gumbrecht

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GUMBRECHT, Hans. Produção de Presença. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC. Rio de Janeiro, RJ: 2010. Introdução “A palavra ‘presença’ não se refere (pelo menos, não principalmente) a uma relação temporal. Antes, refere-se a uma relação espacial com o mundo e seus objetos. Uma coisa ‘presente’ deve ser tangível por mãos humanas – o que implica, inversamente, que pode ter impacto imediato em corpos humanos. Assim, uso ‘produção’ no sentido da sua raiz etimológica (do latim producere), que se refere ao ato de ‘trazer para diante’ um objeto no espaço” (GUMBRECHT, Hans. Produção de Presença. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC. Rio de Janeiro, RJ: 2010, p. 13) “’produção de presença’ aponta para todos os tipos de eventos e processos nos quais se inicia ou se intensfica o impacto dos objetos ‘presentes’ sobre corpos humanos” (GUMBRECHT, Hans. Produção de Presença. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC. Rio de Janeiro, RJ: 2010, p.13) “Todos os objetos disponíveis ‘em presença’ serão chamados, neste livro, ‘as coisas do mundo’” (GUMBRECHT, Hans. Produção de Presença. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC. Rio de Janeiro, RJ: 2010, p.13) “Ainda que possa defender-se que nenhum objeto do mundo pode estar, alguma vez, disponível de modo não mediado aos corpos e às mentes dos seres humanos, o conceito ‘coisas do mundo’ inclui, nessa conotação, uma referência ao desejo dessa ‘imediatez’” (GUMBRECHT, Hans. Produção de Presença. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC. Rio de Janeiro, RJ: 2010, p.14) “Se atribuímos um sentido a alguma coisa presente, isto é, se formarmos uma ideia do que essa coisa pode ser em relação a nós mesmos, parece que atenuamos inevitavelmente o impacto dessa coisa sobre o nosso corpo e os nossos sentidos.” (GUMBRECHT, Hans. Produção de Presença. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC. Rio de Janeiro, RJ: 2010, p.14)

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produção de presença

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GUMBRECHT, Hans. Produo de Presena. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC. Rio de Janeiro, RJ: 2010.

IntroduoA palavra presena no se refere (pelo menos, no principalmente) a uma relao temporal. Antes, refere-se a uma relao espacial com o mundo e seus objetos. Uma coisa presente deve ser tangvel por mos humanas o que implica, inversamente, que pode ter impacto imediato em corpos humanos. Assim, uso produo no sentido da sua raiz etimolgica (do latim producere), que se refere ao ato de trazer para diante um objeto no espao (GUMBRECHT, Hans. Produo de Presena. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC. Rio de Janeiro, RJ: 2010, p. 13)

produo de presena aponta para todos os tipos de eventos e processos nos quais se inicia ou se intensfica o impacto dos objetos presentes sobre corpos humanos (GUMBRECHT, Hans. Produo de Presena. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC. Rio de Janeiro, RJ: 2010, p.13)

Todos os objetos disponveis em presena sero chamados, neste livro, as coisas do mundo (GUMBRECHT, Hans. Produo de Presena. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC. Rio de Janeiro, RJ: 2010, p.13)

Ainda que possa defender-se que nenhum objeto do mundo pode estar, alguma vez, disponvel de modo no mediado aos corpos e s mentes dos seres humanos, o conceito coisas do mundo inclui, nessa conotao, uma referncia ao desejo dessa imediatez (GUMBRECHT, Hans. Produo de Presena. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC. Rio de Janeiro, RJ: 2010, p.14)

Se atribumos um sentido a alguma coisa presente, isto , se formarmos uma ideia do que essa coisa pode ser em relao a ns mesmos, parece que atenuamos inevitavelmente o impacto dessa coisa sobre o nosso corpo e os nossos sentidos. (GUMBRECHT, Hans. Produo de Presena. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC. Rio de Janeiro, RJ: 2010, p.14)

Metafsica refere-se a uma atitude, quer cotidiana, quer acadmica, que atribui ao sentido dos fenmenos um valor mais elevado do que sua presena material; a palavra aponta, por isso, para uma perspectiva do mundo que pretende sempre ir alm (ou ficar aqum) daquilo que fsico (GUMBRECHT, Hans. Produo de Presena. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC. Rio de Janeiro, RJ: 2010, p. 14)

Importa compreender que a nfase do livro em presena, produo e coisas do mundo no condena nenhum modo de relao com o mundo que tome o sentido como ponto de partida (GUMBRECHT, Hans. Produo de Presena. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC. Rio de Janeiro, RJ: 2010, p.14)

