão velho de puxar pinheiros para a serraria,
até a encruzilhada da estrada que, de Soledade, vai a
Encantado, por Arvorezinha. Encostou frente a casa de um
agricultor que apareceu na varanda tomando uma xícara de
café.
- Posso deixá-lo aqui até a tardinha? Vou para
Jacarezinho. Meu pai não está bem. Avisaram-me pelo
rádio ontem à noite.
- Pode sim. Mas o que tem seu pai? Perguntou.
- Uma complicação de estômago e rins. Está mal.
- Se o problema é rim, o remédio está aí na sua
frente – e apontava para um urtigão de cânulas vermelhas,
espinhento e folhas largas como as de parreira - . A raiz
desse urtigão limpa os rins como uma vassoura.
Na verdade esse urtigão é excelente vaso dilatador e
diurético.
154
Pelo sim e pelo não, Leonel aceitou a oferta e levou
consigo duas raízes escuras que pareciam mandiocas.
- Minha mulher, intoxicada por remédios e mais
remédios, deixou tudo de lado e, numa semana curou-se e
está aqui com toda a saúde, acrescentou o colono.
No ônibus, por aquelas estradas esburacadas e
poeirentas, Leonel ia pensando.
Pensava nos desmatamentos que os imigrantes
fizeram naquela região. Ao invés da mata virgem que
existia até a década de 1920, com imensos pinheirais e
madeiras de lei (grápias, canelas, cabriúvas, angicos,
cedros...), agora só restava alguma araucária isolada e
cheia de nós, no meio dos potreiros. Lavouras de erva mate,
algumas roças de milho e feijão e capoeiras inúteis tanto
para os homens como para os pássaros.
Pacas, cotias, veados que ele tanto gostava de caçar
quando jovem, já estavam praticamente extintos. Aquelas
terras eram as “terras velhas”.
Há quarenta anos, com que vigor ele lembrava, o
sogro Antônio saía de Jacarezinho para aventurar-se nas
“terras novas” de linha Pinhão, além de Erechim.
155
Conseguira finalmente pagar a fiança em favor do
irmão que comprara um moinho.
O moinho foi mal. Faliu. Sem poder pagar juros e
principal, o irmão fugira para Santa Catarina – não se sabia
bem para onde. Restou ao fiador arcar com a dívida: “O
nome, a palavra empenhada valem mais do que a vida”. E
Antônio, num esforço sobre-humano , por longos 10 anos,
arrancou da pouca terra que tinha o necessário para saldar
as contas.
Contando com a união, a força, o sacrifício de cada
um dos doze filhos e muita reza e conformismo, aquele
homem fez os quinze hectares (entre várzea do arroio
Jacarezinho e encosta íngreme e pedregosa do arroio
Argola) produzir safras e mais safras de tudo o que se podia
vender. Duzentos sacos de feijão por ano, quase outro tanto
de trigo, chiqueiradas e chiqueiradas de porcos, galinhas,
ovos, queijos, e tudo por preços irrisórios em mãos de
atravessadores.
Saíam todos juntos, muito cedo, antes do
amanhecer, montanha acima. A carroça de bois à frente.
Iam rezando. Antônio ensinara aos filhos o que aprendera
do velho, religioso e habilidoso pai Pedro: orações da
156
manhã, o ângelus ao meio dia e à tardinha e o longo terço à
noite depois da janta, com ladainhas e mil intenções... E
missa aos domingos na igreja matriz de Encantado ou o
terço à tarde na capela. E tudo em latim misturado com
italiano.
Trabalhavam sem parar, afora o intervalo do café,
até que o sol do meio dia os expulsasse. Antônio, 8 filhos e
3 filhas, todos de calças longas de tosco brim riscado para
não machucar demais as pernas, eram um exército
invencível no trabalho. Roçar, capinar, arar, quebrar o
milho, plantar e colher e trilhar o feijão e o trigo, tudo a
mão. Os menores enchiam a carroça de abóboras, batatas,
mandioca e ramas verdes para levar aos animais do
potreiro, ao meio dia e à noite.
Em casa, com a mãe, só ficava uma das quatro
filhas para, às 9 horas levar o café a todos na roça. Era a
hora do intervalo e do breve descanso. Quando o sol nascia
a capina do milho, o plantio do trigo ou do feijão já iam
longe.
- Nas horas frescas da manhã, o trabalho rende mais,
dizia Antônio. E Deus ajuda a quem madruga.
157
E só saíam da roça quando escurecia. Montanha
abaixo, tropeçando nas pedras, - as meninas de carona na
carroça -, voltavam rezando para ganhar tempo.
Nos dois últimos anos, Antônio montara um grande
alambique. A cachaça mantinha um bom preço. Um dia,
porém, o tanque principal de garapa fervente explodiu. Por
nada não morreram 5 filhos. Quando a válvula saltou,
Antônio em desespero e gritando “pra fora, pra fora”,
juntou os filhos pequenos pela gola da camisa e jogou-os
pela janela. Um sobrinho teve queimaduras graves.
- Pena! , comentou Antônio, no dia seguinte. Agora
que tínhamos liquidado a dívida.
Pôs tudo à venda e planejou:
- Com o dinheiro da venda desta terra cansada
compraremos três colônias novas em Erechim, uma para
Albino, uma para João (os dois filhos mais velhos e já
casados) e outra para mim. Em pouco tempo cada um terá
seu pedaço de terra. Deus nos ensinou a trabalhar.
Leonel, que, do outro lado do arroio Argola,
também trabalhava duro nas terras montanhosas de seu pai
João, acompanhava, por ouvir dizer, os movimentos e as
intenções de Antônio.
158
Na verdade, não admirava somente a união, a
tenacidade, a laboriosidade daquela família. Gostava
mesmo era de contemplar as quatro filhas de Antônio.
Aquela, porém, que lhe caiu na alma numa lufada de
desejo, foi Ana.
Nos domingos à tarde, depois do terço na capela de
Jacarezinho, os homens jogavam bochas, “la mora”, ou
quatrilho. Os rapazes jogavam futebol. Quem não jogava, -
rapazes, moças, meninos e velhos -, torcia pelos que
jogavam. Todos ao redor do campo, bebericando um copo
de vinho ou uma gasosa. E namoricar com olhares e acenos
com pequena malícia e ambigüidade.
Para começar a conversar os assuntos deveriam ser
gerais. Por longe: o tempo..., a chuva..., a safra..., a doença
de alguém. Depois evoluíam para alguma crítica ao sermão
do padre, para comentar o casamento desta ou daquela e,
por fim para o namoro de fulano com fulana, tudo entre
risadinhas discretas.
Falar a sós? Pegar a mão? Só quando noivos ou
quase. Afora as roubadinhas, quase pecado.
Falar sobre o futuro, sobre filhos, sobre a
sexualidade? Faltavam palavras... faltava jeito...
159
Beijar? Alguns... nem depois de casados.
Havia já meses que Leonel vencera a barreira da
timidez. Uma quinta feira à noite fora à casa de Antônio, a
pretexto de ir a filó10. Queria conversar com algum irmão
de Ana.
Queria mesmo era ver Ana e obter a permissão para
visitá-la. Albino entendeu. Ajudou-o. Chamou a irmã que
apareceu logo, secando as mãos no avental.
Simples, sem retoque, alta, esguia, olhos azuis, foi
uma aparição angelical ao olhar de Leonel. A atrapalhação
dela, o rubor das faces, o não saber o que dizer, eram sinais,
mais que sinais: “ela gosta de mim”
Depois, sempre às quintas feiras, voltava mais cedo
da roça. Tomava um banho no arroio. Vestia uma camisa
limpa e, de chinelos como sempre andava, ia visitar a sua
amada. Submetia-se a acompanhar a espichada reza do
terço para, só depois, poder conversar com ela.
10 Filó, é um termo dialetal italiano que significa, visita, passeio. Osvizinhos encontravam-se à noite, na casa de alguém, para conversar,para jogar cartas, tomar vinho doce e caldo de galinha, enquanto asmulheres trançavam palha de trigo para fazer chapéus e bolsas. Osrapazes e as moças jogavam conversa fora... E todos cantavam.
160
Melhor era a tarde de domingo. Até deixava de
jogar para poder conversar com Ana. Ou jogava para vê-la
torcer por ele.
Mas, um dia Antônio resolveu ir embora. Iriam
todos. Ana também. As terras vendidas aqui e compradas
lá. Tudo como o planejado. Iriam em meados de agosto.
Leonel não se conformou. Perder Ana era perder a
possibilidade de formar uma família sólida, alicerçada na
fé, no trabalho, na fidelidade. E Ana era bonita. Fazia-o
sonhar acordado e até não faltar à missa aos domingos
quando ela também ia a Encantado. Não era como as
mocinhas doidivanas, de fala fácil. Nem era tão sensual.
Mas a inocência que lhe brotava dos olhos num sorriso
largo, criava um ar de intimidade que Lenoel não queria
perder. Ela era literalmente o convite ao aconchego, à
verdade, à paz. Ela era a sua possibilidade real.
Armou-se de coragem. Falou em casar.
Ana estremeceu. Nem pensara que o namorico
pudesse terminar em casamento. Desde pequena,
observando a estúpida labuta da família, pensava em se
fazer irmã carmelita. Viver para rezar e amar a Deus e
assim garantir a salvação da alma. “Não era para isso que
161
nascemos neste mundo”!? Para que arriscar perder a alma
em meio a tantas tribulações que geram intrigas, raivas,
perigos permanentes de pecado? Mas o pai Antônio disse
“não”. Um não tão redondo que ela não mais voltou a falar.
Só restava obedecer e, então, casar e seguir a trilha penosa
dos filhos de Eva.
E agora Leonel a convida. Antes de responder,
porém, ela quer tirar a limpo uma dúvida atroz que a
atormenta:
- Quem é que estava lavrando com os bois zebus,
ontem lá na roça nova de teu pai?
Leonel se deu conta. Era ele mesmo. Blasfemara
como um condenado porque os bois não queriam obedecer.
Na família de Ana jamais alguém blasfemou. E ela dissera
um dia que não casaria com um homem que blasfemasse.
Rapidamente respondeu:
- Era um peão nosso. Trabalha por dia.
- Ah!...
Antônio e Francisca concordaram em antecipar o
casamento e esperar uma semana mais para a mudança.
............................................................................
162
No ônibus que descia devagar o morro da
Guavirova, com as balacas cheirando a queimado de tanto
frear, Leonel lembrava dos primeiros anos de casado, do
caminhão Ford 37 com o qual passara tantas vezes por esta
mesma estrada carregado de madeira e arriscando a vida.
Lembrava dos 10 filhos que tinha e andavam estudando cá
e lá pelo Rio Grande do Sul. Em casa, Ana ficou com os
quatro menores e apreensiva pela notícia da saúde do sogro
João.
O ônibus deixou-o na encruzilhada que leva para a
linha Auxiliadora. Aqueles dois mil metros até a casa do
pai, foram um martírio para Leonel. Andava encurvado e
arrastando um pouco a perna direita por causa de um
problema no nervo ciático.
Distribuindo “boa tarde” aos 10 ou 12 amigos e
parentes da beira da estrada, sem se deter, chegou na casa
onde nascera, onde nasceu o pai e onde nasceram os
primeiros filhos.
Várias pessoas na varanda. Falando baixo, quase em
cochichos. Acontecera o pior?
163
- O pai está lá dentro. Está mal. Não se alimenta há
dois dias. Não urina. Não vai aos pés. Está um pouco
inchado, informava-lhe apressada Angelina.
- Que remédios está tomando?, perguntou Leonel.
- Esta pilha aí, em cima da mesa. Não estão fazendo
efeito.
Leonel entrou, viu o pai que nem reagia às
costumeiras brincadeiras de estímulo e ânimo que sempre
se faziam. Saiu decidido:
- Suspende todo remédio. Ferve ligeiro essa
mandioca que eu trouxe. É raiz de urtigão. Vamos tentar.
- Mas...
- Não tem mas, nem més... O filho mais velho sou
eu. Com toda a medicação que lhe deram o pai está
morrendo. Deve ser dos rins. E se o problema é com os rins
este é um santo remédio.
E lá ficou meu pai, ao pé da cama, oferecendo a seu
pai chá e mais chá de urtigão. E meu avô que não dormia há
dois dias, adormeceu um pouco e, como por milagre, horas
depois urinou. Iniciou a desinchar. 24 horas depois já
tomava uma canja e começou a falar e a se queixar.
164
- Que dizer ao médico? Respondia à irmã que
questionava. Digam que João está tomando todos os
remédios. Por isso está melhorando.
Papai dormiu um longo sono no quarto ao lado que
fora seu, de menino.
Na manhã seguinte, caminhou cedo até a casa de
Marinot, o benzedor. Era infalível para benzer o ciático,
diziam.
- Ajoelha, disse ele. Fecha os olhos, reza um Pai
Nosso com devoção e, quando terminar, joga estes três
pequenos cascalhos do arroio para trás e não olhes para
onde eles foram. Vem aqui mais dois dias, que eu garanto.
No terceiro dia Leonel subiu a Soledade, lépido
como o rapaz que amava Ana e que lhe dissera uma vez:
- Não importa se a gente se ama ou não se ama
agora. O amor vem depois.
165
O DESPERTAR DE ANA
Ana, 13 anos, alta, esbelta, grandes olhos azuis
como manhã de outono. Cabelos castanhos claros quase de
mel reunidos numa trança cuidadosamente trabalhada pelo
carinhoso colo da mãe. Naquela tarde voltou da roça um
pouco mais cedo, assustada, preocupada e envergonhada.
Escorria-lhe sangue pelas pernas. Ela não sabia o
por quê. As duas irmãs mais velhas não explicaram nada.
Só disseram que fosse logo para casa falar com a mãe. E
Ana vinha chorando pensando que iria morrer.
A mãe Francisca fitou-a com a mais acolhedora
pena e abriu-lhe os braços:
- Não precisa chorar. Vai te lavar com um pouco de
água morna, bota esses panos entre as pernas e volta aqui.
Ana, desajeitada e sempre chorando lavou-se e
voltou para ouvir a sentença de morte que a mãe iria
pronunciar. Mais desolada ficou, porém, quando Francisca
arrumou-lhe as tranças e, simplesmente disse:
166
- Éh! De agora em diante, três dias por mês, vai te
acontecer isso. As mulheres só não tem isso quando estão
esperando nenê.
- Mas por que? As mulheres ficam doentes três dias
por mês? Por isso que sempre andam se queixando de dor
de cabeça?
- Éh! É isso. É o destino das filhas de Eva. Nem por
isso a gente deixa de fazer as coisas e de ir trabalhar. A
gente disfarça como se nada fosse. Mas amanhã tu vais
ficar comigo, preparando o almoço. Não precisas ir pra
roça.
À noite quando todos retornaram da montanha, Ana
percorria o olhar de todos à procura de um comentário, de
uma palavra. Mas, nem antes, nem durante nem depois da
janta, nem mesmo quando as mulheres limpavam a cozinha
alguém tocou no assunto. Era como se não se pudesse nem
se devesse falar sobre isso. Era como se fosse algo sujo ou
quase obsceno. Afinal, tudo o que se referia a xixi e cocô se
fazia sozinho e bem escondido. Ou como se isso fosse tão
óbvio e corriqueiro que não valia a pena comentar. Mas
para Ana era o inusitado, o desconhecido, o perigoso.
Afinal era com ela que isto estava acontecendo.
167
No longo terço depois da janta Ana apanhou-se
várias vezes distraída, balbuciando “Ave Marias” mas com
o olhar andando sozinho e perdido no horizonte muito além
da luz do lampião, e a pensar: como é complicada e triste a
vida da mulher. Bem como dizia a Salve Rainha:...
“...gemendo e chorando neste vale de lágrimas”
Como nunca, o sono abandonou-a aquela noite.
Contava as horas pelo cantar do galo (o relógio da sala
estava parado, sem corda), ouvia os chiados da coruja na
cumeeira do paiol ali pertinho, os quero-queros no potreiro,
sempre atentos a qualquer movimento, e espreitava as
nesgas de luz que a lua minguante projetava na janela de
madeira entreaberta esquivando-se da galharada do plátano.
O coração e a cabeça povoavam-se de dúvidas, receios,
palpitações e ensimesmares.
Ouviu quando o pai e a mãe acordaram, uma hora
antes do amanhecer e falavam baixinho na cozinha ao redor
do “focolar”11 tomando o seu chimarrão. O que falariam?
Quem sabe estivessem a falar sobre ela? Ana teve a
11 Focolar é um fogão a lenha feito de barro, em cima uma chapa deferro com furos tapados por aros concêntricos que se retiram paracolocar as panelas.
168
tentação de escutar perto da porta, mas se conteve: “é falta
de educação”.
Depois os irmãos despertaram, um por um. Os
adolescentes, “sempre cansados”, eram trazidos à existência
real pelos mais velhos: “vamos dorminhoco, o sol já vai
nascer”. As irmãs juntas, lampião na mão, cada uma com
seu balde grande, encaminhavam-se à estrebaria para a
ordenha. Os rapazes, com os bois já atrelados à carroça,
apanhavam o chapéu de palha dependurado à parede,
juntavam duas ou três fatias de polenta sapecada na chapa
do fogão, um pedaço de queijo e de salame e iam puxando
o cortejo para a roça do morro.
Quando Ana apareceu na cozinha, a mãe foi
dizendo:
- Hoje Ana me ajuda em casa. Maria levará o café
para a roça12 e depois ficará lá trabalhando.
