historias de-sabedoria-e-encantamento
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literatura infanto juvenilTRANSCRIPT
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Para Rowan, Alice e Liz, meu público mais leal - e crítico - H.L.
Para Dermot - N.S.
Esta abra foi publicada originalmente em inglês com o título
TALES OF WISDOM AND WONDER
por Barefoot Books. Bath, Inglaterra, em 1998.
Copyright © 1998 by Hugh Lupton para o texto.
Copyright © 1998 by Niamh Sharkey para as ilustrações-
Copyright © 2003. Livraria Martins Fontes Editora Lula.,
São Paulo, para a presente edição.
1ª edição
abril de 2003
Tradução
MONICA STAHEL
Revisão gráfica Helena Guimarães Bittencourt
Ivete Batista dos Santos
Produção gráfica Geraldo Alves
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
Lupton, Hugh
Histórias de sabedoria & encantamento / recontadas por Hugh
Lupton : ilustradas por Niamh Sharkey : tradução Monica Stahel. –
São Paulo : Martins Fontes, 2003.
Título original: Tales of wisdom and wonder.
ISBN 85-336-1741-0
1. Folclore - Literatura infanto-juvenil 2. Histórias para crianças 3.
Multiculturalismo na literatura I, Sharkey. Niamh. II. Título.
03-0893 CDD-028.5
índices para catálogo sistemático:
1. Folclore : Literatura infanto-juvenil 028.5
Todos os direitos desta edição para o Brasil reservados à
Livraria Martins Fontes Editora Ltda.
Rua Conselheiro Ramalho, 330/340 01325-000 São Paulo SP Brasil
Tel. (11) 3241.3677 Fax (11)3105.6867
e-mail: [email protected] http://www.martinsfontes.com.br
Sumário
Macaco e Papai Deus 6
Haiti
A raposa curandeira 12
Cri
O mascate de Swaffham 22
Inglaterra
A ratinha branca 30
França
O cego e o caçador 38
África Ocidental
Peixes na floresta 46
Rússia
O sonho do pastor 56
Irlanda
Fontes 62
Macaco e Papai Deus
Haiti
Há muito tempo, no meio de uma floresta, morava uma velha que criava
abelhas. Criava colméias e colméias, e no fim do verão coletava mel: eram
conchas, jarras, tigelas e barris transbordando de mel doce e dourado.
O que a velha fazia com tudo aquilo?
Bem, ela ficava com a maior parte, dava um pouco para os outros e o resto
ela despejava num pote imenso. Erguia aquele pote imenso, ajeitava-o na
cabeça e atravessava a floresta, rumo à feira, para vender seu mel.
Um dia, ela ia caminhando, caminhando pela floresta, equilibrando na
cabeça o pote abarrotado de mel. Mas, enquanto ia andando, uma coisa
terrível aconteceu.
Ela bateu com o pé na raiz de uma árvore, tropeçou, caiu e... PLOFT! O
pote se espatifou e o mel se derramou, escorrendo por todo lado. A mulher
começou a chorar:
- Ai, que desgraça, Papai Deus! Por que você me manda tanta desgraça?
E ela começou a caminhar de volta para casa, chorando e agitando as
mãos.
- Que desgraça, que desgraça, Papai Deus, quanta desgraça você me
manda!
Mas ali, sentado em meio aos galhos de uma árvore, espiando tudo,
estava um macaquinho. Assim que a velha se foi, ele desceu até o chão e
enfiou o dedo naquela coisa viscosa. Nunca tinha visto aquilo antes. Então,
levou o dedo à boca.
- Mmmm, que desgraça gostosa! Eu
nunca tinha experimentado - e ele levou à
boca mais uma mão cheia daquilo.
- Mmmm, desgraça é doce como açúcar!
O macaco comeu, comeu, cuspindo fora
os pedacinhos de pau e casca de árvore e
lambendo os cacos do pote quebrado.
- Mmmm, desgraça é uma delícia!
E, depois de acabar com o último pingo
dourado, ele só conseguia pensa numa
coisa:
- Quero mais desgraça.
O macaco se lembrou do que a velha
tinha dito: Papai Deus, por que você me
manda tanta desgraça?" Coçou a cabeça.
Então era dali que vinha a desgraça!
- Se eu fizer uma visita ao Papai Deus, talvez ele me dê um pouco mais de
desgraça - ele pensou.
Quanto mais pensava, mais gostava da idéia. Então ele foi subindo nas
árvores, subindo, subindo, até chegar à casa do Papai Deus. E lá estava o
próprio Papai Deus, sentado ao sol, vigiando o mundo.
- Oi, Papai Deus!
Papai Deus sorriu.
- Olá, macaquinho, o que você quer?
- Quero desgraça, Papai Deus.
Papai Deus ficou intrigado.
- Quer desgraça, macaquinho?
- Desgraça é uma delícia, é doce.
Quero toda a desgraça que puder me dar, Papai Deus!
Papai Deus se levantou.
- Bem, por acaso eu tenho um pouco de desgraça
especialmente feita para macacos. Tem certeza de que isso
que você quer?
O macaco fez que sim com a cabeça. Então Papai
Deus entrou em casa e logo voltou, trazendo um saco de couro.
- Macaquinho, este saco está cheio de desgraça. Mas ouça muito
bem o que vou lhe dizer. Primeiro leve o saco até o meio de um
imenso deserto de areia, onde não cresça nenhuma árvore.
Aí desamarre a boca do saco e, dentro dele, você vai encontrar
toda a desgraça possível de imaginar.
O macaquinho não perdeu tempo. Pegou o saco de
couro e desceu de volta ao mundo. Correu, correu, até
chegar à orla de um deserto. Correu, correu, até chegar ao meio
dele. Então ele se sentou.
