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Justicia en la Teora Poltica Clsica y Moderna ISSN 2250-4982 - Vol. 2 N 2 - Mayo 2012 a Noviembre 2012 pp. 129-169
Por uma histria imanente: estrutura do aparecer e relao contingente a partir de Hegel. For an immanent history: appearing structure and contingent relation from
Hegel.
Gustavo Chataignier Gadelha *
Fecha de Recepcin: 17 de Abril de 2012
Fecha de Aceptacin: 28 de Abril de 2012
Resumo: O objetivo desse trabalho o de explorar a historicidade enquanto um
horizonte privilegiado da filosofia. A questo polemizada na
introduo do presente trabalho, onde se constata um certo descrdito
em relao histria no atual quadro de pensamento contemporneo.
Todavia, nosso campo conceitual sobretudo o pensamento de Hegel,
mais especificamente o segundo tomo da Cincia da Lgica, ou seja, a
Doutrina da Essncia. Apontamos os limites da obra hegeliana, tanto
nos cursos sobre a histria quanto na Filosofia do Direito. Isso posto,
passamos caracterizao e tentativa de sistematizao a partir da
contingncia, tomando como o em si de um tal projeto a dupla
conceitual de necessidade e possibilidade. Ao cabo disso,
aproximamos esse leitura de Hegel com as preocupaes marxianas da
ordem da estratgia.
Palavras-
chave:
Histria, contingncia, necessidade/possibilidade, essncia/aparncia,
teoria crtica.
1
* Doutor em Filosofia pela Universit de Paris VIII, bolsista do Programa Alban (Programa de Bolsas de
Alto Nvel da Unio Europeia para a Amrica Latina, bolsa E07D400126BR). Professor do Departamento
de Comunicao Social da PUC-Rio, na disciplina de Esttica da Comunicao de Massas. Correo
electrnico: [email protected]
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Por uma histria imanente: estrutura do aparecer e relao contingente a partir de Hegel.
Justicia en la Teora Poltica Clsica y Moderna ISSN 2250-4982 - Vol. 2 N 2 - Mayo 2012 a Noviembre 2012 pp. 129-169
Abstract: The aim of this study is to explore historicity as a privileged philosophy
horizon. This question is argued in the introduction of the work, where
one finds a discredit upon history in the current context of contempo-
rary thought. However, our conceptual field is especially Hegel's
thought, specifically the second volume of Science of Logic, that is to
say the Doctrine of Essence. We point out the limits of Hegelian work,
both in the courses on history as well as on philosophy of law. That
said, we attempted to characterize and systematize from contingency,
taking for so, as the "in itself" of such a project, the conceptual couple
of necessity and possibility. After that, this reading of Hegel is ap-
proached with the marxians concerns of the order of strategy.
Keywords: History, contingency, necessity/possibility, essence/appearance, critical
theory.
Introduo por que a histria
O propsito desse texto consiste em se interrogar acerca da histria como um hori-
zonte privilegiado da filosofia. Antes de mais nada, questo de debater o que pode
ser o tempo histrico em sua especificidade; a saber, enquanto um processo nascido
do alargamento das relaes sociais. Uma tal temporalidade seria portanto caracteris-
ticamente imanente, na medida em que seguiria o emanharamento aleatrio dos rit-
mos das atividades humanas. A expectativa, abalada por novas experincias (Kosel-
leck), cria uma racionalidade capaz de apreender a contingncia das penltimas coi-
sas (Kracauer). Nesse sentido, a narrativa que da se constroi tem forosamente que
ver com a prtica (Ricur).
Pode o pensamento, em pocas de crise de utopias, propor um tempo imanente que
no se reduza ao empirismo? At que ponto possvel afastar-se do liame clssico
entre histria e filosofia, segundo o qual se prope o desenrolar temporal (histria) de
uma figura (filosofia) intemporal (a verdade ou as verdades)? Dito de outra ma-
neira, como uma filosofia que se debrua sobre o condicionamento recproco entre
homem e mundo onde este habita pode se renovar sem no entanto deixar-se levar
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pelo ritmo da naturalidade do momento vivido? Tal espanto enseja a questo acerca
do legado de Marx: ele um acabamento da filosofia da histria ou o comeo de uma
nova relao com a histria1? Samos de uma filosofia da histria para uma filo-
sofia na histria, onde as disputas presentes podem vir a reorientar o tempo fora dos
gonzos.
A lgica de um vir a ser independente de mediaes expressa na mxima
improvisar sem objetivo se encontra nos antpodas do pensamento histrico. A
passagem, no seio do pensamento francs, dos estudos tendo como o horizonte a
histria s preocupaes acerca de uma ontologia do tempo, apontam para a renncia de
toda perspectiva estratgica2: O que conta em um caminho sempre o meio, no o
incio ou o fim. Sempre se est no meio do caminho, no meio de alguma coisa: no devir
no h histria3.
O chamado tournant linguistique remete o domnio da realidade positiva ao modelo
dos jogos de linguagem, privilegiando a constatao de efeitos ao invs de tentar buscar
1 BALIBAR, tienne. La crainte des masses Politique et philosophie avant et aprs Marx. Paris : di-
tions Galile, 1997, p.300. Essa viso prxima dos apontamentos de Henri Lefebvre, para quem as estratgias suplantam a histria na realizao dos sentidos (La fin de lhistoire. Paris: Minuit, 1970, p.136). 2 BENSAD, Daniel. loge de la politique profane. Paris : Albin Michel, 2008, p.156.
3 DELEUZE, Gilles e PARNET, Claire. Dialogues. Paris : Flammarion, 1996, p.37. O sonho de uma
histria contnua , sem reservas, associado por Foucault funo fundadora do sujeito. questo da fome desmesurada de um sujeito que anela tudo reter e que exige do tempo uma restituio total das im-
posies passadas atitude de uma constituio psquica ressentida, notaria um nietzscheano. A hist-ria no passaria, para essa noo, de uma tomada de conscincia, cujo objetivo o de se apropriar do que se acha disperso : O tempo concebido em termos de totalizao e as revolues so sempre toma-das de conscincia. A referida descontinuidade apresenta-se ao mesmo tTempo como instrumento e objeto de pesquisa (FOUCAULT, Michel. LArchologie du Savoir. Paris : Gallimard, 1999, p.264 e 17). Entretando, esse projeto no pode desvincular-se em absoluto da continuidade, como o estima
Ricur. As sociedades mantm-se e existem em variados modos de continuidade, malgrado as rupturas epistemolgicas dos saberes. Por isso que Ricoeur defende uma regra de transformao em uma dia-ltica de inovao e de sedimentao, e no pura e simplesmente o corte como mtodo (RICUR, Paul. Temps et Rcit III. Paris : ditions du Seuil, 1985, p.316-7).
Em um dado momento, Foucault mantm a categoria de classe, mas apenas para superar os positivismos
sociolgicos. Os socilogos indagam-se o que uma classe; contudo, o decisivo conceitualizar as
estratgias de luta, e isto a partir de Marx (FOUCAULT, Michel. Dits et Ecrits II. Paris : Gallimard,
2001, p. 605). Esta ambivalncia de Foucault para com Marx finamente compreendida por Bensad: Se a luta de classes no mais para Foucault a ultima ratio do exerccio do poder, ela se constitui como fiadora da estratgia calcada, no obstante, na irredutibilidade das resistncias (loge de la politique profane, op. cit., p. 168-9).
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causalidades transitivas. Isso posto, perde sentido qualquer discurso de alieno pela
histria visto que se trata, seno mais fundamentalmente ao menos teoricamente, de
uma alienao da histria.
Retomemos a instigante citao de Gilles Deleuze. Qual o sentido de semelhante
indagao? O que se busca? O momento em que o tempo reversvel? O ponto onde os
possveis encontram-se disponveis ou, ainda, sua produo no est bloqueada?
Bloqueada por um agente, por um grupo ou pelos desgnios da Razo (com um R
maisculo)? Porm, mais vale, histoire oblige, pensar a temporalidade sob uma relao
de alteridade consigo mesma do que propor uma reversibilidade do tempo, de resto
duvidosa, em nome da crtica do princpio de causalidade. Assim, nos moveramos em
uma racionalidade da semelhana, onde a identidade fraca to contingente quanto
a autoriza a prtica a prpria condio de possiblidade movente. A via da histria
incerta, mas ela permanece uma via, voz que assombra, como o reconhece Gilles
Deleuze: A histria nos ensina que as boas estradas no tm fundao, e a geografia
que a terra s frtil em uma magra camada4.
4 DELEUZE e PARNET, Dialogues, op. cit, p.20. Os problemas de uma sociedade, determinados pela
rigidez de sua infraestrutura e sua impermeabilidade mudana, oferecem como paliativo a ascenso
econmica individual. Porm, o princpio do trabalho abstrato permanece vlido. A despeito dessa
estrutura que resiste a mudanas e que se revela pouco acolhedora aos recm chegados, as mitologias
contemporneas que valorizam o culto s celebridades comeam a proliferar; no se valoriza seno
aqueles que chegaram ao topo da pirmide social. Deleuze v nesse processo a atualizao ou a diferenciao no seio da diviso social do trabalho para Lyotard, por seu turno, se trata de uma energia sem deslocamento ou de um retorno regulado (LYOTARD, Jean-Franois. Notas sobre o Capital. In: Por que Nietzsche?. Traduo Carlos Henrique Escobar. Rio de Janeiro: Achiam, 1998, p.51-3). A falsa soluo tem uma falsa imagem do problema. O fetichismo aparece como a
absurdidade, como a iluso da conscincia social. Quer-se dizer com isso que nos encontramos fora da perspectiva de um fenmeno espontneo e naturalmente subjetivo, ou seja, de um delrio individual ou
ainda de uma m conscincia: questo de uma (...) iluso objetiva, (...) nascida das condies da conscincia social no curso de sua atualizao, imanente ao funcionamento do capitalismo e por ele engendrada. O fetichismo tem um corpo objetivo de onde emanam todas as figuras do no sentido: quer dizer as contrafaes da afirmao, as ms formaes dos elementos e das relaes, as confuses entre o
relevante e o ordinrio. Chega a ser admirvel o fato de que a histria seja valorizada por um autor que sempre a criticou. A histria tanto o lugar da besteira quanto o lugar do processo de sentido (DELEUZE, Gilles. Diffrence et Rptition. Paris : PUF/Epimthe, 2008, p.268). O elogio de Deleuze a
Althusser na deixa de ser espantoso, na medida em que o acento na ideia de estrutura aparece, para o
primeiro, como uma completa negao da histria o que conjuga mal com os postulados de Althusser: Althusser e seus colaboradores tm portanto profundamente razo de mostrar em O Capital a presena de uma verdadeira estrutura, e de recusar as interpretaes historicistas do marxismo, posto que essa
estrutura no age de forma alguma de maneira transisita e seguindo a ordem da sucesso no tempo, mas
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Por uma histria imanente: estrutura do aparecer e relao contingente a partir de Hegel.