Ana entendeu que era uma deferência especial, um
tratamento novo que, naquela turbulência, davam à recém
mocinha um pouco de segurança. Nem comentou com a
mãe que no dia anterior sentira uma moleza e um cansaço
12 Todos iam muito cedo à lavoura para aproveitar as horas mais frescasdo dia quando o trabalho rende mais. Sol, já alto, 9 horas ia o café paraa roça, momento também de descanso.
169
pelo corpo, os seios um pouco inchados e os mamilos
doloridos. Não cabia. Devia ser assim mesmo.
No dia seguinte as coisas voltaram ao normal. Tudo
continuou como se nada tivesse acontecido. Nem Ana
comentou nada com ninguém. Olhava para as irmãs
esperando que dissessem, mesmo que indiretamente alguma
coisa. Mas, nada. “Então a vida é mesmo assim” pensava,
enquanto puxava com força a enxada na capina.
Quase um ano depois já conseguia cochichar às
irmãs que estava em seus dias... Elas nada diziam. Somente
um “éh!”... e mudavam de assunto.
A mãe, grávida um ano sim e outro também,
crescia, ficava enorme, “engordava”. E, de improviso, uma
bela noite, anunciava que os rapazes iriam dormir em casa
de tio Ângelo, assim poderiam conversar com os primos...
E as moças iriam para a casa de tia Agnese que morava
vizinha...
- É que hoje vai chegar mais um irmãozinho de
vocês, comentava o pai Antônio.
Ana estranhava que devessem sair. Não entendia
porquê. Sabia que o irmão estava no ventre da mãe,
segundo lhe contou a irmã Maria, assim como se rezava
170
“...do vosso ventre Jesus”. Não sabia como nasceria nem
como fora parar lá dentro. Nem se permitiria imaginar que
ele viesse de relações sexuais dos pais como acontecia com
os animais. O acasalamento sexual das vacas e bois, dos
cavalos e éguas, dos porcos e porcas lhe causava repulsa
porque revelava violência... E nem olhava porque era
impróprio para moças e crianças... era pecaminoso.
Assim ela foi crescendo e imaginando os filhos
como uma bênção de Deus para os casais que tinham afeto
e carinho entre si...Vinham de Deus... Mas ela pretendia
outro caminho.
Oito anos depois...
Naquela tarde, depois do terço na capela, quando ela
percebeu o olhar maroto, ao mesmo tempo medroso e
insinuante de Leonel, ficou sem jeito. E tratou logo de
desviar o rosto para a roda das amigas para escapar da
cilada. Bem que ela gostava das brincadeiras inocentes dos
rapazes e das moças, mas não queria se comprometer em
gostar de alguém uma vez que pretendia se fazer carmelita
descalça. Queria ir para o convento. Viver de oração, na
intimidade de Deus, dos anjos e santos e garantir o céu. De
171
que adiantariam brincadeiras fúteis e inúteis, distrações
ilusórias, pondo em risco a salvação?
E quando no retorno a amiga Joana comentou com
alguma malícia:
- E aquele olhar do Leonel, hein?
Ana, entre risonha, tímida e com raiva afastou logo:
- Ah! Bobalhona, são aquelas bobagens sem graça
dos rapazes de hoje,... mas acho que não era bem pra mim
que ele olhava...
Para decidir definitivamente sua vida, afastando-se
daquelas tentações e distrações, porque “por pensamento
também se peca” - ensinavam os padres -, resolveu falar.
Um dia em que ela ajudava a mãe a preparar o
almoço, parou com a bacia de farinha de polenta sobre a
panela, engoliu a saliva, olhou para a mãe como quem
suplica e arriscou:
- Mama, eu gostaria de me fazer freira...carmelita...
E esperou, com os olhos esbugalhados, a boca semi-
aberta um sinal, um gesto, uma palavra de concordância...
Francisca parou de misturar os radici com cebola
para a salada, fitou a filha com aquele olhar de
172
compreensão infinita que vai até o fundo do coração,
sorriu-lhe coniventemente e disse:
- É o que eu sempre mais desejei para uma filha
minha... tenho quase inveja de tua decisão... sentirei muita
saudade (duas lágrimas rolaram-lhe pelo rosto), mas quem
deve decidir isto é teu pai. Deves pedir isto ao pai. Ele é o
chefe da família. Eu acho bonito e grandioso, mas não sei o
que o pai vai pensar.
O coração de Ana saltava tropeçando em si mesmo
de alegria e expectativa. E o pai o que diria?
Domingo. Antônio, Albino e João foram à primeira
missa, às 6 da manhã. Ana ajudou a trazer os cavalos para
os irmãos e o pai como sempre fazia. Era como participar
um pouco da missa.
De retorno, como de costume, Antônio sentado na
sala, comentava com Francisca e quem quisesse ouvir o
sermão do padre... “buscai em primeiro lugar o reino de
Deus e o resto vos será dada de acréscimo...” Ana escutava
atenta... Era a hora de atacar. Puxou a cadeira para mais
perto do pai e disparou:
- Pai, eu andei pensando, tu me deixarias ir para o
convento e ser freira carmelita...
173
- Carmelita? Retrucou Antônio entre assustado e
contente.
Olhou para a filha, olhou para Francisca, olhou para
o chão, pensou e, com voz um pouco triste falou:
- Mas por que estás pensando nisso, minha filha?
- Eu queria garantir minha salvação na oração e no
silêncio e também ter mais tempo de rezar para todos vocês.
- Filha, disse com voz resoluta, é bonito, mas é
impossível! A mãe precisa de vocês. A Rosa já casou.
Maria também. Inês é um bebê. E são oito homens, afora
tua mãe e eu, para cuidar. É a comida, a casa, a roupa. Deus
saberá da tua intenção. Ele te abençoará por ajudares em
casa.
Era a teologia pragmática da vida e da necessidade.
Ana sentiu que um mundo acabava ali. Baixou os
olhos e concordou com a cabeça. Então só restava um outro
caminho: a senda espinhosa e difícil das filhas de Eva.
Naquela noite Ana sentiu-se estranha. Triste e
aliviada ao mesmo tempo. Se estava triste por não ter
podido realizar um sonho tão santo, também sentia-se leve,
desobrigada, descompromissada. Era como se já tivesse
cumprido um dever, realizado uma missão. Ninguém
174
poderia cobrar dela uma dedicação maior a Deus, nem ela
mesma. Agora era questão de obedecer. Ao invés de chorar
e lamentar ela se surpreendeu na cozinha cantando “Sul
castel de Mirabel...” O coração adormecido e quieto, de
repente, acordara despertando pássaros selvagens de todas
as árvores.
Iria casar.
Mas com quem? Até então nunca se havia permitido
namorar alguém. Vários rapazes lhe esticavam um olhar
lânguido, doente, quase febril. Algum aceno. Algum
pequeno contato ou encontrão “distraído” com o imediato e
respectivo “desculpe” e “não foi nada”. Mas aquele olhar
de Leonel, mais safado, mais matreiro, mais malicioso que
o dos outros começou a encantá-la. A povoar sua
imaginação. Duas vezes sonhou que suas mãos se tocaram
quando pegavam o mesmo copo. Mas ela fazia força para
afastar a tentação.
E Leonel, sem se fazer esperar, numa quinta feira à
noite, apareceu a pretexto de qualquer conversa com seus
irmãos. Ela estava secando a louça quando o irmão Albino
a chamou para a sala:
- Ana, vem cá!
175
E ela foi, secando as mãos no avental...:
- O que é....?
E parou com a palavra entre a garganta e a boca,
vendo Leonel que a olhava sem parar, olhos brilhando no
lusco-fusco do lampião...
- É que Leonel... veio nos convidar... convidar para
que mesmo Leonel? Disse Albino voltando-se para ele e
tentando piscar um olho...
Leonel, engasgou-se, tossiu, e inventou qualquer
desculpa para iniciar a conversa:
- Bem...é que domingo vai haver um torneio de
futebol na Auxiliadora. Queria saber se os irmãos não
gostariam de jogar em nosso time e se vocês não quisessem
ir também...
- Bem, se o Albino e o João forem, nós também
podemos ir, né mãe? (falou alto para Francisca que estava
na cozinha) Iremos ao terço lá e depois veremos o torneio.
Leonel nem esperou o terço que estava por iniciar,
tão logo terminassem de limpar a louça, e saiu feliz
assobiando a cançoneta de que mais gostava: “saudades do
matão”...
176
Depois, os domingos à tarde tornaram-se uma bela
distração: tomar uma gasosa e conversar um pouco,
pouquíssimas frases, com Leonel.
- Assim, o bem-querer foi aumentando e o amor
fisgou a gente distraída... comentou ela tempos depois.
No idílio platônico de um amor feito de carinhos,
pequenos gestos e convivência ela imaginava o casamento.
Na véspera, porém, de seu enlace matrimonial a
cunhada, com toda a malícia na ponta dos olhos, perguntou-
lhe:
- Você sabe o que vai acontecer na noite do
casamento?
- Ué!, respondeu Ana. A gente casa e vai morar na
mesma casa.
- E na mesma cama, disse Santina.
Ana, vermelha, envergonhada e perturbada:
- Infelizmente, dizem que sim...
E Santina, que não podia acreditar que Ana não
soubesse o que aconteceria num leito nupcial foi direta:
- E ele te levanta o vestido e... crãn...
- O que? Ele não vai ser sem-vergonha assim!!!
177
- Bobalhona, é isto que todos os casais fazem... e
depois de várias noites de estocadas plantam uma
sementinha de criança na barriga da mulher. E nascem os
filhos...
Ana, titubeou...se deveria ou não casar. Se pudesse
fugir, ninguém mais a encontraria. Mas o casamento já
estava marcado para o dia seguinte. Tudo preparado. Já
tinha até confessado “uma confissão geral” como o padre
recomendara. Ele desejou felicidades...
- Então era aquilo que os padres queriam dizer
quando falavam dos deveres conjugais da esposa? Pensou
em voz alta...
Depois vieram as surpresas, os espantos,os sustos...e
os filhos...
Ana relembrava sempre sua antiga frase: No
começo a gente se conhece, se gosta... o amor vem depois.
178
BOITATÁ
Abril. Sábado. Duas da tarde. Ana ao tanque
termina de enxaguar e estender a roupa no varal entre o
paiol e a casa, cantarolando em seus dezenove anos “Io son
girato d´Italia al Tirol...”. A irmã Maria ajudava a mãe
sovando a massa do pão - até fazer bolha. Rosa limpava a
casa. Os irmãos e o pai já tinham ido à capela para jogar
cartas ou bochas. Os pequenos à catequese.
Mas, o que poderia ser um sol brilhante de outono
com o ar parado e levemente tépido da estação, tornara-se
de uma hora para outra, ofuscado. Um estrondo
ensurdecedor no outro lado da montanha como se fosse
uma dinamite potente. Uma fumaça esbranquuicenta cobria
todo o vale. Não eram nuvens, nem serração. Mais parecia
fuligem branca de um grande incêndio.
- Que será isto?, perguntava a si mesma Ana. Vai
sujar toda a roupa na corda.
Apressou-se a recolher o lavado ainda molhado,
quando o tanque se pôs a tremer como se fosse sacudido
179
por alguém. Duas ondas de água molharam-lhe os
tamancos.
Maria assustou-se quando os copos deslizaram
sobre a mesa:
- Que é isto, Mãe? As coisas se mexendo. Parece
que um espírito passou por aqui!
- Quê espírito, quê nada, disse Francisca. Vai ver
que tropeçaste na mesa sem perceber.
Os olhos grandes e parados de Maria pareciam não
dar crédito no que a mãe dizia.
Ana, lá de baixo da janela, sem saber se corria ou se
ficava, atarantada com as roupas e o varal, exclamou:
- Santantóni, piccinin!13 Parece o fim do mundo. A
terra está tremendo...
Em alguns segundos, tudo parou. Tudo imóvel. Sem
barulho. Em suspense. E ao mesmo tempo tudo normal. Um
normal tão anormal que espantava. Um silêncio esquisito
como falta de palavra e não como palavra que se aguarda,
tomou conta de tudo. Tudo quieto. Quieto demais. Os
animais, os pássaros, os cães, as árvores, tudo em silêncio
como depois de um grande espasmo. Nem os quero-queros,
13 Tradução literal: Santo Antônio pequenino.
180
nem os galos cantavam. Como se a natureza toda
suspendesse o fôlego...
Depois..., um longo minuto..., e aos poucos, de
vagarinho, o fôlego voltou. Os ruídos, as vozes foram
repovoando o ar que já não parecia tão parado.
A valentia, dos rapazes e o garganteio dos homens
que jogavam quatrilho na venda da capela, custou a se
recuperar. Cada um empinou o copo de vinho que lhe
estava de fronte...E se entreolharam como a perguntar: para
onde fugir? Mas depois que o susto passou, um começou a
rir do outro para não rir de si mesmo e as vozes se
transformaram em gargalhadas por nada, por qualquer
assunto, por qualquer referência a medo.
Quando o sino badalou chamando para a costumeira
catequese dos meninos e meninas e para as confissões, os
homens também foram à igreja. Queriam saber se o padre
tinha alguma explicação para o susto geral e para aquela
poeira branca que parecia uma farinha.
- Ontem o delegado me disse que telefonou a Porto
Alegre para saber, disse o padre Foscalo. Disseram que é a
poeira de um vulcão, lá do Chile. Não sei se é o Aconcágua
ou outro vulcão... É que no centro da terra existe fogo e, de
181
vez em quando, a pressão explode a panela por algum
furinho no alto das montanhas. Deve ser fumaça de lá.
Depois tudo volta ao normal... Lá na minha terra natal, a
Itália, na cidade de Nápoles um vulcão, o Etna, uma vez,
setenta anos depois de Cristo, destruiu duas cidades
inteiras: Herculano e Pompéia. Muita gente ficou enterrada
na lava derretida pelo fogo que rolava montanha abaixo...
Mas o Chile é muito longe daqui, mais de dois mil
quilômetros. Esta poeira deve ter sido trazida por ventos...
E o tremor da terra? Isto não é nada. Por aqui não deve dar
muito tremor de terra. A terra vai acomodando suas
camadas e isto sacode um pouco. Não devemos nos
assustar.
- E aquele estouro enorme?, perguntou Antônio.
- Não sei, eu não ouvi nada, disse o sacerdote, mas
pode ter sido dinamite de alguém estourando pedras ou a
queda de algum meteorito.
- Meteorito? Que bicho é este?, perguntou o menino
Felipe.
- Uma pedra, uma pedra grande que se desprende de
algum astro e cai por aí. Caiu na cabeça de alguém de
vocês? Não? Então não foi nada, concluiu Foscalo.
182
À noite, na hora da janta, todos comentavam e
queriam saber. Albino que ouviu o padre na Igreja,
sossegou a todos. Tudo já passou.
- Ih! Há tanta coisa misteriosa por aí, comentou seu
Antônio sentado à cabeceira. Nossos pais e avós contavam
que, de vez em quando Deus manda um sinal como um
astro de fogo com rabo comprido, avisando que está na hora
da conversão. Em 1916 viram um grande e assustador.
Ainda não é o fim do mundo mas é preciso viver como se
ele estivesse chegando.
- O padre disse que também viu este cometa de
1916, comentou Albino. E que era muito bonito. Que Deus
fez o mundo bonito e grande e não mesquinho como a boca
de alguns que não param de blasfemar... E quando
perguntaram se o fogo do inferno está no meio da terra, ele
riu de nossa cara e disse:
- Quem disse que o inferno é feito de fogo? O
inferno é muito pior e não devemos facilitar na vida para vir
a cair nele. Deus não brinca em serviço. Cada qual sabe o
seu caminho...
Antonio lembrou que, em menino, viu, uma noite,
uma grande bola de fogo.
183
- Era grande como um barril. Saiu lá de baixo do
banhado na várzea do rio onde houve uma batalha na
Revolução de 1893, levantou-se sobre o canavial e veio em
direção às casas, passou pertinho do telhado e foi subindo,
subindo até se perder atrás do morro do arroio Argola. O
fogo não era vermelho como o fogo do fogão...
O olhar de todos fixou-se na labareda do focolar .
Um olhar que aninhava em si surpresa, medo, espanto, uma
lágrima chegando à borda...
- Era um fogo branco e azulado, continuou Antônio.
Eu nunca tinha visto coisa assim...
Na insignificante luz do lampião que bruxoleava na
sala ampla, todos se olhavam, o coração parado, os olhos
saltando.
Foi difícil começar a reza do terço que sempre
sucedia ao jantar.
E enquanto a boca repetia automaticamente “Santa
Maria...Pai Nosso... Glória... Salva Rainha... rogai por nós...
rogai por nós...” o pensamento de todos se contorcia,
distraído, à procura de respostas...
184
TORRESMO
Leonel tem cinco anos. É o mais velho de três filhos
de João e Mariota. Nesta tarde não acompanhou os pais à
roça. Ficou em casa com a irmã Amália para receber o vô
Narciso quando voltasse de Encantando. Era falta de
respeito e educação não receber os mais velhos. João e
Mariota voltariam mais cedo para tomar chimarrão com
Narciso. Leonel e Amália que soubessem ser acolhedores e
fazer companhia ao avô.
Esperaram, esperaram longo tempo, talvez meia
hora, porque para as crianças o tempo da espera é longo
demais ante a pressa e a impaciência de brincar.
Lá se foram para o chiqueiro ver a porca com seus
onze leitõezinhos que nasceram ante-ontem. A mãe porca
mostra-se uma fera quando os dois se aproximam querendo
entrar e pegar os filhotes. A instâncias de Amália os dois
desistem e voltam ao páteo onde duas chocas conduzem
senhoris uma dúzia de pintinhos cada uma, esgravatando o
chão com seu cuóc...cuóc...cuóc, para que eles encontrem
partículas de alimento.
