historia e debates 2014

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A “ilusão da catequese”: interfaces entre o discurso intelectual e católico na Bahia do século XIX na produção de um conhecimento sobre as religiosidades afro-brasileiras

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    Resumo

    A iluso da catequese: interfaces entre o discurso intelectual e catlico na Bahia do sculo XIX na produo de

    um conhecimento sobre as religiosidades afro-brasileiras The illusion of catechesis: interfaces between intellectual discourse and Catholic

    discourse in Nineteenth Century Bahia, in knowledge production about the African-Brazilian religiosity

    La ilusin de la catequesis: las interfaces entre el discurso intelectual y catlico en Bahia del siglo XIX en la produccin de conocimientos sobre la religiosidad afro-brasilea

    Vanda Fortuna Serafim*

    Recebido em 08/08/2013 Aprovado em 21/09/2013

    http://dx.doi.org/10.5335/hdtv.14n.1.3388

    * Doutora em Histria pela Universidade Federal de Santa Catarina, professora adjunta na Univer-sidade Estadual de Maring e docente do Progra-ma de Ps-Graduao em Histria (PPH-UEM). Atua como pesquisadora/docente do Ncleo de Pesquisa em Histria Religiosa e das Religies (CNPQ) e no grupo de trabalho em Histria das Religies e das Religiosidades (ANPUH). edito-ra da Revista Brasileira de Histria das Religies.

    O objetivo deste trabalho consiste em perceber as interpretaes elaboradas sobre a religiosidade baiana, tomando como fontes histricas as obras O ani-mismo fetichista dos negros bahianos (1935) e Os africanos no Brasil (1982), de Nina Rodrigues; e as Constituies Primeiras do Arcebispado da Bahia, de autoria do ar-cebispo D. Sebastio Monteiro da Vide, promulgadas em 1777. Mais especifica-mente, perceber como esta poderia ter contribudo para a elaborao da noo de iluso da catequese presente em Nina Rodrigues para produzir um co-nhecimento acerca das religiosidades afro-brasileiras, na Bahia do sculo XIX. Os aportes tericos utilizados consistem em Michel de Certeau (1982) para pen-

    sar a antropologia da crena e forma-lidades das prticas catlicas; e em Ro-ger Chartier (1990, 2002) e os conceitos de viso de mundo e representao.

    Palavras-chave: Iluso da catequese. Nina Rodrigues. Religiosidade baiana.

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    comparar as formas como as obras anali-sadas interpretam a realidade social de seu contexto histrico, e mais diretamente como propem um entendimento da atuao da religio na Bahia.

    O interesse em analisar as obras de Monteiro da Vide e Nina Rodrigues con-sequncia da inquietao causada ao estu-dar as obras O animismo fetichista dos negros bahianos (1935) e Os africanos no Brasil (1982), e constatar que, a todo o momento, Nina Ro-drigues refere-se a um catolicismo ideal, que seria pouco compreendido e ainda me-nos praticado pela populao baiana de fins do sculo XIX. Esse catolicismo seria livre de fetichismos, idolatrias, apego materia-lidade, crenas tidas como prprias do senso comum, dos santos diversos, das msicas, das danas e das festividades. E, mais que isso, seria alcanado apenas em longo prazo, com a evoluo cultural dos povos que ha-bitavam o Brasil (RODRIGUES, 1935, 1982). Convm ressaltar, a crtica pela no evolu-o no era feita unicamente aos africanos e seus mestios, mas aos brancos tambm; no apenas populao baiana em geral, mas aos clrigos e detentores de importantes car-gos sociais: advogados, mdicos e polticos.

    Para Nina Rodrigues (1935), era evi-dente a no converso dos frico-bahianos ao catolicismo. Ele afirmou ainda que apenas uma cincia oficial, superficial e dogmtica, presa s exterioridades e aparncias no ve-rificadas, afirmaria que a populao baiana em fins do sculo XIX era em sua totalidade monotesta crist catlica. O animismo feti-chista dos negros bahianos constitui o esforo emprico de Nina Rodrigues em investigar o sentimento religioso dos africanos e seus

    A proposta deste artigo surgiu aps apresentar uma comunicao no XXVII Sim-psio Nacional de Histria Conhecimen-to Histrico e Dilogo Social (ANPUH), ao participar de um simpsio temtico voltado para as religies medinicas e afro-brasilei-ras no mbito da pesquisa histrica, no qual iniciei uma reflexo sobre os discursos pro-duzidos sobre religiosidade na Bahia dos sculos XVIII e XIX. Ao tomar por base os escritos do Arcebispo D. Sebastio Monteiro da Vide (1643 1722) e do mdico Raimundo Nina Rodrigues (1862-1906), busquei contri-buir com a percepo dos trabalhos de Nina Rodrigues enquanto um esforo intelectual e catlico no que tange aos estudos das reli-gies e religiosidades afro-brasileiras.

    Ao partir da compreenso da religio-sidade baiana do sculo XIX, objetivei com-parar como essa teria sido representada no discurso de dois intelectuais: um arcebispo e um mdico. Para tanto, tomei como fontes histricas as obras O animismo fetichista dos negros bahianos e Os africanos no Brasil, com publicaes originais de 1900 e 1932, mas es-critas entre 1890 e 1905 por Nina Rodrigues; e as Constituies Primeiras do Arcebispado da Bahia, de autoria do arcebispo D. Sebastio Monteiro da Vide, promulgadas em 1777.

    Dentre os aportes tericos e meto-dolgicos utilizados para essa reflexo, des-tacamos: Michel de Certeau e a obra A escrita da histria (1982) para pensar a antropologia da crena e formalidades das prticas ca-tlicas na construo de um discurso que elas j no mais determinariam, juntamente com Roger Chartier (1990, 2002) e os con-ceitos de apropriao, viso de mundo e representao, os quais nos permitem

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    descendentes, para alm do que considerava enquanto exterioridade do culto.