Estava com a barriga roncando e a boca cheia d'água, só
de pensar em toda aquela desgraça. Ele se sentou, lambeu
os beiços e desamarrou o cordão que fechava a boca do
saco, exatamente como Papai Deus tinha mandado. E
lá de dentro saiu uma verdadeira desgraça de macaco...
CACHORROS!
Um, dois, três, quatro, cinco, seis, sete cachorros imensos, rosnando e
salivando!
- Aaaaaargh! - o macaquinho soltou o saco, fez meia-volta e saiu correndo!
- Aaaaaargh! - os sete cachorrões saíram correndo atrás dele.
- Aaaaaargh! - eles estavam chegando perto.
- Aaaaaargh! - o macaco sentia o bafo dos cachorros nas costas
dele.
Então, bem no momento em que ele achou que sua vida tinha
chegado ao fim... apareceu uma árvore!
Uma árvore imensa surgiu do nada. Uma árvore imensa no
meio do deserto, onde não crescia nenhuma arvore. O macaco subiu
por seus galhos o mais depressa que pôde.
E os sete cachorros ficaram rondando, rondando a árvore, latindo, rosnando
e salivando. Acontece que cachorro não sobe em árvore!
O macaco passou o resto do dia encarapitado no alto da árvore, tremendo de
medo.
Quando finalmente o sol se pôs e chegou a escuridão, os sete cachorros
sumiram pelo deserto, com o rabo entre as pernas.
Assim que eles se foram, o macaquinho desceu da árvore e voltou correndo
para a floresta.
Mas fica uma pergunta: quem colocou aquela árvore enorme no meio do
deserto quente e arenoso, onde não há nenhuma outra árvore?
Pois eu vou contar: foi Papai Deus. Por quê? Porque Papai Deus sabe que
desgraça demais não é bom, nem mesmo para um macaco.
A raposa curandeira
Cri
Era uma vez uma menina que, num dia muito frio, caiu doente. Ela tossia
muito e sentia tanta dor no peito que tinha dificuldade para falar e até para
respirar.
A mãe e o pai a aqueceram com cobertores e peles de animais, mas ela não
melhorava. Ao contrário, piorava cada vez mais.
O brilho de seus olhos se apagou e parecia que a vida estava abandonando
seu corpo. Então o pai e a mãe foram procurar a velha curandeira, que se
chamava Ovo de Pata. Ninguém sabia sua idade, mas era uma mulher muito,
muito velha, com o rosto amarrotado e riscado de rugas.
A velha Ovo de Pata chegou e foi mancando até o lugar em que a menina
estava deitada, à beira do fogo. Ela puxou suavemente as cobertas da criança,
se debruçou, encostou o ouvido na pele sem cor de seu peito e escutou.
Ficou um bom tempo escutando, e o único som que havia no quarto era
o ruído da respiração rápida e difícil da menina. Então a mulher levantou a
cabeça e disse:
- Estou ouvindo o som de uma raposa. Ela está cansada, correndo pela
neve endurecida. Vai se arrastando e sua respiração é ofegante. Ah, pobre
raposa, tem uma longa caminhada pela frente. Está faminta. A cada poucos
passos que ela consegue dar sobre o gelo... chhha: é esse o som que ouço no
peito da menina.
O pai se aproximou da velha e perguntou:
- Ouça, Ovo de Pata. Sou caçador. Sairei pela neve para procurar a raposa e
trazê-la até você.
A mulher balançou a cabeça e disse:
- Tudo bem, traga a raposinha até a aldeia.
O pai da menina calçou a raquete de andar na neve e saiu. Atravessou a
aldeia e foi andando pela neve branca e ofuscante.
Fazia frio, muito frio. E ele viu pegadas na neve. Eram pegadas de raposa,
marcas de patas de raposa. Aqui o rabo do animal tinha varrido a neve, ali suas
patas tinham se afundado na crosta de gelo.
O dia todo o pai da menina seguiu as pegadas, e um pouco antes de
escurecer ele avistou a raposa. Estava magra e cansada, correndo à frente dele
pela neve.
Lá na aldeia, a velha Ovo de Pata escutava atenta o peito da menina.
- Estou ouvindo o som da raposa, mas agora o caçador está perto. Ouço
seus passos na neve. Ele avistou o animal. Sim, ele viu a pobre raposa.
O pai da menina continuou andando, até que a escuridão o impediu de
enxergar. Então ele parou e fez uma fogueira. Agachou-se ao lado dela para se
aquecer, e então viu os olhos da raposa brilhando no escuro. Ela tinha parado
de correr e o observava.
Na aldeia, a velha Ovo de Pata escutava atentamente o peito da menina:
- Estou ouvindo ruído de chamas crepitando. O caçador acendeu
uma fogueira, a raposa está observando. Esta noite a menina vai ficar muito
quente. Vai ter febre.
O pai da menina passou a noite sentado à beira do fogo. Estava com frio e
cansado, mas não adormeceu. Ao amanhecer, saiu de novo em perseguição à
raposa. Pobre raposa, estava exausta, doente e fraca, suas patas se afundavam
na crosta de gelo... chhha... chhha... chhha.
Na aldeia, a menina tossia, tossia:
- Chhha... chhha... chhha...
E o pai da menina conseguiu alcançar a raposa. Segurou-a nas mãos. Ela
estava muito assustada:
- Por que me perseguiu? Por que me pegou? Estou doente e cansada.
Agora me mate. Não consigo correr mais.
O pai da menina sentia a magreza da raposa. Sentia seus ossos e seu
coração bater.
- Não - ele disse suavemente. - Não vou matá-la, raposinha.
Preciso que você cure a doença de uma menina.
E o pai, levando a raposa nos braços, atravessou a neve, rumando de volta
para casa.
Na aldeia, Ovo de Pata escutava atentamente o peito da menina:
- O coração dela está batendo muito depressa. A raposa está assustada, o
caçador a está carregando nos braços. Ele está voltando para casa.