A satisfao desse desejo, porm, no dever acontecer por meio de uma simples substituio do sentido pela presena. Em ltima anlise, o que este livro defende uma relao com as coisas do mundo que possa oscilar entre efeitos de presena e efeitos de sentido. No entanto, s os efeitos de presena apelam aos sentidos por isso, as reaes que provocam no tm nada a ver com Einfhlung, isto , com imaginar o que se passa no pensamento da outra pessoa (GUMBRECHT, Hans. Produo de Presena. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC. Rio de Janeiro, RJ: 2010, p. 15)

Materialidades/ O no hermenutico/ Presena: relatrio anedtico de mudanas epistemolgicas1[concebemos] a experincia esttica como uma oscilao (s vezes, uma interferncia) entre efeitos de presena e efeitos de sentido (GUMBRECHT, Hans. Produo de Presena. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC. Rio de Janeiro, RJ: 2010, p.22)Ambos os conceitos materialidades e comunicao pareciam prometer uma alternativa perpetuidade da interpretao e da narrativa sempre diferente do passado (GUMBRECHT, Hans. Produo de Presena. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC. Rio de Janeiro, RJ: 2010, p.27)

Espervamos tambm [...] que a convergncia evidente entre materialidades e materialismo comeasse por nos obrigar a uma fidelidade ao marxismo (GUMBRECHT, Hans. Produo de Presena. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC. Rio de Janeiro, RJ: 2010, p.28)

Materialidades da comunicao, foi ento decidido [no volume Materialitt der Kommunikation, de 1988], so todos os fenmenos e condies que contribuem para a produo de sentido, sem serem, eles mesmos, sentido (GUMBRECHT, Hans. Produo de Presena. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC. Rio de Janeiro, RJ: 2010, p.28)a obra de Walter Benjamin, em vez de tentar ser filosfica, celebra o toque fsico imediato dos objetos culturais (GUMBRECHT, Hans. Produo de Presena. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC. Rio de Janeiro, RJ: 2010, p.29)

Kittler [...] oferecia uma tese psico-histrica para o domnio do paradigma da interpretao nas Humanidades, alm de um estilo alternatico de pesquisa, sintetizado no conceito de psico-fsica. Tal estilo de pesquisa estava relacionado ccom a questo do modo como as inovaes tecnolgicas e sua aplicao na inveno de novos meios de comujnicao haviam iniciado os movimentos intelectuais (GUMBRECHT, Hans. Produo de Presena. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC. Rio de Janeiro, RJ: 2010, p.29)

Tambm queramos ter como aliado algum como Jacques Derrida, que, no comeo do seu trajeto filosfico (uns bons vinte anos antes do nosso colquio), havia defendido que a indiferena sistemtica da exterioridade do significante era uma das principais razes do predomnio devastador [...] do logo-fonocentrismo na cultura ocidental. Em outras palavras, no levar em conta, por exemplo, a materialidade dos caracteres gravados em cera, papiro ou pergaminho era visto como condio histrica para o predomnio do sentido e do esprito na cultura do Ocidente (GUMBRECHT, Hans. Produo de Presena. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC. Rio de Janeiro, RJ: 2010, p.30)Wilhelm Dilthey, que a tradio alem rodeara com aura de fundados das Geistwissenschaften, isto , precisamente da concepo de Humanidades no mbito da qual se oficializara e sistematizara o predomnio da interpretao no incio do sculo XX, logo se transformou no bode expiatrio do discurso interno que se formava com rapidez entre ns. Vamos a hermenutica, a reflexo filosfica acerca das condies de interpretao, que Dilthey quisera fomentar, como sinnimo de interpretao (GUMBRECHT, Hans. Produo de Presena. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC. Rio de Janeiro, RJ: 2010, p.31)

2O passo em direo s materialidades da comunicao abrira nossos olhos para uma multiplicidade de temas fascinantes, que poderiam ser resumidos (pelo menos aproximadamente) nos conceitos de histria dos media e cultura do corpo. Nosso fascnio fundamental surgiu da questo de saber como os diferentes meios as diferentes materialidades de comunicao afetariam o sentido que transportavam. J no acreditvamos que um complexo de sentido pudesse estar separado da sua medialidade, isto , da diferena de aspecto entre uma pgina impressa, a tela de um computador ou uma mensagem eletrnica. (GUMBRECHT, Hans. Produo de Presena. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC. Rio de Janeiro, RJ: 2010, p.32)