    Lembrando que esse autor, como boa parte da cincia mdica do XIX, opera-va o termo raa, ele consegue ainda que com o intuito de demonstrar como o pensa-mento da raa negra, tida como inferior, no poderia ser forosamente colocado no mesmo patamar da raa branca, tida como superior demonstrar, mesmo que no pro-positalmente, todo o esforo de resistncia do africano em um mundo to diferente do seu. Mostra-nos como os africanos, ao invs de convertidos, teriam convertido os brancos catlicos s suas prticas. No en-tendimento ainda desse autor, seria ilusrio afirmar que os negros baianos eram catli-cos e que a tentativa de converso catlica teve xito. Ao invs de converter o negro ao catolicismo, o branco teria sido influenciado pelo negro, adaptando-se ao animismo ru-dimentar, buscando uma assimilao.

    A converso teria sido exterior s cren-as e prticas fetichistas, que em nada teriam se modificado. Porm, pondera Nina Rodri-gues (1935) que, embasando o entendimento de seu pensamento enquanto evolucionista, como as leis de evoluo seriam as mesmas em todas as raas, essa fuso faria com que o negro chegasse capacidade mental ne-cessria para compreender o monotesmo catlico. Todavia, essa no seria a forma como estaria organizada a religiosidade na sociedade baiana, pelo contrrio, o que se verificava era a ntida influncia fetichista nas demais religies. De acordo com o au-tor, todas as crenas e prticas recebiam e refletiam por igual o influxo da feitiaria e da idolatria do negro.

    Nesse sentido, a fim de compreender a organizao social na Bahia, foram cria-das condies para que se desenvolvesse o pensamento de Nina Rodrigues acerca das religies. Nesse sentido, compreendo como esclarecedor compreenso das crticas, dos desabafos, dos depoimentos e das conside-raes realizadas por esse autor, atentarmos ao que pode ser considerado um verdadei-ro espelho do ideal de funcionamento do aparelho religioso e da sociedade catlica da Bahia (FEITLER et al., 2010, p. 07).

    Refiro-me s Constituies Primeiras do Arcebispado da Bahia, de autoria do arcebis-po D. Sebastio Monteiro da Vide, promul-gadas em 1777, e que se constitui como um trabalho de adaptao das normas eclesis-ticas realidade local de uma diocese luso--americana. As constituies permaneceram em vigor, com algumas modificaes, at o fim do Imprio, longevidade atestadora de seu xito e indicativa de sua grande im-portncia enquanto fonte para o estudo da Igreja e da sociedade brasileiras (FEITLER et al., 2010, p. 07). E acrescenta, das motiva-es que levaram Nina Rodrigues a atribuir prtica catlica da Bahia o predicativo de iluses da catequese e a acusao de que, ao invs de converterem os negros africanos, os padres eram convertidos por eles.1

    H de se considerar que Nina Rodri-gues possua formao catlica, foi batizado, crismado e cursou as sries iniciais no Semi-nrio das Mercs, em So Lus do Maranho. Na Bahia, casou-se na Igreja e batizou sua nica filha. Nina Rodrigues vivenciava o ca-tolicismo brasileiro, especialmente o baiano. A comparao de seus escritos ao teor discur-sivo das constituies permite compreender,

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    por um lado, as crticas lanadas adaptabi-lidade do Catolicismo baiano, sempre festi-vo e malevel (em alguns casos preferveis a certas prticas africanas hbridas com o Isl, por conta da rigidez das regras, como foi o caso Mal); e, por outro lado, permite estabe-lecermos o modelo de religio do qual Nina Rodrigues aproximava-se ou distanciava-se, uma vez que era o que conhecia.2

    O exame de algumas das principais aes de Monteiro da Vide, descrito como de relativa tolerncia devocional (FEI-TLER et al., 2010, p. 17), enquanto arcebispo da Bahia, no deixa dvidas quanto ao seu carter de prelado zeloso, em particular no que diz respeito a dotar a igreja luso-ameri-cana de legislao prpria. Aspecto esse me-recedor das crticas de Nina Rodrigues, afi-nal, como contribuir evoluo das raas presentes no Brasil, se aquelas que teriam condies de auxiliam a ascender, estariam, ao invs disso, nivelando-se ao parmetro das capacidades intelectuais das ditas raas inferiores?

    O nmero de brancos, mulatos e indiv-duos de todas as cores e matizes que vo consultar os negros feiticeiros nas suas aflies, nas suas desgraas, nos que cr-em publicamente no poder sobrenatural dos talismans e feitios, dos que em muito maior numero, zombam deles em publico, mas occultamente os ouvem, os consultam, esse numero seria incalculvel se no fosse mais simples dizer de um modo geral que a populao em massa, a excepo de uma pequena minoria de espritos superiores e esclarecidos que tem a noo verdadeira do valor exacto dessas manifestaes psycolo-gicas. que no Brazil o mestiamento no s physico e intellectual, ainda affectivo ou dos sentimentos, religioso igualmente portanto (RODRIGUES, 1935, p. 186).