O pai levou um dia e uma noite para percorrer o caminho de volta.
Quando chegou à aldeia, era de manhã. Foi direto ao encontro da menina, que
continuava deitada à beira do fogo.
A velha Ovo de Pata estava sentada ao lado dela, e a mãe da menina
também. Ao ver o caçador, Ovo de Pata sorriu, e ruguinhas apareceram no
canto de seus olhos.
- Dê-me a raposa, dê-me essa raposinha.
O homem entregou-lhe a raposa, depositou em suas mãos aquele
montinho de pêlos inerte. Ela arrumou um lugarzinho bem aquecido para
deitar a raposa, sobre as peles e cobertores macios da cama da menina.
- Arranjem um pouco de comida, um pouco de carne para a raposinha.
A mãe da menina trouxe carne e a raposa comeu, comeu até não sobrar
nada.
Depois ela dormiu, dormiu um tempão. A menina também dormiu. As
duas dormiram.
Ovo de Pata ficou em silêncio.
A menina e a raposa abriram os olhos na mesma hora. A velha disse:
- Tragam mais carne!
Mais uma vez, a raposa comeu tudo.
- Agora - disse Ovo de Pata -, abram a porta e deixem a raposa ir embora.
O pai da menina abriu a porta da tenda. Ovo de Pata ajudou a menina a se
sentar.
A menina se debruçou sobre o braço da velha e ficou olhando a raposa.
Viu a raposa farejar o ar e sair pela porta. Viu-a afastar-se da aldeia,
correndo pela neve. E, à medida que o ruído de seus passos ia se tornando mais
fraco, o mesmo acontecia com a tosse da menina.
A raposa recuperou as forças. Ela corria, corria pela neve. A menina ficou
em pé e andou até a porta. Sua doença tinha desaparecido. A raposa tinha
desaparecido. Ovo de Pata ficou em silêncio por um instante, depois olhou
para o pai e a mãe da menina.
- Respondam - disse ela -, foi a raposa que curou a menina ou a menina
que curou a raposa?
A mãe da menina pôs a mão no ombro da velha:
- Nem uma coisa nem outra. Foi você que curou as duas!
Ovo de Pata riu, e ruguinhas apareceram no canto de seus olhos.
O mascate de Swaffham
Inglaterra
Era uma vez um homem chamado John Chapman. Ele era mascate, e
andava pelas ruas, campinas e caminhos, trilhava estradas largas e estradinhas
da Inglaterra, vendendo alfinetes e espelhos, laços e carretéis de linha,
canivetes e tesouras, pílulas, pomadas e partituras de canções. Aonde ele ia, seu
cãozinho ia atrás, grudado no seu calcanhar.
John Chapman e seu cãozinho moravam numa casinha na entrada da
cidade de Swaffham. Era uma casinha muito pequenina, com telhado
esburacado e vidraças quebradas. Na primavera, os passarinhos entravam e
saíam pelas janelas sem vidro e faziam seus ninhos nas vigas do teto, por cima
da cama.
Mas ele tinha um pouco de sorte. Nos fundos da casa havia um pequeno
quintal, e nesse quintal havia uma macieira. Era uma velha macieira, muito
bonita, que todo outono deixava cair suas frutas na grama. Eram as maçãs
mais doces de Swaffham.
Pois bem, certa noite John Chapman estava deitado em sua cama, dormindo
profundamente, quando ouviu uma voz. Ouviu uma voz adorável, clara como o
luar, que falava em meio a seus sonhos:
- Vá até a Ponte de Londres - ela dizia. - Vá até a Ponte de Londres.
Ele acordou Sobressaltado, sentou-se, esfregou os olhos, olhou à sua
volta... mas o quarto estava vazio e escuro, o único som que se ouvia era o
ronco do cachorrinho, adormecido aos pés da cama.
- Foi só um sonho - ele pensou. - Nada mais que um sonho.
John Chapman virou para o lado e adormeceu de novo.
Mas na noite seguinte a voz voltou, clara como o luar, em meio a seus
sonhos.
- Vá até a Ponte de Londres. Vá até a Ponte de Londres.
Ele acordou; o quarto estava escuro.
- Foi só um sonho.
E adormeceu de novo.
Mas, noite após noite, a voz voltava:
- Vá até a Ponte de Londres.
Então John Chapman começou a cismar:
- Que coisa estranha! Às vezes convém dar ouvidos aos sonhos. O que
fazer?
Pois bem, John Chapman pensou muito e acabou decidindo:
- É isso mesmo. Eu ouvi e vou obedecer. Vou até a Ponte de Londres.
Então ele enrolou o cobertor, embrulhou um pouco de pão e queijo,
chamou o cachorro e foi-se embora.
Durante três dias ele caminhou por estradas e estradinhas, por trilhas,
campinas e ruas, até finalmente chegar à Ponte de Londres, que atravessava o
rio Tâmisa.
Naquela época, sobre a ponte havia uma infinidade de lojas, as pessoas
andavam a pé e a cavalo, carroças e carruagens rodavam de um lado para outro.
John Chapman nunca na vida tinha visto tanto movimento.
O que fazer então?
O que ele fez foi o seguinte: foi até a parte mais alta da ponte, ficou
esperando... e nada aconteceu.
John Chapman esperou o dia inteiro, e nada aconteceu.
Ele passou a noite dormindo embaixo da ponte, à beira do rio... e nada
aconteceu.
Na manhã seguinte, voltou para cima da ponte e se sentou no degrau de
uma porta... e nada aconteceu.
Estava com fome e frio, e se pôs a pensar:
- Às vezes convém dar ouvidos aos sonhos... e às vezes não.
John Chapman ia se levantar, pensando em iniciar o longo
caminho de volta para sua casa em Swaffham, quando um homem abriu a
porta de sua loja, desceu até a calçada e olhou para ele.