185
Tentam apanhá-los mas os pintos fogem e se
escondem atrás das pipas do porão.
Foi então que Leonel se deparou, num canto, com a
prensa de torresmos.
- O que é isso? Pergunta Amália.
- É a máquina de fazer torresmo. Não te lembra que
o pai bota ali dentro a carne de torresmo, rodeia nesta
manivela e sai torresmo, diz Leonel, sem muito
conhecimento técnico da fabricação daqueles petiscos.
- Então vamos fazer torresmos! E comeremos com
pão, anima-se Amália sacudindo as mãos.
- Mas com que carne? Interroga Leonel, ao mesmo
tempo que olha para os pintinhos com uma tentação
bailando-lhe nos olhos.
Em poucos minutos conseguiram caçar oito
pintinhos que piavam desesperados pedindo socorro às
mães. Estas gritavam, abriam as asas em sinal de ameaça e
proteção, mas não atacavam para defender o resto da prole.
Dentro do cone de lata com furinhos para sair a banha, a
prensa redonda de madeira ia sendo acionada de cima para
baixo pelo eixo em parafuso e movimentado por uma aste
de ferro. Quando a prensa encostou nos pintos, seus pios
186
desesperados apavoraram os dois pretensos fabricantes de
torresmo.
- Pára, pára, pára gritava Amália.
Mas como parar para libertar os pintos?
- Como parar? Pergunta Amália.
- Rodeando a alavanca em cima, diz Leonel
apavorado. Rodeia, rodeia!... gritava para a irmã.
E ela, quanto mais rodeava mais prensava os
animaizinhos... O pasmo tomou conta deles. Tentaram mais
um pouco... Mas os pintos já não piavam...
- E agora? O que fazer? Suplicava inutilmente
Leonel à irmãzinha quando ouviram o ruído da carroça dos
pais que chegavam.
Quando a mãe entrou em casa perguntando em voz
alta pelo sogro que não havia chegado ainda, notou o
espanto, o pavor mesmo, aninhado nos olhos de Amália e
Leonel.
- O que há? O que está acontecendo?, perguntou ela,
assustada.
- Nada! Nada! Apressou-se Leonel enquanto a irmã
gaguejava...
187
- O to... o to... o torresmo! Conseguiu por fim
balbuciar...
- O quê? Que torresmo? Perguntava a mãe mais
inquieta ainda.
- Lá no porão, apontava Amália com o dedinho...
Quando Mariota viu a prensa com o sangue ainda
escorrendo, entendeu tudo...
Tamanha traquinagem bem que merecia uma surra
de chinelo a cada um, mas diante do olhar que, mais do que
perdão pediam socorro, só pode apaziguar:
- Os outros pintinhos já comeram?
188
GUERRA
- Corre pra dentro Jandir, olha o avião!, gritou Ana
aflita com as notícias da guerra na Europa.
Agora o Brasil também entrou, pensava, e Leonel
também pode ser convocado. Que Deus tenha piedade e não
permita. Que faria eu com três crianças, o mais velho com
cinco anos? Getúlio mandou um monte de soldados pra
guerra. Dizem que é lá na Itália, na Europa...
O monomotor barulhento, assim como surgiu
repentino por detrás do morro, percorreu o vale e se perdeu
ao longo do Taquari. Tardinha de janeiro de 1945. Leonel
anunciou-se no alto do potreiro com a carroça carregada de
milho: de vagar, Rio Grande, segura Barroso!
- Esse avião não é de guerra, comentou ao chegar.
Se fosse de guerra e voasse tão baixo, eu o derrubaria com
um tiro da minha espingarda.
- Graças a Deus, suspirou Ana. Não sei por que os
homens são tão estúpidos e precisam matar os outros para
amontoar um pouco de dinheiro! Só podem estar a serviço
189
de Satanás. Deus não quer guerra... E tem até padre que fala
em guerra santa!! Muito mais do que guerra os homens
deveriam aprender a se ajudar uns aos outros!
Leonel lembrava que seu avô Narciso em
companhia do pai Francisco deixara Cembra perto de
Trento na Itália, para fugir à convocação para a
interminável guerra que o Império Austro-Húngaro
promovia devorando a juventude como bucha de canhão.
Felizmente ele conseguiu emigrar mesmo devendo
renunciar à cidadania austríaca.
- Tem muita gente esganada, quer tudo para si,
rouba, massacra e depois conta vantagem pra disfarçar a
mentira, acrescentou Leonel. Mas guerra é guerra, coisa de
homem.
Naquela noite, os cantos alegres e polifônicos dos
“mazzolin di fiori” não soaram pelo vale. Nas rodas de
chimarrão, as conversas com os vizinhos que passavam, na
janta, nas orações do terço, em tudo pairava um ar infeliz de
apreensão, as crianças fitando o rosto dos mais velhos à
cata de uma explicação e de um sossego.
Na manhã seguinte, a primeira pergunta que a
professora Terezinha devia responder: o avião... a guerra.
190
- A guerra é coisa suja, sem razão... Quem começou
a guerra foi a Alemanha que invadiu os outros países.
Olhem aqui no mapa: aqui está a Alemanha, aqui a França,
aqui a Itália que parece uma bota, a Inglaterra fica nestas
ilhas, e lá longe perto do gelo está a Rússia. A briga está na
Europa, um pouco na África e o Japão lá no outro lado do
mundo tentando dominar a China e todas estas ilhas.
- E os Estados Unidos?, perguntou Lurdes.
- Os Estados Unidos que ficam aqui na América do
Norte entraram por último na guerra, depois que a Rússia já
tinha dominado os alemães. Entraram para repartir o lucro
da guerra. Tomara a Deus que a guerra não venha para cá.
- E o avião de ontem, com aquele barulhão, indagou
Alcides?!
- Ah! Eu também vi, disse a professora. Mas este
não é de guerra. É avião de passageiros. Devia estar
levando alguma autoridade para Porto Alegre. Vocês viram
o que estava escrito nele?
- Eu vi.... responderam quase em coro: VA...RI...G.
O que quer dizer professora?
191
- É uma empresa que tem aviões para transportar
gente e carga. É como um ônibus, leva trinta ou quarenta
pessoas por vez.
- E cabem lá dentro, professora?
- Ih... existem aviões muito maiores que um ônibus,
levam mais de cem pessoas numa viagem só, como os
aviões de guerra...
Aquele avião trouxe, de repente, a realidade da
guerra para dentro de Jacarezinho. A estupidez, a violência,
a ganância espantava a todos: crianças, meninas e velhos.
Matar, matar muitos, com bandeira na mão, com pretextos
de honra, de pátria, lealdade já não era crime ou pecado? O
ódio, o massacre, a extinção dos outros era virtude... De
quem? Para que? Para quem?
Mas os que falavam contra a guerra falavam
baixinho. Como coisa proibida. Até o padre em seu sermão
evitavam julgamentos... só rezava pelos que sofriam pela
guerra e para que ela acabasse logo...
Jandir, seis anos, de bodoque pendurado no pescoço
como se fosse um rosário, pensava: se eles vierem eu acerto
uma pedrada em seu nariz.
192
A FERRO FRIO
Na pequena mesa da varanda em frente à casa de
madeira, Leonel, quase 90 anos, apruma-se, para jogar uma
canastra com três netos:
- Vamos ver quem é o galo! No outro dia eu apanhei
demais, brinca provocativamente.
- Não gosto de bater em gente mais velha, mas...
jogo é jogo, responde Tiago no repto.
Chegam mais dois netos. A casa do vô é lugar para
chegar, para estar, para brincar e até para aprender alguma
coisa de suas histórias.
- Mas o que vocês faziam, vô, aos sábados à tarde,
em seu tempo de guri?, pergunta Vinícius.
- Bem, aqueles eram outros tempos. Tempos do
interior. Banhos no arroio... Terço na capela... jogos de
futebol e eu era bom na canela, especialmente no ataque.
Todos respeitavam minha velocidade... roubar frutas e
melancias só pelo prazer de que “a fruta do vizinho é
sempre melhor”... E alguma malandragem...
- Que malandragem vocês faziam?, insiste Diogo.
193
...................................................................................
- Eu lembro de um domingo à tardinha. Lembro
como se fosse hoje: Voltávamos do terço da Auxiliadora.
Éramos quatro. Meus três vizinhos queriam conhecer a
espingarda que eu fizera com um cabo de guarda-chuva.
Gatilho, coronha e tudo o mais. Em meio às armas velhas
guardadas no sótão: uma carabina, duas armas de caça,
umas adagas e todas enferrujadas, destacava-se a minha
preciosidade.
- Não sei se o cano resiste a muita pólvora, mas
servirá pra dar um tirinho.
De súbito, minha mãe, ao pé da escada, interrompeu
nosso sossego gritando:
- Nelo, acode que o cachaço do vizinho está
cobrindo as porcas duroc, lá no potreiro. Era só o que
faltava!
Despencamos escada abaixo e corremos.
O potreiro abaixo da estrada , era um gramado plano
que ia até a costa do arroio Jacarezinho. Era bem fechado
com cerca de pedra de metro e oitenta de altura, feita por
Bastião. Empreitada que lhe rendera bem mais que o
pagamento por dia. Nele, convivia a fauna toda de meu pai:
194
cavalos, bois, vacas, terneiros, ovelhas e porcos. Uma dúzia
de porcas de cria, de raça duroc, eram especial preocupação
dele. Ótimas para produzir banha. Tinha pedido a um
criador do Tigrinho que lhe emprestasse um reprodutor de
raça pra tirar umas “ninhadas”.
E agora, lá estava o infeliz porco do vizinho, um
suíno peludo e seco que não servia nem para banha nem
para carne. Fugira do chiqueiro, saltara a cerca de pedra e
emprenhava porca por porca. Era a terceira vez que ele
aparecia no potreiro. O vizinho Agostinho, avisado, não
conseguiu mantê-lo preso.
Era evidente o prejuízo.
Entreolhâmo-nos os quatro. A idéia foi unânime,
nascida ao mesmo tempo e na mesma velocidade:
- É agora!
Encantonamos o bicho perto da porteira. No
primeiro lance de sovéu, laçamos o animal. Gritava como
um condenado. Pressentia o que lhe haveria de acontecer.
Deitado de barriga para cima, dois seguravam as
mãos dianteiras para evitar que ele mordesse, um mantinha
aberta as pernas de trás e eu fui correndo buscar o
instrumento cirúrgico necessário. Cravado num toco perto
195
da carroça estava o facãozinho de partir abóboras.
Enferrujado, rombudo e cheio de dentes. “Era esse mesmo”.
Nem precisava afiá-lo ao rebolo.
Enquanto eu esfregava... e esfregava o facão para
cortar os bagos da fera e ela “esganiçava” desesperada, dois
cavaleiros do Tigrinho pararam perto da cerca para
contemplar nossa façanha. Um deles é o que emprestaria o
reprodutor a meu pai. E riam a mais não poder:
- Eu nunca vi castrar um porco assim. Ele vai
morrer. Devem ter muita raiva dele.
- Imaginou a bronca do seu João quando souber
disso? E o animal é do vizinho...comentavam.
Extraídos os ovos - com saco e tudo - com toda
aquela delicadeza, a ferro frio, atirâmo-los aos cachorros
com uma conclusão de vingança:
- Quero ver se ele pulará novamente a cerca para vir
aqui fazer estragos!
Com tanta assepsia e limpeza, era evidente que ele
apanharia uma infecção mortal. Em todo o caso, abrimos a
porteira e, com um pontapé, enviâmo-lo para a sua casa.
Quando entramos em casa a mãe perguntou:
- Vocês mataram o porco?
196
- Não, mãe, só lhe demos uma lição!
O porco? Enfiou-se no barro umas horas. No dia
seguinte já estava curado. Apaziguou-se. O vizinho nada
falou...
Dois dias depois, na hora do meio dia, o criador de
Tigrinho, chegou para tomar um chimarrão com meu pai...
Eu despistei... inventei que deveria pegar um cavalo
lá no fundo do potreiro. Meu pai, atalhou imediatamente:
- Vem cá Leonel... vá dizer ao vizinho que o porco
está castrado...
Ordem de pai não se discute... Lá fui eu cabisbaixo,
sem saber como iniciar. Pensei num subterfúgio:
- Papai mandou dizer que seu porco está castrado...
Agostinho já sabia. Riu e respondeu:
- Então diga a seu João que lhe devo uma
“capadura”.
E eu aliviado retornei:
- A ferro frio!
...................................................................................
O riso matreiro de Leonel, - o leque de cartas numa
das mãos e os óculos na outra -, coincidia com o
encantamento e a conivência dos netos.
197
REVOLUÇÃO DE 23
- Seu João, seu João a ´força´ já está chegando em
Encantado, gritou da estrada, sofrenando o cavalo preto que
vinha a galope, o vizinho Augusto. Disseram que são mais
de cem homens. Estão atrás dos revoltosos escondidos nas
grotas do Fão em direção à Soledade.
- É uma desgraça!, respondeu João. Obrigado pelo
aviso!
E da mesma janela João gritou:
- Nelo! Nelo! (abreviação e apelido de Leonel em
italiano), depressa,... depressa! Reúne nossos bois, nossas
vacas e cavalos. Vamos ter que escondê-los. Os soldados de
Borges de Medeiros vêm aí. Arrasam tudo o que
encontram.
Leonel correu ao potreiro e reuniu oito bois, cinco
vacas, o cavalo, a égua com seu potrilho mamão, as cinco
mulas incluindo a de montaria do pai. João foi dizendo:
- Toca tudo pela estrada do arroio Argola em
direção a Capitão. Vamos escondê-los nos fundos da
198
fazenda do tio José. Naqueles matos ninguém os
encontrará.
No potreiro só ficou uma vaca magra e uma mula de
cargueiro. Para despistar.
- Se os homens perguntarem por nós, diz que fomos
trabalhar nos fundos das terras e que só voltaremos no fim
de semana, recomendou João à Mariota. Se quiserem
comida, oferece-lhes alguns queijos e uns salames, esconde
o resto como puder...
Meia hora depois, João alcançou Leonel que
tropeava a minguada ponta de gado de que dispunham,
apressando o quanto os animais podiam. Quando superaram
o topo dos morros, em Campinho, souberam que o delegado
de Encantado reuniu seus 12 brigadianos e mais 10
voluntários, que subiriam por Jacarezinho e Nova Bréscia
em direção à barra do Forqueta com o Fão.
- Ainda bem, exclamou João. Estaremos fora de sua
trilha. Acertei fugir de Jacarezinho para Capitão.
José já esperava o irmão João. Em sua casa simples
construída sobre o arroio de tal forma que, de sua varanda
pudesse pescar na pequena represa que ficava em baixo - o
que era um encanto para a infância de Leonel -, havia
199
fartura. Fartura de cereais, de salames, queijos e vinhos.
Fartura de armas (três espingardas de grosso calibre, 2
revólveres de José e um para cada um dos 8 filhos), fartura
de filhos e filhas. José já providenciara esconder seu gado
(tinha mais de cem cabeças) na pequena invernada no outro
lado do morro. Em volta das casas ficaram alguns bois
velhos, de ossos à mostra, uma vaca de leite e um matungo
tordilho de pouca valia para montar. As armas? Ninguém as
viu nem sabia delas...
- Quem disse que eles não virão para cá? Ironizou
José. Eles sempre mentem para pegar-nos desprevenidos.
Ainda mais este delegado corrupto e assassino com seus
soldados todos vindos de fora. Não há um gringo entre eles.
E dizem que são malvados. Fazermo-nos de bobos é sempre
a melhor política, para com eles. A gente não sabe de nada.
Não sabe o porquê dessa revolução. Não sabe quem é Assis
Brasil e os revoltosos que estão com ele, desde Soledade,
Passo Fundo, Erechim, Palmeira das Missões e, em todo o
Rio Grande. Não sabemos porque Assis Brasil luta contra
Borges.
Nós sabemos que os borgistas são ateus, não têm
religião, que querem mandar sozinhos no Rio Grande do
200
Sul. Que faz muito tempo que mandam e desmandam. São
positivistas como diz o padre... Eles que se cocem entre si...
E eu acho que passarão por aqui, sim. Este é o caminho
mais seguro para eles irem a Nova Bréscia.
- Então é bom que eles nem saibam que eu vim pra
cá, disse João. Afinal, retirei meu gadinho do caminho
deles. Se me permite, ficarei com o gado na invernada dos
fundos. Ainda existe aquele galpãozinho?
- Existe, confirmou o irmão. Fiquem à vontade. Só
não façam fogo. Daqui eles não passarão. Eles também têm
medo da minha fama.
Naquela noite Leonel adormeceu sobre um pelego
no minúsculo galpão cheio de frestas e sem janelas, entre
apreensivo e encantado. Sonhou com o tio e os primos
pescando lambaris sentados na varanda. Adormeceu
ouvindo os sons de inhambus, jacus e corujas... Sonhou
com uma jaguatirica esfomeada que rondava um
cordeirinho.... Quando acordou, o sol já se enfiava pelas
frestas, e seu pai, de pé, de cá para lá, fumando o cachimbo
e de olhos pesados como quem passara a noite inteira de
vigia.
- E então, pai, e os homens?
201
- Bom dia, meu filho!
- Ah, desculpe, bom dia!