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A exigncia do respeito da no contemporaneidade do tempo consigo mesmo, e
portanto a exigncia de uma determinao no exclusivista e no mecnica, fazem com
que a dupla conceitual necessidade e possibilidade sejam chamadas tona. Eis nossas
ferramentas lgicas para uma metafsica materialista. O tempo obedece a uma
dominncia: a diversidade de presenas se liga e segue uma tendncia, que no
corresponde mdia de foras. Paradoxalmente, a cronologia no linear, mas
obedece ao que acontece. Cada dimenso da vida obtm assim sua temporalidade
prpria.
A tarefa que se nos impe como ordem do dia a de problematizar uma noo de
histria que escape metafsica. Para tanto, no podemos considerar Hegel, malgrado
seu incontestvel idealismo, um cachorro morto5 e tampouco lidar com o legado de
Marx como se se tratasse de sobras do idealismo alemo, despojadas em um complexo
fabril6.
encarnando suas variedades em sociedades diversas e dando conta, em cada uma delas e em cada vez, da
simultaneidade de todas as relaes e termos dos quais constitui a atualidade uma vez que o fator econmico no dado imediatamente, ele ser a instncia pela qual os problemas da formao social so colocados. Assim sendo, foroso admitir que a filosofia de Deleuze, mesmo em suas pesquisas para
as obras de Capitalismo e Esquizofrenia, distanciou-se das vias entrevistas aqui em Diferena e Repetio
(Ibidem, p.241). Constatemos, pois, que o desenvolvimento ao qual acabamos de aludir responde ao que
Deleuze entende por Ideia social e no a uma determinao. preciso portanto evocar Althusser, para quem o conceito de histria diferencial autoriza a pesquisa de temporalidades especficas, sem que para tanto se perca de vista a independncia relativa que cada uma dessas esferas experimenta em relao articulao dominante da economia. Nesse ponto, compreenderemos o que afasta Althusser de Deleuze.
Dito ainda de outra maneira, a pura positividade deste ltimo permanece inoperante diante de uma
problemtica marxizante: Conceber a independncia relativa de uma histria e de um nvel no pode portanto jamais se reduzir afirmao positiva de uma independncia no vazio, nem mesmo a uma
simples negao de uma independncia em si: conceber essa independncia relativa definir sua relatividade, quer dizer, o tipo de dependncia que produz e fixa como seu resultado necessrio esse modo de independncia relativa; determinar, ao nvel das articulaes de estruturas parciais dentro do todo, esse tipo de dependncia produtor de independncia relativa do qual observamos os efeitos nas
histrias de diferentes nveis (ALTHUSSER, Louis. Lire Le Capital II. Paris: Maspero, 1965, p.47). 5 MARX, Karl. Le Capital Critique de lconomie Politique, livro I, tomo I, Le Dveloppement de la
Production Capitaliste. Traduo Joseph Roy, revisada pelo autor. Paris : ditions Sociales, 1978, p.29.
Porm, humana, demasiado humana, a pujante crtica hegeliana ao entendimento se recolhe em uma
onto-teologia cujo carter autoreferencial se demonstra contraproducente se mantida a visada do mun-do (o no-conceitual) como objeto da filosofia. Veremos que se a obra de Marx inteligvel por si s,
sem o socorro externo, o rearranjo da Cincia da Lgica cuja releitura faz com que o em si em ques-to seja a contingncia e no mais a liberdade enseja uma compreenso da realidade segundo a espessu-ra histrica, o que denominamos por filosofia da mediao. A proposio de um Marx hegeliano se com-
provando de delicada comprovao, sobretudo au nvel filolgico, propomos, ainda um assim um Hegel com Marx. 6 Recuperemos as Cartas a Ruge. O projeto que Marx alimenta, ento com a ajuda de Ruge, o de
satisfazer realmente as demandas reais. Eis o ponto de partida seguro, o que no se erige, medita
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Por uma histria imanente: estrutura do aparecer e relao contingente a partir de Hegel.
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Pode-se dizer que o ultranominalismo catalogador que a tudo d um nome tem como
revs necessrio a universal equivalncia entre os entes. Dito de outra maneira, o polti-
co se v transposto aos demais debates sem que se tenha o cuidado de propor possveis
relaes polticas na arte, na academia, no direito, nas cincias, no amor etc. Desmistifi-
cada est a hiptese estetizante7 mediante uma tal refuncionalizao da arte, exposta, ela
tambm, ao princpio de mudana histrico. Para falar como Alain Badiou, a filosofia,
por si s, no e tampouco faz acontecimentos. Medida do desmesurado, a filosofia
extrai relaes das coisas por meio de uma enquete subjetiva, chamada de procedimen-
to de verdade, concomitantemente indeterminados e completos: o amor, a cincia, a
arte e a poltica8. Neste espao do encontro, o universal vazio pode ser preenchido pelo
singular sob o olhar da filosofia. Sua funo de inscrever a contingncia do aconte-
cimento na durao. Pensamos tambm na lgica da contradio e o terceiro excludo
como, por assim dizer, condio filosfica: para alm de oposio rasa e binria, h a
relao entre termos e um meio de embate: uma oposio determinada se torna, posto
Marx, como a garantia do objetivo atingido. Uma vez mais distanciando-se dos jovens hegelianos, a nova tendncia assim formulada recusa-se a antecipar o mundo dogmaticamente, dando-se por tarefa descobrir o mundo novo, ao comear com a crtica do antigo. Marx celebra o fato de que a filosofia secularizou-se; isso se explicaria porque ela (...) se encontra levada pela virada do combate de maneira no s exterior, mas tambm interior A construo do futuro resolutamente afastada, de onde a m-xima do projeto crtico : a crtica impiedosa de toda ordem estabelecida, incluindo evidentemente a filosofia (MARX, Karl. Une Correspondance ( Lettres Ruge ). In: Philosophie. Traduo Maxi-
milien Rubel, Louis Evrard e Louis Janover. Paris : Gallimard/Folio, 2005, p.43). 7 O mecanicismo no exclusividade do marxismo vulgar. Concordamos com a assertiva nietzscheana
segundo a qual a historia de uma coisa a histria de sua dominao, das apropriaes que sofreu
(NIETZSCHE, Friedrich. La Gnalogie de la morale. Traduo Patrick Wotling. Paris: Livres de Poche,
2008, p.152-3). Todavia, no damos o passo adiante na considerao da vida como expresso pura da
vontade de potncia. Encontra-se em Deleuze uma crtica do ressentimento e de sua dominao dos
valores aristocrticos; uma das ideias mais fecundas de Nietzsche teria sido a de munir o pensamento da
exterioridade das foras, o que tornaria impossvel a interiorizao do sofrimento, ossificado. Surge,
inesperadamente, um sentido da histria, orientado pela produo de niilismo: a longa histria do niilismo chegaria a seu fim desde que o negativo se voltasse contra as foras reativas. Para Deleuze,
finalmente, a dialtica a ideologia do ressentimento (DELEUZE, Gilles. Nietzsche et la philosophie. Paris: PUF/ Quadriges, 1999, p.226 e 183). A dialtica do mestre e do escravo, tal como desenvolvida na
Fenomenologia do Esprito, entendida como a submisso do desejo deste em funo daquele. Isso
posto, toda reivendicao de reconhecimento seria forosamente moldada e transcrita nos termos e
linguagem do escravo. Emmanuel Renault desvenda com perspiccia a questo, ao afirmar que o quadro
normativo submetido mudana, e no apenas a revendicao subjetiva ( Reconnaissance, lutte,
domination : le modle hglien . In : Politique et Socits. Nmero especial: La lutte pour la
reconnaissance et la thorie critique. Organizao M. Seymour, Martin Blanchard. Qubec : Socit
qubcoise de science politique, volume 28, nmero 3, 2009, p. 23-43). 8 BADIOU, Alain. Ltre et lvnement. Paris : Seuil, 1988, p.23-4.
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que objetivada, uma proposio cuja compreenso possvel graas sua subjeti-
vidade, no sentido de autonomia9.
Desaparece enquanto referncia terica a compreenso da poltica como agonismo.
Mais ainda, some a teoria que se debrua sobre um fenmeno especfico. Ora, se tudo
poltico, nada poltico: sem rupturas, o presente segue seu fluxo naturalizando as con-
dies sociais e recalcando eventuais choques e questionamentos. Uma vez mais, essa
recepo nos parece justificar nosso plano de pesquisa. A exumao de Hegel e de Marx
pode contribuir para estudos no tanto comparativos, mas, isto sim, relacionais, que
liguem seus objetos aos ritmos da vida em sociedade. Por isso, o modelo hegeliano do
reconhecimento, bem como a luta de classes e a ideia da independncia relativa
em relao economia10
se prestam a jogar luzes na emergncia de novos desafios para
a crtica11
. Nesse universo, por exemplo, inserem-se as questes da estraggia e da he-
gemonia.
Resta abordarmos a espinhosa questo da relao entre Hegel e Marx.
9 HEGEL, G. W. F. Science de la Logique, livro II, tomo I, La Doctrine de lessence. Traduo Pierre-Jean
Labarrire et Gwendoline Jarczyk. Paris : Aubier-Montaigne, 1982, p.79.
10 Nesse quesito, ver ALTHUSSER, Louis. Pour Marx. Paris : Maspero, 1965. Ou, ainda, a definio da
histria como um processo sem sujeito (ALTHUSSER, Louis. Rponse John Lewis. Paris : Maspero, 1973, p. 3). O processo est ele tambm exposto processualidade, explica Merleau-Ponty: os devires-verdadeiros so sempre inacabados (Les Aventures de la Dialectique. Paris: Gallimard, 1967, p.114).