- Então, forasteiro - ele disse -, o que há com você? Ontem passou o dia
todo em cima da ponte, sem fazer nada. Agora está aqui, sentado na soleira da
porta, tremendo como uma alma penada. O que está havendo, hem?
E John Chapman falou:
- É que eu tive um sonho, e no sonho ouvi uma voz clara como o luar
dizendo: "Vá até a Ponte de Londres." Então eu vim.
O homem jogou a cabeça para trás e deu uma gargalhada:
- Sonhos! Ha, ha, ha! Forasteiro, ouça uma coisa: não dê atenção aos
sonhos. Pois eu sonhei que estava num lugar chamado... como era mesmo?...
Swaffham.
E lá havia uma casinha com telhado esburacado e vidraças quebradas... e
sonhei que estava cavoucando com uma pá entre as raízes de uma velha
macieira... e achei um pote abarrotado de ouro... Mas você acha que vou
atravessar metade da Inglaterra para ir atrás de um ouro de sonho? Eu não!
Ouça o meu conselho: se eu fosse você...
Mas nisso o dono da loja viu o forasteiro indo embora. John Chapman
saiu correndo pelas ruas de Londres, com o cachorro grudado ao calcanhar!
Correu dia e noite sem parar, até chegar a Swaffham.
E lá também não perdeu tempo. Pegou uma pá e começou seu trabalho,
cavoucando entre as raízes da velha macieira. E, de fato, não demorou muito
para bater com a pá num imenso pote de barro. O pote quebrou e moedas de
ouro rolaram pelo chão.
Eram centenas de moedas! Milhares de moedas!
A partir daquele dia John Chapman deixou de vender coisas pelas
estradas. Terminaram suas andanças.
Agora ele tinha dinheiro para tapar os buracos do telhado, para consertar
os vidros quebrados das janelas.
Tinha dinheiro para comer quando sentia fome.
E ele dava dinheiro aos pobres, aos famintos, a quem não tinha onde
morar.
E assim John Chapman viveu feliz até o fim de seus dias.
Quando ele morreu, fizeram uma estátua, uma linda estátua de John
Chapman com seu cachorro, que foi colocada na praça do mercado em
Swaffham. E aos pés da estátua foi gravada esta frase:
"Até sonhos podem se transformar em ouro."
A ratinha branca
França
Era uma vez um rei e uma rainha. O tempo passava, passava, e eles não
conseguiam ter filhos. Então resolveram adotar um rato. Era uma ratinha
branca, de olhos cor-de-rosa e um focinho fino e comprido, que não parava de
se mexer. Como eles adoravam aquela ratinha!
No palácio todos comentavam sobre sua natureza doce, suas maneiras
impecáveis, suas patinhas delicadas, sua inteligência. E ai de quem ousasse
falar alguma coisa contra ela!
Assim o tempo foi passando. A ratinha comia à mesa real onde seu queijo
era servido numa tigelinha dourada, sentava-se no braço dourado do trono do
rei durante os julgamentos reais, acocorava-se entre as orelhas do cavalo da
rainha quando ela saía cavalgando pelo reino.
Nada no mundo era mais precioso para
o rei e a rainha do que sua ratinha branca.
Até que um dia um mágico chegou ao
palácio. Diziam que era um mágico com
poderes enormes.
Assim que tiveram notícia de sua
chegada, o rei e a rainha mandaram
chamá-lo.
- Mágico - disse o rei -, você tem o poder
de transformar uma coisa em outra?
O mágico se inclinou:
- Tenho, sim, Majestade.
Então o rei pegou a ratinha que estava
no braço de seu trono:
- Você tem o poder de transformar esta
criatura encantadora numa princesa, numa
princesa humana?
O mágico se inclinou de novo:
- Tenho, sim, Majestade, mas...
- Mas o quê? - perguntou a rainha.
- Eu tenho o poder de transformar sua aparência, mas não o de transformá-
la por dentro. Não tenho o poder de modificar o seu íntimo.
O rei e a rainha pensaram em sua natureza doce, em suas maneiras
impecáveis, em sua delicadeza, em sua inteligência, e disseram:
- Não queremos transformá-la por dentro, não queremos transformar seu
íntimo.
O mágico inclinou-se pela terceira vez, ergueu os braços, gritou uma
palavra estranha numa língua que o rei e a rainha nunca tinham ouvido e
juntou as mãos.
Houve um lampejo de luz. O rei e a rainha cobriram os olhos com as
mãos. E, quando baixaram as mãos, em vez da ratinha branca viram uma
princesa sentada no braço do trono do rei.
Era uma princesa muito bonita, com um leve tom rosado nos olhos e um
leve movimento na ponta do seu belo narizinho.
O rei e a rainha não cabiam em si de tanta felicidade.
Recompensaram o mágico com todo o ouro que ele conseguiu carregar.
Depois chamaram os mais refinados costureiros, que logo se puseram a
cortar e coser, até que o guarda-roupa da princesa estivesse abarrotado de
roupas magníficas. Fizeram tudo para agradá-la, até estarem certos de que ela
não desejava mais nada no mundo.
E os anos foram passando, passando.
Certo dia, o rei achou que tinha chegado o momento de a princesa se
casar.
- Querida - ele disse -, está na hora de escolher um marido para você.
A princesa sorriu:
- Claro, papai. Com quem você quer que eu me case?
- A escolha é sua. Só me diga quem seu coração deseja.
A princesa pensou um pouco.
- Então, papai, quero um marido que seja o homem mais poderoso do
mundo.
O rei se recolheu, pensando naquelas palavras. Durante três dias ele
pensou, pensou, e depois chamou a princesa:
- Querida - ele disse -, resolvi que seu marido deverá ser o sol.
A princesa começou a chorar.