- Dali de cima, do meio daquelas árvores, eu vi um
grupo de vinte e tantos chegando na casa do tio. Bem que
eu gostaria de saber o que estão falando, falou João como
que em segredo.
- Será que vão prender ou matar o tio?
- Não se preocupe! O tio os enrola a todos e os bota
debaixo do braço. O tio é muito mais esperto do que todos
eles juntos.
- Mas, eles têm armas! Disse o menino Leonel de 8
anos.
- O tio também tem. E eu duvido que ele não tenha
uns cinco ou seis homens de tocaia, para o caso de
necessidade. Ele nunca dorme de touca.
João conhecia muito bem seu irmão mais velho,
José. Não era agressivo, provocador ou afoito em procurar
briga. Mas, provocado, era um leão. E era rápido no gatilho.
Lembrava do dia em que o delegado foi desarmá-lo
numa roça em que ele plantava feijão. Com a espingarda
belga que ele sempre carregava consigo, abatera um veado.
Algum invejoso o denunciara: em época de guerra todos
202
deveriam entregar suas armas. O delegado, irmão desse de
Encantado, com o topete eriçado de autoridade, intimou-o a
entregar a espingarda sob pena de prisão. José respondeu
que a cano duplo era para defesa pessoal contra animais
selvagens e que não a entregaria.
O delegado, sozinho e com medo, saiu. Buscou dois
policiais como reforço e voltou.
José que também tinha um revólver na cintura disse
ao delegado que ficasse na estrada e que não entrasse em
sua roça. O delegado avançou. Levou dois tiros, um no
braço e outro na perna. Um soldado foi atingido na bunda.
O outro fugiu sem deixar rastro. José, atrás de um toco
assistiu a debandada deles... Depois, a passito de cavalo,
passou pela vila como se nada tivesse havido. Foi para a
sua casa em Capitão e mandou dizer ao delegado por um
tropeiro que passava que, se ele quisesse prendê-lo que
fosse até lá. O delegado nunca mais o procurou.
Mas o irmão dele, o delegado de Encantado, chegou
manso. Pedindo favor. Queria que José os ajudasse a chegar
até a barra do Fão. Pois, ele era quem melhor conhecia o
caminho e o mais seguro. Não queriam importuná-lo em
nada.
203
José, na porta da casa, encolheu os olhos, fez os
cálculos e respondeu:
- Pois não. Eu levo vocês até lá. Até os morros que
dão para a barra do Fão. De lá eu volto. Tem um problema,
porém: eu estou desarmado. E desarmado eu não vou.
- Não seja por isso, disse o delegado.
E alcançou-lhe um 38 dobrevê, Smith, com cabo de
madrepérola.
- Esse é seu.
- Obrigado, não serve para fazer guerra, mas dá para
me defender, fingiu José, alisando aquela jóia.
Buscou no porão 4 queijos e umas dez tripas de
salame para que eles “se entreterem” enquanto pegava seu
tordilho:
- Esse matungo é lerdo, mas vai até lá.
No caminho soube que eles fizeram “um estrago” na
casa dos Dalla Vecchia porque aqueles eram assisistas,
segundo suspeitavam. E observando bem, o cavalo que o
delegado montava era muito parecido com o de
Ângelo...cismou para si mesmo José.
Voltou à tardinha curioso por saber como seria o
encontro deles com os “revoltosos” escondidos nas grotas
204
do Fão. Torcia secretamente para que o delegado e sua
força fossem derrotados.
Soube depois que chacinaram 12 homens quase
desarmados.
205
TRAÍRA
Manhã de fim de primavera. Promessa de calor no
vale de Jacarezinho. As últimas estrelas, apagando-se, o
dizem.
Pão cheiroso da véspera, um palmo de salame,
melado numa garrafinha e chá de mate com leite noutra
garrafa de cerveja, para o café das 9 horas. Tudo numa
pequena toalha branca - de saco de farinha -, amarrada aos
quatro cantos, bordada pedagógica e ironicamente por Ana:
“nesta casa não se blasfema – só se louva a Deus”.
Leonel, os dois cachorros galgo ao lado, espingarda
às costas, - para a eventualidade de uma lebre – farnel
enfiado no cano, sobe a pé, os dois quilômetros de estrada
pedregosa em direção à roça do alto do morro. A brisa
fresca, quase parada, refresca-lhe o rosto que já quer suar.
O despertar dos pássaros povoa os ouvidos de música, tão
antiga, tão conhecida e tão nova...
Quando o sol aparece lambendo os cabelos verdes
do alto da montanha, o eito de milho capinado já vai
206
grande. Leonel estira a enxada com destreza. O inço
arrancado vem para o pé descalço e este sacode-o,
esparrama-o, retirando-lhe a terra. Assim o pastiçal morre e
ainda serve de adubo. Mas é preciso não deixar sementar,
especialmente a milhã e o picão. Do contrário, o trabalho
para o ano será dobrado.
Dia pleno, sol causticante, as ervas e o milho
encolhem-se escondendo as folhas daquela ferocidade. Suor
aos borbotões, boca seca temperada por gotas salgadas,
garganta pedindo água. O prazer de ver o inço morrer.
Leonel pára junto às pedras. Uma vertente de água
fresca. Para beber e se lavar o rosto e os braços.
Desenrola seu frugal café. Corta o meio pão fofo em
duas generosas fatias, derrama sobre elas o melado, e
degusta o doce-salgado da vida, seus olhos deslizando pelas
fímbrias do mato com micos e papagaios, e alcança lá longe
a lavoura e a casa de Antônio onde encontrou sua mulher.
Pensa na bênção que é sua mulher. Neste dia ela não
viera trazer o café como de costume. A filha menor não está
bem. Os cuidados redobram. A lembrança do segundo filho
que morreu pequeno, com um ano e meio, aguça a
preocupação.
207
Depois, é agarrar-se à enxada e limpar pelo menos o
hectare e meio que vai até a beira do mato.
A enxada de pé não faz sombra: é meio dia. Hora de
descer.
À tarde não voltará. Irá a Encantado tentar um bom
preço para o feijão recém colhido. Se o preço continuar tão
baixo – sempre isto acontece na hora da colheita -, arriscará
negociar com Francisco pelo valor que tiver daqui a trinta
dias. Francisco adiantar-lhe-á um pouco de dinheiro para os
remédios.
Assobiou para os cachorros. Não apareceram.
“Devem estar extraviados atrás de algum rasto”. Desceu
rápido. Afinal, montanha abaixo todos os santos ajudam, e
as pedras que rolam o exigem, pensava.
A fumaça da chaminé indicava que Ana preparava o
almoço. Jandir chegava da escola com sua sacolinha de
pano.
- Ana, espera um pouco, dez minutos. Vou buscar
uma traíra. Prepara a banha. Jandir vai comigo. Quando eu
pegar uma, ele a trará. Pego mais uma e volto em seguida.
No arroio Jacarezinho, nestes tempos, as traíras
ficavam chocando ao sol, nas partes rasas. Leonel sabia o
208
lugar delas. Fisga na mão, ia direto aos pocinhos da curva.
Não errava uma fisgada.
- Jandir, leva esta para a mãe. Enquanto ela frita esta
eu chego com outra.
Os dedos nas guelras para que ela não mordesse,
Jandir corria, potreiro afora, com o trunfo reluzente ao sol.
Se alguém o visse e perguntasse onde a pescara, respondia:
- Peguei à mão.
Enquanto Ana a escamava, cortava em postas,
passava na farinha de trigo e fritava, aparecia Leonel,
vitorioso, no topo da escada com mais uma traíra e um
cascudo.
- Esta outra é para a janta. O cascudo é para as
crianças. Não tem espinhos.
A habilidade, o tempero de Ana, seus olhos azuis
como um anjo que zela, que cuida, companhia de todas as
horas, os olhos faiscantes das crianças, faziam do almoço
uma festa.
O resto não importava. Sempre tinha solução.
209
BEM-QUERER
- Acho que nem sou filha de meu pai!, - escrevia
desolada Irma desde o internato das irmãs de Nova Bréscia
-. Ele não me dá carinho. Ele nunca me beijou. E quando
me visita, é cinco minutos para saber se tudo está bem. Ah
que vontade de um beijo e de um carinho como os outros
pais fazem às minhas colegas! Sinto que não valho nada.
Vontade de morrer! Tenho 14 anos e nunca fui beijada por
meu pai... Beijar é pecado?
- É que não percebes, - respondia Jandir desde
outro internato -, o modo que o pai tem de oferecer carinho
para seus filhos. Ele é gringo. E para o imigrante italiano
(para seus descendentes de geração em geração) o carinho
principal que um homem pode dar à sua família é a
disciplina, a ordem. Ser pai é mandar e ser obedecido pela
voz, pelo relho ou pelo olhar simplesmente. Quando todos
se comportam bem, adequadamente, estão bem
encaminhados, são felizes, pensam eles. Ternura? Afeto?
Carinho? É fraqueza, moleza, falta de energia que leva à
210
desordem e à desorientação dos filhos. O verdadeiro afeto é
a disciplina. Elogiar os filhos? Só quando eles não ouçam,
para evitar que se façam vaidosos. Facilitar a vida dos
filhos? Nunca! É na dureza das dificuldades e dos
obstáculos que se aprende a vencer. Observa bem e verás
que é este o jeito que o pai tem de manifestar afeto e
carinho, concluía.
Eu ficava recordando o pai de meu pai, de pé na
varanda, chamando e dando ordens aos filhos e netos.
Autoridade patriarcal inconteste. Nunca repetia uma ordem.
Obedecer é também estar atento à voz de quem manda. E
estar disposto a realizá-la imediatamente. Discutir uma
ordem? Jamais. No máximo, perguntar para entender.
Responder aos pais e aos mais velhos não era apenas falta
de educação, era quase um crime. Bastava um gesto, um
aceno e as crianças entendiam claramente o seu lugar no
espaço e na conversa. “Crianças não se intrometem em
conversa de adulto... escutam e aprendem”...
Lembrava também que nossos antepassados,
formados no interior do Estado de Cristandade, levavam a
sério o conselho bíblico que “a educação dos filhos não
dispensa a vara” e o provérbio milenar repetido todos os
211
dias que “é de pequenino que se torce o pepino”... Ficava
pensando na solidão desses pais que não poderiam saber
das traquinices dos filhos sem tomar imediatamente uma
posição corretiva e severa. Era melhor então, para todos,
não saber o que realmente ocorria com os filhos.
E assim os pais faziam de conta que realmente
mandavam e os filhos que realmente obedeciam. Mas a
disciplina formal, explicitada no mando e na vara, era o
critério. Mesmo a vara e o tapa subentendido, implícito,
escondido atrás das portas, dos escuros, dos silêncios, dos
olhares, permanecendo apenas como uma possibilidade. E o
respeito, sim o respeito, também era um bem-querer.
Os dias correram. Os esvãos do coração enchendo-
se de pura saudade.
Sábado à tardinha, 7 de dezembro. Hora do ônibus.
Ônibus de Soledade e ônibus de Lajeado. Ana pressente,
intui, sabe que os filhos que estão longe de casa estudando
retornarão. É bem provável que venham todos neste dia,
véspera da Imaculada Conceição. Dos 10 filhos, cinco estão
internados: um em Erechim, duas em Soledade, uma em
Nova Bréscia e um em Pinheiro Marcado. Só os pequenos
212
estão em casa, em Campo Novo, interior de Fontoura
Xavier.
Em meio a uma nuvem de poeira que suja até o
vermelho lindo do sol poente, descem do velho e amarelado
ônibus, os filhos e os vizinhos em algazarra, relembrando
uns aos outros o desfecho da última piada.
Ana, braços abertos, nem sabe como expressar tanta
felicidade. Abraça um a um entre um “eu sabia que vocês
vinham, estava esperando” ou “que bom que vocês
chegaram, graças a Deus”... Os pequenos se dependuravam
no pescoço dos irmãos tentando adivinhar o presentinho
que haviam trazido... E a casa simples de madeira sem
pintura, mas limpa e ampla como o coração de mãe pobre,
com jardim sempre florido, enchia-se de vozes, todos
querendo falar ao mesmo tempo.
Já escurecendo, chegava o pai com sua última carga
de toros para a serraria, em seu caminhão de lataria
amassada e desbotada, sinaleiras quebradas pelos galhos no
mato. Castilo vinha com ele. Em cima da carga, suado, sem
camisa, vinha abanando, mostrando em seus 12 anos, a
valentia de quem sabe e é capaz de exercer o ofício de
carregar, descarregar, amarrar toros e mais toros, desde a
213
madrugada até o escurecer. A escola? De manhã, entre uma
urgência e outra dos trabalhos do pai. Mesmo porque quase
nada se aprendia naquela escolinha do interior onde a
professora só tinha a 5ª série.
Os dois cinamomos frente à casa pareciam mais
frondosos. A escada e a porta eram estreitas para todos
passarem ao mesmo tempo arrastando sacolas e malas.
Um cheiro de pão fresco, de forno de barro,
recendia por toda a casa.
Ana, o coração saltando de ansiedade de ouvir e
estar com todos, põe ordem:
- Bem, os guris organizem as bagagens nos quartos
e as gurias venham para a cozinha ajudar a terminar a janta.
E se desculpava:
- É pena, mas não tem pão. Só o pão que eu fiz hoje
de tarde. Mas aquele pão de padaria que vocês gostam, não
me lembrei de pedir a Leonel que trouxesse ontem quando
foi à cidade.
Sentindo o cheiro de pão quente que vinha do cesto
de vime coberto com uma toalha branca bordada pela mãe,
os filhos, água na boca, riam:
214
- Passamos o ano inteiro comendo cacetinho de
padaria, sem gosto, com saudade desse pão fofo.
E um pão alto de forma, moreno, casquinha
crocante, odor convidativo de intimidade, foi sendo
devorado aos pedaços, partido a mão, como aperitivo de
estar em casa.
- Este pão é o resumo de nossa saudade, e a senhora
diz que não tem pão!?
Os irmãos lembravam dos sábados à noite. Retorno
da catequese. Uma bacia de leite exposta ao ar fresco, logo
fora da janela, para não azedar... (não existia geladeira).
Uma grossa camada de nata na superfície. Na impaciência
gulosa de meninos, ao invés de retirar a nata com
escumadeira, passavam sobre ela uma polpuda fatia do pão
macio e ainda quente. O pão de sábado...Fazia bem à alma e
ao coração. E iam silenciosamente dormir tendo na boca o
gosto e o sorriso dos anjos... Na manhã seguinte sempre a
mesma queixa “quem mexeu no leite que azedou?”.
Na janta, todos à mesa, todos os lugares
preenchidos, o pai à cabeceira, a mãe de pé ao lado dele:
215
- Acho que podemos fazer uma bela oração de
agradecimento. Jandir puxa. Graças pelo ano, pelas férias,
pela família, pela paz.
E a janta: a alegria da sopa fumegante de feijão com
“bigoli” feitos em casa, dourados pela gema de ovos e
farinha de trigo do moinho da vila. As saladas verdes da
horta que Ana e os menores sempre mantinham viçosa,
temperadas com toucinho frito e vinagre de vinho – uma
provocação aos narizes e às mucosas salivares-. Meio
cabrito assado ao forno: Leonel. fazia questão de
destrinchar -e ele sempre tinha uns 30 cabritos no potreiro à
espera de um amigo que chegasse. E polenta sapecada na
chapa do fogão, mantendo sempre uma relação de
proximidade entre o calor e o sabor – calor humano e sabor,
sabor humano e calor- . E o queijo, e os temperos fortes de
cebolinhas, salsas, alecrim, noz-moscadas, hortelãs e sálvia
com gosto de mão de mãe; e salames, arroz com vermelhão,
um bom copo de vinho que o pai guardara “para a chegada
dos guris”. Era uma festa. Todos querendo conversar,
perguntar, falar e falar...
Ao final, quando os mais conversadores ainda
trincavam um pedaço de cabrito, Irma levantou-se para
216
ajudar a tirar a mesa e limpar a cozinha pois esperava um
namoradinho que viria.
Foi então que o pai falou, quase solene:
- Não, nada de sair da mesa! Nada de limpar a
cozinha!...
- Mas, pai, - quis suplicar Irma - o Antoninho vem
aí!...
- Ele que venha se quiser, disse Leonel. Agora quem
manda aqui sou eu. E nós vamos é cantar... Passamos o ano
todo com vontade de cantar, mas vocês não estavam em
casa... Agora? Agora é hora de cantar.
Formávamos, efetivamente um lindo coral a quatro
vozes, os irmãos e os pais. Cantávamos canções italianas,
cantos religiosos polifônicos, canções gauchescas e do
folclore brasileiro. Enfim, cantávamos muito quando
reunidos, fazendo jus à tradição legada pelos avós.
- Mas... Irmã queria falar...
Pisquei-lhe e ela não se conteve. Sorriso escondido
no canto dos lábios, lembrou-se do que eu lhe havia escrito.
Saiu de seu lugar no banco de madeira, contornou a mesa e,
enroscando-se por trás no pescoço do pai, num abraço
apertado, disse-lhe chorando:
217
- Velho danado, não tens outra forma de manifestar
carinho?
O pai, vermelho mais que o vinho e assustado com
aquela inusitada manifestação de afeto, arrepiado, uma
lágrima no canto do olho, tentou disfarçar:
- Chega,...chega,... não precisa dizer e repetir
sempre que a gente se quer bem... basta querer bem.
Os irmãos, a começar pelos menores, estupefatos, os
olhos entre esbugalhados e lacrimosos... Comovidos? ...
Novos tempos?
As canções daquela noite tinham mais entusiasmo,
mais harmonia, um novo sabor.