11 As preocupaes contemporneas hegelianas propriamente ditas se concentram, no que tange a uma
temtica social, sobre as disputas de reconhecimento interssubjetivo. A posteriadade do modelo hegeliano
de reconhecimento, fundado na Fenomenologia do Esprito, escolha justificada devido publicao do
vivo de seu autor e retomada na grande Enciclopdia, se desenvolveu em sobretudo trs frentes: segundo
a anlise feita por Emmanuel Renault ( Reconnaissance, lutte, domination : le modle hglien , op.
cit.), destacam-se uma teoria idealista da liberdade, uma teoria da intersubjetividade social e uma teoria da antropognese. Sobre esses trs pontos, ver respectivamente PIPPIN, Robert. What is the Question for which Hegels Theory of Recognition is the Answer? In: European Journal of Philosophy, 8 (2). Oxford: Blackwell Publisher, 2000; WILDT, Andreas. Autonomie und Anerkennung. Hegels
Moralittskritik im Lichte seiner Fichte-Rezeption. Stuttgart: Klett-Cota, 1982, p. 349 sq.; HONNETH,
Axel. La lutte pour la reconnaissance. Traduo Pierre Rusch. Paris: ditions du Cerf, 2000 e tambm TAYLOR, Charles. Multiculturalisme : Diffrence et dmocratie. Traduo Denis-Armand Canal. Paris :
Aubier, 1994; KOJVE, Alexandre. Introduction la lecture de Hegel. Paris : Gallimard/Tel, 2000. O
marxismo, por sua vez, se alimenta tanto dos movimentos neo-terceiro mundistas, como em alguns pases
da Amrica do Sul, quanto da tematizao de revoltas populares, a exemplo da Primavera rabe e das
manifestaes urbanas contra a ajuda financeira massa falida de bancos privados. Em termos tericos,
h tanto o debate sobre o comunismo e o uso comum de bens no contexto de um mundo ecologicamente
comprometido, quanto a via institucional que prentende aproveitar as contradies produziadas de forma
imanente pelo sistema. Poder-se-ia dizer que o marxismo busca o lugar prtico de uma teoria das contra-
dies imanentes reproduo da sociedade.
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Alm do corte e da conscincia?
Hegel com Marx, uma hiptese de trabalho
Nossa inteno no a de restituir um Marx originrio aos especialistas, mas
simplesmente de sacudir o pesado sono das ortodoxias. Antes de ser evidente, a
relao entre Hegel e Marx faz problema. Longe de resolv-lo, nos propomos a: 1)
elaborar uma teoria da contingncia tendo como referncia um certo Hegel; 2) aps um
tal rearranjo, a relao entre um outro menos verificada do que recriada; 3) a
constatao da autonomia de ambos os pensamentos, mediante estudo de fundo
filolgico (referenciado sem porm ser levado a cabo aqui), no desencoraja a
aproximao de diferenas: a potncia sistematizadora presente no gesto hegeliano pode
se coadunar com preocupaes de ordem concreta oriundas da racionalidade marxista.
Finalmente, ao trmino desse texto, teremos a oportunidade de recuperar alguns termos
desse rico e, esperamos, inconcluso debate. Teoricamente, a questo da essncia
deslocada: escapando tanto a um air du temps ou Zeitgeist nietzscheano que pode vir a
condenar aprioristicamente o vocbulo essncia como platnico (sem atentar lgica
do sentido...), quanto ao consenso e cristalizao da verso althusseriana de Marx,
onde o dualismo entre essncia e aparncia impedem o surgimento da cincia
madura. A essncia , antes, uma construo orgnica que mostra o devir do ser em
mltiplas relaes. Nesse prisma, a ontologia historicizada.
Mesmo quando Marx enredado no canto das sereias so progresso e do modelo
fsico da cincia positiva de sua poca, seu pensamento no homogneo e sua carga
crtica resiste. Por esse motivo seus escritos no so passveis de reunio em torno de
uma doutrina, mas, isto sim, em uma teoria da prtica susceptvel de vrias leituras.
Diferentes marxismos de Korsch a Althusser, de Luxemburgo a Kautsky, de Benjamin
a Negri nos levam a diferentes Marx12. Nesse postulado jaz toda a riqueza dos
marxismos, no plural, para falar com Derrida13
. Nesse sentido, Marx mais um
revelador do que um ilustrador14.
12
BENSAD, Daniel. Marx o Intempestivo - grandezas e misrias de uma aventura crtica nos sculos
XIX e XX. Traduo Luiz Cavalcanti de M. Guerra. Rio de Janeiro : Civilizao Brasileira, 1999, p.12-15. 13
DERRIDA, Jacques. Spectres de Marx. Paris : Galile, 1993, p.20 14
BALIBAR, tienne. La philosophie de Marx. Paris : La Dcouverte, 1993, p.83-6.
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Antes de mais nada, no sistematizaremos o pensamento de Marx: primeiramente,
mais fundamentalmente do que Spinoza, Kant, Schelling e Hegel, seus interlocutores
mais privilegiados foram os jovens hegelianos (ou aqueles foram mediatizados por es-
tes); em segundo lugar, o materialismo, a praxis, a dialtica e a epistemologia, a todo
rigor, apresentam incongruncias quando transpostas s questes propriamente marxis-
tas15
.
Por um lado, a leitura de Marx impe limites e questes que uma viso retrospectiva
homogeneizante incapaz de captar: bate-se de frente com conceitos kantianos (as con-
tradies heterogneas e irredutveis entre o saber e o real) e schellingnianos (o primado
do devir sobre o ser e a concepo de uma totalidade orgnica). O prprio emprego da
palavra dialtica no uma evidncia. Seus limites e usos tericos no so claros, na
medida em que aparece em Hegel no mnimo sob duas acepes, bem distintas: de ma-
neira pejorativa, seja como crtica do ceticismo e do romantismo a palavra se encontra
no masculino (o dialtico); depois, trata-se do conjunto do procedimento especulativo
onde o movimento parece tudo abarcar a palavra est no feminino (a dialtica)16.
Suspendemos por aqui nossos questionamentos, de modo a poder guardar uma seme-
lhana entre Marx e Hegel. Retemos a ideia de determinao progressiva, acompanhada
por uma fundao regressiva, do saber junto com a percepo do concreto como fruto
de determinaes sucessivas e logo contingentes17
.
15
A crtica do idealismo hegeliano foi interpretada por alguns como uma crtica spinozista ou schellingniana, ressaltando a produtividade do ser, por outros como uma crtica kantiana dos limites da
razo e como uma afirmao do primado da razo prtica. As interpretaes dialticas jamais cessaram de
ressurgir para contestar aquilo que interpretam como um achatamento materialista ou como um
revisionismo kantiano, para valorizar aquilo que Marx deve a Hegel (RENAULT, Emmanuel. Marx et sa Conception Dflationniste de la Philosophie . In: Actuel Marx, nmero 46, PARTIS/
Mouvements . Paris/ PUF : 2009/2, p.8).
16 STANGUENNEC, Andr. Le Dialectique, la Dialectique, les Dialectiques chez Hegel . In: Lectures
de Hegel. Organizao Olivier Tinland. Paris : Le Livre de Poche, 2005, p.86-112. Com efeito, a Enci-
clopdia nos mostra que o mtodo possui trs momentos, quais sejam, o primeiro deles, o abstrato prprio ao entendimento; segundo, o dialtico ou da razo negativa (ou seja, as contradies); e ter-ceiro, o especulativo ou aquilo que positivo de maneira racional (HEGEL, G. W. F. Encyclopdie des Sciences philosophiques I - Science de la Logique. Traduo Bernard Bourgeois. Paris : Vrin, 1994, 79, p.343 ; 82, p.344). Certamente, a alma motora da progresso cientfica (Ibidem, 81, p.343) indispensvel ao sistema, mas este repousa, ao fim e ao cabo, no absoluto tal como exposto no fim da Cincia da Lgica. 17
RENAULT, Emmanuel. Quy a-t-il au juste de Dialectique dans Le Capital de Marx ? . In: Marx ReLire Le Capital. Organizao Franck Fischbach. Paris: PUF, 2009, p.43-76.
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Seguindo nosso plano, os esforos se concentram sobre Hegel. A explorao dessa
teoria no visa seno a fundar uma historicidade pelo vis da mediao ou da reflexi-
vidade. Por via de consequncia, a Doutrina da Essncia desempenha um papel cen-
tral. Ao longo do trajeto, todavia, nos deparamos numa verdadeira encruzilhada entre
uma substncia spinozista (toda ao sendo transparente a si mesma, temos como
resultado um necessitarismo ou neopaganismo) e as raias da Filosofia do Direito
(onde a negatividade se v parada em benefcio da representao do Estado como
uma Instituio separada). Portanto, foi preciso encontrar as boas ferramentas para
engendrar um pensamento da contingncia no seio do sistema hegeliano. A dinmica
a apreender mantm-se, logo, entre a determinao daquilo que acontece e a determi-
nao do estado de coisas presente. Dito de outra maneira, lidamos com a emergncia
de uma situao que se consolida ou se torna efetiva.
Por conseguinte, a necessidade e a possibilidade no podem excluir-se mutuamen-
te e de maneira estanque; em segundo lugar, a necessidade existiria ao mesmo tempo
como uma efetividade ou inscrio na realidade e como uma relao (a presena
necessria; presenas se encontram, se relacionam); em terceiro lugar, a possibilidade
uma negao determinada que abre uma via no seio da realidade e se faz reconhe-
cer, modificando o regime do aparecer. Alm disso, a noo de relao compreen-
dida tanto como uma origem (determinao que no se deixa esgotar de maneira al-
guma em determinismo), quanto uma abertura pois se trata de uma exposio s
contingncias no curso de sua ecloso.
Uma vez as referidas contingncias no sendo neutras, nossas preocupaes se
voltam mercantilizao e diviso social do trabalho prprias ao capitalismo (as
positividades so diferentes entre si: as eficincias dos objetos oriundos da prti-
ca ganham um contexto ou so historicizadas). Finalmente, ser com Marx que nos
debruaremos sobre as relaes entre natureza e histria. Essa ligao engendra uma
acumulao material que determina tambm as demandas18
humanas levando-se em
18
Para evitar mal entendidos, nesta passagem, escolhemos traduzir o termo francs besoin por deman-da, sabendo que se trata de uma necessidade palavra esta j utilizada por ns em sua dialtica com a
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conta que cabe a estas ltimas o relance, sob o regime exterior da contingncia, da
produo da vida. O projeto crtico de Marx apresenta, segundo Bensad, a constncia
da unidade entre teoria e prtica. Ora, a crtica quebra a totalidade desesperadamente
lisa da Cincia da Lgica hegeliana para abrir o campo dos possveis: diferente-
mente do virtual que cai por terra ao agir nos moldes do melhor fatalismo helnico,
o possvel imanente militncia, deliberao e interveno poltica, inscreven-
do-se estrategicamente na durao quando o pensamento diagnostica sintoma de a-
bertura da conjuntora ao inovadora.
