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BH/(I~C - HISTÓRIA DAS MULHERES NO BRASIL DE MARY DEL PRIORI HISTÓRIA DAS MULHERES NO BRASIL EDUNESP/CONTEXTO, 1997, 678p D epois dos anos 70, quando o feminis- mo começava a se expandir no Brasil e no mundo, as mulheres toma- ram as palavras para de- nunciar os longos séculos de dominação a que foram submetidas. A fala femini- na começava a emergir do silêncio, transformando-se em protestos, mudando valores e provocando rupturas que hoje acha- mos naturais, mas que para a época, eram ra- dicais. No campo da historiografia, os estudos sobre a mulher foram pouco a pouco ganhan- do novos contornos. Apareceu no começo dos anos 90 a famosa coleção organizada por George Duby e Michelle Perrot, Histoire des Femmes, já traduzida para a língua portuguesa e publicada originalmente na Itália. Esse tra- balho deixou uma marca decisiva na historio- grafia das mulheres, dentro da linha chamada a história da mentalidade, com suas incursões pelo cotidiano, a valorização de microtemas, tão questionados pelos mais ortodoxos, mas com desdobramentos férteis como podemos atestar. Temos agora entre nós uma obra não com a mesma envergadura da obra de Duby e Perrot, mas certamente com um lugar de des- taque na historiografia brasileira contemporâ- nea. Trata-se do livro História das Mulheres no Brasil, organizado por Mary DeI Piori, edi- tado pela Edunesp/Contexto. São 678 páginas, contendo 19 artigos, a maioria deles escrito por mulheres. Apesar de volumoso, o livro faz per- correr não só pela história das mulheres desse país, as relações de gênero, mas constitui um verdadeiro painel que nos permite compreender a família, as relações com os filhos, pais, padrastos, na- morados e patrões, com- binando o público eo privado, a casa ea rua, numa tentativa fecundada de compreender esses en- trelaçamentos nem sempre visíveis na perspectiva historiográfica mais tradicio- nal, onde na maioria das vezes as pessoas não aparecem em cena, ou quando aparecem são reduzidas a meros atores sem vida e sem histó- ria. Temos, por exemplo, o estudo de Luciano Figueiredo, sobre as "Mulheres nas Minas Ge- rais", mostrando a participação significativa das mulheres em atividades importantes para a eco- nomia de uma região que sofreu um rápido e desordenado processo de urbanização, provo- cado pela descoberta das minas. Vemos aí a mulher assumindo um papel destacado no co- mércio ambulante, onde as negras de tabuleiro inventaram mil estratagemas para burlar o con- trole sobre o comércio que muitas vezes enco- bria o contrabando de pedras, quando não transformava as verdadeiras em donas de ca- sas de alcouces e prostíbulos. Maria Ângela D Incao, nos brinda com um belo ensaio chamado Mulher e Família Burguesa, nos mostrando o apriosionamento das mulheres de bem à teia do mundo domés- tico e da família, modelo adequado à constru- ção de uma família "burguesa e higienizada". Com outra perspectiva, pode-se ler o trabalho de Guacira Lopes Louro, analisando a relação da mulher com o processo educacio- nal desde o período colonial até os dias de hoje. Mulheres em Sala de Aula nos fornece POR BENEDITO CARVALHO FILHO SOCIÓLOGO, MESTRE PELO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM SOCIOLOGIA DA UFC RESENHA. 137

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BH/(I~C

-HISTÓRIA DAS MULHERES NO BRASIL

DE MARY DEL PRIORI

HISTÓRIA DAS MULHERES NO BRASIL

EDUNESP/CONTEXTO, 1997, 678p

D epois dos anos 70,quando o feminis-mo começava a se

expandir no Brasil e nomundo, as mulheres toma-ram as palavras para de-nunciar os longos séculosde dominação a que foramsubmetidas. A fala femini-na começava a emergir dosilêncio, transformando-seem protestos, mudandovalores e provocando rupturas que hoje acha-mos naturais, mas que para a época, eram ra-dicais. No campo da historiografia, os estudossobre a mulher foram pouco a pouco ganhan-do novos contornos. Apareceu no começo dosanos 90 a famosa coleção organizada porGeorge Duby e Michelle Perrot, Histoire desFemmes, já traduzida para a língua portuguesae publicada originalmente na Itália. Esse tra-balho deixou uma marca decisiva na historio-grafia das mulheres, dentro da linha chamadaa história da mentalidade, com suas incursõespelo cotidiano, a valorização de microtemas,tão questionados pelos mais ortodoxos, mascom desdobramentos férteis como podemosatestar.

Temos agora entre nós uma obra nãocom a mesma envergadura da obra de Duby ePerrot, mas certamente com um lugar de des-taque na historiografia brasileira contemporâ-nea. Trata-se do livro História das Mulheresno Brasil, organizado por Mary DeI Piori, edi-tado pela Edunesp/Contexto. São 678 páginas,contendo 19 artigos, a maioria deles escritopor mulheres.