Como o desconstrucionismo, por um lado, sempre insistira na impossibilidade de estabelecer estruturas estveis de sentido e, por outro, abandonara h algum tempo o interesse inicial pela exterioridade do significante, parecia-nos estar perdendo de vista as constelaes de problemas e interesses que conquistramos sob a gide das materialidades da comunicao (GUMBRECHT, Hans. Produo de Presena. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC. Rio de Janeiro, RJ: 2010, p.34)Quando em 1993 o autor escreveu um eplogo para a edio inglesa de uma seleo de ensaios dos volumes das Materialidades e Paradoxos, pela primeira vez lanou a ideia de que o maior interesse no seu ambiente intelectual se tinha alterado da identificao do sentido (interpretao) para questes relacionadas com a emergncia do sentido em nvel historicamente especfico e em nvel meta-histrico (GUMBRECHT, Hans. Produo de Presena. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC. Rio de Janeiro, RJ: 2010, p.34)

3Esse afastamento da interpretao parecia abrir novas perspectivas de reflexo e pesquisa, que o autor denominou provisoriamente de campo no-hermenutico. Procurou estrutur-lo ao redor de quatro plos, correspondentes ao que ele entendia do conceito de signo de Louis Hjelmslev. Hjelmslev articula a distino estruturalista entre significante e significado (refere-se ao significante como expresso e ao significado como contedo) com a distino aristotlica entre substncia e forma. Os quatro conceitos resultantes dessa combinao so substncia de contedo, forma de contedo, substncia de expresso e forma de expresso. Com substncia de contedo, Hjelmslev remete para o contedo do pensamento humano antes de qualquer interveno estruturante (o conceito est perto do que poderamos chamar de imaginao ou o imaginrio). Forma de contedo, ao contrrio, no corresponderia a nenhuma manifestao espacial de complexos de sentido, mas exclusivamente aos contedos do pensamento humano em formas bem estruturadas (h uma afinidade bvia entre esse conceito e a noo de discurso de Foucault). Substncia de expresso seria o conjunto daqueles materiais por meio dos quais os contedos podem se manifestar no espao mas prvios sua definio como estruturas: a tinta (e no a cor) seria uma substncia de expresso, como o seriam um computador ou um dispositivo tcnico. Finalmente, forma de expresso seriam as formas e cores que cobrissem uma tela, os caracteres numa pgina (e no a tinta), a imagem numa tela (em vez do computador visto como mquina)essa estruturao do campo no hermenutico sugeria uma sequncia muito esquemtica de trs questes, que tornaria substancialmente mais complexa a primeira verso da nossa questo acerca da emergncia do sentido. Essas trs questes tematizavam (1) a emergncia das formas de contedo a partir da substncia de contedo; (2) a emergncia das formas de expresso a partir da substncia de expresso; finalmente, (3) a fuso das formas de contedo e das formas de expresso em signos ou estruturas significantes mais amplas por exemplo, num texto escrito, num discurso ou num pictograma (GUMBRECHT, Hans. Produo de Presena. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC. Rio de Janeiro, RJ: 2010, p.36)

infelizmente, no deixava de ser verdade que a questo tripla acerca da emergncia do sentido, que o campo no hermenutico ajudara a formular, s levaria de algum modo, inevitavelmente a um conceito muito convencional de signo e estruturas de sentido. Esses conceitos continuam a ser metafsicos, pos continuam a pressupor que a comunicao predominantemente acerca do sentido, acerca de algo espiritual que transportado e precisa ser identificado para alm das superfcies puramente materiais do material (GUMBRECHT, Hans. Produo de Presena. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC. Rio de Janeiro, RJ: 2010, p.37)

o campo no hermenutico seria til para desenvolver novas respostas pergunta que havia estado no centro do paradigma das materialidades da comunicao, ou seja, a questo (talvez ingnua) de como (se que de algum modo) a mdia e as materialidades de comunicao poderiam ter algum impacto sobre o sentido que transportavam. S essa questo transcenderia a dimenso do metafsico, pois s ela abandonaria a lmpida separao entre a materialidade e o sentido. (GUMBRECHT, Hans. Produo de Presena. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC. Rio de Janeiro, RJ: 2010, p.37)

[entendo] a palavra presena, nesse contexto, como uma referncia espacial. O que presente para ns (muito no sentido da forma latina prae-essere) est nossa frente, ao alcance e tangvel para nossos corpos. Do mesmo, o autor pretendia usar a palavra produo na linha do seu sentido etimolgico. Se producere quer dizer, literalmente, trazer para diante, empurrar para frente, ento a expresso produo de presena sublinharia que o efeito de tangibilidade que surge com as materialidades de comunicao tambm um efeito em movimento permanente. Em outras palavras, falar de produo de presena implica que o efeito de tangibilidade (espacial) surgido com os meios de comunicao est sujeito, no espao, a movimentos de maior ou menor proximidade e de maior ou menor intensidade. (GUMBRECHT, Hans. Produo de Presena. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC. Rio de Janeiro, RJ: 2010, p.39)

qualquer forma de comunicao implica tal produo de presena; [...] qualquer forma de comunicao, com seus elementos materiais, tocar os corpos das pessoas que esto em comunicao de modos especficos e variados mas no deixa de ser verdade que isso havia sido obliterado (ou progressivamente esquecido) pelo edifcio terico do Ocidente desde que o cogito cartesiano fez a ontologia da existncia humana depender exclusivamente dos movimentos do pensamento humano. (GUMBRECHT, Hans. Produo de Presena. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC. Rio de Janeiro, RJ: 2010, p.39)