    interessante perceber as diferentes preocupaes entre ambos. Nina Rodrigues, por um lado, ao partir do pensamento evo-lucionista, defendia que medida que as raas entendidas como mais evoludas se desenvolvessem, auxiliariam, mesmo que lentamente, o desenvolvimento das ditas raas inferiores; assim, nesse sentido, ao indicar o catolicismo enquanto religio das raas evoludas, necessrio garantir que esse no se contamine com os fetichismos e as idolatrias das crenas e religiosidades afro-brasileiras, prprias das raas inferio-res. Por outro lado, preocupado em no esfriar a devoo na Bahia, a atitude de Monteiro da Vide sugere ser reveladora da opo por um mtodo de converso marca-do pela busca, sobretudo, em atrair os fiis para a Igreja, tolerando, se preciso, alguns desvios. Nesse caso, o arcebispo estaria en-tre aqueles que pensavam no ser factvel a adoo de uma poltica mais rigorosa de en-quadramento religioso antes da sedimenta-o da f crist numa comunidade formada majoritariamente por recm-conversos. O arcebispo era tambm um incentivador ao culto aos santos, em particular o culto mariano. O modelo de santidade concebi-do por Monteiro da Vide parece ser aqueles ligados construo da santidade barroca: vida penitente, fervorosa orao e luta con-tra o satans. Ao escrever a vida de Vitria da Encarnao, ele deixa transparecer sua prpria concepo sobre santidade, reve-lando, assim, alguns traos de sua piedade. Atos de rigorosa penitncia e mortificao da carne eram entendidos como estimulan-tes converso de pecadores. A percepo de que no h santidade sem dor marcante

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    em Monteiro da Vide. No h como negar a fora que parece desfrutar o dolorismo entre os sculos XVI e XVII mantendo-se ainda vigoroso durante boa parte do sculo XVIII apresentando-se como um trao de unio entre os homens e diferentes sensibilidades religiosas (FEITLER et al., 2010).

    A descrio sobre a postura de Mon-teiro da Vide, que parece ter sido assumida de forma ainda amais aberta pelas hierar-quias religiosas baianas, corrobora com as descries que encontramos em Nina Rodri-gues acerca da formao religiosa na Bahia. Como o catolicismo era atrativo aos africa-nos e seus mestios, principalmente por con-ta dos santos, que se confundia com a ideia de politesmo catlico. As formas festivas as-sumidas pelo culto catlico no Brasil lembra-vam os excessos das celebraes africanas, e, consequentemente, a falta da autoridade clerical mediante os recm-conversos.

    O animismo fetichista africano, diludo no fundo supersticioso da raa branca e refor-ado pelo animismo incipiente do abori-gene americano, constitui o subsolo ubr-rimo de que brotam exuberantes todas as manifestaes ocultistas e religiosas da nossa populao. As crenas catholicas, as prticas espritas, a cartomancia, etc., todas recebem e reflectem por igual o influxo da feitiaria e da idolatria fetichista do negro (RODRIGUES, 1935, p. 167).

    Rodrigues comea a esboar timida-mente, na obra acima, o que viria a desen-volver em Os africanos no Brasil: uma socieda-de baiana cercada de sobrevivncias fetichistas, a qual acreditava em mesas girantes, bn-os e palavras mgicas. Esse seria o univer-so baiano presenciado e testemunhado por Nina Rodrigues, um emaranhado de crenas

    diversas, em que se hibridizavam ideias ca-tlicas, espritas, maometanas, fetichistas e as mais diversas prticas mgicas. Ao invs do negro converter-se ao catolicismo, esse seria influenciado pelo fetichismo e acabava adaptando-se ao animismo rudimentar de modo a torn-lo assimilvel. A forma como a converso ocorria para os negros africanos existentes no Brasil e em seus descendentes teria sido apenas exterior:

    Concebem os seus santos ou oriss e os san-tos catholicos como categoria igual, embora perfeitamente distinctos. Abrigados na ig-norncia geral da lngua que elles falam e na facilidade com que. Para condescender com os senhores, os africanos escravizados se declaravam e apparentavam convertidos ao catholicismo, as prticas fetichistas pu-deram manter-se entre elles at hoje quase to extreme de mescla como na frica (RO-DRIGUES, 1935, p. 168-169).

    O que para Nina Rodrigues teria faci-litado o processo de assimilao foi a pre-sena de objetos no culto catlico, como altares e imagens de santo. O autor, ainda, vai alm, ao conjecturar que o negro africa-no estava ciente todo tempo do que ocor-ria, percebia aquele objeto como um fetiche e associava-o ao uso e interpretao que comumente fazia-se deles. Apenas o bran-co ou o padre jesuta, protegido em sua pretenso de converso, poderia acreditar que o fato do negro cultuar/adorar uma imagem, o tornaria um modelo exmio de catlico. Iniciar-se-ia assim, a degenerao do fetichismo primitivo, por parte do negro crioulo e do mestio que no foram direta-mente educados pelo africano:

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    [...] as prticas fetichistas e a mytologia africana vo degenerando da sua pureza primitiva, gradualmente sendo esqueci-das e abastardas, ao mesmo tempo que se transfere para os santos catholicos a adora-o fetichista de que eram objetos os oriss (RODRIGUES, 1935, p. 170).

    Descrito pelos organizadores da obra como um indivduo que viveu as contra-dies de seu tempo, Monteiro da Vide foi um homem da Igreja que manifestou a sensibilidade religiosa em uma poca em que o desencantamento ainda no havia tocado fundo a alma humana e a prpria Igreja (FEITLER. et al., 2010). Nesse sentido, possvel aproxim-lo de Nina Rodrigues, na medida em que ambos cumprem em seus escritos uma dupla funo: a de intelectual e a de catlico, embora a ordem de importn-cia no seja a mesma para ambos.

    Pensando nas discusses e inquieta-es presentes em Nina Rodrigues acerca do carter imanente ou transcendente dos feti-ches, no parecem ser suficientes as repostas catlicas dadas no Livro Primeiro das Cons-tituies quanto adorao que se deve a Deus Nosso Senhor, Virgem Maria Nossa Senhora e aos santos e ao culto devido s santas relquias e sagradas imagens.