Apesar de volumoso, o livro faz per-correr não só pela história das mulheres dessepaís, as relações de gênero, mas constitui um

verdadeiro painel que nospermite compreender afamília, as relações com osfilhos, pais, padrastos, na-morados e patrões, com-binando o público e oprivado, a casa e a rua,numa tentativa fecundadade compreender esses en-trelaçamentos nem semprevisíveis na perspectivahistoriográfica mais tradicio-

nal, onde na maioria das vezes as pessoas nãoaparecem em cena, ou quando aparecem sãoreduzidas a meros atores sem vida e sem histó-ria. Temos, por exemplo, o estudo de LucianoFigueiredo, sobre as "Mulheres nas Minas Ge-rais", mostrando a participação significativa dasmulheres em atividades importantes para a eco-nomia de uma região que sofreu um rápido edesordenado processo de urbanização, provo-cado pela descoberta das minas. Vemos aí amulher assumindo um papel destacado no co-mércio ambulante, onde as negras de tabuleiroinventaram mil estratagemas para burlar o con-trole sobre o comércio que muitas vezes enco-bria o contrabando de pedras, quando nãotransformava as verdadeiras em donas de ca-sas de alcouces e prostíbulos.

Maria Ângela D Incao, nos brinda comum belo ensaio chamado Mulher e FamíliaBurguesa, nos mostrando o apriosionamentodas mulheres de bem à teia do mundo domés-tico e da família, modelo adequado à constru-ção de uma família "burguesa e higienizada".

Com outra perspectiva, pode-se ler otrabalho de Guacira Lopes Louro, analisando arelação da mulher com o processo educacio-nal desde o período colonial até os dias dehoje. Mulheres em Sala de Aula nos fornece

POR BENEDITO CARVALHO FILHO

SOCIÓLOGO, MESTRE PELO PROGRAMA DE

PÓS-GRADUAÇÃO EM SOCIOLOGIA DA UFC

RESENHA. 137

BH/UFC

um rico panorama de uma história que come-çou com o cerceamento à educação, caminhouna direção da incorporação gradativa da mu-lher, forjando para isso uma relação de conti-nuidade entre a tarefa primordial da mulher -a maternidade - e a missão educadora, até nosrevelar o contínuo processo de "ferninízaçãodo magistério", processo acompanhado pelocrescente desprestígio da categoria e da antiga"arte de educar".

Para quem deseja mergulhar no imagi-nário da mulher nordestina não pode deixarde ler o artigo de Miridan Knox Falei, Mulhe-res do Sertão Nordestino. Aqui temos um dosraros trabalhos sobre a mulher de nossa re-gião: u As mulheres no tempo (século XIX), noespaço (o sertão, as províncias do Piauí e Cea-rá) que aparecem cantadas na literatura decordel, em testemunhos, inventários e livrosde memórias." Falei nos fornece elementospreciosos para compreendermos isso que sechama abstratamente a mulher nordestina,numa região onde se gestou uma sociedadefundamentada no patriarcalismo, altamenteestratificada entre homens e mulheres, entrericos e pobres, entre escravos e senhores, en-tre "brancos" e "caboclos". Aqui temos um ricomaterial para quem deseja dar continuidade àspesquisas sobre o comportamento da mulhernordestina. Não deixa de provocar espantoquando a autora nos fala sobre o casamentono sertão, os casamentos acertados, os casa-mentos das mulheres pobres e ricas, os raptosconsentidos, a violência na relação conjugal.Ficamos sabendo, por exemplo, que a primei-ra mulher brasileira a concorrer a uma cadeirada Academia Brasileira de Letras era do SertãoNordestino, nascida em Jurumenha, no Piauí,em 1861 e chamava-se Amélia de Freitas, filhado ilustre desembargador José Manoel de

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Freitas, governador das províncias do Maranhãoe do Ceará. Ela foi redatora de uma revistaliterária exclusivamente feminina, em Recife,de 1902-1904. Escreveu os romances Alcyone,Açucena ejeannette, além de contos e artigos.

O que chama a atenção neste belo li-vro é a riqueza e a diversidade temática dostextos. Também a riqueza das fontes pesqui-sadas: os relatos dos missionários, processosinquisitoriais e criminais, antigos manuais eteses de medicina, documentos de arquivoseclesiásticos, cronistas, romances, etc. Mostra-nos, também, a exemplo do que já vem sendofeito por muitas autoras que estudam a mulhere a família no Brasil, a diversidade de situa-ções regionais, sem que haja um modelo fixode patriarcalismo, conforme enfatizavam asanálises sociológicas mais antigas, principal-mente depois da obra de Gilberto Freyre, CasaGrande e Senzala.

História das Mulheres no Brasil, organi-zado por Mary DeI Priori - autora de um impor-tante livro chamado Ao Sul do Corpo - condiçãofeminina; maternidades e mentalidades no Bra-sil Colônia - se inscreve como um dos maisousados trabalhos sobre a condição da mulherno Brasil. Existem, certamente, lacunas, omis-sões, mas isso poderá ser complementado pelacontinuidade da obra que, esperamos, seja le-vada adiante. Eis uma obra não só para as mu-lheres, mas para todos aqueles preocupados emcompreender profundamente, sem preconcei-tos, a trajetória da relação de gênero e os duroscaminhos percorridos pela mulher brasileira atéos dias atuais. Ela abre novos horizontes, insti-ga, desvenda trilhas que podem ser percorridasnesse labirinto mágico e intrigante - ao mesmotempo fascinante - que é o mundo feminino,com suas lutas, desejos, fantasias e gozos. De-sejo que move a história.