Hoje, qualquer reflexo vivel acerca da presena ter de quebrar a conveno intelectual (que j est desaparecendo) ps-moderna, segundo a qual todos os conceitos e argumentos aceitveis dever ser antissubstancialista. Em vez disso, uma reflexo sobre a presena considerar pertinente e inevitvel qualquer tradio conceitual, a comear pela filosofia de Aristteles, que tenha a ver com a substncia e o espao (GUMBRECHT, Hans. Produo de Presena. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC. Rio de Janeiro, RJ: 2010, p.39

A poesia talvez seja o exemplo mais forte da simultaneidade dos efeitos de presena e dos efeitos de sentido nem o domnio institucional mais opressivo da dimenso hermenutica poderia reprimir totalmente os efeitos de presena da rima, da aliterao, do verso e da estrofe (GUMBRECHT, Hans. Produo de Presena. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC. Rio de Janeiro, RJ: 2010, p.40)

as formas poticas esto numa situao de tenso, numa forma estrutural de oscilao com a dimenso do sentido (GUMBRECHT, Hans. Produo de Presena. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC. Rio de Janeiro, RJ: 2010, p.40)

os efeitos da presena tm sido to completamente banidos que agora regressam sob a forma de um intenso desejo de presena reforado ou at iniciado por muitos dos nossos meios de comunicao contemporneos. Nosso fascnio pela presena ou seja, a tese final deste livro baseia-se num desejo de presena que, no contexto da contemporaneidade, s pode ser satisfeito em condies de fragmentao temporal extrema (GUMBRECHT, Hans. Produo de Presena. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC. Rio de Janeiro, RJ: 2010, p.42)

Metafsica: breve panorama do que ora est mudando

1a posio central, institucionalmente incontestada, da interpretao ou seja, da identificao e da atribuio de sentido nas Humanidades pode ser comprovada pelo valor positivo que em nossas linguagens atribumos, mesmo automaticamente, dimenso profundidade. Se dizemos que uma observao profunda, estamos a elogi-la, pois oferece um sentido novo, mais complexo e particularmente apropriado a um fenmeno. Ao contrrio, se consideramos algo superficial, isso significa que lhe faltam essas qualidades, pois est implcito que no consegue ir alm da ou por sob a primeira impresso produzida pelo fenmeno em causa (normalmente, no imaginamos que alguma coisa ou algum no queira ter profundidade). (GUMBRECHT, Hans. Produo de Presena. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC. Rio de Janeiro, RJ: 2010, p.43)poderemos chamar de metafsica do cotidiano a convergncia desses e de outros temas numa configurao de pressupostos inerentes nossa linguagem comum. [...] na sua forma institucionalizada, as Humanidades tm claramente implicaes metafsicas. Tanto a linguagem comum quanto aquilo que s vezes chamamos, um pouco pretensiosamente, de mtodos das Humanidades implicam que ir alm (meta-) do puramente material (fsica) sempre bom. [...] Isso pode ser entendido como resultado [...] de vrios sculos de reflexo sobre as estruturas do conhecimento e as condies de produo do conhecimento na cultura ocidental. Essa [...] histria da metafsica o tema do meu segundo captulo. (GUMBRECHT, Hans. Produo de Presena. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC. Rio de Janeiro, RJ: 2010, p.44)

2Renascimento e incio do perodo moderno, duas designaes que usamos para o perodo no qual comearei minha narrativa, so exemplos particularmente ricos da divergncia entre uma autorreferncia cultural predominante e a nossa retrospectiva histrica sobre a realidade dessa mesma cultura (GUMBRECHT, Hans. Produo de Presena. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC. Rio de Janeiro, RJ: 2010, p.46)

Nesses sculos havia uma tradio iconogrfica que ainda mostrava o mundo como uma superfcie plana sobre a qual erguiam-se esferas como uma cpula. Essas cenas so apresentadas como se fossem vistas de uma perspectiva externa. Por vezes chegamos a ver, aparentemente desde fora, uma figura alegrica, representando a Humanidade [...] Essa dupla inovao (isto , o Homem como observador externo do mundo e o Homem visto nessa posio) sintomtica de uma nova configurao da autorreferncia: os Homens comeam a entender-se como excntricos ao mundo; tal posio difere da autorreferncia predominante durante a Idade Mdia crist, em que o Homem se via como sendo parte de e todeado por um mundo resultante da Criao divina (GUMBRECHT, Hans. Produo de Presena. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC. Rio de Janeiro, RJ: 2010, p.46)