.
218
O DIABO NO BAILE
No assento do carona, Leonel retorna de
Jacarezinho para Encantado e dali para Porto Alegre.
Felizmente o cunhado adoentado está melhor. O final de
tarde quente de verão, traz à memória um turbilhão de
lembranças dos tempos de menino e de rapaz. O calorão
acachapante do vale, com o ar parado, calor que treme em
si mesmo, era seu conhecido desde a infância.
Aqueles quatro quilômetros para Encantado da
estradinha estreita, pedregosa, com curvas bruscas e
perigosas que vitimou alguns amigos de infância sob as
rodas de um caminhão mais afoito ou com a perda de
direção de suas velhas bicicletas, agora está asfaltada. Não
há poeira. As casas à sua beira estão limpas, pintadas
recentemente, flores nas varandas e nas janelas, um sinal de
vida digna dos tempos recentes.
Os parreirais e os pomares viçosos, os chiqueiros e
os galinheiros limpos, as vacas bem nutridas numa ínfima
nesga de potreiro que até parece milagre. Cada um, com
219
seus oito ou dez hectares produz tudo o de que uma vida
familiar precisa. Todos com seus eletrodomésticos de
último geração: não só luz elétrica e água encanada trazida
em mutirão dos morros próximos, mas também telefone,
televisão, automóvel ao lado da carroça de bois, com a
facilidade de guardar seus produtos em amplos
refrigeradores... Leonel vai pensando que dá prazer ver
aqueles parentes e conhecidos de outrora vivendo tempos
de relativa fartura na simplicidade de suas comunidades
coloniais. É verdade que a maioria dos filhos já não está ali.
Foram a Lajeado, Porto Alegre, Curitiba, São Paulo ou
Mato Grosso em busca de espaço mais amplo para
trabalhar, crescer, estudar. Eles voltam sempre para rever os
pais e o irmão que ficou com eles. Para matar saudades.
Leonel pensava em seu exílio da terra natal. Recém
casado buscou terras novas em Pinhão, Bentevi na beira do
Uruguai, retornou para Guamirim, Soledade e agora está
perto dos filhos em Canoas. Os amigos que ficaram
guardam as raízes. É bom revê-los, nos mesmos montes,
nos mesmos vales, nos mesmos riachos que vão
minguando, minguando em seus filetes de água.
220
Na última curva que deixa a comunidade S. José
para mostrar Encantado na concha de morros que se
encostam no rio Taquari, Leonel aponta à direita, em meio
a casas velhas e árvores de tapera, o lugar do baile.
- Foi ali. Era uma casa de negócio e um salão de
baile. Todo mundo falava. Muita gente viu... Quando fiz
minha primeira comunhão na matriz de Encantado, em
frente à igreja, lá no alto, havia duas grutas. Nelas as mães
vestiam as crianças para poderem entrar limpos na missa.
Nós éramos 100 crianças. Todos de branco. Eu tinha 9
anos. Chovia muito. Lembro... Pois bem, as mulheres
comentavam que os tijolos daquelas grutas eram do salão
de baile da linha São José. Quando derrubaram o salão,
deram os tijolos para a Igreja e Padre Foscalo foi buscá-los
para fazer as grutas. A gente se arrepiava. Eu me arrepio até
hoje.
- Mas a história é assim, - prosseguiu Leonel, com
aquela paisagem semi-morta diante dos olhos- . Santina,
moça faceira e um pouco abusada, disse aos pais que iria ao
baile naquele sábado à noite. Os pais não queriam. Não era
conveniente. Iriam uns rapazes da cidade e gente de fora
que ninguém sabia de que família eram. Os pais nem iriam.
221
E sem os pais a filha não deveria ir. Santina enfrentou a
autoridade do pai e disse;
- Eu vou, porque vou ao baile. Dançarei com o
rapaz mais bonito mesmo que seja o diabo.
- E foi, continuou Leonel em tom grave... Um rapaz
bem penteado, fatiota azul impecável, camisa branca de
seda, veio tirá-la para a dança. Enquanto bailava feliz, um
menino, olhos esbugalhados e apavorados saiu correndo ao
encontro dos pais:
- Aquele moço de azul, em vez de sapatos tem casco
de cavalo...
Os pais olharam, muitos olharam e, quando muitos
viram houve uma fumaça densa... e o moço desapareceu...
No chão ficaram as marcas de ferradura de cavalo em
brasa...
O baile terminou. Nunca mais ali houve baile. A
casa caiu.
Espavorido, o povo comentava...
Santina nunca mais pode por os pés na igreja. Até o
dia em que o barqueiro, pessoa quieta e que enxergava
muito bem na escuridão do rio, enamorou-se dela e com ela
casou.
222
Padre Foscalo fez o casamento.
- Os mais velhos sabem... é só perguntar, finalizou
Leonel.
223
O MOINHO DE GIÁCOMO
Eu tinha um burrinho. Daqueles de fazer inveja a
qualquer criança.
Não era tão alto como a mula de meu avô. Vovô se
gabava que esta era o animal mais resistente da região. Que
montava nela pela manhã em Jacarezinho e à tardinha
estava em Soledade. Eram mais de noventa quilômetros
subindo e descendo montanhas. Estrada de muita pedra.
Sua mula era firme. Não tropeçava. Nem se enredava ao
atravessar o rio Forqueta. De caminhar parelho, quase
marcha troteada, engolia distâncias sem mostrar sinal de
cansaço como os cavalos dos vizinhos que para ele não
passavam de matungos, úteis apenas para o serviço grotesco
ao redor das casas. No alto daquela tostada, a capa
impermeável de feltro bem enrolada e presa atrás dos
arreios, badana cor-café e pelegos brancos sempre limpos, o
laço pendendo do lado esquerdo sempre pronto para o
lance, rédeas do freio e buçal trançadas por ele mesmo e
224
com capricho, rebenque tala larga de argola grande e
prateada só para gesticular e dizer que o tinha, João fazia de
suas viagens de negócios um desfile e um passeio.
Mas eu também tinha um burrinho. Ah! Se tinha! Se
não era tão alto e imponente como a mula de vovô, também
não era tão baixo, exíguo e mirrado como jegue do
Nordeste. Para minhas pernas de menino de 6 anos era alto.
Era manso e era amigo. Uma espiga de milho na mão, buçal
à vista, chamava-o e ele vinha tranqüilo. Por-lhe o buçal era
fácil porque ele baixava a cabeça. Montar nele em campo
aberto era mais difícil: subia-lhe pescoço acima agarrado
em suas crinas. E ele não se movia. Depois, entronizado em
seu lombo, cutucava-o com os calcanhares e ele se punha a
trotezito em direção à porteira.
Meio saco de milho, meio saco de trigo divididos
em partes iguais, uma para cada lado da cangalha, um
peleguinho sobre a moagem e lá ia eu Jacarezinho acima,
para além da capela da Auxiliadora, pela estradinha estreita
sobre os peraus que caem abruptos sobre o mato e o arroio,
e que vai em direção à Nova Bréscia, até o moinho do
Giácomo. A trilha, que da estrada levava ao moinho, era em
descida íngreme. Dificilmente a carga não acabava no
225
pescoço da montaria. E então, quando ninguém aparecesse
para ajudar, era preciso voltar o burro monte acima como
para retornar e tentar balançar o carregamento para que
voltasse ao lugar. E isto tantas vezes quantas fossem
necessárias até chegar ao moinho.
Seu Giácomo, o chapéu, a roupa, o rosto, as mãos
sujos de farinha, - eu não via nisso sujeira mas dignidade de
trabalhador -, descarregava solícito o burrinho, arrumava
decentemente os bacheiros e a cangalha, apertando melhor
a chincha. Tratava de trocar o milho e o trigo por um peso
devido de farinha, mandava um recado brincalhão a meu
pai e recomendava que eu não parasse no caminho.
Tudo valia, menos não parar na casa dos primos
Bagatini. Eu sempre inventava qualquer pretexto para
chegar. E tia Maria sempre tinha alguma coisa para mandar
à minha mãe. E sempre tinha um quitute, uma fruta, ou um
suco para convidar e agradar. Jogar peão, meia hora que
fosse, com meus primos Irino e Jocir era tentação
invencível.
Depois ia descendo a estradinha do perau de
vagarinho contemplando as casas de madeira no outro lado
do arroio. Os rapazes arando e gritando com os bois: “ao
226
rego Pintado,... “vamos, vamos Bonito”...! A fumaça das
chaminés em todas as casas desenhavam nuvenzinhas
ingênuas no verde escuro das árvores, anunciando que
havia água quente sobre a chapa do fogão e que as mães
estavam preparando a janta. Perto daquelas casas de
madeira e cobertas de tabuinhas de pinho ou de zinco, o
alaranjado vermelho dos caquis maduros indicava que era
outono. O coral sincronizado dos galos que cantavam e
respondiam de casa em casa formava um sistema de
comunicação entrecortado pelo canto de bentevis, pombas,
sabiás, tico-ticos e algum inhambu lá na crista das
montanhas de mato espesso.
Um dia, bem no meio da estradinha do perau,
quando ela se estreita de tal forma que só dá passagem a
uma carroça ou um cavalo ao lado do outro, tendo à direita
o penhasco de pedra e à esquerda o precipício que dá no
arroio a quase cem metros de altura, meu burrinho teve um
grande susto.
Íamos sossegados. Ele controlando cada passo para
não resvalar nas pedras e para não deixar cair a moagem e o
condutor. Eu cismando com folguedos da escola e com a
amizade entre os animais e as crianças. Pensava
227
especialmente em meu cachorrinho Totó, meu braço direito
e esquerdo em cuidar para que os porcos que acaso
fugissem do chiqueiro a ele retornassem guiados pelo acoar
e pelos dentes do cão. Não adiantava correr. Não adiantava
fugir. O leitão voltaria, quisesse ou não quisesse. Eu
esperava de portinhola aberta... e depois corríamos e
brincávamos como se ele também fosse criança.
Numa curva, morro abaixo, atrás de nós e em
velocidade demasiada para as condições daquela estrada,
vinha o automóvel preto do médico de Nova Bréscia. Não
conseguiria frear antes de nos apanhar. E se freasse
bruscamente naqueles cascalhos soltos correria todo o
perigo de desgovernar-se e cair no precipício. Senti o
pânico esfriar-me a espinha e as pernas...
Não sei como, nem por quê. Mas, num segundo,
meu burrinho saltou para cima de um patamar de pedra à
direita, a mais de metro de altura e onde só cabia ele. Não
caí. Ele não tropeçou.
Quando pode parar, o médico voltou correndo e
preocupado... E nos viu, no alto da pedra, como uma estátua
dos cavaleiros antigos, incólumes. Eu ainda deveria estar
pálido e gaguejante porque nem consegui responder à
228
brincadeira que ele fez para desanuviar... “Não sabia que
você passa farinha na cara...”
Difícil foi fazer o burrico descer daquele altar. O
médico descarregou a farinha para aliviar o salto do burro.
E depois, o doutor Francisco puxando lá de baixo e eu
batendo levemente fizemos o retorno à estrada.
Tudo posto em seu lugar, lá se foi o simpático
médico, não sem antes me encher as mãos de balas que
sempre carregava nos bolsos do casaco, certamente para
compensar o medo das crianças depois das injeções.
Antes que o sol empurrasse a sombra de nosso
monte para o outro lado do arroio e cobrisse metade
daquele morro, eu chegava. Melhor, chegávamos em casa.
229
IMACULADA CONCEIÇÃO
Oito de dezembro. Não importava a urgência dos
trabalhos da roça. Não interessava se a chuva ameaçasse
destruir o feijão na eira, ou o resto de trigo para recolher.
Leonel não trabalhava. Era mais que um feriado. Era o dia
da Imaculada Conceição14. Ana insistia que era um dia
propício para ir à missa, para se confessar e comungar:
afinal o Natal já estava próximo.
Leonel, porém, madrugada ainda, logo após a
terceira cantada dos galos (por volta das 4 horas), afivelou a
cartucheira com 36 cartuchos bem carregados, acolherou os
cachorros viadeiros, boné preto, botas de trabalho e saiu
mascando um pedaço de pão com salame. Um companheiro
de caçada o esperaria na encruzilhada da estrada que leva a
Soledade. No fundo dos campos de seu Noé, nos matos que
14 Os imigrantes italianos foram profundamente marcados pelo ConcílioVaticano I que, em 1859 proclamou o dogma da Imaculada Conceição,reafirmando com isso a distinção do catolicismo e protestantismo e aautoridade do papa cuja infalibilidade também foi decretada no mesmoConcílio. Assim o papa, sem autoridade territorial e política, marcavasua autoridade diante dos povos.
230
vão até o rio Forqueta, havia muito veado e paca. No lusco-
fusco fresco do amanhecer ia pensando: hoje não voltarei
de mãos vazias.
E lá foram Leonel e Jerônimo combinando em voz
baixa onde cada qual deveria posicionar-se para esperar a
corrida do veado ou das pacas, onde soltariam os cachorros
e em que deveriam atirar: nada de tiro em pássaros; é só
para espantar a caça e desnortear os cães.
Leonel postou-se à beira do rio onde um córrego
desaguava. As lajes, antes do poço remansoso era o lugar
ideal para avistar a caça e atirar. Chegando às pedras, o
veado costuma parar antes de atirar-se à água. Era o
momento de abatê-lo. Jerônimo ficou mais acima, à beira
de um canto de campo, pois se a caça quisesse passar de um
mato para o outro deveria passar por ali.
Soltaram os cães que, como de costume, foram
subindo ladeirão de mato acima, tentando descobrir o rastro
de veado ou de paca.
Tão logo cheirassem pisadas frescas iniciariam a
latir baixinho, quase chorando, avisando que a presa
deveria estar por perto. E quando vissem a caça atirar-se-
iam morro abaixo em corrida desabalada atrás dela, num
231
desabrido “quiu, cáu, quiu, cáu” que ecoaria pelos morros.
Era só esperar de prontidão que, a uns cinquenta ou oitenta
metros à frente dos cães viria o veado. Quando era paca a
corrida era diferente fazendo curvas e mais curvas antes de
chegar à água ou ao campo.
Mas naquela manhã os cachorros não ganiam, não
latiam como se não houvesse rastro nenhum naqueles
morros.
Esperaram, meia hora, uma hora e nada.
Leonel encostou a espingarda numa árvore, fez um
palheiro de vagarinho, apurou o ouvido. Só o barulho
manso da água do rio que descia em meio às pedras em
pequena corredeira.
Dez horas. Sol quente. Assobiou para ouvir a
resposta de Jerônimo. Este não respondeu. Assestou a
cornetinha de chifre e buzinou três vezes para chamar os
cachorros. Estes também não responderam.
- Mas que diabo é este, dizia para si mesmo Leonel.
Jerônimo deve ter se deslocado para mais longe e eu talvez
não ouvi a corrida.
Tornou a assobiar e buzinar. E nada de resposta.
232
- Talvez os cães, não tendo encontrado rastro por
perto, foram para o outro lado da montanha. Mas, nenhuma
corrida? Nenhum tiro? É um vexame.
Contrariado, resolveu ir embora de vez.
No entanto, apesar do combinado de não atirarem
em pássaros, Leonel mudou de pensamento quando viu
sobre o galho de um pinheiro, a não mais de 30 metros dali,
uma pomba branca. Não era pomba de campo mas era tão
graúda como aquelas e parecia não se importar com sua
presença.
Apanhou a espingarda belga de dois canos de
calibre 32 e com a qual não errava tiro, mirou bem e
detonou. O estrondo ecoou por aqueles fundos de mato. A
pomba, porém, não se moveu. Não se assustou e continuou
impávida a olhá-lo.
Leonel não acreditou. Nenhuma pena caiu?
Examinou a arma e os cartuchos: tudo estava correto, o
chumbo apropriado, a distância era a ideal para aquele tiro,
ele não tremera. Assestou novamente a espingarda e atirou
com o segundo cano. O estrondo foi igual. O eco foi igual.
O galho em que estava a pomba descascou com o impacto
233
dos chumbos. Mas a pomba estava lá. Como se nada tivesse
havido.
- Quem sabe não é uma pomba, é uma ilusão de
olhos?
Mas a pomba se mexia, levantava e baixava a
cabeça, suas patinhas deslocavam-se sobre o galho.
- Não é possível!, dizia de si para si Leonel. Eu
nunca errei tiro assim. É vergonhoso. E que dirá Jerônimo
quando me perguntar em que atirei?
Pôs mais dois cartuchos, daqueles carregados a
capricho, chegou um pouco mais perto, apontou e atirou
com os dois canos ao mesmo tempo.
Os chumbos quase cortaram o galho do pinheiro.
Mas a pomba? A pomba estava lá, a olhá-lo, mansamente,
sem repreensão e sem medo.
Leonel, arrepiado, entendeu ou quis entender:
- É um sinal. Um sinal de Deus... Que dia é hoje?...
Hoje é terça feira, oito de dezembro, dia da Imaculada
Conceição...
Voltou. Não encontrou Jerônimo. Os cães estavam
dormindo à sombra do galpão.
234
- Nunca mais caço neste dia, prometeu para si
mesmo.
235
O DISCURSO DE ANA
Sentado à sombra da figueira em frente à varanda da
casa de madeira, Leonel, camisa desabotoada, respira com
gosto o ar fresco da tardinha, depois de um dia de tanto
calor.
A aragem suave, quase imperceptível e que nem
move as folhas das roseiras, traz, de todos os lados, uma
serenidade que tranqüiliza e pacifica os pensamentos e os
desejos.