- O sol? Ele não tem poder suficiente para mim! Basta um nevoeiro para
tapar a luz do sol e deixar apenas sombra em seu lugar. Não, quero um marido
melhor.
O rei se recolheu para pensar. Durante três dias ele pensou, pensou, e
depois chamou a princesa:
- Querida - ele disse -, resolvi que seu marido deve ser o nevoeiro.
Mais uma vez ela começou a chorar.
- O nevoeiro? Ele não tem poder suficiente para mim. Basta uma rajada
de vento para dispersar o nevoeiro. Não, quero um marido melhor.
O rei se recolheu para pensar. Durante três dias ele pensou, pensou, e
depois chamou a princesa:
- Querida - ele disse -, resolvi que seu marido deverá ser o vento.
- O vento? Ele não tem poder suficiente para mim. Basta um morro para
desviar seu caminho. Não, quero um marido melhor.
O rei se recolheu para pensar. Durante três dias ele pensou, pensou, e
depois chamou a princesa:
- Querida - ele disse -, resolvi que seu marido deverá ser o morro.
- O morro? Ele não tem poder suficiente para mim. Basta um rato com
dentes pontudos como agulhas e garras afiadas como espinhos para escavar
um túnel no morro. Um rato valente poderia fazer do morro o seu palácio. Não,
papai, quero um marido melhor do que o morro.
O rei se recolheu para pensar. Durante três dias ele pensou, pensou, e
depois chamou a princesa:
- Querida - ele disse -, resolvi que seu marido deverá ser o rato.
A princesa pulou no pescoço do rei, abraçou-o e beijou-lhe as duas
bochechas.
- Ah, sim, o rato, o rato lindo e maravilhoso, que é capaz de escavar o
morro, que desvia o vento, que dispersa o nevoeiro, que tapa o sol! É o marido
mais poderoso do mundo!
Assim, o rei e a rainha mandaram chamar o mágico, e o mágico se pôs
diante da princesa. Ele abriu os braços, gritou uma palavra, bateu palmas.
Houve um lampejo de luz... e um rato branco saiu correndo de baixo da
montanha de seda formada pelo vestido que tinha despencado no chão.
E o mágico se inclinou:
- Perdão, Majestades, lembrem-se de que eu avisei que não tinha o poder
de transformá-la por dentro, de modificar o seu íntimo.
Assim, a linda ratinha branca se casou com um belo rato marrom, com
dentes pontudos como agulhas, garras afiadas como espinhos e rabo de um
metro de comprimento.
Quanto ao rei e à rainha, bem, não demorou muito para terem centenas
de netos, marrons, brancos, beges e malhados. E como adoravam todos eles!
O cego e o caçador
África Ocidental
Era uma vez um homem cego que morava numa palhoça, com sua irmã,
numa aldeia na orla da Floresta.
Esse homem era muito inteligente. Apesar de seus olhos não enxergarem
nada, ele parecia saber mais sobre o mundo do que as pessoas cujos olhos
viam tudo. Costumava sentar-se à porta de sua palhoça e conversar com quem
passava. Quando alguém tinha problemas, perguntava-lhe o que fazer e ele
sempre dava um bom conselho.
Quando alguém queria saber alguma coisa, ele dizia, e suas respostas eram
sempre corretas.
As pessoas balançavam a cabeça, admiradas:
- Como é que você consegue saber tanta coisa, sem enxergar?
E o cego sorria, dizendo:
- É que eu enxergo com os ouvidos.
Bem, um dia a irmã do cego se apaixonou. Ela se apaixonou por um
caçador de outra aldeia. E logo o caçador se casou com a irmã do cego.
Depois da festa de casamento, o caçador foi morar na palhoça, com a
esposa.
Mas o caçador não tinha paciência com o irmão da mulher, não
Tinha nenhuma paciência com o cego.
- Para que serve um homem cego? - ele dizia.
E a mulher respondia:
- Ora, marido, ele sabe mais coisas do mundo do que as
pessoas que enxergam.
O caçador ria:
- Ha, ha, ha, o que pode saber um cego, que vive na escuridão?
Ha, ha, ha...
Todos os dias, o caçador ia para a floresta com seus
alçapões, lanças e flechas. E todas as tardes, quando
o caçador voltava à aldeia, o cego dizia:
- Por favor, amanhã deixe-me ir
com você caçar na floresta.
Mas o caçador balançava a cabeça:
- Para que serve um homem cego?
Dias, semanas e meses se passavam, e todas as tardes o homem cego pedia:
- Por favor, amanhã deixe-me caçar também.
E todas as tardes o caçador dizia que não.
Uma tarde, porém, o caçador chegou de bom humor. Tinha trazido para
casa uma bela caça, uma gazela bem gorda. Sua mulher temperou e assou a
carne e, quando eles acabaram de comer, o caçador disse ao homem cego:
- Pois bem, amanhã você vai caçar comigo.
Assim, na manhã seguinte os dois foram juntos para a floresta, o caçador
carregando seus alçapões, lanças e flechas, e conduzindo o cego pela mão, por
entre as árvores. Andaram horas e horas.
Então, de repente, o cego parou e puxou a mão do caçador:
- Psss, um leão!
O caçador olhou ao redor e não viu nada.
- É um leão, sim, mas está tudo bem. Ele não está faminto e está
dormindo profundamente. Não vai nos fazer mal.
Continuaram seu caminho e, de fato, encontraram um leão dormindo
a sono solto, debaixo de uma árvore.
Depois que passaram pelo animal, o caçador perguntou:
- Como você sabia do leão?
- É que eu enxergo com os ouvidos.
Andaram por mais quatro horas, e então o cego puxou de novo a mão do
caçador:
- Psss, um elefante!
O caçador olhou ao redor e não viu nada.
- É um elefante, sim, mas tudo bem. Ele está dentro de uma
poça d'água e não vai nos fazer mal.