Uma segunda alterao em relao Idade Mdia tem a ver com a sugesto [...] de que essa figura humana, em sua excentricidade relativa ao mundo, uma entidade intelectual e incorprea. [...] a nica funo explcita que se lhe atribui observar o mundo, e para tal parecem ser suficientes faculdades exclusivamente cognitivas. (GUMBRECHT, Hans. Produo de Presena. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC. Rio de Janeiro, RJ: 2010, p.46)

o mundo que o observador observava e interpretava era puramente material. Claro que essa dicotomizao entre espiritual e material est na origem de uma estrutura epistemolgica em que a filosofia ocidental se apoiaria de agora em diante, o paradigma sujeito/objeto. (GUMBRECHT, Hans. Produo de Presena. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC. Rio de Janeiro, RJ: 2010, p.47)

No realismo simblico, cada objeto que constitui o mundo tem um sentido inerente, atribudo por Deus no ato da criao (GUMBRECHT, Hans. Produo de Presena. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC. Rio de Janeiro, RJ: 2010, p.47)

Para o novo tipo de autorreferncia, que defende que os seres humanos so excntricos ao mundo, [...] Torna-se cada vez mais convencional pensar o mundo dos objetos e do corpo humano como superfcies que exprimem sentidos mais profundos. (GUMBRECHT, Hans. Produo de Presena. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC. Rio de Janeiro, RJ: 2010, p.48)

A interpretao do mundo comea a ser entendida como uma produo ativa de conhecimento acerca do mundo: vista, acima de tudo, como algo que extrai sentidos inerentes dos objetos do mundo nesse aspecto est o passo decisivo em direo Modernidade (GUMBRECHT, Hans. Produo de Presena. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC. Rio de Janeiro, RJ: 2010, p.48)

O pressuposto de que os fenmenos tm sentidos inerentes no se alterou no limiar entre a cultura medieval e o incio da cultura moderna (s a partir do sculo XIX se passou a entender mais amplamente a interpretao como uma atribuio, e no como uma identificao, de sentido). Durante os sculos medievais, porm, a humanidade nunca fora entendida como produtora ativa de conhecimento. Pensava-se que o conhecimento dos pormenores e de todas as caractersticas da Criao s estaria disponvel por revelao divina. (GUMBRECHT, Hans. Produo de Presena. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC. Rio de Janeiro, RJ: 2010, p.48)Acoplada a essa nova [moderna] autoatribuio, porm, apareceria a ideia de o ser humano querer e ser capaz de mudar e transformar o mundo (GUMBRECHT, Hans. Produo de Presena. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC. Rio de Janeiro, RJ: 2010, p.49)

um sujeito que se acredita capaz de produzir conhecimento tambm se sentir capaz de ocult-lo e manipul-lo. significativo, nesse sentido, que a cultura medieval s tenha reconhecido a distino elementar entre verdade e mentira; nunca chegou a desenvolver conceitos correspondentes aos que entendemos como fico ou fingimento. (GUMBRECHT, Hans. Produo de Presena. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC. Rio de Janeiro, RJ: 2010, p.49)

Maquiavel considerou Fernando de Arago o governante mais capaz de seu tempo, pois o julgava capaz de fingir, ou seja, de cobrir suas intenes e planos sob o manto de pretensas motivaes religiosas (GUMBRECHT, Hans. Produo de Presena. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC. Rio de Janeiro, RJ: 2010, p.50)

essa nova viso moderna [...] pode ser descrita como uma interseo de dois eixos. Um eixo horizontal coloca em oposio o sujeito, observador excntrico e incorpreo, e o mundo, um conjunto de objetos puramente materiais, que inclui o corpo humano. O eixo vertical ser, portanto, o ato de interpretar o mundo, por meio do qual o sujeito penetra na superfcie do mundo para extrair dele conhecimento e verdade, um sentido subjacente. Proponho que essa ciso de mundo seja chamado de campo hermenutico. (GUMBRECHT, Hans. Produo de Presena. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC. Rio de Janeiro, RJ: 2010, p.50)