    Latria a adorao devida somente a Deus Nosso senhor, e um ato de religio radica-do na alma, com o qual devemos reconhe-cer sua divina excelncia, prostrando-nos de joelhos em terra com a cabea descober-ta e mos juntas e levantadas, batendo nos peitos e fazendo outros atos exteriores de venerao que correspondam aos cultos de nossos coraes, reconhecendo-o por Deus e supremo Senhor [...]. Hiperdulia outra venerao com o que somos obrigados a ve-nerar a Virgem Maria Nossa Senhora, por ser me de Jesus Cristo Nosso Salvador, e

    conter em si todas as virtudes. Esta adora-o se faz descobrindo a cabea e fazendo--se orao com joelhos em terra. Dulia ou-tra venerao, que se faz rezando em p ou de joelhos com a cabea descoberta; e de f que os anjos e espritos celestiais e santos, aprovados por tais pela Igreja, com ela de-vem ser venerados [...] (VIDE, 2010, p. 134).3

    A descrio acima, por um lado, parece demonstrar o sistema complexo intelectual, com as elevadas abstraes monotestas que Nina Rodrigues esperava, e, por outro, de-nunciam a ritualstica suspeita de um catoli-cismo monotesta com muitos deuses e que em muito aproximava-se da idolatria feti-chista, precisando ainda, por meio da evolu-o, perder essas caractersticas materialistas voltadas exterioridade do culto. A crtica do documento importante tambm para perce-bermos que a necessidade de um conjunto de orientaes, com penas e castigos espirituais, que orienta que a adorao das imagens se d no porque nelas habitam uma divindade, mas pelo que elas representam, era resulta-do e resposta a uma prtica constante, que iria, justamente, contra essas orientaes. No entendimento de Nina Rodrigues, a forma como a converso teria ocorrido para os ne-gros africanos existentes no Brasil e em seus descendentes teria sido apenas exterior:

    Concebem os seus santos ou oriss e os san-tos catholicos como categoria igual, embora perfeitamente distinctos. Abrigados na ig-norncia geral da lngua que elles falam e na facilidade com que. Para condescender com os senhores, os africanos escravizados se declaravam e apparentavam convertidos ao catholicismo, as prticas fetichistas pu-deram manter-se entre elles at hoje quase to extreme de mescla como na frica (RO-DRIGUES, 1935, p. 168-169).

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    A prtica fetichista catlica baiana seria mais evidente mediante a ritualstica de seu culto, descrita por Nina Rodrigues como pomposa. As orientaes sobre o uso dos leos so pensadas como exemplo disso. difcil no conjecturar as possveis associa-es ritualsticas, feitas por Nina Rodrigues, entre catolicismo e religies afrodescenden-tes ao deparar-se com as normatizaes e as orientaes contidas nas Constituies acerca das santas imagens, no sentido de que a imagem da cruz no deveria ser pin-tada nem levantada em lugares indecentes; bem como sobre os procedimentos para a reforma das imagens envelhecidas; sobre como agir com ornamentos, mveis, altares e vasos das Igrejas; o que se fazer com os ornamentos velhos, com a madeira, com as pedras e com as telhas retiradas das Igrejas. As orientaes contemplavam, ainda, a re-verncia devida a igrejas e lugares sagrados, que devem ter contribudo, tambm, para a construo do pensamento intelectual de Nina Rodrigues, que entende que a religio monotesta no Brasil ainda no alcanou seu auge, especialmente na Bahia, onde estaria envolta de fetichismos.

    Outro ponto refere-se questo do sa-crifcio. Vide pronuncia-se sobre o santo sacrifcio da missa: sua instituio, frutos e efeitos, orientando que esse seria o ver-dadeiro, o real e o nico sacrifcio que tem a Igreja Catlica, porque o mesmo Cristo que institui como verdadeiro o mistrio do seu corpo e sangue sacramentado quis que o mesmo mistrio fosse verdadeiro sacrif-cio (2010, p. 267). Esse um ponto extre-mamente interessante em se saber o pronun-ciamento de Nina Rodrigues, todavia, em

    momento algum ele se pronuncia em defesa ou acusao do dogma, detm-se apenas em informar que faria parte de uma forma de religiosidade mais complexa, de elevadas abstraes e de difcil compreenso queles das raas inferiores.

    H, portanto, em Nina Rodrigues, uma postura de no questionamento dos dogmas catlicos. O que se questiona so as posturas clericais e os usos sociais feitos desses dog-mas. Nina Rodrigues no ataca o sentimen-to religioso, mas a manipulao desse por aqueles que estariam dispostos a aprovei-tarem-se das ditas mentes incrdulas. Isso torna-se mais evidente, por exemplo, quan-do os padres comeam a agir no campo da cura de doenas.

    A preocupao com as doenas de alma so rechaadas, por Nina Rodrigues, como sobrevivncias primitivas que assolam os diferentes nveis sociais da cultura baiana do XIX, as quais tambm podem ser detectadas entre as orientaes de Monteiro da Vide, especialmente em Como os mdicos e ci-rurgies devem admoestar aos doentes que se confessem e comunguem (2010, p. 198), O Arcebispo indica que, muitas vezes, a en-fermidade do corpo estaria na alma enferma com o pecado. Assim, a orientao era para antes de aplicar a medicina para o corpo, tra-tassem primeiro da medicina da alma.

    Esse tipo de procedimento, na viso de Nina Rodrigues, por parte do clero por-tugus, contribuiria para avivar o espri-to curandeiro existente entre os africanos e seus descendentes, e ocasionaria, ainda, que, em muitas vezes, mesmo a dita socieda-de branca e esclarecida, criada dentro da f catlica, busca os cuidados de benzedeiras,

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    curandeiros, entre outros charlates, em detrimento dos mdicos profissionais. vi-svel ento, a defesa e a busca de um estatuto para a medicina no sculo XIX.