Olha para Ana que lhe serve um chimarrão
suculento como a saudade.
Este chimarrão tem a história de mais de cinqüenta
anos. A vida deles foi tecida, entretecida de chimarrões.
Cada dia, todos os dias, a vida começava com o
chimarrão. Bem antes de clarear a manhã, hora e meia antes
do sol, lá estavam os dois na cozinha ao redor do fogão a
lenha. Enquanto ele reacendia o fogo, que nunca chegava a
se apagar de todo, ela limpava a chapa de ferro, trazia a
chaleira preta para aquecer a água e punha ao alcance de
236
sua mão a erva, a cuia, a bomba para que ele armasse e
cevasse o mate.
Era a liturgia sagrada de todos os dias. Enquanto o
leite esquentava de vagar no canto do fogão e a chaleira
chiava, eles sorviam, gole a gole, aquela intercomunicação
amorosa. Era uma hora e tanto, sem muitas palavras. As
suficientes para organizar a jornada e para manter quente a
proximidade e o aconchego. Muitas vezes o diálogo deles
nem era feito de palavras. Uma pequena exclamação, um
“ah!...éh!” e o diálogo se mantinha, prosseguia, como se
fosse sustentado pelo mais eloqüente discurso. Às vezes
Leonel se surpreendia respondendo a uma pergunta que
Ana nem tinha feito e que ela continuava como se a tivesse
feito... Quando o amor amadurece dispensa palavras... basta
um gesto, uma insinuação, uma sílaba...
A cada gole longo, as mãos acariciando a calidez da
cuia, os olhos recolhendo os pensamentos e depositando-os
no rosto acolhedor da parceira, ele sabia que ali era o seu
lugar. Lugar para estar, para partir, para chegar, para ficar.
Era a referência geográfica para todos os lugares do mundo.
Para o que fica perto, para o que fica longe... Aqueles
densos diálogos feitos de longos espaços de silêncio eram-
237
lhe o fio condutor de todo o pensar, de todo o imaginar, de
todo o fazer.
Ele recordava como as discordâncias tão fortes e
incisivas na juventude, foram amainando, arredondando as
arestas com o rolar dos tempos dialogados que agora apenas
servem para anunciar a riqueza de outras faces do sentido
das coisas. Agora a proximidade amansou a petulante
necessidade da diferença. Basta um suspiro, um “deixa pra
lá...” e as coisas se acertam como se sempre tivessem
estado de acordo.
Não raras vezes Leonel se apanhou intrigado com a
questão: por que não conseguia brigar com ela? É
impossível brigar com ela.
Lembra-se do dia em que perdera um bom negócio.
Era a compra de uma bela gleba de terras povoada de
pinheiros e que lhe renderia anos de trabalho. Fizera uma
oferta e aguardava com ansiedade a resposta. Parecia
incrível que o amigo Fausto não dissesse nada. Naquela
quinta feira à noite, cansado do trabalho, na hora da janta,
comentou com Ana o assunto. Não queria perder o negócio.
Ana, de pé, perto do fogão empalideceu. Olhou-o
com um olhar de arrependimento infinito, quase deixou cair
238
a travessa da sopa, e, sabendo bem o que aquilo significava
para ele, suspirou em murmúrio:
- Não, Leonel!... Eu me esqueci... Fausto esteve aqui
de manhã. Disse que se tu quisesses o negócio era teu, mas
devias dar a resposta até as seis horas da tarde... E eu,...
eu... esqueci...!
Ele petrificou os gestos. Olhou-a com um misto de
espanto, surpresa e fúria traduzidas em quatro ou cinco
blasfêmias de “pórco dio, pórca madona, camadonassa...”
que abalavam os alicerces de Ana. Ele não podia acreditar...
Não podia ser... Perdeu o melhor negócio de sua vida... Por
um esquecimento?!
Ela ficou em silêncio. Nada retrucou. Entendia que
a repreensão e a gana cabiam... Seu olhar para ele era uma
súplica de perdão...
Quando ele parou de falar e imprecar...
singelamente disse:
- Me desculpa!
E ele quis olhá-la rispidamente... mas não
conseguiu... Ao encontrar-se com o olhar dela o fogo de
seus olhos se apagou. E, então, depois de engolir a saliva
239
em seco, quase arrependido pelo barulho que fizera,
encerrou:
- Éh!... Fazer o quê?... Haverá outros negócios...
Ana, envidou-lhe um olhar convidando-o para a paz
e, sem falar, ofereceu-lhe um prato de sopa fumegante. E
passou-lhe a mão no cabelo. E Leonel:
- Não adianta querer brigar contigo!
Era mais do que reconciliação.
Agora, sob a sombra generosa da figueira, ele a
fitava, sem falar... como se fora a primeira vez.
Aqueles largos olhos azuis, habitando o rosto
sulcado e amaciado por mil diálogos e encontros apontam
para maior amplidão ainda.
Cinqüenta anos casada com ele. Ela fora a sua
primeira e última namorada. Ele fora seu único amor.
Tinham onze filhos, vinte e cinco netos. A vida dela
sempre fora a sua casa, seu porto, sua estrela. Em todos
seus achaques de erisipela, de coração e de diabetes e que
ela suportava sem queixas, sem alarde, sem reclamações ele
aprendia, com os chás que ela repartia, com as intimações
para ir à missa e às orações, a sabedoria e a dignidade de
viver.
240
Agora ela estava ali. Inteira. Completa. Presente.
Que bênção, pensava ele, ter uma companheira
assim, que me compreende antes que eu me compreenda a
mim mesmo, que está sempre no lugar apropriado, em
quem ele pode depositar a confiança de ser e de estar. O
coração dela é o estuário da fala, da queixa, da necessidade
e da alegria de cada filho, de cada filha e dos vizinhos, dos
parentes, dos netos... É o lugar de cada um... Como pode?
Os cismares de Leonel andam longe, vão até as
raízes, até os picos do viver. E pensa como é uma bênção
que ela não seja tagarela. Que em sua simplicidade não
precise catar assuntos e distrações para matar o tempo e que
enche o espaço e o tempo de todas as ocupações. Que bom
é o silêncio dela... que boa a fala que nasce de um silêncio
longamente meditado e maturado... e nasce simples,
próxima como ela é.
Uma fala que reduplica para marcar e incidir sobre o
significado principal, como quando diz da água fresca que
bebe de olhos fechados:
- É boa... boa... boa!
Ou quando se encanta ante a beleza de um pôr de
sol ou da jovialidade de uma menina moça:
241
- É bela... bela... bela!
Ana, a fala dela congrega. O silêncio dela fala. E
convida a alma a falar.
Quem fala? Fala ela? Falamos nós? Ou fala o
silêncio.
O chimarrão, para Leonel, tem sabor da fala de
Ana.
242
O SANGUANEL15
Filó16 em casa de Alcides e Gema. Recém casados.
Há duas semanas convidavam e insistiam. Queriam reunir
os jovens. Os pais também.
Duas rodas: os homens na sala jogando quatrilho ou
“trisset”17, um garrafão de vinho e carne lessa com pão fofo
do qual Gema tanto podia se gabar; e ao redor da mesa
grande da cozinha, perto do fogo, os jovens tomando brodo.
As mulheres trançando dressas18 de palha de trigo para
15 Sanguanel era para os imigrantes italianos um ente fantasmagóricomisto de Saci Pererê, negrinho do pastoreio, a personificação do diabocom cara e chifres de bode, olhos de fogo, roupa vermelha... o perfeitorapazote malcriado perturbador das mocinhas... o diabo em pessoa.16 Filó, para os imigrantes italianos era uma reunião familiar noturna devizinhos e parentes para conversar, jogar cartas, namorar, fazernegócios. Iam todos os integrantes da família. Servia-se vinho e caldode galinha (brodo) com queijo ralado. O caldo era, geralmente do galomais velho e mais gordo do terreiro. A carne do galo cozido na água(carne lessa), servida aos nacos na mão, era muito apreciada. O pão eas cucas que acompanhavam eram o demonstrativo da habilidadeculinária da dona da casa. 17 Os filhos de imigrantes italianos de Encantado jogavam, além dasbochas e da mora, entretenimentos com baralho espanhol comobríscola (a bisca), o quatrilho e o treis sete (trisset), com muitos gestos,senhas e truques, muito comentário após cada raio e, geralmente porbagatelas de bebida ou de petiscos. 18 Dressas eram fitas largas um pouco mais de um centímetro e queeram costuradas para fazer chapéus e bolsas...
243
fazer chapéus e cestas e de olho nos jovens. Esses
percorriam os assuntos banais do vale contanto piadas tão
picantes quanto o limite do admissível para o ouvido atendo
das mães que, de vez em quando freavam com um
“pára...pára... sporcachón”.
Joana e Sabina, dezesseis anos, aproveitavam para
levantar o vestido um pouco acima do joelho e abrir pelo
menos um botão ou dois da blusa: estava muito calor!... Era
inverno... José e Pedrinho não sabiam se colocavam as
mãos no bolso ou se desviavam o olhar. Elas sabiam disso.
Percebiam sua atrapalhação e riam por nada... de pura
picardia. Alcides, agora já experiente na vida, acicata
Pedrinho:
- Ah! Se os olhos pudessem ver na escuridão! Ainda
bem que a luz do lampião é fraca!
E a sonora risada de todos é a demonstração
bastante de que todos sabem de tudo...
Assunto vai... assunto vem... e a conversa, como de
hábito, insistentemente retornava para o fantástico, o
miraculoso, o demoníaco que ronda a vida dos homens.
Enquanto isso as labaredas do fogo atraíam os olhares
244
displicentes de todos e projetavam nas paredes figuras que
incitavam o imaginário.
Diante da incredulidade quase atéia de Gino que foi
seminarista e que mostrava a satisfação superior de ter
estudado um pouco mais de religião vinha a argumentação
cerrada de Fidêncio:
- Você não acredita no diabo? Que ele aparece de
vez em quando? Pergunte à tua tia Angelina. Ela nunca te
contou? Ela viu o sanguanel!
- Quê sanguanel, quê nada! Duvido, retrucou Gino, -
seguro de sua teoria teológica -.
- Eu não duvido, disse Alcides, - olhando de lado lá
do canto da mesa. Ela cansou de nos contar. Ela viu o
diabo.
Ortenila, de olho estalado e achegando-se à irmã
Hortência como para buscar apoio e segurança:
- Eu tenho medo até de contar o que aconteceu com
nossa irmã Angelina. Conta tu Fidêncio para ver se esse
sabido não acreditará!
Fidêncio, com a palavra tão oficialmente oferecida,
encostou-se bem no espaldar do banco atrás da mesa e
contou:
245
- Bem,... todo mundo sabe. Ela era pequena. Tinha
seis anos. Seu João, com todos os filhos estavam fazendo
açúcar lá em cima, no canavial que fica nos fundos da roça.
Lá onde está o engenho, acima dos potreiros.
Enquanto uns cortavam a cana e a carregavam aos
feixes para espremer no tórcio19, outros cuidavam da
moenda, as mulheres cuidavam do fogo nos tachos e de
mexer continuamente a garapa fervente para não pegar no
fundo.
- Aquela festa de fazer melado e açúcar que todo
mundo conhece, prosseguia Fidêncio. E a gurizada que se
babava de tanto beber garapa. Dona Mariota e Amália
prepararam o almoço em casa e, perto do meio dia,
subiram. Folga para o almoço e os trabalhos retomados até
o escurecer. Quando as sombras do morro já tinha escorrido
montanha abaixo e já subiam pela metade das roças dos
Fontana, lá no outro lado do arroio, todos juntavam as
coisas para descer. As onze latas de açúcar e cinco de
melado na carroça, os tachos e as ferramentas recolhidas,
enquanto os bois comiam folhas de cana.
19 Moenda de espremer a cana para extrair a garapa, geralmente comtrês cilindros e movida por uma junta de bois.
246
- Tudo pronto? Vamos embora, dizia satisfeito seu
João.
Mariota, porém, se inquietava:
- E a Angelina? Onde está Angelina?
Angelinaaaaaa!, chamava...
Todos silenciaram para ouvir uma resposta... E
nada...
- Angelinaaaa! Gritava a mãe Mariota já
sobressaltada...
- Mas ela estava aqui até bem pouco, disse Leonel.
E todos se puseram a procurar... Procuraram atrás
dos montes de folhas de cana, atrás do engenho, sempre
chamando, chamando e nada de Angelina.
Seu João organizou a procura:
- Para casa, sozinha, não pode ter ido. Ela deve estar
no meio do canavial. Vamos varrê-lo, carreira por carreira,
cada um numa linha, até o final e retornamos nos regos
acima. Antes de escurecer a acharemos.
E assim fizeram, palmilharam carreira por carreira
de cana e nada de Angelina
Inconsolados iniciaram o quilômetro e meio de
descida. Todos atentos a qualquer sinal. Os rapazes
247
rondaram pelo potreiro... Só as vacas pastando
pachorrentas.
Encostaram a carroça no paiol. Nem descarregaram.
A casa estava como a deixou Mariota. Tudo fechado. Tudo
escuro e em silêncio...
- Angelina, gritou a mãe quase desesperada... Só os
cachorros latiram.
Mariota convidou as filhas para rezarem o “Si
queris” a Santo Antônio que ajuda infalivelmente a
encontrar as coisas perdidas...E nada... nada...
- Repartiram-se e foram para os vizinhos. Eu lembro
que foram lá em casa. Eu devia ter cinco anos, continuava
Fidêncio... Ninguém a viu.
A noite caiu pavorosa sobre a família deles.
Ninguém conseguiu jantar. As meninas choramingando. Os
irmãos com um nó na garganta que não permitia engolir
nem falar. Seu João propôs que rezassem o terço e
entregassem o caso nas mãos de Deus.
Ouviram cada cantar do galo, marcando as horas da
noite e da madrugada.
248
Amanheceu. Um pouco de serração esfumaçava o
vale. Todos se levantaram antes do costume. No silêncio da
cozinha todos pareciam esperar o inesperado.
E eis que a porta da frente se abre. Todos se
voltaram em sobressalto...
Era Angelina que entrava, olhos inchados e
vermelhos, parecendo tremer de frio...
Todos se atiraram para ela. O alarido foi geral: o
que houve? Onde estavas? O que aconteceu? Mariota
abraçou-a,... abraçou-a e chorou... Até seu João enxugava
as lágrimas na manga da camisa.
E Angelina então falou quase gemendo:
- Foi o sanguanel! Foi o sanguanel! Enquanto vocês
estavam se preparando para voltar para casa, ele me pegou
pela mão, me levou para as canas e me fez subir naquela
bergamoteira que está bem no meio. Quando vocês
chamavam, eu ouvia, mas não podia responder. Ele tapava
a minha boca com as mãos, umas mãos pretas e fedidas.
Vocês passaram em baixo da bergamoteira e eu não podia
responder. Quando vocês vieram embora ele me deixou
descer, mas me obrigou a dormir ali no chão. Ele sempre
perto de mim. Tinha olhos de fogo, dois chifres de cabrito,
249
uma roupa vermelha, esquisita. Quando o sol nasceu ele
desapareceu e eu fugi para casa.
- Esta é a história, concluiu Fidêncio emocionado. A
história verdadeira de Angelina. E daí? Não existe o
sanguanel?
Gino, passou os olhos pelos olhos assustados de
cada um mas não se deu por vencido:
- Quando foi que Angelina contou isto a vocês?
E todos, em coro, a começar pelos mais velhos:
- Ah! Faz muito tempo. Não é de agora, não.
Então Gino provocou, como cartada final:
- E por que não chamamos a Angelina. Ela mora a
menos de 500 metros daqui!
- Vamos chamá-la, concordou Alcides e todos com
ele... Quem sabe, o Agenor vai até ali!
- Vamos eu e Fidêncio, - disse ele, que não queria
enfrentar a escuridão lá fora, sozinho -. Nunca se sabe! A
gente pode tropeçar nas pedras...
Dez minutos depois lá estava Angelina:
- Vocês me chamaram para quê? Perguntou ela.
Agenor e Fidêncio não me disseram para quê seria.
250
- É um tira-teima que nós propusemos ao Gino. Ele
duvida que tu tenhas visto o sanguanel. Nós contamos a
história para ele e ele se faz de sabido. Não acredita. Diz
pra ele como foi... É ou não é verdade?
Gino antecipou-se:
- Tia! Agora, depois de tantos anos, ninguém mais
está aqui para censurar o que tu viste. Mas conta a história
direito para nós.
Angelina, puxou para si uma escudela de brodo,
pegou um naco de carne lessa de galo numa mão, uma boa
fatia de pão fofo na outra e contou:
- Vocês nem sabem. Eu nunca contei isto a
ninguém. Mas hoje eu vou contar a verdade...
Naquela tarde eu cortava gomos de cana para
chupar com uma faca de mesa de mamãe. Eu perdi a faca.
Sabia que dona Mariota não só ralharia comigo mas que ela
e meu pai iriam me bater. Eu tive medo, muito medo.
Quanto mais eu procurava menos enxergava. Quando
começaram a me chamar assaltou-me o pavor, o pânico.
Corri para o meio do canavial, subi na bergamoteira e,
escondida, fiquei quieta. Depois que todos voltaram para
casa, fiquei com mais medo ainda. E, no medo adormeci em
251
baixo da árvore. Com fome, com frio e com medo voltei
logo que amanheceu e contei a historinha do sanguanel.
- Filha da p.... gritou Alcides. Então tu nos
enganaste até hoje?
Gino não sabia se ria, se falava... Degustou
saborosamente aquela vitória.