3O sacramento da eucaristia, isto , a produo da Verdadeira Presena de Deus na Terra entre os vivos, era sem dvida o ritual central da cultura medieval. A celebrao da missa, naquele tempo, no era apenas uma comemorao da ltima Ceia de Cristo com os seus discpulos: era um ritual por meio do qual a verdadeira ltima Ceia, e, acima de tudo, o corpo de Cristo e o sangue de Cristo poderiam tornar-se realmente e de novo presentes. [...] O sangue e o corpo de Cristo se tornariam tangveis, como substncias, nas formas de po e vinho. O que d forma e justificao a esse entendimento pr-moderno da relao entre o corpo de Cristo e o po, e entre o sangue e o vinho, o conceito aristotlico de signo. (GUMBRECHT, Hans. Produo de Presena. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC. Rio de Janeiro, RJ: 2010, p.51)O signo aristotlico rene, ao invs, uma substncia (isto , aquilo que est presente porque exige um espao) e uma forma (isto , aquilo que torna perceptvel uma substncia), aspectos que incluem um conceito de sentido que estranho para ns. (GUMBRECHT, Hans. Produo de Presena. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC. Rio de Janeiro, RJ: 2010, p.51)

podemos afirmas, de uma perspectiva antropolgica, que a eucaristia catlica pr-moderna funcionava como um ato mgico, um ato por meio do qual uma substncia distante no tempo e no espao se tornava presente (GUMBRECHT, Hans. Produo de Presena. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC. Rio de Janeiro, RJ: 2010, p.52)

Com intensos debates teolgicos, por vrias dcadas a teologia do protestantismo redefiniu a presena do corpo e do sangue de Cristo como sendo uma evocao do corpo e do sangue de Cristo sentidos. Assim, cada vez mais o na expresso este o meu corpo [hoc est enim corpus meum, que indicava a transubstanciao] passou a ser entendido como significa ou quer dizer o meu corpo. (GUMBRECHT, Hans. Produo de Presena. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC. Rio de Janeiro, RJ: 2010, p.52)

[s no tempo de Calvino] se comeou a transformar numa distncia histrica inultrapassvel a distncia temporal que separava cada missa e a ltima Ceia, o ponto de referncia; aqui comeamos a entender que existe uma relao entre a concepo emergente, especificamente moderna, da significao e a dimenso da historicidade (GUMBRECHT, Hans. Produo de Presena. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC. Rio de Janeiro, RJ: 2010, p.52)

Assim como, na teologia do protestantismo, a substncia do corpo de Cristo e a substncia do sangue de Cristo iam sendo substitudas pelo corpo e pelo sangue como sentido, no teatro a ateno dos espectadores passava dos corpos dos atores para os personagens que eles incorporavam. (GUMBRECHT, Hans. Produo de Presena. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC. Rio de Janeiro, RJ: 2010, p.53)

os corpos dos atores foram afastados do alcance dos espectadores. Em outras palavras, no incio da modernidade, quando comea a ser decifrado o sentido que est em jogo, tudo que tangvel, tudo que pertence materialidade do significante torna-se secundrio e de fato afastado do palco da significao (GUMBRECHT, Hans. Produo de Presena. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC. Rio de Janeiro, RJ: 2010, p.53)Em contraste, grande parte do teatro na Idade Mdia parecia funcionar de modo muito diferente [...:] descobriremos com frequncia que impossvel identificar uma narrativa ou seja, qualquer desenvolvimento progressivo de uma ao, muito menos de personagens. (GUMBRECHT, Hans. Produo de Presena. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC. Rio de Janeiro, RJ: 2010, p.53)4Nas obras [de Corneille, Molire e Racine], a produo de complexidade semntica era esmagadoramente predominante em detrimento de quaisquer efeitos de presena. Nas tragdias de Corneille ou de Racine, os atores dispunham-se em semicrculo no palco e recitavam textos muito abstratos, na forma pesada do verso alexandrino. Nenhum outro estilo teatral, antes ou depois, foi mais cartesiano do que o teatro clssico francs. Refiro-me aqui, claro, famosa reflexo de Ren Descartes contemporneo de Racine e de Corneille -, o primeiro a tornar a ontologia da existncia humana, como res cogitans, explcita e exclusivamente dependente da capacidade de pensar; em consequncia disso, ele subordinou no s o corpo humano mas todas as coisas do mundo, como res extensae, ao pensamento. (GUMBRECHT, Hans. Produo de Presena. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC. Rio de Janeiro, RJ: 2010, p.56)