    A postura anticlerical de Nina Rodri-gues, a ponto de defender pais e mes de san-to em detrimento dos padres, d-se, por ve-zes, sob a argumentao de que a acusao de abuso sexual e de vida desregrada feita aos primeiros valeria tambm aos clrigos. So, nesse sentido, exemplar e passveis de crtica histrica as orientaes feitas pelo arcebispo aos clrigos baianos no Livro Terceiro a respeito da obrigao que tem os clrigos de viver virtuosa e exemplarmente, Dos ves-tidos que os clrigos podero usar e dos que lhe so proibidos, Como os clrigos no podem comer nem beber em tavernas, nem ir a boates ilcitas, Como os clrigos no podem entrar em comdias ou danas, nem em festas de cavalo, nem disfarar-se com mscaras, Como os clrigos no devem jo-gar jogos proibidos, nem dar casas de jogos, Em que se obriga aos clrigos que no usem de trato e mercancia, nem faam fianas por ganhos e interesses, Em que se ordena que os clrigos no possam ter de porta adentro mulheres em que possa haver suspeita, nem frequentar o mosteiro de freiras (VIDE, 2010, p. 311-322). Retornando ideia apresentada, de que as orientaes dadas pelo arcebispo no se pautariam em prticas no inexisten-tes, tornam-se assimilveis as afirmaes e crticas de Nina Rodrigues.

    possvel perceber, ainda, que a pre-ocupao com jogos, bebidas e festas, en-quanto elementos profanos e que degra-dariam a imagem da Igreja; assim como a leitura intelectual dessas prticas enquanto

    sobrevivncias de uma idade primitiva, ca-racterizam a postura intelectual e catlica em Nina Rodrigues.

    Assim, encontramos as orientaes de Monteiro da Vide (2010) determinando que nas Igrejas no se faam farsas e jogos pro-fanos, nem se coma, beba, durma, baile ou faam novenas:

    Pelos inconvenientes que resultam de que as Igrejas, feitas para louvores de Deus e exerccios de esprito, sirvam de nelas se comer, se beber e fazer outras aes mui-to indecentes ao tal lugar, de que nascem mil descomposturas indignas dele, confor-mando-nos com disposio de direito, sa-grado Conclio Tridentino, e constituio do Santo Papa Pio V, ordenamos e manda-mos, sob pena de excomunho e dez cru-zados, que nenhuma pessoa eclesisticas ou seculares tanjam ou bailem, nem faam danas ou jogos profanos nas igrejas nem em seus adros, nem se cantem cantigas desonestas ou coisas semelhantes. Porm no nossa tentao proibir que no adro se possam fazer representaes ao divino, sendo aprovadas por Ns ou por nosso provisor; nem que outrossim, na ocasio de festas, entrem danas e folias nas Igre-jas, sendo honestas e decentes, enquanto se no disser missa nem se celebrem os of-cios divinos (VIDE, 2010, p. 411-412).

    possvel afirmar, em um contex-to geral, que essa citao do arcebispo que poderia ter sido facilmente escrita por Nina Rodrigues. De fato, quando atentamos s descries feitas por Nina Rodrigues da Fes-ta ao Nosso Senhor do Bonfim, possvel conjecturar que Monteiro da Vide era mais tolerante s prticas no institucionais cat-licas do que Nina Rodrigues.

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    A lavagem na quinta-feira era uma ver-dadeira bacchanal num templo christo! Negros aguadeiros e mulheres com potes dagua e vassouras em grande alarido de sambas e vivas entravam pela igreja com o fim de lavai-a e os cantos obscenos, os lun-ds e a bebedeira reinavam sem respeito ao lugar, sendo toda a scena representada por homens e mulheres semi-nuas e em-briagadas! Terminavam sempre com dis-turbios, pancadaria, ciumadas, ferimentos e at, quando esquentavam-se os animos, davam-se casos de morte. Felizmente o po-der com petente tem prohibido similhante festa (RODRIGUES, 1935, p. 181).

    Rodrigues observou que a proibio te-ria se limitado festa do Bomfim e no abran-gido a lavagem no dois de fevereiro de Santo Amaro, na festa de N. Senhora das Candeias, na qual o smile africano manter-se-ia inal-tervel. Diferente das associaes de Oxal, menos constantes e claras seriam as equiva-lncias das diversas invocaes da Virgem Maria. Algumas mes de terreiro diziam cor-responder a Oxum e outras Iemanj, expli-ca Nina Rodrigues. Outra correspondncia de difcil compreenso para Rodrigues seria entre Ogum e Santo Antnio. Em relao equivalncia dos deuses, Rodrigues explica:

    Mas o ponto capital deste estudo que a esta equivalencia das divindades corresponde a mais completa harmonia de sentimentos religiosos, na adorao prestada aos deuses dos dois cultos. E precisamente este facto que d a iluso da con verso catholica dos negros. Sem renunciar aos seus deuses ou Oriss, o negro bahiano tem, pelos santos catholicos, profunda devoo levada at ao sacrificio e ao fanatismo. Mas esse sacrificio e esse fanatismo no podem ser sino essen-cialmente fetichistas; os santos catholicos e at mesmo as invocaes do filho de Deus constituem para os negros outras tantos ori-ss (RODRIGUES, 1935, p. 182).