Mas, quando saiu da porta, ao final do filó, ele não
sabia o que pensar do sanguanel.
FECUNDIDADE
252
Doze de abril. Aniversário de Gino. Festa. Barulho.
Corre-corre de netos. Ana, feliz, na ampla varanda com
churrasqueira que dá para o páteo e a horta com canteiros
de flores, pimentas, radici e tomates, diz a Leonel:
- Que beleza! Todos os filhos, noras, genros e netos.
Deus foi bom para nós. É uma bênção.
Os olhos dela, pela janela aberta sobre a sala,
percorrem a fotografia dos dez filhos na parede, cada qual
com sua ou seu consorte. Cada qual com seu sorriso e sua
pose. Os netos ainda não estão nestas fotografias: são vinte
e quatro.
- Ainda recordo a festa das bodas de ouro de meu
pai, diz Leonel. Oitenta e nove netos presentes. Os oito
irmãos de minha mãe Mariota. Nasceram nove, os nove
estavam ali. O mais velho, Marcos, com noventa e oito
anos. Mamãe era a penúltima e estava com setenta e dois. E
cantaram já um pouco desafinados, mas cantaram e
tomaram vinho da manhã à noite. Será que nós chegaremos
lá?
253
- Eh bem, só Deus saberá, devolveu-lhe Ana. E eu
fico pensando como as famílias antigas eram grandes... E
ninguém passava fome... Tu és o mais velho de doze
irmãos, eu sou a terceira de doze irmãos, meu pai era o
segundo de quinze e o tio dele Ângelo teve vinte e um
filhos... Quê exagero!, comentava sacudindo a cabeça...
Enquanto os filhos e genros escolhiam cantigas que
todos lembravam da infância e afinavam a harmonia
achegando o ouvido à boca do outro como que para captar
na fonte o som correspondente para a polifonia, a alma de
Ana voltava para os primeiros tempos de casada. Quanta
dificuldade! Quê trabalheira!
Os dois primeiros foram anos de labor insano e
quase inútil em terras do sogro que, ao final ficara com a
maior parte da colheita. Em casa, o mínimo do mínimo
necessário para a cama, mesa e fogão. Os vestidos de
solteira que precisaram ser alargados com a gravidez do
primeiro filho.
Depois amamentar e trabalhar ao mesmo tempo. A
enxada e o peito. O peito e a enxada. De sol a sol. Ainda
bem que a sobrinha ajudava a cuidar da criança depositada
sobre um pelego dentro do balaio, à sombra de uma
254
laranjeira, lá na roça. Quando o menino chorava ou de fome
ou pelos beliscões da menina que forçava o choro dele para
que a mãe viesse e a liberasse uns minutos para brincar, lá
ia Ana a oferecer ao filho o que, graças a Deus, tinha em
abundância: leite morno e temperado ao gosto dele. E ele
crescia forte, rechonchudo...
Nos olhos de Ana estas recordações bailavam ainda
numa atmosfera de felicidade.
Mal o primeiro iniciou a comer papinhas e ela já
estava grávida de novo... Fazer o quê! Era a vontade de
Deus...
Mas, bem que era também por vontade louca,
incontrolável de Leonel que parecia insaciável... Uma ou
duas vezes todos os dias... E uma noite chuvosa de sábado
foram três vezes... que falta de pudor... Ele chegava e vinha
porque vinha... para o que era dele, de direito e de poder...
E ela que no início achava aquilo violento e sujo, apenas
obrigação conjugal, começou aos poucos a gostar também,
embora depois se confessasse que tivera muitos maus
pensamentos e desejos. Só naquele sábado ela chegou ao
descontrole da alegria. Depois soube que aquela quase
255
morte, aquela loucura toda de gemidos e com cheiro de
chifre queimado se chamava orgasmo.
Ela lembrava que Geni, o segundo filho, nunca
tivera boa saúde. Embora tivesse nascido graúdo, foi
definhando, definhando... aos poucos. Desinteria, febres,
tosses... choro, chorinho de dor ela bem sabia, mas não
conseguia identificar. Ela massageava a barriguinha da
criança, aquentava-a com panos mornos, apelava para todos
os remédios caseiros que cada tia, cada comadre solícita e a
sogra indicavam. Não havia jeito. Remédio para vermes,
erva doce, chá de casca de romã, nada parecia ajudar. Foi
um ano inteiro de carinhos, de benzeduras de procura de
médicos, difíceis de achar e mais difíceis ainda de pagar,
médicos que pareciam pouco ou nada entenderem de
doenças de criança... E o leite? O leite generoso teve que
ser posto fora porque sobrava... sobrava.
Naquela tarde chuvosa de doze de abril Geni parecia
cansado de tanto chorar... E foi chorando menos, mais
baixinho, mais baixinho. Quando a cunhada pediu-lhe o
menino cujo gemido se apagava e o levou para fora do
quarto... Ana escutou, escutou e não ouviu mais... Teve
certeza... rezou... ele acabava de morrer. Entregou-o à
256
Virgem para que cuidasse dele na Casa do Pai. Chorou
baixinho, ouvindo os lamentos que vinham da sala.
A dor dela foi tanta que, grávida de sete meses, deu
prematuramente à luz o terceiro filho.
Enquanto Geni era velado na sala, sobre a mesa
recoberta de flores pelas cunhadas, duas moedinhas de prata
sobre os olhos e todos rezando terços e mais terços... ela,
no quarto ao lado, paria outro filho tão pequeno que cabia
na palma da mão. Não conseguira ir ao enterro de Geni.
Soube que Leonel lhe fizera um pequeno túmulo sobre o
túmba dos bisavós Narciso e Domênica em Jacarezinho e,
ao lado dele já preparou outro para o filho que nascera
naquele dia: certamente não conseguiria sobreviver.
Ana, com tristeza infinita e o filhinho na mão,
redobrou os cuidados. Fez para ele uma caminha de
algodão numa caixa de sapatos. Dava-lhe leite em conta-
gotas... Dedicou-se completamente. Por quase dois meses
Leonel foi à roça sozinho.
Ela mantinha seu filho sempre perto do calor do
fogão. E rezava, rezava muito para que Deus cuidasse do
filho que já fora pra casa e deste pequenino que lutava para
viver. Depois de um mês aquele “ratinho”, um belo dia
257
surpreendeu. Tomou jeito, espichou, desabrochou. E
começou a chorar por comida. Ana chorava de alegria.
E o leite? Ela já não tinha leite. Secara. Então
Leonel trouxe uma cabrita lá do Capitão que salvou e
robusteceu a vida do filho... “Bem aventuradas as cabritas...
porque delas é o reino dos céus!”, quis dizer Ana. Óbvio
que era loucura... onde se viu um bicho ir pro céu?!...
Agora, na festa de aniversário daquele filho que a
cabrita salvara, Ana quis comentar com Leonel: pena que
falte um filho, o Geni. Mas se conteve, porque sentia que
ele estava presente, uma presença cálida e carinhosa
bailando na voz dos filhos que cantavam “Boi barroso... La
verginella... O irapuru, ... Il mazzolin di fiori...”
Foi acordada de seus cismares por Carlos que
anunciava:
- O churrasco está pronto... vamos chegando!
O perfume campeiro da carne assada, o acre das
saladas verdes temperadas com toucinho frito e vinhagre de
vinho, o cheiro adocicado do sagu com laranja
convidavam...
258
Na oração à mesa, em imensa roda de mãos dadas,
coração aberto agradecendo a felicidade da vida, Ana,
lembrava... um lugar para cada filho.
259
ANA - Comeu tudo!
Sábado à noitinha. Semana em borborinho. Faleceu
Leonel, avô de Vinícius. Missa de sétimo dia. Lembrança
dos melhores momentos. Renovação da esperança na
Comunhão dos santos. Missa na Igreja Santo Antônio do
Laranjal. Também Aninha vai feliz à missa. Tem dois anos
e muita observação.
Olho aceso em todas as coisas, em todos os
movimentos. Tantas pessoas, tantas luzes e Padre Jaime, no
altar dizendo que o bisavô Leonel passara para a casa do
Pai e que não é difícil ser órfão quando o pai está em Deus
e, por isso, tão próximo de cada passo, de cada gesto que
fazemos. Cada canção é acompanhada por Aninha com o
balançar do corpo.
Vem o momento da Comunhão. No colo do pai,
Aninha está na fila e nota que todos apanham a pequena
hóstia e a comem em silêncio. Chega a vez de Vinícius.
Este toma a hóstia, - aquela pequena bolacha branca e
diferente -, e, com ela na boca, encaminha-se para o
assento. Aninha olha para o pai, faz um beicinho de
260
estranheza, quase a chorar e diz: “comeu tudo!!!”. Quase a
dizer: vocês me ensinaram sempre a repartir as coisas, a
convidar o outro com aquilo que se come, e agora, pai, você
comeu tudo, sozinho. Nem me convidou.
Vinícius explicou logo que, quando fosse grande,
ela também receberia aquele pão sagrado. Aninha entendeu,
ergueu os dois braços:
- quando eu ser grande, ganharei também...
Nos olhos negros, saltitantes de curiosidade e vida,
nos gestos francos de quem quer saber, Aninha me ensinou:
a Eucaristia, afinal, é a festa da partilha do pão. Santa
impressão e rebeldia: “comeu tudo”...
261
QUERO VER
Ana completou recentemente dois anos. Viva,
alegre, curiosa, uma bênção ambulante a povoar o mundo e
nossos sonhos de esperança.
Afável, carinhosa, obediente ante aquilo que não se
pode fazer, mas livre e criativa ante tudo o mais. Tudo é
possível a não ser o que é perigoso, frágil e danoso.
E ela sabe que é livre e que o mundo dos homens,
dos bichos, das plantas, das flores, do sol, da lua e das
estrelas, o mundo da água e do vento, tudo é lugar para
viver, para brincar e encantar-se.
O mágico mundo do bem-querer, o mágico mundo
do sorriso, dos parabéns-a-você, da confiança nos pais, nos
avós, nos priminhos, nos dindos, nos amigos e, por que
não?, em todas as pessoas...
Aninha sabe mexer com o coração do pai. Quando
ele volta cansado, depois de tanta cirurgia, de tanta
burocracia, cansado no corpo e na alma e com vontade
apenas de um banho e dormir... lá vem Aninha erguendo os
bracinhos:
262
Pai amado, vamos passear um pouco.
E lá se vai o pai, descansado, refeito, sorriso largo
na testa, pronto para passear... E o cansaço? O cansaço fica
para outra ocasião. Agora é a vida, o convite a viver.
Diante de cada novidade ela sempre pergunta: o que
é? Por que? E acrescenta: quero ver...
No restaurante, pede à mãe Rosana para ir ao
banheiro. E lá vão as duas: a mãe orgulhosa e feliz. Pensa:
quê bênção, uma filhinha assim!
- “Dá a mãozinha para a mãe lavar... deixa lavar o
rostinho...”
Do outro lado da parede, o ruído da descarga de um
vaso sanitário...
- “Que é isso, mãe?”
É o barulho da descarga de outro banheiro
Onde?
No banheiro dos homens.
Quero ver!
Mas minha filha, você quer ver tudo, parece até São
Tomé!
Aninha suspendeu a voz e olhar:
Mãe, quero ver São Tomé...
263
ANA CATARINA
Ana tem três anos. Nasceu esperada, cuidada,
querida. Uma bênção, uma graça da força do amor.
Surpresa diária de ser. Que canta, que pula, saltita e
que dança e convida o avô a apanhar pitangas, as grandes,
mais altas, pretas de sabor. E reparte, uma para cada prima
que contam com ela e ela conta com elas para povoar o
domingo de imaginações e brinquedos com bonecas,
casinhas e um bom banho de piscina: com bóias, sem bóias,
espaguete ou no colo do pai ou do avô.
Quem poderá conter, calcular, controlar a ânsia
serena de vida que explode em seu ser, seu andar, agradecer
ou reconhecer que o copo virou: “agora sim fiz uma
cagada”?! E o pai, boca cheia, quase explode de rir. E corre
ao banheiro para se compor e voltar com autoridade: não se
diz assim minha filha.
Aninha que cansa dez anjos da guarda por dia. Que
sobe as escadas: “de vagar, minha filha”, apressa-se a mãe.
Que gosta de bichos, de ver passarinhos verdes aos bandos
264
da varanda na chácara e escuta atenta os inhambus, quero-
queros e as pombas “puh...puh...”
Aninha que gosta de saia rodada que a avó vai fazer:
“vestido de rodá...” E bem colorido, festa da vida e da
esperança.
Aninha que sabe tranqüila que o pai só vem logo.
Ele está trabalhando. Que a espera é confiante porque o pai
é fiel como a mãe.
Aninha que já vai à escola, “ao colégio” e que
brinca com tudo o que vê e com todos os que estão. Aninha
que gosta de negros e brancos e a todos convida a bailar,
conviver.
Aninha que pensa e como pensa Aninha! Como
cabem tantos pensamentos em cabeça tão pequena, em
olhinhos tão negros e tão vivos?! Raciocínio tão rápido,
imaginação fecunda e solta onde cabem princesas,
príncipes, bruxas, bandidos e amigos, e amigas e a paz de
ficar, de visitar a prima Camila, de estar com avós ou tios,
e tia Márcia e tia Lica...
Aninha que tem uma casa: dois pisos, janelas, portas
e patamar que o pai fez, com suas mãos, seu capricho e
carinho. E a mãe fez cortinas. Debruçada na janela Aninha
265
chama, saúda, provoca, convida... É sua casinha onde a
boneca é ela mesma e todos os que ali vão. Onde o faz de
conta já é acontecer. Aninha tem uma casa. Tem um espaço
emoldurando uma identidade.
Aninha tem uma sombrinha. Botão automático que
abre instantâneo. Mas é preciso haja uns pingos de chuva
para passear pelo páteo e ela andar caminhando, balançando
em trejeitos de mocinha princesa.
Na sala da vó os potinhos chineses dourados, em
série, inquebráveis à curiosidade de todos os filhos e netos,
já podem ficar descansando no cestinho dos ovos e
bichinhos de metal. Agora os bichinhos, as zebras, gazelas,
o sapinho pescador com sua mulher de cesta verde, e os
gatos simpáticos de olhar melancólico sobre as estantes, se
animam e falam e andam no universo empático da
imaginação. Quanto vôo, quanto sonho, quem pode
conter?!
Aninha que é forte, que é esbelta (que “é magra, é
fraca, não come” diz a mãe) que come saladas, radici,
agrião e tomates, e frutas e carnes e salsichões e
coraçõezinhos no churrasco do vô. E lulas, e polvos,
mexilhões que a avó Ruth preparou e de que as primas tem
266
nojo... Aninha exibe o mexilhão na ponta da língua só para
provocar e dizer que é gostoso.
Aninha que é dócil, obediente, sempre no limite, na
fronteira de tudo o que pode fazer. O halo protetor dos
olhos e das mãos da mãe, do pai e de todos que se aprestem
a avisar se há perigo no outro lado das coisas. Pois tudo o
que não é explicitamente proibido é permitido, liberado,
aberto aos pés, às mãos, aos olhos, ao coração. A vida é a
liberdade de amar e ser amado.
Aninha tem mãe. No olho sempre enternecido dela
revelando escancaradamente a todos um “que bonitinha!”,
ela lê o acolhimento profundo, a companhia permanente, o
amor incondicionado, a liberdade e o limite, a referência
segura para acordar e dormir.
Aninha tem três anos. Nela a vida saltita, canta,
dança e convida a rezar, de braços abertos, mãos dadas,
coração grato, na graça de ser.
267
DANIEL
Flanela na mão, Daniel contempla suas duas flautas
sobre o veludo preto da mesa, seus dois saxofones em suas
respectivas caixas abertas de veludo vermelho como se
fossem duas jóias incrustadas no anel da vida. A flauta
transversal Selmer é sua preferida, raríssima, antiga,
protegida de Santo Antônio contra roubos e distâncias. Ele
lembra que fora furtada e a reencontrou, em Camboriú, há
mais de oitocentos quilômetros de distância. “Não resta
dúvida que Santo Antônio é companheiro excelente quando
se está perdido do amor ou das coisas deste mundo, como
diziam o pai, a avó e o avô Leonel”.
A doçura clássica, tradicional, macia de seu som
enche-o de orgulho. É impossível não reconhecê-la em
meio a tantas outras flautas.
Olha, entre pilhas de livros de Direito, para o sax
Yamaha, sax alto que lhe permite virtuoses e cabriolices em
qualquer estilo de música: provoca, chama, responde,
acende paixões e volúpias na juventude e requenta saudades
em cabelos brancos.
268
Efetivamente, vive como anunciou:
- O Direito é para sobreviver, a música é para viver.
Sobreviver com a música é quase impossível.
Música é arte, arte é beleza, e beleza é gratuidade, epifania
da transcendência. Pura necessidade de ser.
Faz bem a todos. Nela todos se reencontram com
sua possibilidade de ser. Nela está a infância, a
adolescência, a juventude, a maturidade e a velhice de cada
um.
Gratuidade que não tem preço, como o pão e o ar.
Por isso vale. Vale como a justiça, como a pátria, como a
casa, como o caminho.
E quem faz música, quem faz poesia, literatura,
quem faz o essencial precisa de pão, de casa, camisa, saúde.
E de que viverá o artista? De que viverão os
músicos? Na azáfama febril de dominar o mundo, de
construir armas, de amontoar dinheiro, os homens não tem
tempo para o essencial que “é invisível aos olhos” como
dizia Exupéry. Os governos dão-lhes pouca importância
porque o mercado que a Europa nos trouxe e que se fez
mundo zomba, ri, e proíbe estas insignificâncias ineficazes
de sonhar. O sonho, a música, a arte valem então como
269
distração, entretenimento, descanso para trabalhar mais,
produzir mais, ser mais eficaz.