O nome de Descartes e o adjetivo cartesiano referem-se aqui ao ponto final no desenvolvimento, que durou um sculo, da histoire ds mentalits, um desenvolvimento que se estende desde as primeiras manifestaes da cultura renascentista at a revelao total do campo hermenutico (GUMBRECHT, Hans. Produo de Presena. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC. Rio de Janeiro, RJ: 2010, p.56)

o que hoje chamamos Querelle ds anciens et ds modernes [dos anos 1700] foi um passo frente para demonstrar as mltiplas conseqncias do campo hermenutico. O que considero muito importante nessa Querelle no tanto se os diferentes intervenientes favoreciam uma ou outra protoforma, no que viria a ser um novo estilo de cultura histrica durante o sculo XVIII e, principalmente, no XIX. A caracterstica epistemolgica mais elementar e a mais importante que acontecimentos como a Querelle comearam a institucionalizar na cultura ocidental moderna foi a prioridade da dimenso temporal sobre a dimenso espacial, numa cultura que deixara de centrar-se num ritual de produo de presena real, passando a se basear na predominncia do cogito predominncia que ainda haveria de se cristalizar num ritual prprio. (GUMBRECHT, Hans. Produo de Presena. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC. Rio de Janeiro, RJ: 2010, p.56)O Iluminismo foi uma poca em que a atividade humana na produo de conhecimento se transformou em condio para a aceitabilidade do conhecimento; ento, a atividade humana, como vontade de transformar ativamente o mundo com base nessa reviso crtica do conhecimento, comeou a dar forma esfera da poltica. Foi mais um passo [...] no desdobramento das implicaes do campo hermenutico (GUMBRECHT, Hans. Produo de Presena. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC. Rio de Janeiro, RJ: 2010, p.57)

o Iluminismo foi o pice da viso de mundo metafsica (GUMBRECHT, Hans. Produo de Presena. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC. Rio de Janeiro, RJ: 2010, p.57)

o conhecimento revelado e, pelo mesmo motivo, o conhecimento que era reconhecido como parte dessa tradio estavam sujeitos a um rigorosssimo processo de reviso. (GUMBRECHT, Hans. Produo de Presena. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC. Rio de Janeiro, RJ: 2010, p.57)

A nsia de reunir o novo conhecimento e coloc-lo em circulao o mais amplamente possvel dez do sculo XVIII a grande era dos dicionrios e enciclopdias. [...] As enciclopdias continham a expectativa utpica de que um dia o conhecimento sobre o mundo seria total, e esse conhecimento total seria o ponto de partida para criar novas instituies sociais e polticas perfeitamente adaptadas s necessidades da humanidade. (GUMBRECHT, Hans. Produo de Presena. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC. Rio de Janeiro, RJ: 2010, p.57)

Nessa poca comeou a desenvolver-se uma nova ideia acerca do espao pblico e da poltica. O espao pblico era visto como a esfera de deliberao em que todos os participantes abdicariam de seus interesses pessoais e de grupo, tendo em vista obter consenso (GUMBRECHT, Hans. Produo de Presena. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC. Rio de Janeiro, RJ: 2010, p.58)

o parlamento[:] lugar onde, supostamente, a competio de diferentes opinies se transformaria em consenso e as diferentes vises de futuro convergiriam para uma viso nica (GUMBRECHT, Hans. Produo de Presena. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC. Rio de Janeiro, RJ: 2010, p.58)

Na viso de mundo metafsica, [...] a poltica parlamentar transformava-se num ritual to central e emblemtico como fora a eucaristia na cultura medieval. (GUMBRECHT, Hans. Produo de Presena. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC. Rio de Janeiro, RJ: 2010, p.58)

precisamente nessa poca [meados do sculo XVIII] surgem as primeiras fendas no edifcio da Modernidade. Vista a partir da histria da filosofia ocidental no sculo XIX, a obra de Immanuel Kant, por exemplo, aparece como um momento nico que expressa de modo emblemtico uma ambigidade: , ao mesmo tempo, um avano culminante do pensamento iluminista e um sintoma do comeo da dissoluo da epistemologia na qual o Iluminismo se baseou. (GUMBRECHT, Hans. Produo de Presena. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC. Rio de Janeiro, RJ: 2010, p.58)

Inicialmente, o pensamento de Kant parece ter sido provocado pela conscincia da distncia entre o sujeito e o mundo dos objetos, uma distncia que parecia suficientemente grande para desafiar a hiptese filosfica contempornea sobre os modos de apropriao do mundo. Mas at mesmo os que defendem que Kant conseguiu eliminar essa dvida, ao demonstrar que as faculdades humanas bastavam para apreender o mundo, mesmo esses admitem que sua motivao inicial surgiu das dvidas sobre a viabilidade do paradigma sujeito/objeto. (GUMBRECHT, Hans. Produo de Presena. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC. Rio de Janeiro, RJ: 2010, p.59)

os editores da Encyclopdie [Diderot e dAlembert] partiam de uma dupla complementaridade. Esperavam que as contribuies dos diferentes autores de cada entrada do Dictionnaire raisonn se conjugassem em descries unvocas do objeto ou do conceito em causa; no anteviam tenses ou contradies. [...] Apesar disso, a realidade da publicao revelou que muitas entradas com autores mltiplos eram descries contraditrias ou mesmo contrrias dos objetos e dos conceitos de que tratavam. Alm disso, a esperana dos editores de identificar uma (e s uma) estrutura bsica para todo o mundo das coisas e sua representao por meio de elemtnos do conhecimento no se concretizou sequer no plano hipottico que, numa folha desdobrvel, precedia o primeiro volume da Encyclopdie, um quadro confuso que distribua os assuntos [...] sem qualquer princpio dominante de plausibilidade. (GUMBRECHT, Hans. Produo de Presena. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC. Rio de Janeiro, RJ: 2010, p.60)