Como decorrncia, temos uma relao polmica com a histria, cuja postura teri-
ca lida com dois aspectos: de um lado, ela construda como uma interrogao acer-
ca dos limites das particularidades num contexto de determinao recproca; de outro,
o pensamento v-se desde ento conduzido s disputas prticas da luta e se torna es-
tratgico. Isso posto, a crtica se d por tarefa impedir o fechamento do pensamento
em sistema. Quanto causalidade econmica, no perde relevncia e se divide da
seguinte forma: 1) um componente material e natural; 2) um componente econmico
como a combinao de fatores tcnicos e sociais; 3) finalmente, um componente so-
cial que remete s condies onde todos os termos encontram-se reunidos e entrela-
ados em diversos ritmos e velocidades. Quer-se dizer que as relaes de propriedade
e de classe, guiadas pelo lucro, produzem esfera social (e so por ela produzidas): um
produto que ao mesmo tempo agente engendra uma causalidade no linear.
Para concluir, no que tange os objetivos de ordem poltica e polmica, somos da
opinio segundo a qual esse trabalho pode oferecer sua contribuio ao se esforar a
pensar formas de apropriao no instrumental da prtica, ao mesmo tempo detemi-
nada e indeterminada o que permitiria inscrever os temas da estratgia e da hege-
monia na ordem do dia.
possibilidade. Por fim, no de nosso intuito adentrar os desdobramentos psicanalticos dos conceitos de necessidade, demanda e desejo.
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Interregno : tempo que nasce
O que , com efeito, o tempo?, indaga-se o filsofo. Ele retoma : Se ningum
me pergunta, eu o sei; mas se mo perguntam e se quero explic-lo, j no o sei
mais19. No que nos concerne, acrescentamos a pergunta sobre o que pode ser (ou
no ser) um esforo acadmico continuado. Haja vista a impossibilidade de parar o
tempo, devido ao simples fato de que somos empurrados adiante pelo girar do mun-
do20
, ns foramos uma parada por meio do vazio de uma aposta relacionada com o
que h de saturado e duro no texto: existem brechas?
Limites e contradies em Hegel
O recenseamento de ponta a ponta da recepo de Hegel at nossos dias uma tarefa
tanto mais rdua quanto necessria, mas no se trata do escopo de nosso trabalho. John
McCumber, inspirado por este debate e sobretudo apoiando-se na leitura feita por Rorty,
sugere, em parte por escrnio, que o idealismo hegeliano no desapareceu por completo:
se por um lado Rorty cr ser possvel preservar de Hegel, em relao ao pragmatismo,
uma aliana entre seu historicismo e a teoria darwinista da evoluo21, por outro,
McCumber postula que o hegelianismo passou por diversas mutaes ao longo de seu
percurso cultural. Dito de outra maneira, a exemplo dos dinossauros gigantes que se
transformaram em criaturas menores e contudo mais geis, voadoras (falamos de
pssaros), possvel que Hegel tenha sofrido um processo de metamorfose semelhante;
eis que o grande tiranossauro d lugar a verses reduzidas, e mais adaptadas, de
pensamento22
.
19
AUGUSTIN. Les Confessions. In uvres de Saint Augustin, 14, Deuxime Srie : Dieu et son uvre, Les Confessions, Livres VIII-XIII. Texto da edio M. Skutelle [pginas 270-343 para o livro XI]. Perpig-
nan: tudes Augustiniennes, 1996, livro XI, captulo 14, parte 17, p.299 e 301. 20
E aqui pensamos no quado de Paul Klee, analisado por Walter Benjamin na nona de suas Teses sobre o Conceito de Historia (in Magia e Tcnica, Arte e Poltica Obras Escolhidas 1. Traduo Srgio Paulo Rouanet. So Paulo : Brasiliense, 1985, p.226). 21
RORTY, Richard. Dewey entre Hegel et Darwin . Traduo P. Sauret. Paris: Rue Descartes, nmero
5-6, 1992, p. 290-306. 22
MCCUMBER, John. The Company of Words: Hegel, Language, and Systematic Philosophy. Evanston:
Northwest University Press, 1993, p.28-9. Este autor faz referncia expressamente ao pragmatismo, de
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No so recentes as querelas envolvendo o legado de Hegel; a bem da verdade, elas
datam de 1831, quando do falecimento do filsofo. To logo morto, os ditos jovens e
velhos hegelianos disputavam-se quanto sua obra. A rbita so os anos de 184023.
Marx, precedido por Feuerbach e Bruno Bauer, e paralelamente a Kierkegaard, d for-
ma dissoluo do mundo cristo burgus e, em um s tempo, reconciliao hege-
liana. O que distinguia uma direita, composta por velhos hegelianos, de uma es-
querda constituda por jovens hegelianos no se limitava a argumentos puramente
filosficos. Antes de mais nada, se trata de diferenas polticas e religiosas. Esta reparti-
o foi batizada por Strauss e em seguida por Michelet, tendo sido vulgarizada sobretu-
do por Stirner24
. Em termos filosficos, o diferendo parece se concentrar em torno do
conceito de superao em Hegel (a Aufhebung25) e do sentido atribudo existncia26:
de um lado, o real seria efetivamente racional, todo esforo crtico resultando intil; de
outro lado, se o racional deve se fazer real ou se realizar, ento a filosofia consistiria na
negao da ordem existente.
extrao notadamente anglofnica, onde se contam entre seus representantes mais reconhecidos Quine,
Sellars e Rorty. A respeito da influncia de Hegel no pragmatismo, ver o artigo de Terry Pinkard : Le
Pragmatisme fut-il le Successeur de lIdalisme ? (Revue Philosophie. Organizadores Jean-Michel Bue, Emmanuel Renault, Olivier Tinland, David Wittmann. Traduo Jean-Michel Bue e Laurent
Mrigonde. Paris : Minuit, outono de 2008, nmero 99, p.21-45). Que nos lembremos de Michel Fou-
cault : Toda nossa poca, quer seja com Marx quer seja com Nietzsche, tenta fugir de Hegel (). Mas escapar realmente de Hegel supe uma apreciao exata do que custa dele se desligar; isto supe saber at
onde Hegel, talvez insidiosamente, se aproximou de ns; isto supe saber, dentro do que nos permite
pensar contra Hegel, o que ainda hegeliano; e de medir em qu nosso recurso contra ele ainda talvez
uma astcia que ele nos ope e ao termo da qual ele nos espera, imvel e alhures (LOrdre du Discours. Paris: Gallimard, 1971, p.74-5). 23
O meio, terreno natural da Natureza de Goethe e da mediao na qual se movia o Esprito de Hegel: estas duas noes foram mais uma vez decompostas por Marx e Kierkegaard, nos dois extremos
da exterioridade e da interioridade, at que Nietzsche pretendera recomear do zero e trazer a antiguidade
em meio ao nada da modernidade e ento cair nas sombras da loucura (LWITH, Karl. De Hegel Nietzsche. Traduo Rmi Laureillard. Paris: Gallimard/ Tel, 2003, p.47-48). Se de um lado o esforo de
Lwith de reunir a filosofia do sculo XIX digno de ser louvado, por outro, preciso tomar uma certa
distncia: temos a impresso de que a decomposio do hegelianismo tomada em um sentido unilateral
porque demasiado linear em sua simetria Marx e Kierkegaard representando os extremos e o final apotetico de Nietzsche com a persona do Cristo invertido.
24 Ibidem, p.75.
25 O termo alemo Aufhebung, geralmente traduzido como superao, remete, ao mesmo tempo, ele-
vao, abolio (ou negao) e conservao. 26
O que racional efetivo; e o que efetivo racional (HEGEL, G. F. W. Principes de la Philoso-phie du Droit. Traduo Jean-Franois Kervgan. Paris: PUF/Fondements de la Politique, 1998, prefcio,
p.84).
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Em seus cursos sobre a histria da filosofia, Hegel trabalha em termos de acabamen-
to. Sua prpria obra se coloca no fim disso que ele estabelece como decorrido em trs
pocas: primeiramente, delimita-se o perodo que vai de Thales a Proclus, ou seja, at a
Antiguidade realizar a unio entre o finito e o infinito; em segundo lugar, aps um de-
clnio, comea a poca que vai da era crist at a Reforma, que reproduz (em um nvel
mais elevado) a reconciliao anterior; finalmente, Hegel apresenta a filosofia crist,
passando por Descartes, como ponto de partida para sua obra. Segundo Lwith, claro
est que assim descrita a lgica hegeliana no teria como ser histrica, apresentando-se
como uma concluso27.
Com efeito, Razo, Estado e liberdade se acham justapostos. O longo processo da
histria explicado como a aplicao do princpio [de liberdade] nas questes do
mundo. Trata-se por certo de uma realizao da filosofia, cujo sentido contudo se
prestar a muitas polmicas. O progresso da conscincia da liberdade se presentifica
pouco a pouco, do Oriente at o Ocidente: os orientais souberam que apenas um
homem livre, o mundo grego e romano, que alguns so livres, enquanto ns sabemos
que todos os homens so livres, que o homem enquanto homem livre. Cabe a Hegel
logo acrescentar que a cada estgio corresponde uma poca. Sua diviso da histria
em seguncias ainda mais explcita ao fim do livro. Em uma frase apenas, o curso
inteiro da histria se condensa: O sol nasce no Oriente. O sol fsico no dever mais
amedrontar o sol interior, uma vez conquistado o engendramento da liberdade
subjetiva. O objeto diante do qual devemos nos inclinar no reino fenomenal o
Estado pois o Estado a Ideia universal, a vida espiritual universal, em face da
qual os indivduos desabrocham uma relao de confiana e de costume, at o ponto
em que a substncia possa coincidir com o elemento singular28. A irrupo do
singular se v de antemo determinada pela presena sem fissuras do Estado29
.
27
LWITH, De Hegel Nietzsche, op. cit., p.58. Lwith caracterizou o movimento como essncia da filosofia de Hegel, citando a Tese de Marcuse. Todavia, tira da outras consequncias, que nos
remetem realizao do esprito na religio, em detrimento da natureza e da contingncia. Por isso seus
escritos privilegiam Goethe e Nietzsche. Isso posto, foroso admitir que, confessa Lwith, mesmo em
Hegel, e apesar dele, podem-se depreender outras relaes temporais de sua obra: No entanto, em Hegel mesmo, falar de esprito do tempo no implica em uma historicidade do esprito (Ibidem, p.250 e 49).