Continuaram seu caminho e, de fato, encontraram um elefante imenso,
chapinhando numa poça d'água, esguichando lama nas próprias costas.
Depois que passaram pelo animal, o caçador perguntou:
- Como você sabia do elefante?
- É que eu enxergo com os ouvidos.
Continuaram seu caminho, se aprofundando cada vez mais na floresta, até
chegarem a uma clareira. O caçador disse:
- Vamos deixar nossos alçapões aqui.
O caçador armou um alçapão e ensinou o cego a armar o outro. Quando os
dois alçapões estavam armados, o caçador disse:
- Amanhã vamos voltar para ver o que pegamos.
E os dois voltaram juntos para a aldeia.
Na manhã seguinte, acordaram cedo. Mais uma vez, foram andando pela
floresta. O caçador se ofereceu para segurar a mão do cego, mas o cego disse:
- Não, agora já conheço o caminho.
Dessa vez, o homem cego foi andando na frente. Não tropeçou em
nenhuma raiz nem toco de árvore. Não errou o caminho nem uma vez.
Andaram, andaram, até chegarem à clareira em que tinham armado os
alçapões.
De longe, o caçador viu que havia um pássaro preso em cada alçapão. De
longe, viu que o pássaro preso em seu alçapão era pequeno e cinzento e que o
pássaro preso no alçapão do cego era lindo, com penas verdes, vermelhas e
douradas.
- Sente-se ali - ele disse. - Cada um de nós apanhou um pássaro. Vou tirá-
los dos alçapões.
O cego sentou-se e o caçador foi até os alçapões, pensando:
- Um homem que não enxerga nunca vai perceber a diferença.
E o que foi que ele fez? Deu ao cego o pequeno pássaro cinzento e ficou
com o lindo pássaro de penas verdes, vermelhas e douradas.
O cego pegou o pássaro cinzento nas mãos, levantou-se e os dois rumaram
de volta para casa.
Andaram, andaram, e a certa altura o caçador disse:
- Já que você é tão inteligente e enxerga com os ouvidos, responda uma
coisa: por que há tanta desavença, ódio e guerra neste mundo?
O cego respondeu:
- Porque este mundo está
cheio de gente como você, que
pega o que não é seu.
O caçador se encheu de
vergonha. Pegou o pássaro
cinzento da mão do cego e deu-lhe
o pássaro lindo, de penas verdes,
vermelhas e douradas.
- Desculpe - ele disse.
Os dois continuaram
andando, e a certa altura o
caçador disse:
- Já que você é tão
inteligente e enxerga com os
ouvidos, responda uma coisa:
por que há tanto amor,
bondade e conciliação neste
mundo?
O cego respondeu:
- Porque este mundo
está cheio de gente como
você, que aprende com seus
próprios erros.
Os dois continuaram
andando, até chegarem à
aldeia.
E, a partir daquele dia,
quando alguém perguntava
ao cego:
- Como é que você
consegue saber tanta coisa,
sem enxergar?, era o caçador
que respondia:
- É que ele enxerga com
os ouvidos... e ouve com o
coração.
Peixes na floresta
Rússia
Era uma vez um lavrador que vivia com a mulher em seu sítio.
Acontece que a mulher do lavrador era incapaz de guardar segredo! Isso
mesmo, ela não guardava segredo de jeito nenhum.
Tudo o que lhe contavam a cidade inteira ficava sabendo em menos de
um dia. A mulher do lavrador ia ao mercado, fazia visitas e entregava ovos
para todo o mundo, e em uma semana a novidade se espalhava pelo país
inteiro.
Nada caminha mais depressa do que uma fofoca.
Pois bem, um dia o lavrador estava cavoucando a plantação de nabos
quando de repente a lâmina da pá bateu na tampa de ferro de uma velha arca
enferrujada.
Ao levantar a tampa, seus olhos se ofuscaram diante de um monte de ouro
amarelo e brilhante.
- Ora, ora - ele pensou -, preciso ter cuidado. Minha mulher não
consegue guardar segredo. Se ela vir todo esse ouro, até o fim do dia a cidade
inteira vai ficar sabendo e, daqui a uma semana, essa história vai parar nos
ouvidos do rei. Sendo rei, e além do mais muito ambicioso, certamente ele vai
querer ficar com todo o ouro.
O lavrador sentou no meio do canteiro e ficou pensando, pensando. No
fim, achou que a única coisa a fazer era esperar a mulher pegar no sono, levar
o ouro para casa no meio da noite e enterrá-lo no chão da cozinha.
Foi isso que ele fez. Quando ouviu a mulher roncar, profundamente
adormecida, o lavrador, sob a luz do luar, foi até o campo e pegou o ouro.
Levou-o para casa com muito cuidado e começou a cavar um buraco no
chão da cozinha. Estava cavoucando quando, CRAC!, a pá bateu numa pedra.
A mulher acordou, acendeu uma vela e desceu as escadas, correndo:
- O que está acontecendo aqui?
E então ela viu o tesouro brilhante.
- Oh, marido, onde você achou esse ouro?
- Psss! Ouça uma coisa, esse ouro é segredo.
Achei-o na plantação de nabos. Não conte
para ninguém, nenhuma viva alma pode
saber, está entendendo?
- Ora, marido, você me conhece.
Não vou dizer uma palavra a ninguém,
prometo!
Mas por acaso ela conseguia
guardar segredo?
Eu sei, você sabe e o lavrador
também sabia muito bem que ela não
conseguia guardar segredo. A noite
toda o marido ficou pensando:
- Ora, ora, o que vou fazer agora?
Daqui a um dia a cidade toda
vai estar sabendo, daqui a uma
semana o rei vai estar sabendo.
Ele pensou, pensou e teve uma idéia.
- Claro - ele disse -, é isso que eu vou fazer!
Logo cedo, assim que amanheceu, ele pulou da cama e foi até a cidade.