    Haveria, desse modo, a ideia de uma pseudoconverso, pois, segundo Nina Ro-drigues, os negros tomariam os santos cris-tos como se esses fossem orixs:

    A me de terreiro, Linvaldina, devotada ao mesmo tempo a Nossa Senhora da Con-ceio e a Ogun. O proprietrio do engenho onde ella reside, admirado de eu lhe dizer que ella era ali a mi de terreiro, me affir-mava que esta negra faz grandes despesas com a festa catholica da Virgem Maria. No dia de Natal, assisti-a interromper pela ma-drugada o candombl que dirigia e em que se festejava Obatal para ir ouvir a missa do gallo. Interpellei-a sobre o modo por que conseguia harmonizar as suas crenas catholica e fetichista fazendo-lhe ver que no podia haver conciliao possivel entre os dois cultos, pois os padres christos no admittem a existencia das suas divindades e chamam de infieis aos que adoram pe-dras, idolos, etc. Ella respondeu-me que os padres no conhecem os deuses da Costa, mas que ella tem provas materiaes de que elles existem e so to verdadeiros como os santos dos brancos. Nada tem e que ver, porm, com a irreconciliao dos santos das duas crenas, pois no somos obri-gados a esposar as dissenses dos nossos amigos, e me perguntava si pelo facto de dois amigos meus se desavirem eu havia de tomar o partido de um delles contra o outro (RODRIGUES, 1935, p. 182-183).

    ntido o esforo metodolgico de Nina Rodrigues em sistematizar esses pro-cessos do qual testemunha, tentar traduzir em palavras, termos e conceitos, uma prti-ca cotidiana de uma sociedade, proporcio-nando um paradigma explicativo a ques-tes e princpios to distantes de sua prtica profissional, mais que isso, o esforo episte-molgico de entender e explicar o outro, o diferente de si. Nesse esforo compreensivo, relata encontrar misturados, com frequn-cia, smbolos cristos e fetichistas

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    [...] juntamente com os outros gris-gris ou talismans fetichistas se encontram por toda a parte pequenas cruzes de madeira, que ao lado das figas, bzios, etc., figuram nas cestas das compradeiras, nos taboleiros das vendedeiras ambulantes, nas vendas, etc (RODRIGUES, 1935, p. 185).

    O autor salienta que tais prticas no se limitariam apenas aos negros ditos bo-ais e ignorantes:

    O numero de brancos, mulatos e indiv-duos de todas as cores e matizes que vo consultar os negros feiticeiros nas suas aflies, nas suas desgraas, nos que cr-em publicamente no poder sobrenatural dos talismans e feitios, dos que em muito maior numero, zombam deles em publico, mas occultamente os ouvem, os consul-tam, esse numero seria incalculvel se no fosse mais simples dizer de um modo ge-ral que a populao em massa, a excep-o de uma pequena minoria de espritos superiores e esclarecidos que tem a noo verdadeira do valor exacto dessas manifes-taes psycologicas. que no Brazil o mes-tiamento no s physico e intellectual, ainda affectivo ou dos sentimentos, religio-so igualmente portanto (1935, p. 186).

    Embora no aprofunde, Rodrigues acrescenta que no era apenas o catolicismo que recebia influncias fetichistas, mas tam-bm as prticas espritas e a cartomancia. Rodrigues explica que do mesmo modo que a histeria no negro, as manifestaes mais francas da nevrose constituem o fundo do pretenso espiritismo da cabocla. Mas, o que h de curioso que, os mesmos mdios servi-riam nos candombls, para as manifestaes dos santos africanos ou orixs, o que corro-boraria a opinio de que os estados de santo dos africanos no Brasil no seriam mais do que manifestaes do somnambulismo hysteri-

    co. Para uma publicao anterior na Revista Brasileira, Nina Rodrigues havia denomina-do o captulo de O animismo fetichista dos negros bahianos, o qual trata da converso dos negros como Iluses da catequese no Brazil, por entender que:

    Continuar a affirmar em face de todos os documentos, que os negros bahianos so catholicos e que tem xito no Brazil a ten-tativa de converso portanto, alimentar uma illuso que pde ser cara aos bons intuitos de quem tinha interesse de que as coisas tivessem passado assim, mas que certamente no est conforme a realidade dos factos (RODRIGUES, 1935, p. 199).

    O fato que as preocupaes quanto a feitiarias, supersties, sortes, agouros, artes mgicas, pacto com o demnio, uso de feiti-arias, cartas de tocar, palavras, bebidas ama-trias ou coisas semelhantes, que esto pre-sentes em Nina Rodrigues por denunciarem a baixa evoluo mental da sociedade baiana do sculo XIX, j faziam parte das preocupa-es da Igreja Catlica desde o sculo XVIII, especialmente no que concerne ao caso espe-cfico da Bahia, por meio das Constituies formuladas por Monteiro da Vide.4

    Nina Rodrigues no faz meno dire-ta s Constituies, mas h de se concordar que as normas, orientaes e vises so com-ponentes da realidade social em que ele se prope a pensar, questionar, ressiginificar, e consequentemente representar (CHAR-TIER, 2002). As categorias que estrutura-vam seu campo de anlise eram exatamente aquelas cuja histria fazia parte, o produto de divises mveis e temporrias, tanto que se prope a distinguir, ainda que de forma muito inicial, o que seria religio na frica e no Brasil.

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    Assim, a radical diviso entre produ-o e consumo leva a postular que as ideias ou formas tm um sentido intrnseco, total-mente independente de sua apropriao por um sujeito ou por um grupo de sujeitos. Fa-zer como se os textos tivessem significaes dadas por si mesmo, independente das lei-turas que os constroem, leva a relacion-los ao campo intelectual do historiador que os analisa, portanto, a decifr-los por meio de categorias de pensamento, cuja historicida-de no percebida e se d implicitamente por pensamentos. Destituir essa historici-dade exige que o consumo cultural ou in-telectual seja tomado como uma produo, que certamente no fabrica objeto nenhum, mas constitui representaes que nunca so idnticas quelas que o produtor, o autor ou o artista investiram em sua obra.

    Embora no se possa dizer categori-camente que Rodrigues parta do objetivo de defesa da f catlica, suas observaes, interpretaes e concluses para pensar re-ligio no poderiam sustentar como insigni-ficante a diferena entre os quadros de refe-rncia, em funo dos quais uma sociedade organiza as aes e os pensamentos (CER-TEAU, 1982). Embora parta da cincia e de um Estado laico, no consegue simplesmen-te apagar de sua viso de mundo todo um aparato catlico de formao, de percepo de valores, prprio do lugar social no qual ele se insere.