28 HEGEL, G. W. F. La Raison dans lHistoire. Traduo Kostas Papaioannou. Paris : UGE/Plon, 1965,
p.84 e 279-81. 29
A Razo na Histria, obra constituda pelos cursos dados por Hegel entre 1822 e 1831, foi publicada
em 1917. Sua tese central advoga que a razo se manifesta na histria, o que implica em uma
historicidade da razo. Geralmente, a filosofia da histria hegeliana tomada como plano de execuo da
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As crticas de Hegel sobre o Terror, em destaque na Fenomenologia do Esprito,
publicada em 1807, ilustram sua posio: se a Revoluo francesa figura como a espe-
rana de que os dois mundos [sejam] reconciliados; o cu desceu e transportado
terra, a desiluo vem tona to logo a destruio mostre sua fria, pois a universali-
dade abstrata, ligada poltica, teria engendrado uma espcie de fanatismo, expresso
no dio ao particular. Dito ainda de outra forma, a liberdade absoluta aplicada imedia-
tamente sociedade termina por neg-la, ou seja, ela nega os indivduos que, por assim
dizer, a carregam, ou seja, seus sujeitos. A liberdade portanto inseparvel da morte.
Essa liberdade universal vista como algo desprovido de interioridade, pois no chega a
parte alguma. Ela to s nega um si mesmo absolutamente vazio: assim a morte a
mais fria e mais rasa, sem outra significao que cortar uma cabea de repolho ou tomar
um gole dgua30. Hegel justifica a violncia pela mudana de regime, mas reprova a
violncia de 1793: A Revoluo comea pela manifestao do universal no seio do
particular, para se inverter dramaticamente na supresso do particular pelo universal31.
A seguida do texto de 1807 mostra que o esprito moral nasce em seguida reconci-
lio de seres-a que se encontram do Deus32
; essa parte corresponde ao que Hegel espe-
rava ento da Alemanha. Ou, ainda, retraduz Lukcs, a persistncia do particular cor-
responde reconciliao pela e para a sociedade burguesa33
.
histria universal. Contudo, Christophe Bouton rene quatro crticas a ela dirigidas, no intuito de buscar um impensado prtico resultando das filosofias da histria. So elas o racionalismo, o cinismo, o providencialismo e o fatalismo. O esforo o de contrapor a tais vises uma sada s antinomias da disputa entre autonomia e caos (BOUTON, Christophe. Hegel et lantinomie de lhistoire . In: Lectures de Hegel. op. cit., p.300-3). Por outro lado, Daniel Bensad acredita que seja possvel reler
Hegel, mesmo em momentos emabaraantes, como em sua filosofia da histria. De fato, a efetividade da
histria propicia um processo de universalizao; retroativamente vivel ento pens-la como uma
universalidade em devir. Essa assertiva, completa Bensad, abre o campo s preocupaes empricas de uma histria e uma antropologia comparadas (Marx o Intempestivo, op. cit., p.44). 30
HEGEL, G. W. F. Phnomnologie de lesprit, tomo II. Traduo Jean Hyppolite. Paris: Aubier-Montaigne, 1983. p.129, 135 e 136. Em suma, o finito uma inadequao universalidade, e carrega
consigo a morte mas igualmente a pulso da vida (BLOCH, Ernst. Sujet-Objet claircissements sur Hegel. Traduo Maurice de Gandillac. Paris : Gallimard, 1977, p.130). 31
BOUTON, Hegel et lantinomie de lhistoire . In: Lectures de Hegel, op. cit., p.313-315. 32
HEGEL, La Phnomnologie de lesprit II, op. cit., p.141 e 200. 33
LUKCS, George. Le Jeune Hegel II sur les Rapports de la Dialectique et de lconomie. Traduo Guy Haarscher e Robert Legros. Paris : Gallimard, 1981, p.302 e 300.
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H, certamente, ambiguadade a respeito da Revoluo francesa, na letra mesma de
Hegel. L-se nos Princpios da Filosofia do Direito que a Revoluo tanto o primei-
ro espetculo prodigioso desde que sabemos algo sobre o gnero humano e o aconte-
cimento o mais espantoso e que mais fere a vista em oposio quilo que abstra-
to. Esses acontecimentos no seriam totalmente contingentes em Hegel, pois resultari-
am da vontade de aplicar o universal imediatamente; relevariam, assim sendo, mais do
caos do que da razo34
.
O pensamento de Hegel cambia radicalmente de paradigma, adotando a Reforma
como ponto de periodizao e abandonando a Revoluo francesa. A imagem de pen-
samento ilustrada pelas asas da coruja de Minerva , acredita Lukcs, a consequncia
de uma interpretao concreta da Modernidade: no restou tarefa alguma alm de
transpor essa ideia vida e de elaborar, com e graas a ela, todos os domnios da vida
social35. Leiamos portanto o texto onde o Esprito o determinante:
A abstrao do liberalismo atravessou assim o mundo latino partindo
da Frana, mas esse mundo permaneceu acorrentado, pela escravido
religiosa, ausncia de liberdade poltica. Pois um falso princpio
constatar que possvel desfazer-se de grilhes que entravam o direito
e a liberdade sem emancipar a conscincia moral e que uma Revolu-
o seja possvel sem Reforma36
.
Negatividade em si e Negatividade Histrica
No tocante filosofia contempornea, podemos notar algumas leituras que se
inscrevem no debate sobre a obra de Hegel, a saber, certas gamas de marxismo,
pragmatismo, psicanlise e apropriaes que, ao fim e ao cabo, em nome de uma crtica
pertinente do sujeito legislador, foram construdas ao arrepio da regio mais, por
34
HEGEL, Principes de la philosophie du droit, op. cit., p.315-316. 35
LUKCS, Le jeune Hegel II, op. cit., p.237, 239 e 241. 36
HEGEL, G. W. F. Leons sur la Philosophie de lHistoire. Traduo Jean Gibelin. Paris : J. Vrin, 1987, p.344, 338-339.
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assim dizer, sombria do hegelianismo. Ora, esta a ltima (ou a nica) palavra acerca
da filosofia hegeliana? O pensamento New age, tal como caracterisado por Slavoj
iek, deplora a queda do mundo holstico, onde homem e natureza perfaziam um s
ser. Era uma vez a vida antes da introduo do dualismo, fato que acarretou em
problemas insolveis para toda humanidade. Todavia, segundo o filsofo esloveno, o
importante captar o sentido da queda no interior dela mesma; uma mudana de
perspectiva radicaliza as potencialidades do estado presente e cambia toda a
configurao37
. Uma tal viso eminentemente hegeliana: dito na Cincia da Lgica
que a fuga do mundo guarda j em si a determinao do mundo, ou de um mundo38
.
O ncleo duro do que nos anima uma releitura de Hegel. No que concerne es-
sencialmente aos cursos sobre a filosofia da histria e sua filosofia do direito, a crti-
ca a Hegel teria sido em boa parte bem conduzida. Restam, todavia, algumas outras
vias, distintas da oposio engelsiana difundida sobretudo por Lukcs, entre o mto-
do e o sistema e isso para nos atermos a uma ambincia exclusivamente marxi-
zante39
. Por isso preciso ainda acrescentar demais vertentes de leitura hegeliana,
37
IEK, Slavoj. Le Sujet qui Fche - le Centre Absent de lOntologie Politique. Traduo Stathis Kouvlakis. Paris : Flammarion, 2007, p.97 38
HEGEL, La Doctrine de lEssence, op. cit., p.86. 39
Engels ope um mtodo dialtico de Hegel a seu sistema: todas as situaes que se sucederam na histria, inclusive o processo do conhecimento, tornam as coisas forosamente transitrias, o que se ope ao contedo dogmtico das verdades em-si. Assim, o que h de revolucionrio em Hegel e que inverte sua teoria se mostra uma cincia das leis gerais do movimento (ENGELS, Friedrich. Ludwig Feuerbach et la Fin de la Philosophie Classique Allemande. Traduo Gilbert Badia. Paris : Editions
Sociales, (1966), 1970, p.16, 13, 16, 12-3, 59-60) inclusive na ideia de uma dialtica da natureza. Para Lukcs, a dialtica , em sua essncia, revolucionria. O filsofo hngaro no cr que a dialtica esteja presente na natureza; por outro lado, graas unidade entre sujeito e objeto, presente sobretudo na
praxis, o conhecimento se iguala ao movmento da realidade (LUKCS, George. Histoire et conscience
de classe. Traduo Kostas Axelos e Jacqueline Bois. Paris : Minuit, 1960, p. 18, 21, 20 e 35). Se em
Lukcs o proletariado toma a forma do saber absoluto, todavia, em Marx, nada decidido de antemo:
Essa abertura sobre os possveis aparece na concepo marxiana do sujeito da ao (VADE, Michel. Marx penseur du possible. Paris: LHarmattan, 1998, p.347-9). Os objetivos do proletariado, uma vez trazidos conscincia, seriam os mesmos de toda a sociedade, que, sem sua interveno consciente, permaneceria necessariamente possibilidades abstratas e limites objetivos (LUKCS, Histoire et consci-ence de classe, op. cit., p.189). Da a crtica de Henri Lefebvre ao papel desempenhado pela conscincia
em Lukcs e seu historicismo especulativo, inutilmente aberto ao possvel (LEFEBVRE, Henri. Hegel, Marx, Nietzsche ou le Royaume des Ombres. Tournai: Casterman, 1975, p.106). Ora, mais proveitoso do
que um essencialismo da verdade (re)encontrada, mais vale pensar na natureza de classe da conscin-cia, na dinmica de produo de subjetividade onde a racionalidade imanente luta de classes integra a questo da conscincia (em um s tempo como efeito e como causa no seio do processo social). No ,
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como os estudos sobre o reconhecimento, algumas inseres psicanalticas, a norma-
tividade do pragmatismo, a superao do entendimento kantiano etc. Mencionemos
ainda a velha e sempre renascente ideia de reconciliao, lugar comum de velhos
hegelianos de todos os tempos. Segundo nossa interpretao, por uma astcia da
razo, o necessitarismo do esprito foi ter com a dita inocncia do devir/pura ima-
nncia.
Isso posto, essa apresentao de Hegel , seno marxizante (o que um Lwith de-
nunciava em Razo e Revoluo40
), ao menos debate um pensador da contingncia
efetiva no interior do tempo, constitudo por relaes de alteridade. Nosso caminho
se concentra na teoria da ao. Remanejar Hegel, aqui, passa pela exigncia de trans-
formao do mundo41
.