Foi à peixaria e comprou umas trutas prateadas e pintadinhas.
Foi à padaria e comprou uns bolinhos com passas.
Foi ao açougue e comprou uma fieira de lingüiças.
Depois o lavrador foi à floresta, não muito longe de suas terras. Espalhou
os peixes pelo capim úmido, pendurou os bolinhos nos galhos das árvores,
pegou uma vara de pescar, enganchou o anzol nas lingüiças e jogou-as no rio.
Então, esfregando as mãos e rindo consigo mesmo, voltou para casa.
- Mulher, mulher, acorde! Está um dia perfeito para pescar na floresta!
A mulher sentou na cama, esfregando os olhos:
- O quê? Pescar? Na floresta?
- Isso mesmo! Venha comigo, depressa. Não é sempre que isso acontece.
Há peixes nadando no capim e me disseram que vai chover bolinhos de
passas!
Então, ela pulou da cama, vestiu-se muito depressa, pegou uma cesta e os
dois saíram correndo pelo campo, rumo à floresta.
Assim que chegaram, ela gritou:
- Veja só! É verdade! Olhe só as trutas nadando pelo capim.
Ela pegou as trutas e as jogou na cesta.
- São bonitas e gordas!
Depois ela viu os bolinhos pendurados nas árvores.
- Marido, você tinha razão! Bolinhos!
O marido confirmou:
- Pois é, choveram bolinhos, mesmo! Se você tivesse pulado antes da
cama, com certeza também teríamos encontrado bolos pelo chão. Alguém deve
ter chegado antes e levado tudo.
Não foi preciso andar muito para chegarem ao rio. O lavrador disse:
- Vou puxar minha vara de pesca para ver o que consegui pegar.
Ele recolheu a linha e ali estava, balançando enganchada no anzol, uma fieira
de lingüiças.
A mulher do lavrador quase perdeu o fôlego:
- Lingüiças! No rio!
- Pois é - disse o lavrador -, sempre há lingüiças nadando no rio. Mas não
é todo o mundo que sabe pegá-las.
Eles voltaram para o sítio e comeram um café da manhã maravilhoso, com
trutas, bolinhos de passas e lingüiças.
Mas quem disse que a mulher do fazendeiro se esqueceu do ouro? Que
nada!
No fim daquele dia, a história do tesouro escondido já tinha corrido a
cidade de ponta a ponta. A mulher do lavrador ia ao mercado e entregava
ovos para todo o mundo, e no fim de uma semana o país inteiro estava
sabendo da história.
Afinal, nada caminha mais depressa do que uma fofoca.
E é claro que a história chegou aos ouvidos do rei.
E é claro que o rei, muito ambicioso, quis ficar com todo o ouro.
- Tragam-me aquele lavrador e a mulher dele! – ordenou o rei.
Assim, os dois foram levados ao palácio do rei.
- É verdade que vocês encontraram um tesouro enorme? - perguntou o
rei.
- Não, não é verdade - disse o lavrador.
- Mas ouviram sua mulher contar a história para todo o mundo e o reino
inteiro está falando nisso.
O lavrador riu.
- Ora, Majestade, minha mulher é completamente louca. Suas histórias
não têm pé nem cabeça.
A mulher do lavrador bateu o pé.
- Louca coisa nenhuma - ela disse. - Eu vi com meus próprios olhos,
Majestade. Ele estava enterrando o ouro no chão da cozinha.
O rei olhou para a mulher com seus olhinhos ambiciosos.
- Quando foi que você viu isso?
A mulher do lavrador pensou um pouco e respondeu:
- Ora, Majestade, foi uma noite antes de acharmos os peixes nadando na
floresta. Choveu bolinhos de passas e nós enchemos uma cesta... e depois meu
marido pescou uma fieira de lingüiças no rio...
O rei balançou a cabeça:
- Coitada, completamente louca, aluada, doidinha! Lingüiças no rio,
peixes na floresta, ouro enterrado no chão, chuva de bolinhos! Leve-a para
casa, lavrador. Nunca mais quero ouvir as histórias dela.
E os dois foram para casa.
Assim, o lavrador ficou com todo o ouro brilhante e
amarelinho só para ele.
Quanto à mulher, quando ela começava a contar
segredos ou espalhar fofocas, as pessoas balançavam a
cabeça e sorriam:
- Coitada, ela é louca!
- Aluada!
- Doidinha!
E assim a mulher do lavrador passou a guardar
os segredos só para ela.
O sonho do pastor
Irlanda
Era uma vez dois velhos pastores. Tinham saído com seus carneiros e, no
fim do dia, acabaram ficando muito cansados.
Então se sentaram num monte de relva fofa, perto do rio. Um deles se
deitou, fechou os olhos e logo pegou no sono. O outro ficou sentado, fumando
seu cachimbo, pensando nisso e naquilo, observando o companheiro que
dormia.
Era um belo entardecer, o sol formava longas sombras sobre a relva, o
riacho murmurava...
De repente, aconteceu uma coisa estranha.
A boca do pastor adormecido se abriu e, entre seus lábios, surgiu uma
borboleta branca. De sua boca saiu uma borboleta branca como a neve.
Rastejando, a borboleta desceu pelo corpo do pastor adormecido,
percorreu uma de suas pernas e esvoaçou até o chão
de relva. Havia uma pequena trilha que levava dali até o rio, e a borboleta
desceu até a beira da água.
O homem que estava acordado se levantou e foi acompanhando a
estranha borboleta. Ele nunca tinha visto nada igual.
A trilha levava até uma fileira de pedras que atravessava o rio.
Esvoaçando de uma pedra para outra, a borboleta chegou à outra margem.
Pulando de uma pedra para outra, o homem foi atrás da borboleta.