    Na forma como apresentada nos escritos de Nina Rodrigues, a hierarquia religiosa no Brasil surge como claramente diferenciada. Em seu topo, estaria a mais elevada, mas extremamente tnue religio: o monotesmo catlico. Seguida, espessa e

    largamente, da idolatria e mitologia catli-ca dos santos profissionais, que abrangeria a massa da populao; abaixo dessa, estaria como sntese do animismo superior do ne-gro, a mitologia jeje-iorubana, caracterizada pela equivalncia dos orixs africanos com os santos catlicos. E no estgio ainda mais baixo viria o fetichismo estreito e inconver-tido dos africanos das tribos mais atrasadas, dos ndios, dos negros crioulos e dos mesti-os do mesmo nvel intelectual. V-se, por-tanto, que o pensar o outro sempre parte de um eu, no caso de Nina Rodrigues e do estudo das religies africanas, de um eu catlico a partir do qual classificaria as de-mais organizaes religiosas e seu grau de civilizao. Isso ocorre tanto por conta da formao catlica de Nina Rodrigues, quan-to pela tradio religiosa catlica no Brasil, uma vez que para alar os candombls condio de religio, era preciso identific--los como um culto organizado nos moldes prximos do catolicismo, ou seja, por meio de uma teologia, liturgia, concepo de ps--morte, crena numa divindade superior e assim por diante.

    A formalidade das prticas de Cer-teau (1982) auxilia a compreenso desse processo, elas referem-se ao reemprego de determinadas estruturas em funo de uma ordem que elas no mais determinam. Ain-da que intactas, as condutas por exemplo inscrevem-se em outras trajetrias sociais, obedecem a critrios, classificam-se segun-do categorias, visam objetivos que mudam. Essa formalidade est mais ou menos de acordo com os discursos oficiais ou tericos; ela os questiona j que organiza tambm uma prtica da leitura ou da audio, isto ,

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    uma prtica desses discursos, sem falar das prticas que eles esquecem ou exilam. Con-siderando a necessidade em medir a distn-cia, ou as relaes, entre a formalidade das prticas e a das representaes; por a pode--se analisar, com as tenses que trabalham uma sociedade na sua espessura, a natureza e as formas de sua mobilidade. exatamente o que se opera no Brasil, mediante separao Estado/Igreja, embora essa j no determine mais aquele, ainda exerce enorme influncia sobre ele.

    Conforme indicou Paula Montero (2006), no Brasil, o universo jurdico-legal definiu o religioso em referncia ao Ca-tlico. A autora corrobora a indicativa de Nina Rodrigues ao tratar da iluso da ca-tequese, devoo e converso, que teriam orientado grande parte das anlises sobre os fenmenos religiosos, descrevendo com preciso o que ocorreria no Brasil no campo das prticas. Dessa maneira, embora tenha perdido legitimidade para organizar o mun-do pblico, a Igreja Catlica foi importante matriz no processo de constituio da esfera pblica no Brasil. Ela no deixa de ser Igreja depois da Repblica: ainda hoje legitima-da como responsvel pelos ritos civis social-mente vlidos. Assim, embora a oposio entre crena e superstio no possa servir de fundamento para o controle das prticas rituais no catlicas, a distino entre sa-cramento e rito ainda reconhecida como perfeitamente legtima. Na medida em que esto na base da formao da esfera pblica, alguns cdigos catlicos ainda so percebi-dos como aqueles aceitveis para expressar ou demandar algo no espao pblico. Ain-da, reverberam na ideia de bem comum, nas

    associaes entre religio e verdade, de um lado, e entre feitiaria e falsidade, de outro (MONTERO, 2006).

    Ao produzir um paradigma para o es-tudo das religies africanas, Nina Rodrigues o partiu de um olhar catlico. Apesar de mdico, a estruturao do discurso assume um carter predominantemente etnolgico/antropolgico de cunho catlico. Certeau (1982) explica que o pesquisador crente no pode fazer mais do que introduzir sub-rep-ticiamente convices subjetivas no seu es-tudo cientfico. Tais motivaes intervm na escolha do objeto (relativo a um interesse re-ligioso) ou na finalidade do estudo (em fun-o de preocupaes presentes, por exemplo: a descristianizao e suas origens, a realida-de de um cristianismo popular, etc.).

    As marcas encontradas em ambos os discursos articulam a apropriao de uma metodologia de referencial protestante para representar religies africanas por meio de uma ressignificao catlica. Por marcas, entende-se uma combinao objetiva entre uma prtica e um signo, um ponto de in-terseo entre a linguagem da sociedade e a enunciao de uma f. A marca focaliza a expresso religiosa em gestos particulares. inexato pensar essas formalidades como religiosas, j que, precisamente, elas dei-xam de s-lo, e que, num certo sentido, se poderia considerar o tempo de seu preen-chimento religioso como um momento da histria dessas formas culturais. Geralmen-te, toda sociedade nascida e surgida de um universo religioso deve enfrentar a relao que mantm com sua arqueologia. Esse pro-blema est inscrito na cultura presente pelo fato das estruturas religiosas serem desloca-

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    das dos contedos religiosos que organizam as condutas racionais (CERTEAU, 1982).

    Certeau (1982) indica que uma socie-dade inteira diz o que est construindo, com as representaes do que est perdendo. O sagrado se torna a alegoria de uma cultura nova, no momento em que, inversamente, as aventuras do corpo fornecem experi-ncia espiritual sua nova linguagem (1982, p. 140). Ocorre, assim, uma retomada das estruturas religiosas, mas em outro regime. As organizaes crists so reempregadas em funo de uma ordem que elas no mais determinam: para as religies africanas e a cincia. Mesmo intactas nelas mesmas, as condutas inscrevem-se em outras trajetrias sociais. Obedecem a critrios, classificam-se segundo categorias, visam a objetivos que podem mudar. Essas questes revelam uma formalidade das prticas, ou seja, a presena de um discurso catlico em discurso preten-samente mdico-cientfico, o de Nina Rodri-gues sobre as religies afro-brasileiras.