Quer-se fugir tanto de uma racionalidade estagnada que legitima o estado das
coisas voltado apenas a si prprio42
quanto de um necessitarismo de uma substncia
sempre presente a si, transparente. Nesse sentido, nossa dvida maior com os
estudos do jovem Marcuse, que soube apontar falhas no idealismo hegeliano,
ensejando um pensamento da histria aberta por meio de uma ontologia negativa43
.
todavia, judicioso atirar pedras em Lukcs. O conceito de reificao, ainda largamente operatrio, foi por
ele intudo antes mesmo da descoberta dos Manuscritos parisienses, nos anos de 1930; a pertinente crtica
aos problemas de uma filosofia da conscincia devem se somar a uma concepo de histria que con-
tradio.
40 Resenha de Reason and Revolution. In: Philosophy and Phenomenological Research, volume 2,
nmero 4. Boston: Blackwell Publishing, junho de 1942, p.560-3. 41
Por mais que a teoria althusseriana do corte menospreze as ressurgncias de Hegel na letra marxiana,
sobretudo a partir de 1847 e, em seguida, em O Capital, o esforo terico que coloca em xeque a identifi-
cao imediata entre Hegel e Marx tende, se judicioso, a realar o que este ltimo trouxe de inovador. Por
outro lado, o resgate da divisa de Ernst Bloch em prol do princpio de movimento no intil: Hegel sempre de atualidade, sobretudo quando o tempo concomitantemente se acelera e se congela. A con-cepo tendencial do mundo pode ento ajudar a traar vias para o futuro (BLOCH, Sujet-objet, op. cit., p.11 e 51).
42 LEFEBVRE, Hegel, Marx, Nietzsche ou le Royaume des Ombres, op. cit., p.19-21.
43 A dualidade da histria em Hegel pode ser percebida segundo duas tendncias o estranhamento e a
interiorizao. Dessa orientao decorre outro dulismo do movimento uma autoproduo que se exterio-riza (a auto-apresentao da substncia ou a realidade efetiva como verdade e certeza) e a sua apresenta-
o sob a forma do devir livre e submetido ao acaso, ou o estranhamento do esprito junto aos entes (HEGEL, Phnomnologie de lesprit II, op. cit., p.311). Segundo Marcuse, ambas as acepes confron-tam as duas tendncias encontradas em Hegel: uma para a imobilizao da histria (interiorizao deter-
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A unidade simples da qual fala Hegel nada mais do que a relao negativa que
supe um espao para si junto alteridade. Uma tal sntese cria um si mesmo que se
mantm no outro: a vida se apresenta como meio para as diferenas, sempre
relativas (e no absolutas). O conceito de vida aparece na seo B da Fenomenologia
(sobre a Conscincia de Si) e em seguida nas passagens consagradas razo
observadora44. Esse contedo ontolgico est presente na Fenomenologia e atravesa
a Lgica ensejando uma nova leitura dessa obra. A categoria simples exterioriza
o ser para si e o ser para um outro como uma s e mesma coisa45. A pluralidade
dos entes perfaz o conjunto das variadas maneiras pelas quais o ser igual a si liga-se a
seu outro, onde as diferenas se concretizam. Em outros termos, aquilo que o ente ,
s o pelo outro; ora, uma tal relao no imediata46
.
minada pelo saber absoluto que finda como movimento) e outra que visa a manter a historicidade (estra-
nhamento na contingncia) (MARCUSE, Herbert. LOntologie de Hegel et la Thorie de lHistoricit. Traduo Grard Raulet e Henri-Alexis Baatsch. Paris : Gallimard/Tel, 1991, p.319-20).
44 A razo assume a forma de observadora. Ela observa a natureza inorgnica e a natureza orgnica
ou seja, respectivamente, as determinaes e o conceito, em separado. Tal fato se explica pela a relao entre o ser que se esvai e a organicidade conceitual no formarem uma lei necessria. Visto de outra ma-
neira, um ser orgnico se reflete em si mesmo e se conversa; por oposio, o inorgnico no se conserva,
permanecendo sempre no exterior de si mesmo: Um objeto, tal que possua em si o processo da simplici-dade do conceito, o orgnico. As prximas linhas explicitam esse esquematismo da razo forada a se deparar com o universo contingente: Na natureza inorgnica, a razo observa coisas que, segundo a lei, se mostram como momentos abstratos do conceito; mas a unidade simples desses momentos no est
presente, no h a uma simplicidade refletida em si mesma. A vida apresenta bem observao essa simplicidade e essa interioridade, mas o faz em seu desenvolvimento concreto, ou esse desenvolvimento
cai no exterior dela [vida], lhe exterior (HEGEL, G. W. F. Phnomnologie de lesprit. Phnomnolo-gie de lesprit, tomo I. Traduo Jean Hyppolite. Paris : Aubier-Montaigne, 1975, p.215-6 e 249). Por via de consequncia, a razo ser a doadora de sentido ao objeto que, segundo a percepo, no passava de
uma coisa sensvel mas isso ao preo da prpria razo se fazer coisa, o que explica o empirismo aponta-do por Hyppolite nessa passagem (in op. cit., p.204). Hegel o atesta: o pensamento coisidade, ou a coisidade pensamento. As diferenas se unem no objeto, posto que h, desde o incio, algo de secreto nesse objeto; a saber, o outro (HEGEL, Phnomnologie I, op. cit., p.125-6 e 266). Esta a razo pela qual
a verdade deve ser sentida, e que nada sabido que no esteja na experincia (HEGEL, Phnomno-logie de lesprit II, op. cit., p.305). Note-se que Marcuse se apoia justamento no conceito de vida en-quanto iluminador de uma dinmica imanente na letra da Fenomenologia hegeliana.
Sem ser o entendimento do objeto, a razo no entanto sua memria: ela exprimir de forma universal
aquilo que existe apenas na singularidade do que efetivo (HEGEL. Phnomnologie I, op. cit., p.204-7).
A visada da natureza pode ser univerzalida com a interveno da mediao (Ibidem, p.247-8).
45 HEGEL, Phnomnologie de lesprit I, op. cit., p.147, 204, 315 e 343.
46 Marcuse acredita que relacionar a ideia de conhecimento com a ideia de absoluto pela mediao da
vida rompe com a concepo de absoluto. Ocorre que na Lgica a histria , quando muito, o acmulo de
estados de conhecimento, ao contrrio das mudanas dos entes na Fenomenologia. Se a Fenomenologia
pede a organizao ontolgica da Lgica, a Lgica por seu turno se v revigorada com o princpio de ser
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Em diversas oportunidades, a prpria letra de Hegel se constitui em um obstculo
a uma tal empreitada. No seio do sistema, o imperativo de reconciliao que tem
como o outro da necessidade a liberdade (e no a possibilidade) predomina47,
deixando em segundo plano as bifurcaes que aparecem nas tendncias objetivas
onde escolhas so impostas. Neste ltimo caso, em termos de histria do pensamento,
nosso trabalho se construiria no seio de uma perspectiva ps-hegeliana, onde o em
si responde pelo conceito de possvel. O acontecimento (historicizado) ronda
nossos passos: a luta (inclusive pelo reconhecimento) historicisa (determina) a
carncia que se v descentrada (no idntica a si). A violncia deve ser politizada48
.
A naturalidade do aparecer historiciza aquilo mesmo que est em vias de aparecer:
no se trata de um retorno s origens, mas da imerso do ato em uma massa de
contingncia determinada, que engendra novas relaes. A origem retorna quando o
fluxo do continuum interrompido; uma vez as distncias sendo reduzidas, o tempo
presente desempata as disputas e redistribui o tempo. Ancorado no presente, o
pensamento o excede, bebendo em promessas passadas e se projetando no futuro.
Nem emprica nem abstrata, a atualizao tem lugar to logo uma emergncia pe em
xeque a normalidade das presenas: passado, presente e futuro se encontram num
agora. O que faz com que o passado permanea inacabado e o presente
como mobilidade disposto na Fenomenologia: o ser efetivo e positivo cindido, o que implica a com-preenso do ser-a como inegalidade. Em outras palavras, a vida entendida como historicizada eleita o fundamento do Ser, em detrimento do Eu dotado de pensamento. A visada de Marcuse comea pela crti-
ca do postulado da Lgica onde o ser e pensamento coincidem. Nessa obra, a unidade primordial do ser
anterior a toda diferena. Contudo, esse retorno oposio primordial de subjetividade e da objetivida-de a instncia que permite a compreenso de uma histria no fatalista. Desde ento, a histria adquire um sentido especfico, a saber, seu desenrolar ocorre no regime do estranhamento seja ele no devir da natureza ou no ato de pensamento (MARCUSE, LOntologie de Hegel, op. cit., p.210, 211, 198, 203-205). 47
Mesmo em termos estritamento hegelianos, o jovem Marcuse cr que todo prossegumento da Cincia
da Lgica constatado na Doutrina do Conceito no poderia superar os ganhos da lgica objetiva. Quer
dizer que a realidade efetiva no pode de forma alguma passar a uma estrutura ainda mais real. Trata-se, isto sim, de uma repetio de realidade (MARCUSE, Lontologie de Hegel, op. cit., p.97-8). O prprio Hegel declara que a necessidade j em si o conceito (Encyclopdie I, Science de la logique, op.
cit., p.581, 147, aditivo ). Eis a razo pela qual Marcuse pensa que a passagem da necessidade ao con-
ceito uma falsa passagem! (MARCUSE, Lontologie de Hegel, op. cit., p.107).
48 Alm do que, Marx, em sua Introduo a Por uma crtica filosofia do direito de Hegel, afirma que
existem dois tipos de pobreza: uma devido s catstrofes naturais e outra produzida artificialmente pela explorao (in Philosophie, op. cit., p.107).
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imprevisvel o fio de futuro que percorre o tempo, responsvel pela transformao.
no presente o lugar onde pensamos o passado e fazemos o futuro. A necessidade
como categoria do passado chega como uma construo que no pode ser demolida; a
possibilidade, categoria do futuro, ainda uma potncia do possvel; fechando o
ciclo, a realidade, categoria do presente, (...) associa indissoluvelmente
necessidade e possibilidade49. Passvel de continuao e aberto s apostas no interior
de conjunturas, o possvel um acontecimento historicizado. Uma reorganizao
coletiva que se contrape sistematicidade do capital exige no a dominao do
tempo, mas uma conjugao de temporalidades disparatas: os objetivos visados sendo
diversos, seus meios tambm os so. Dito de outra maneira, preciso assumir o
abismo entre os meios e os fins e, a partir da, confrontar, a cada vez, a realidade com
a finalidade.