Nessa outra margem, cresciam juncos altos. A borboleta se agitava e
voava, entrando e saindo do meio do junco. O pastor ficou parado, observando
admirado, com o cachimbo na boca. Então, por entre os juncos, no chão de
relva, ele viu um crânio de cavalo. Era uma imensa caveira branca de cavalo,
corroída pelo tempo e ressecada pelo sol.
A borboleta foi até a caveira, esvoaçou sobre o osso branco e entrou por
uma de suas órbitas.
O pastor continuou ali, em pé, vendo a borboleta buscar e explorar cada
canto do crânio.
Depois de um tempo, a borboleta saiu e voou de volta pelos juncos,
atravessou o rio pelas pedras e subiu pela trilha. O pastor acompanhou-a em
silêncio. Admirado, viu-a subir na perna do homem adormecido, rastejar por
seu corpo e entrar em sua boca aberta. Imediatamente o homem fechou a boca.
Então se espreguiçou, esfregou os olhos e acordou. Sentou-se na relva e disse:
- Acho que dormi demais.
- Nem tanto - disse o amigo -, mas enquanto você dormia vi uma coisa
maravilhosa.
- Pois quem viu uma coisa maravilhosa fui eu! Imagine só: enquanto
dormia, sonhei que fiz uma viagem imensa. Primeiro, caminhei por uma bela
estrada, muito ampla, com uma alta sebe
verde de cada lado. Finalmente, cheguei à beira do mar. Atravessei-o, indo de
uma ilha a outra, até chegar a um país distante. De início, atravessei uma
floresta de árvores muito altas, que cresciam retas na direção do céu.
Maravilhado, Perambulei um pouco por ali, até que avistei um palácio. Era um
palácio magnífico, de mármore branco e brilhante! Entrei pela porta e percorri
todos os aposentos. Lá dentro não havia ninguém. Pensei em ficar ali para
sempre, mas de repente tive uma sensação estranha. Eu sabia que tinha que
voltar pelo mesmo caminho pelo qual tinha ido. Então saí do palácio,
atravessei a floresta, o mar,
percorri a longa estrada e cheguei em casa. Fechei a porta atrás de mim e
estava pensando em fazer meu jantar quando... acordei!
O amigo ficou em silêncio por um momento, fumando seu cachimbo, e
então disse:
- Venha comigo. Vou lhe mostrar a viagem que você fez.
O homem que tinha dormido se levantou e o amigo lhe contou da
estranha borboleta branca que saíra de sua boca.
- Esta pequena trilha - ele disse - é a estrada ampla, e o capim é a sebe
alta. Este rio é o mar e as pedras que o atravessam são as ilhas. Aqueles juncos
são as árvores da floresta e aquela caveira de cavalo é o palácio vazio, branco e
brilhante, em que você entrou.
De fato, os dois tinham visto uma coisa maravilhosa. Mas qual deles viu a
maravilha maior?
Fontes
A relação do contador de histórias com suas fontes é semelhante à do músico de jazz
com a melodia. Contei muitas dessas histórias durante anos, portanto não peço desculpas
pelas variações que possam ter sido elaboradas em torno das versões que recebi. No entanto,
espero ter sido fiel ao espírito dos contos e a todos os inúmeros contadores que os
transmitiram antes de mim.
Macaco e Papai Deus
Esta história se encontra difundida em todas as ilhas do Caribe. Ouvi diversas variantes
dela, às vezes falando em "problema" em vez de "desgraça". Há uma versão na bela coletânea
de contos haitianos de Diane Wolkstein, The Magic Orange Tree (Schoken Books, New York,
1980).
A raposa curandeira
Existem muitas histórias dos nativos da América do Norte sobre viagens curativas. Esta
é uma de minhas favoritas. A fonte de que a extraí foi uma coletânea de contos cri de Howard
Norman, Where the Chill Carne From (North Point Press, San Francisco, 1982).
O mascate de Swaffham
Conheço esta história desde criança. Quase todas as tradições orais parecem ter uma
variante deste tema. Há uma versão dela no Dictionary of British Folk -Tales de Katherine
Briggs (Routledge, London, 1991).
A ratinha branca
Esta história francesa aparece entre os contos populares do Auvergne coletados por
Henri Pourrat. É uma variante de uma história encontrada em toda a Europa e Ásia. De
fato, há uma história indiana quase idêntica chamada 0 camundongo branco. A versão de
Henri Pourrat pode ser encontrada em French Folktales (Pantheon Fairy Tale and Folklore Library,
New York, 1989).
O cego e o caçador
Ouvi esta história contada por meu amigo Duncan Williamson, escocês, grande coletor
de histórias, baladas e ditos de viajantes. Por sua vez, ele a ouviu de um cego da África
Ocidental, em Birmingham. Não encontrei nenhuma versão impressa deste conto nem sei
exatamente qual é seu país de origem. No entanto, minha antologia preferida de histórias
tradicionais africanas é African Folktales de Paul Radin (Schocken Books, New York, 1983).
Peixes na floresta
Esta é uma versão russa de um tema que aparece em toda a Europa. Há uma bela
variante escocesa intitulada "Silly Jack and the Factor", que pode ser encontrada no
Dictionary ofBritish Folk-Tales (ver acima). Minha versão foi extraída de uma velha antologia,
Folk Tales of All Nations, editada por F. H. Lee (Harrap, London, 1931). Surpreendentemente,
ela não aparece na coletânea definitiva de histórias tradicionais russas de Aleksandr Afanasiev,
Russian Fairy Tales (Pantheon Fairy Tale and Folklore Library, New York, 1973).
O sonho do pastor
Esta história misteriosa está em The Folklore of Ireland (Batsford Books, London, 1974).
Também pode ser encontrada em Folk-Tales of the British Isles, de Kevin Crossley Holland
(Faber & Faber, London, 1985). Ambas são coletâneas indispensáveis para quem deseja
pesquisar contos tradicionais britânicos.
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