    Abstract

    The aim is to understand the interpreta-tions drawn on Bahia religiosity taking as historical sources the works O ani-mismo fetichista dos negros bahianos (1935) and Os africanos no Brasil (1982), written by Nina Rodrigues; and Constituies Primeiras do Arcebispado da Bahia, written by archbishop Sebastio Monteiro da Vide, promulgated in 1777. More spe-cifically, to realize how this could have contributed to development of the no-tion of illusion of catechesis used by Nina Rodrigues to produce knowledge about the religiosity african-Brazilian,

    in Bahia (Nineteenth century). The theo-retical framework are Michel de Certeau (1982) to think about beliefs anthropolo-gy and Catholic practices formalities, and Roger Chartier (1990, 2002) and the concepts of world view and repre-sentation.

    Keywords: Illusion of Catechesis. Nina Rodrigues. Bahia religiosity.

    Resumen

    El objetivo es comprender las interpreta-ciones desarrolladas acerca dela religio-sidad de Baha tomando como fuentes histricas las obras O animismo fetichista dos negros bahianos (1935) y Os africanos no Brasil (1982), de Nina Rodrigues; y las Constituies Primeiras do Arcebispa-do da Bahia, escrito por el Arzobispo Se-bastian Monteiro da Vide, promulgadas en 1777. Entender ms especficamente cmo esto podra haber contribuido al desarrollo de la nocin de ilusin de la catequesis presente en Nina Rodri-gues para producir conocimiento sobre la religiosidad afro-brasileo de Baha en el siglo XIX. El marco terico utiliza-do consiste en Michel de Certeau (1982) para pensar la antropologa de la cre-encia y formalidades de las prcticas catlicas y Roger Chartier (1990, 2002) y los conceptos de visin del mundo y representacin.

    Palabras clave: Ilusin de la catequesis. Nina Rodrigues. Religiones afro-brasileas.

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    Notas1 Vale destacar que, em caminho inverso, e preo-

    cupada com o discurso dos intelectuais catlicos do sculo XX, Solange Ramos de Andrade (2012), no artigo intitulado Intelectuais Catlicos e a Iluso da Catequese no Brasil, problematizou o processo de construo do discurso sobre a iden-tidade religiosa no Brasil, a partir da influncia dos intelectuais, iniciando com a obra de Nina Rodrigues, em fins do sculo XIX, fornecendo as que forneceu as primeiras descries acerca das manifestaes religiosas africanas e as relaes com as crenas de cunho catlico que o escravo encontrou e assimilou, at os principais autores da dcada de 1960, como Thales de Azevedo.

    2 Tais aspectos foram aprofundados e podem ser consultados em minha tese de doutorado Nina Rodrigues e as religies afro-brasileiras: a formali-dade das prticas catlicas no estudo comparado das religies (Bahia - sculo XIX). Nessa, pude com-preender a investigao realizada por Nina Ro-drigues acerca das manifestaes religiosas dos povos africanos e seus descendentes na Bahia do sculo XIX. A tese que se demonstrou a de que, ao torn-las objeto de cincia e buscar formas conceituais para referenci-las, Nina Rodrigues representou-as a partir de um referencial cristo: o monotesmo catlico. Para tanto, adotei um duplo percurso: inicialmente, travei um dilogo entre as representaes do sujeito histrico Nina Rodrigues formuladas pela bibliografia especia-lizada, buscando apontar uma nova forma de abordagem que se afastasse de uma histria cujos personagens sejam enquadrados enquanto heris ou viles; para, em seguida, analisar as obras de Nina Rodrigues, atentando forma como ele se apropriou do modelo evolucionista cultural de E. B. Tylor para representar as religies dos afro-descendentes no Brasil; tendo por consequncia desenvolvido um paradigma para pensar as re-ligies no Brasil, pautado no mtodo de estudo comparado, cujo principal referente consistiu no monotesmo catlico. Embora no se possa di-zer categoricamente que Nina Rodrigues parta do objetivo de defesa da f catlica, a pesquisa constatou que suas observaes, interpretaes e concluses para pensar religio no poderiam sustentar como insignificante a diferena entre os quadros de referncia em funo, dos quais uma sociedade organiza as aes e os pensamentos. Embora parta da cincia e de um Estado laico, no se consegue, como pretendia, simplesmente apagar de sua viso de mundo todo um apara-

    to catlico de formao, de percepo de valores, prprio do lugar social no qual ele se insere.

    3 A fim de referenciar as Constituies Primeiras do Arcebispado da Bahia, optou-se seguir o mo-delo da ficha catalogrfica da edio utilizada: VIDE, Sebastio Monteiro da. Constituies Pri-meiras do Arcebispado da Bahia: estudo intro-dutrio. Edio de Bruno Fleiter, Evergton Sales Souza, Istvan Jancs, Pedro Putoni (Orgs.). So Paulo: EDUSP, 2010.

    4 Ttulo 3. Das feitiarias, supersties, sortes e agouros. Como sero castigados os que usarem de artes mgicas (VIDE, 2010, p. 462); Ttulo 4. Que nenhuma pessoa tenha pacto com o de-mnio nem use de feitiarias; e das penas que incorrem os que o fizerem (VIDE, 2010, p. 463) e Ttulo 5. Das penas dos que usam cartas de to-car, e de palavras ou bebidas amatrias ou coisas semelhantes (VIDE, 2010, p. 464).

    Referncias

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