Em Hegel, vemos o espao, em meio a disputas tericas sobre seu legado, para a
fundao da historicidade por meio da mediao ou da reflexividade. Da relao
entre dois termos, surge o espao para o desenrolar da contingncia; ou, ainda, uma
vez a tese tendo chegado cedo demais para provocar algum tipo de reao, uma
repetio faz com que o sujeito chame a si a situao e portanto exera a reflexo50.
Em seu jargo, Hegel afirma que a figura da necessidade de uma relao (em ltima
instncia, a relao da no-relao) tem como correlato a necessidade da
contingncia, figura do absoluto. Consequentemente, a Doutrina da Essncia
desempenha papel central (mais especificamente, a seo sobre a efetividade) para
essa apropriao. Acrescentemos ao salvamento de Hegel a ao recproca entre
sujeito e objeto no que concerne o trabalho, a exemplo de A Fenomenologia do
Esprito, cuja dinmica se presta historicizao e ao silogismo (que se pense
tambm na abstrao racional de Marx nos Grundrisse)51.
49
BENSAD, Marx o Intempestivo, op. cit., p.395-8. Compartilhamos com Bensad a inspirao benjami-
niana da interrupo. 50
O ato de reflexo reativa o passado, trazendo tona a dimenso de um passado-presente cujo estatuto intemporal (MARCUSE, LOntologie de Hegel, op. cit., p.203-5). 51
Destaca-se o gesto presente em Hegel, segundo o qual haveria uma racionalidade tanto das cincias
positivas (regies ontolgicas) quanto da vida histrica (o clice do poema de Schiller que transborda e
fecha a Fenomenologia, fugindo ao positivismo de um Dilthey). Sobre o emprego que Marx faz da abs-
trao, nota-se que o aparer da abstrao que caracteriza as especificidades de cada poca: A produo em geral uma abstrao, mas uma abstrao racional, na medida em que, em bem se precisando e subli-
nhando os traos em comum, ela [a abstrao] nos evita a repetio. Todavia, esse carter geral, ou esses
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A Doutrina da Essncia ou a contingncia como absoluto
Um sistema da contingncia vivel com o aparato hegeliano? Diz-nos a
Lgica que a positividade do ser passa pela mediao da negatividade e depois se
determina como positividade devinda da realidade; ou ainda: a exterioridade do ser
passa pela interioridade da essncia e aparece na realidade como exterioridade
devinda. Pode-se depreender desse movimento como indo do positivo ao positivo
via o negativo, do imediato ao imediato pela mediao, do exterior ao exterior pelo
interior52
. Em vista disso, o absoluto em questo ergue-se como o terceiro
excludo das coisas existentes no mundo. Os liames estabelecem-se ao gosto da
unio de um espao determinado e do acaso caracterstico de toda exterioridade,
fundando (ou no) o que se escoa no tempo: a autonomia da contingncia s
adquirida nas relaes de alteridade, cuja coero transforma um ente no outro de si
(graas s nossas relaes com os outros). Essa dinmica denomida por Hegel
como uma determinao de reflexo - onde o interior da filosofia sente-se em
casa em seu outro, a exterioridade do mundo.
Neste sentido, o esforo de Bernard Mabille digno de comentrio: como ler Hegel
de maneira em que a contingncia no desaparea? Sabemos de antemo que ao longo
dos cursos sobre a filosofia da histria, a filosofia se atribua a tarefa de eliminar o
acaso e de se desvincilhar do elemento natural53. Por seu turno, a Enciclopdia
postula que a cincia filosfica nada tem que ver com as contingncias54
. No obstante,
traos em comum, que permitem a extrao de uma comparao, formam eles mesmos um conjunto com-
plexo, cujos elementos divergem entre si para que vistam determinaes diferentes. Alguns desses carac-
teres pertencem a todas as pocas, outros so comuns apenas a algumas (MARX, Karl. Contribution la Critique de lconomie Politique. Traduo Maurice Husson e Gilbert Badia. Paris : ditions Sociales, 1957, p.150-1).
52 HEGEL, La Doctrine de lEssence, op. cit., p. XIII.
53 HEGEL, La Raison dans lHistoire, op. cit., p.48 e 79.
54 Ver MABILLE, Bernard. Hegel lpreuve de la contingence. Paris : Aubier, 1999, p.10 e 14. HE-
GEL, Encyclopdie des Sciences Philosophiques I La Science de la Logique, op. cit., p.182 (adio ao pargrafo 16) : um agregado de cincias no filosfico, na medida em que sua unidade exterior e formada pela justaposio de cincias. Uma tal ordem, explica Hegel, () deve necessariamente, pela mesma razo e alm do mais porque os materiais so tambm de natureza contingente, permanecer uma
tentativa e sempre mostrar lados de inadequao.
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a mesma Enciclopdia defende o livre curso da contingncia dentro da natureza e da
histria55
. Jean-Claude Pinson da opinio segundo a qual possvel distinguir dois
gneros de contingncia em Hegel, uma sendo relativa (relevante lgica da essncia) e
outra absoluta (relevante lgica do conceito)56
. Como um todo, Bernard Mabille
considera a Cincia da Lgica como uma obra sobre a (...) onto-logia do contingente,
quer dizer, uma dico do ente ele mesmo enquanto contingente (...)57.
Podemos repertoriar da seguinde maneira o caminho traado at aqui no interior da
Lgica: o imediato passou em seu fundamento, a existncia (o ser e o nada que se
confundem e engendram o devir); a existncia, por sua vez, se viu determinada, o que
formentou a apario do fenmeno; sua subsistncia no que lhe estrangeiro formou
duas totalidades de contedo (interior e exterior) a partir de uma relao formal; uma
base comum lhes sendo idntica, uma vez sendo superada, chega-se totalidade
absoluta. Por conseguinte ter-se- trs momentos de efetividade: o absoluto, depois
necessidade e possibilidade (inicialmente formais), e ao fim e ao cabo a substncia
(a unidade do absoluto com sua reflexo)58
.
55
Hegel enumera alguns traos daquilo que haveria de positivo nas cincias, j que se trata do regime da
efetividade e das determinaes da existncia: Seu comeo em si passa pela contingncia, desde que elas faam descer o universal at a singularidade e a efetividade emprica. Neste campo da variao e da con-
tingncia no se pode fazer valer o conceito, mais somente diversas razes. () Do mesmo modo, a Idia de natureza perde sua singularizao em contingncias, e a histria natural, a geografia, a medicina etc.
recaem em determinaes da existncia, em espcies e diferenas que so determinadas por um acaso
exterior e pelo jogo [de coisas], mas no por meio da razo. A histria entra neste caso desde que a Idia
seja sua essncia e que sua apario seja no entanto dentro da contingncia e do campo do arbitrrio (Ibidem, p.182). 56
Hegel, le Droit et le Libralisme. Paris : PUF, 1989, p.7-8. 57
MABILLE, Hegel lpreuve de la Contingence, op. cit., p.178-81. 58
HEGEL, Doctrine de lEssence, op. cit., p.227-8. A Cincia da Lgica dividida em duas sees (a Lgica Objetiva, de incio, seguida pela Lgica Subjetiva) e em trs tomos, a saber, respectivamente a
Doutrina do Ser, a Doutrina da Essncia (para a primeira parte) e a Doutrina do Conceito. Neste ltimo
tomo, que no se constitui como uma nossa prioridade, l-se tanto a reconciliao sob a gide do conceito
de liberdade quanto uma visada de historicizao imanente por meio do conceito de vida, como fina-mente notou o jovem Marcuse em seu doutoramento sob orientao de Heidegger. Sobre este assunto,
ver: MARCUSE, LOntologie de Hegel. Vida e Esprito, aponta Marcuse, so duas formas irreconcili-veis de totalizao. Num outro contexto, Lnin no deixou tampouco de perceber as implicaes da letra
hegeliana (inclusive na Doutrina do Conceito) para a compreenso da dinmica do capitalismo: LNINE,
Vladimir Ilitch Oulianov. Rsum de la Science de la Logique de Hegel in Cahiers Philosophiques, in
uvres, tomo 38. Traduo Albert Baraquin, mile Bottigelli, Georges Cogniot, Francis Cohen, Lida Vernant. Paris : ditions Sociales, e Moscou : ditions du Progrs, 1971.
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Um balano requerido. Por seu turno, a Doutrina do Ser se consacra a reconduzir o
elemento posto ao ato de posio. De outro lado, a Doutrina da Essncia deve
reconduzir a relao ser/essncia unidade reflexiva. Para tanto, seu processo visa a
superar os dualismos, de modo em que a essncia no seja separada dos seres-a. Sem
embargo, devido ao processo da essncia a atividade de pr a existncia, entendida
como sua expresso: A efetividade, ao termo do percursso existencial, precisamente
esta unidade da processualidade essencial e da presena existencial, esta unidade do
interior e do exterior59.
A essncia adquirida pela mediao no torna o saber qualquer coisa de exterior ao
ser; muito pelo contrrio, este processo o movimento do ser: o ser se interioriza e se
torna essncia ao mover-se a partir de si mesmo; neste ponto, o absoluto a essncia60
.
Jean-Hyppolite da opinio de que haveria trs pulsases do Logos e seus respectivos
ciclos em cada um dos volumes da Lgica: o ser, a essncia e o conceito61. Com iek,
a tripartio da reflexo como reflexo colocadora, reflexo exterior e reflexo
de determinao/determinante a pedra de toque para a compreenso de todas as
trades da Doutrina da Essncia62
. A problemtica tanto mais capital quanto,
insistamos, a sistemtica aspirada no diretamente a mesma de Hegel. Se possvel
criticar o filsofo esloveno pelo fato de lanar mo de determinaes que
originariamente aparecem em outros contextos (como a universalidade e a determinao
do processo) a seu bel prazer, acabamos de constatar que a forma de absoluto que
intervm na Doutrina da Essncia a ciso entre o interior e o exterior. Ao fim das
contas, a processualidade no eliminada, j que o universal constroi uma outra relao
com os entes. Isso no poderia impedir uma resposta hegeliana questo prtica que se
impe desde ento aos sujeitos: qual o papel da exterioridade (histrica) em nossos
59
MABILLE, Hegel Lpreuve de la Contingence, op. cit., p.196. 60
HEGEL, Doctrine de lEssence, op. cit., p.2. 61
HYPPOLITE, Jean. Logique et Existence Essai sur la Logique de Hegel. Paris : PUF/ Epimthe, 1991, p.220. 62
IEK, Slavoj. Tarrying with the Negative - Kant, Hegel, and the Critique of Ideology. Durham: Duke University Press, 1993, p.69-70. No nos esqueamos do precioso comentrio de Hyppolite, segundo o
qual a reflexo um momento positivo do absoluto que eleva o verdadeiro a um resultado e que su-prime a oposio entre o verdadeiro e seu vir a ser (HYPPOLITE, in HEGEL, Phnomnologie de lesprit I, op. cit., p.19-20).