A sociedade quer música, diz Daniel, sem o ônus,
porém de sustentar seus artífices. Mas os músicos, apesar
de tudo, por teimosia inquebrantável, juntam meios de
sobreviver e, paralelamente, fazem sua arte. A liberdade
dos dedos, das mãos, dos pés, do coração nas asas da
música encontra seu chão, seu lugar.
A arte dá à vida uma dimensão maior do que comer,
beber, afogado na rotina da mesmidade e do sem-sentido.
Melhor: ela ensina o que é comer, o que é beber, o que é o
simples, o cotidiano, o necessário. Ela clama pelo maior,
pelo mais alto, pela liberdade, pelo diálogo radical, pela
justiça e igualdade, pela possibilidade de expressar-se até o
fim, pelo refinamento do ouvido para ouvir a voz, os sons
que o outro, que o mundo, que a vida, que o silêncio têm,
vai pensando Daniel enquanto acaricia sua flauta e exige
dela o que ela pode dar.
A música é a realização da saudade e da esperança
da comunicação. É a possibilidade de cada coisa em seu
som. É a possibilidade do companheirismo, não só no ajuste
da polifonia,- ouvido acoplado a ouvido -, olhos fechados
270
buscando o encontro; mas do companheirismo que se faz
grupo, banda, festa, tertúlia, califórnia... junções. Ela junta
um povo em uma nação, em um hino, em uma esperança.
A música junta as alturas, as aventuras, os
penhascos, os precipícios, os rapéis em acampamentos
rústicos, rudes, naturais. A arte exige esforço, suor, sangue
porque “amar y cantar, esto duele”.
A música permite o amor, o enamoramento: Rachel,
casamento, - enquadramento, instituição precária - limitada
como as pautas da música. Estas apenas indicam a
possibilidade da melodia, da harmonia, mas não têm alma.
No entanto, a música se perde, se esvai na efemeridade se
faltam as pautas. É preciso criar a alma do mundo e da vida
a convite de Deus cuja palavra faz novas todas as coisas na
face da terra e nos permite falar, falar numa língua...falar.
Diante da Lagoa e do luar que se esparrama em
mananciais perdulários de prata, nos arrebóis que arrebatam
efêmeros, Daniel pensa na simplicidade das coisas, num
mundo justo, humano, sem frescura que permita rir uma
risada inteira, com crianças, sobrinhos, primos e primas,
com amigos e colegas, na convivência que fica, que se
constrói e permanece. E lembrando Heidegger, sabe que
271
tudo o que permanece é como o carvalho à beira do
caminho do campo: crava as raízes na profundidade escura
da terra que nutre e assegura e lança-se ao mais alto céu que
ilumina e convoca.
Sozinhos nascemos nos braços de nossos pais,
sozinhos crescemos em meio a tantos amigos e colegas,
sozinhos decidimos a vida na companhia de esposa, pais,
irmãos, amigos e filhos e tantos irmãos. Sozinhos,
definitivamente ligados na simplicidade do querer bem,
escutando a Transcendência que se faz música e Presença.
272
LICA
- Um caminhador a pé!, gritou Lica para a nova mãe
Ruth que, na cozinha, alcançava um caldo quente para o pai
Otacílio, achacado numa cadeira de balanço.
Ela fora atender a porta e, pelo vidro deparou-se
com um senhor que ela nunca tinha visto, um estranho e
que, para cúmulo do espanto ainda lhe sorrira.
Um desconhecido que batesse na porta de sua
casinha de campanha era sempre perigoso, dizia-lhe a mãe
Olga. E alguém que chegasse sem estar a cavalo, pior
ainda: era um caminhador a pé: mendigo, louco, foragido,
um espantalho que evocava lobisomem, alma penada, um
perigo. Por isso, não só não abriu a porta, nem perguntou
quem era e o que queria, mas disparou para dentro da
cozinha para abrigar-se e pedir socorro.
Ruth foi até a porta e gargalhou vendo o professor
que lhe trazia um livro. Comentou a comparação que Lica
fizera, para iniciar a conversa..
273
Era a primeira vez que Lica saía das Tocas, distrito
de Palmas, à beira do rio Camaquã e viera a Bagé como
filha adotiva de Ruth. Nas Palmas ficaram quatro irmãos
repartidos entre outras famílias. No dia em que Olga
distribuíra seus filhos em adoção, por impossibilidade de
mantê-los consigo, Ruth, em férias na fazenda ao lado,
propriedade dos pais da amiga Ieda, ofereceu-se para ficar
com uma. Olhou para o rosto aflito de Lica e perguntou:
- Queres vir comigo?
Sem falar Lica dependurou-se ao pescoço da mãe
adotiva.
No ônibus velho, azul descascado, sem janelas, sem
freios e empoeirado vieram as duas para Bagé. Ruth feliz
com uma filha e Lica feliz e temerosa agarrada ao braço da
nova mãe.
Quando o ônibus estancou frente ao hospital
militar, graças ao cobrador que desceu correndo com um
tronco de eucalipto nos braços e calçou a roda da frente
provocando um solavanco de derrubar até os que estavam
sentados - era o freio a porrete -, Lica viu a nova casa que
também era armazém onde recomeçaria a viver.
274
Na manhã seguinte, sol quente e claro de verão,
foram as duas até o centro da cidade. Lica, no braço da
mãe, olhando para tudo com admiração infinita, apontava
para os edifícios com espanto perguntando como as pessoas
poderiam subir até lá... Um tropeção a cada dez metros
porque não conseguia olhar para o chão com tanta coisa
para ver. Tudo era tão estranho. Suas referências de menina
de 9 anos quebravam-se em cada esquina, em cada loja, em
cada automóvel, na multidão que ia e vinha. Como
mensurar cada coisa com o metro de sua vida infantil?
Uma freira vinha ao seu encontro pela mesma
calçada. Lica, literalmente boquiaberta, ante a beleza
daquela mulher vestida de andorinha, acompanhou com o
olhar esbugalhado a sua passagem e continuou caminhando,
cabeça para trás, tropeçando em um senhor de bombachas e
quase provocando um tombo espetacular de mãe e filha.
Riam e retomavam o passeio.
Depois a cidade de Piratini para onde Ruth fora
nomeada como professora de História e Geografia. Inah,
agora viúva, fora também para Piratini residir com a filha
Ruth. Tia Chininha também foi.
275
A Escola Ponche Verde. Lica, nove anos, nunca fora
à escola. Dificuldades para acompanhar os colegas da
mesma idade. O apoio da mãe e da avó Inah abria caminho.
Lica era a felicidade. A primeira a se oferecer para marchar
no desfile de Sete de Setembro.
Jandir, diretor da escola casou com Ruth, se fez seu
pai.
Surgiram amigas e relações que agora, aos
cinqüenta anos, no Laranjal, sentada frente a seu chalé com
um chimarrão e um cigarrinho recorda com saudade.
De Piratini a Pelotas. O colégio São José. Os quinze
anos na ampla casa da Telles. A companhia dos quatro
irmãos. O falecimento de Marcus. A comida gostosa da
Cema. Depois, os grupos de jovens, a Faculdade, o Serviço
Social, os problemas, as teorias, os estágios e as
dificuldades reais do povo sem casa, sem saúde, sem
emprego com quem ela lida todos os dias em seu semi-
emprego na prefeitura.
Quando ela pensa sobre a verdade de cada coisa,
quando seu coração recolhe o emaranhado de tantas
memórias, e aquece a vontade de construir um mundo
melhor ela se apreende, muitas vezes, sem saber se vale
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mais o que é real ou o que se imagina e o que se quer.
Porque o real não existe sem o imaginário, sem a memória
e sem a esperança.
Agora, sua ocupação principal é a filha Camila. Já
adolescente, doze anos, preguiça e sono infindável, sonhos
e devaneios perdendo-se nas novelinhas mexicanas da TV e
já botando corpo de mulher. Como dar-lhe uma boa
educação? O colégio São José é bom, mas não basta. E a
responsabilidade por seus estudos, por suas coisas, pelas
amizades, pelos mais pobres, pelo amor a Deus e aos
homens?
Ah! Se Camila conseguisse uma base sólida para ser
feliz! Competência profissional e em conhecimentos,
companheira de primos, tios, avós...familiares e amigos,
solidária com quem necessita de seu braço, de sua palavra,
de sua ação!
Como fazer para ajudar a filha a crescer e não
substituí-la em suas obrigações? Como ensinar-lhe a escutar
os segredos de Deus, de si própria e dos outros, e a falar
uma palavra apropriada e esperançosa?
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Lica, lutando por um pouco de justiça e de verdade
sabe que tem um lugar sempre seu, junto a seus três irmãos,
cada um em seus sonhos e em sua casa.
O que fazer com as saudades, com os sonhos e as
esperanças?
A vida convida a viver.
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VINÍCIUS
Vontade de água. Do remo, mergulho, valeta,
arroio, lagoa. E o mar: mar de Santa Teresa, Cassino,
Garopaba, Estaleirinho, Cabo Frio, Porto de Galinhas...
Água pouca, Laranjal, minúscula piscina para todos
os amigos que quiserem vir. Água que salta, aos saltos
mortais. A bóia para três e que sustenta quinze, que sobem,
que caem, que riem de rir da risada risonha, sapeca de
guris.
Água que é festa, que é peixe, traíra, peixe rei,
cascuda, arrastão, tartaruga que se foi ao oceano de
Garopaba com um bilhete no pé.
Daniel e Vinícius do barco Davi que singra
banhados, riachos, lagoas até o lugar do peixe grande e
bom.
Vinícius, Rosana, Daniel, Raquel e Luciana em
praias quentes, surpreendentes de Natal, Maceió, Arraial do
Cabo. Mergulho bem fundo, olhos abertos, peixinhos
milhares, cores, beleza, mansidão.
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Água, água do poço que jorra e refresca. Água da
chuva que bate no peito nu, sem camisa, dádiva do céu.
Água da cascata, Cascatinha, Arco Íris e do arroio na
chácara. Aninha, até o peito, farelos de pão, lambaris aos
milhares que acorrem ao estalar dos dedinhos e se
escondem depois...
Água da vida, banheira inicial ao balanço do
coração da mãe... Água de beber, de lavar, de batizar,
rejuvenescer.
Água das flores. Água. Água matriz do universo,
águas que estão abaixo e acima dos céus. Água de Deus.
Vinícius saúde, medicina, cirurgia, bondade, paixão.
Estudo e ouvido, mão hábil, cansaço. Ternura que ajuda a
curar.
Vinícius cozinha, um lugar para amigos que sempre
retornam. Festa, sabor.
A burocracia é indispensável, mas mata, reduz,
mutila, proíbe. O espontâneo da flor rompe a caixa de
cimento. Suas raízes não agüentam. Com água e com sol a
saúde explode.
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Vinícius de Aninha, Rosana e aquele que vem.
Vinícius de irmãos, um espaço para o afeto, para Deus, a
justiça e a solidariedade.
Vinícius, meu filho e de Ruth, e do mundo, e do
amor com suas múltiplas faces.
Amor quer cuidado, paciência, perdão.
Vinícius, recomeça a primavera.
281
A AVÓ DE ANINHA
Aninha, três anos. Já está orgulhosamente no
“Colégio”. Mochila e uniforme. Horários, colegas.
O coração, os gestos, o sorriso protetor da mãe
acompanhando até a porta da aula, aguardando o pedido de
auxílio, socorro de “fica aqui mãe”...
Mas nada disso. Ana entra, senta, confia desde logo
na “tia” professora. Decepção e orgulho para a mãe.
Tarefas para casa: macinhas de modelar, lápis e
canetas coloridas, a festa da sujeira e da criação.
Vó Ruth chega:
- Onde está minha princezinha?
- Vó, tu já sabia que eu estou no colégio?
- No colégio? Que colégio?
- O São José! (O colégio das primas queridas).
- E o meu beijinho?
Ana corre. Abraça, beija e convida:
- Eu tô fazendo umas pinturas... qué vê?
Sobre a mesa várias folhas de papel esparramadas,
um prato com tinta preta. Ana põe a palma da mão aberta
282
no prato e depois carimba a folha com seus cinco dedos e a
palma da mão:
- Vó, este é pra ti!
- Obrigado, querida, que bonito ficou. Mas a avó
Dalva não vai ganhar uma pintura?
Ana faz outra e entrega à avó Dalva sem dizer
palavra. Basta o gesto. Depois:
- Vó Ruth, espera um pouco que vou fazer outra pra
ti.
Fez e entregou com olhos brilhando. E arrematou:
- Esta, vó, tu leva para o vô Jandir!
A arte é verdadeiramente revelação da alma que, na
intimidade da vinculação pessoal, se faz epifania do divino.
Você sabe o que Ana queria dizer?
Coisas de vó...
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LUCIANA
Lonjuras. Distâncias. Palmas do Tocantins.
Calor sufocante, clamando por água de cachoeira.
E no entanto estudar, lecionar, convocar e lutar.
Saudades, saudades das vozes, dos rostos, quitutes,
um pouco de frio, lá do sul.
Saudades do Laranjal, saudades de ser, de estar,
convidar e de rir.
Saudades da Aninha, irmãos, e cunhadas, Camila,
Carol, Laurinha e Luísa.
Luciana é só saudade quando fala ao telefone.
A vida é uma luta... viver é lutar.
Lutar por verdade, por justiça que tragam a paz.
O Direito é uma espada, intransigente defesa de
quem não tem arado para atrelar a uma estrela.
Luciana: carinho, energia, presença à sombra do
mais alto céu.
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DOMINGO NA CASA DO AVÔ
Elas chegam invadindo a casa, falando alto, quase
aos gritos, braços abertos para o abraço apertado, beijos
estalados, sabendo que o afeto, a confiança, o espaço é
absolutamente seu.
A casa do vô tem alguma coisa de mistério, de
coisas que falam da mãe, do pai, dos tios, de raízes
escondidas em algum lugar.
E elas vão desvendando tudo: computadores,
biblioteca, sala de costura de onde sempre saem os vestidos
mais lindos para as bonecas e para elas mesmas: a avó sabe
das coisas e das belezas. A tentação de mexer na máquina
de costura, no overlock, nos bordados iniciados, de ser
como a avó.
E correm... por que as crianças sempre correm, e
saltam, e gritam? Para espantar os medos? Para chamar a
vida? Para que a proteção dos adultos sempre esteja por
perto?
O avô chama:
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- Venham todos, que o churrasco está pronto!
E elas vêm, de olhos gulosos, de mãos irrequietas,
de água na boca buscando coraçõezinhos, salsichões...
- Está bom?, pergunta o avô, só para receber um
elogio...
E elas, em coro...:
- Está óóótimo vô! O churrasquinho que o vô faz é
sempre o melhor.
- Então, quem sabe, antes de iniciar façamos uma
breve oração, de mãos dadas?
- Obrigado Deus nosso Pai... obrigado.... obrigado...
E todos riem, os copos tombam, a conversa dos
adultos visita negócios, as últimas notícias da política, os
projetos de cada um...
E a deliciosa sobremesa da avó...:
- Pode repetir, vó?
- Pode... pode... o regime para os grandes recomeça
amanhã...
Depois, caminhar pelo páteo, ver a última ninhada
de gatinhos:
- Quê bonitinho, deixa eu ver... deixa eu pegar...
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O domingo abastece o imaginário para a semana,
para um pouco mais de viver...
Depois, é percorrer todos os recantos da casa para
ver alguma novidade e aquelas coisas antigas, intocáveis, e
tocar tudo o que for permitido...
Ah! a tentação das pinturas, dos batons, dos
mistérios da beleza do quarto da avó!
Depois é a cozinha. Todas sentadas, em congresso,
ao redor da mesa grande. Sempre tem bolo fresquinho à
espera das netas, e rosquinhas e pãezinhos para o café da
tarde que se prolonga por horas. Por que será que as frutas
da casa da avó são tão gostosas?
Depois as pequenas: Aninha, Laura e Luísa se
aninham no topo da escada com suas bonecas e suas
viagens imaginárias enquanto olham, lá em baixo, os
adultos que conversam na sala.
- Então eu era a mãe e tu a filhinha...
- Não, eu era a bruxa malvada e tu a princesa, a
branca de neve...
- Mãe, por que os anões eram pequenos?
- Ué!, filha, porque nasceram assim...
- É...?
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Carol, com seus olhos grandes que esparramam azul
por todo o ambiente, faz questão de, do alto de seus sapatos
de salto, apresentar seu namorado, que já é permanente,
pois dura mais de três meses.
- Mãe nós vamos dar uma voltinha na praia do
Laranjal, diz ela.
- Na praia? Aonde? - diz Denise enquanto pensa um
pretexto para dizer “não” ou, pelo menos, para fazer alguma
recomendação -Voltem cedo.
Camila que também já floresce mocinha conversa
com os dois namorados mas não os acompanha à praia,
embora quisesse. É chato. Chá de pêra diziam os antigos...
E brinca com as pequenas respaldando os jogos mais
perigosos, como aquela que tem experiência, ou se põe a
ver um filminho mexicano...
As pequenas curtem entre si a saudade de ser
priminhas, de se quererem e sonhar com o encontro do
próximo domingo na casa do vô.
Quando à tardinha os pais conseguem, sob protesto,
que elas entrem nos carros... o silêncio cai sobre a casa dos
avós, povoado de presenças e esperanças.
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