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atos? A pressuposio de si na exterioridade enquanto figura ou momento da negao
determinada nos parece indicar uma boa pista.
A dualidade da essncia se verifica em ato: o ser posto se dirige a dois lugares ou
localizaes. Ento cabe a este ltimo, o ser posto, a funo de meio termo entre o ser-a
e a essncia. A anlise d a ver que o ser posto to somente uma negao em geral;
em unidade junto reflexo exterior, ela pressupe o absoluto e assim a determinao
vem de si-mesma. Se a relao estabelecida pelo ser se entretinha com a outra coisa em
geral (o ser como fundamento da qualidade), desta feita a dinmica do ato de colocar
funciona a partir do ser refletido em si. O princpio de passagem (prprio ao ser) no
poderia erguer-se como seu fundamento: aqui, o que funda o ser negado.
O que da resulta a apario de essencialidades livres, cujo flutuar no vazio
permanece presente at que as relaes de atrao e de repulso se tornem uma
contradio. A fixao do que determina realizada de maneira infinita:
o determinado que submeteu o seu passar e seu simples ser posto,
ou que desviou sua reflexo em outra coisa em direo a uma reflexo
em si. Estas determinaes constituem assim a aparncia determinada
tal como na essncia, a aparncia essencial.
Por isto a reflexo determinante se encontra fora de si e o princpio de igualdade
recai sobre a negatividade da essncia, (...) que o que domina63. Uma leitura prtica
no se intimidaria em observar que a suspenso da preponderncia identitria sob o
signo da mediao como igualdade no pode de maneira alguma desembocar em um
resultado preestabelecido: a determinao s ocorre (s tende a se fixar) depois da luta
presente.
Hegel claro : O fundamento o imediato, e o fundado o mediatizado. Este
imediato ativo: quando ele coloca algo, a exterioridade pressuposta. Reflexo
colocadora, o fundamento se relaciona a si como se fosse algo de superado. Notemos
que este imediato se mediatiza consigo mesmo, e isto se passa de modo eminentemente
exterior:
63
HEGEL, Doctrine de lEssence, op. cit., p.29-31.
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Esta mediao, como ato de progressar do imediato ao fundamento,
no uma reflexo exterior; mas, haja vista o que foi concludo, a re-
lao fundamental, como reflexo na identidade a si, ela da mesma
maneira uma reflexo essencialmente exteriorizante.
Dito de outra forma, o fundamento se relaciona com um imediato, a condio, onde
ele mesmo se pressupe64
: o fundamento pressupe o imediato, a exterioridade, e se
pressupe como imediato em alteridade consigo mesmo dentro do movimento de
redefinio.
O primeiro termo, a condio, corresponde totalidade da relao, posto que a
imediatidade portadora do ser-a e da mediao65
. Isto acarreta em uma unidade do
contedo e em uma unidade da forma: o contedo tornou-se essencial uma vez tendo
passado pela reflexo na forma, e o ser-a se tornou matria formada. No bojo desta
unidade, um passa no outro a partir de si mesmo, e o ato de se colocar engendra uma
superao pois se pressupor , em um s tempo, negar-se. Ora, a reflexo una s
pressupe uma coisa, o verdadeiramente incondicionado ou a coisa em si mesma66.
Graas mediao, no h que se dedicar unidade morta de fragmentos
irremediavelmente desconexos. A existncia de agora em diante sua base: A
totalidade, portanto, no apenas constituda pela relao de incondicionados relativos;
ela em si mesma, enquanto totalidade, o incondicionado verdadeiro67.
Por meio da teoria da reflexividade, iek toca na historicidade, na medida em que o
retorno a si segundo um gesto tautolgico inclui a exterioridade dilacerada no processo
de doao de sentido de si e do mundo, concomitantemente. Ou seja, a decomposio
de um objeto em partes no capaz, por si mesma, de lhe devolver uma unidade provi-
sria; fora de si, positividade alguma rene a coisa. Assim sendo, h histria na medida
em que h a pressuposio de um campo produtor de objetividade:
64
Ibidem, p.120-30. 65
LABARRIRE et JARCZYK in HEGEL, Doctrine de lEssence, op. cit., p.134. 66
HEGEL, Doctrine de lEssence, op. cit., p.135. 67
LABARRIRE et JARCZYK in HEGEL, Doctrine de lEssence, op. cit., p.135.
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A operao suplementar que produz deste conjunto nico uma coisa idntica
a si mesma puramente simblica, um gesto tautolgico que consiste em co-
locar estas condies externas como condies-componentes da coisa e, si-
multaneamente, pressupor a existncia de um terreno onde permanece uma
multido de condies68
.
O impasse caracterstico da Doutrina da Essncia sendo a correspondncia jamais
exata entre os dois gneros de reflexo (interna e externa), iek se decide pela
exterioridade da reflexo, no sentido em que o absoluto se faz sentir e se apresenta em
cada regio de positividade:
Toda entidade ontolgica positiva e determinada pode emergir enquanto tal
somente na medida em que o absoluto exterior a si mesmo, na medida em
que uma distncia faz obstculo a uma efetuao ontolgica completa69
.
A partir de ento, o absoluto a totalidade ainda no determinada, e efetivo e poss-
vel guardam uma diferena apenas formal: so seres-a postos na contingncia. Em se-
guida, a contingncia lhes atribuir uma determinao, o que explica a efetividade re-
al ou aquilo pelo que apareceram paralelamente possibilidade real e necessidade rela-
tiva; em ltima instncia, a reflexo desembocar na necessidade absoluta, equiva-
lente possibilidade e efetividade absolutas70. Note-se que neste ponto a primeira
vez onde uma determinao no coloca em xeque os termos relacionados71
. Marcuse
chama nossa ateno para o fato de que esta efetividade retoma o dualismo inicial da
ontologia hegeliana. Neste sentido, o que se nos impe a irredutvel bidimenssionali-
dade do real, ser-a e algo mais: Todo real sempre alguma coisa a mais, alguma coi-
sa que est precisamente a, presente72.
O novo entra em cena. Irredutvel ao antigo, o acontecimento redistribui as regras
que organizam o regime do visvel. A to propalada indecidibilidade se explica
68
IEK, Tarrying With the Negative, op. cit., p.77 e 80. 69
IEK, Le Sujet qui Fche, op. cit., p.136. 70
HEGEL, Doctrine de lEssence, op. cit., p.248. 71
LABARRIRE et JARCZYK in HEGEL, Doctrine de lEssence, op. cit., p.248. 72
MARCUSE, LOntologie de Hegel, op. cit., p.101-2.
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pelo fato de que no se pode decidir enquanto ele passa: a antiga relao cai por terra,
e uma nova comea a se delinear, em estrito regime de contingncia. A relao entre
o acontecimento e a realidade estabelecida instaura uma determinao entre esses
dois termos. Ora, a relao entre esses dois termos diferentes deles e temos ento
o terceiro excludo do qual fala Hegel e que entenderemos como histria, e que
faz com que um e outro elemento se mediatize e se ponha em relao. O puro
negativo ganha corpo e se estabelece, ele o possvel: mais uma vez, a instncia da
negao determinada a ferramenta que permite a teorizao da suspenso da
norma. Dito de outra maneira, lidamos com a abertura da conjuntura
indeterminao.
A economia na histria e a economia da histria
No que tange nossa dmarche73
, interessamo-nos pelos argumentos tanto dos
Manuscritos de 1844 quanto de A Ideologia Alem. No terreno da historicidade, nota-
73
No dispomos aqui do espao apropriado para tratar devidamente da relao entre Marx e Hegel. Po-
demos, contudo, oferecer ao leitor algumas pistas de nosso caminho. Se com Engels, Lukcs, e at mes-
mo o marxismo oficial, a relao entre ambos se dava de maneira imediata, os estudos marxistas passa-
ram a levar em conta os escritos de Louis Althusser e sua teoria do corte epistemolgico, operado em 1845 (ALTHUSSER, Pour Marx, op. cit., p.27). No obstante o mrito de Althusser de tratar do legado
de Marx enquanto filosofia, Daniel Bensad da opinio segundo a qual a pura ruptura repousa sobre o
voluntarismo do sujeito (BENSAD, Daniel Louis Althusser et le Mystre de la Rencontre , disponvel
no site www.marxau21.fr; trata-se de um captulo de Rsistances Essai de Taupologie Gnrale. Paris: Fayard, 2001, p.95-142). remarcvel o fato de que Marx empregara o termo alemo Wissenschaft para
designar cincia. Ora, essa palavra comportava um grande nmero de disciplinas, inclusive a crtica literria, a crtica de arte e a crtica religiosa. Notemos, ademais, que a Enciclopdia e a Lgica de Hegel
so cincias. Que quer dizer esse termo no contexto jovem hegeliano? Nos crculos esclarecidos e em particular entre os hegelianos, esse vocbulo designava a filosofia ou a crtica racional da religio em oposio teologia que se autodenominava cincia. Portanto, Wissenschaft remete racional ou crtica. Segue-se que uma cincia da histria, se existe uma, deve incindir sobre um conhecimento esclarecido sobre a histria (VADE, Marx Penseur du Possible, op. cit., p.24). Para Bensad, se trata de
fazer cincia de outra maneira. Marx arrogava a si e a seus escritos plena participao na cincia alem (Wissenschaft) e na cincia de sua poca (como a teoria da evoluo e a termodinmica), no mo-mento em que as irregularidades do capital o levem a terrenos desconhecidos (as ordens sistmicas, as
tendncias e a informao). Eis porque ele pode abordar as lgicas no lineares ou as necessidades condicionadas. Por isso a oposio entre a economia inglesa e o pensamento alemo deu a Marx um dilema bastante fecundo: Entre o devir cincia da filosofia e o devir poltico da cincia, entre a cincia inglesa e a cincia alem, o pensamento de Marx, em equilbrio sobre a afiada ponta da crtica, dirigi-se
mecnica orgnica, cincia das bordas, cujos espectros assombram nossa razo instrumental (BENSAD. Marx