O conhecimento se tornou muito mais centrfugo do que seria de esperar, mas o fascnio intelectual com o pensamento materialista e at mesmo a emergncia da esttica como subcampo da filosofia no sculo XVIII tornam claro que, contrariamente s premissas do campo hermenutico, a apropriao do mundo pelo corpo humano, ou seja, pelos sentidos, reaparecia agora como alternativa epistemolgica. (GUMBRECHT, Hans. Produo de Presena. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC. Rio de Janeiro, RJ: 2010, p.60)

Michel Foucault demonstrou como, nessas condies do incio de uma crise da representao, a atividade de dar nome s coisas do mundo estava se transformando num empreendimento precrio e, por isso, obsessivo (GUMBRECHT, Hans. Produo de Presena. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC. Rio de Janeiro, RJ: 2010, p.60)

num desenho de seus Caprichos, Francisco de Goya criou uma nova viso emblemtica do filsofo iluminista [dAlembert] quando, deliberadamente, jogou com a ambigidade semntica do famoso subttulo El sueo de La razn produce monstruos [...] Assim, elogia convencionalmente e, ao mesmo tempo, destrona grotescamente os poderes da razo. (GUMBRECHT, Hans. Produo de Presena. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC. Rio de Janeiro, RJ: 2010, p. 61)5Durante a segunda dcada do sculo XIX, quando as sociedades europias emergiram de quase trinta anos de revolues e reformas que tinham comeado com a esperana de tornar verdadeiro o que o Iluminismo lhes prometera [...] o mundo estava ou, no mnimo, ainda estava longe das generosas expectativas propagadas pela gerao dos filsofos. [...] mltiplos fenmenos se conjugavam para reforar aqueles sintomas, (inicialmente) isolados, de inconsistncia epistemolgica que identificamos na produo intelectual do final do sculo XVIII e para finalmente causar uma crise generalizada na viso de mundo metafsica. Para uma descrio desse momento epistemologicamente decisivo remeto ao livro As palavras e as coisas, a inovadora obra de Foucault sobre a crise de la reprsentation, e distino entre observadores de primeira ordem e observadores de segunda ordem, desenvolvida por Niklas Luhmann (GUMBRECHT, Hans. Produo de Presena. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC. Rio de Janeiro, RJ: 2010, p. 61)

O papel do observador, surgido no incio da era moderna como elemento-chave do campo hermenutico, era apenas encontrar a distncia apropriada em relao aos objetos, mas o observador de segunda ordem, que haveria de dar forma epistemologia do sculo XIX, era um observador condenado mais do que privilegiado a observar a si mesmo no ato da observao (GUMBRECHT, Hans. Produo de Presena. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC. Rio de Janeiro, RJ: 2010, p. 62)

o observador de segunda ordem percebeu que cada elemento do conhecimento e cada representao que ele pudesse produzir dependeriam sempre, necessariamente, do ngulo especfico de observao. Assim, comeou a ver que existia uma infinidade de descries para cada objeto potencial de referncia e essa proliferao, em ltima anlise, destrua a crena na estabilidade dos objetos de referncia. Ao mesmo tempo, o observador de segunda ordem redescobria o corpo humano, mais especificamente os sentidos humanos, como parte integral de qualquer observao do mundo. Essa outra consequncia da funo do observador de segunda ordem [...] levaria tambm a questionar a possvel compatibilidade entre um apropriao do mundo pelos conceitos (a que chamarei experincia) e uma observao do mundo pelos sentidos (a que chamarei percepo). (GUMBRECHT, Hans. Produo de Presena. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC. Rio de Janeiro, RJ: 2010, p. 62)a soluo pode ser caracterizada como uma mudana de um estilo de representao do mundo em espelho (no qual cada conceito ou elemento do conhecimento supostamente correspondia a um nico fenmeno) para um estilo no qual cada fenmeno seria identificado por meio de uma narrativa. Refiro-me, como bvio, aos discursos paralelos da filosofia da histria (de tipo hegeliano) e ao evolucionismo (de tipo darwiniano). (GUMBRECHT, Hans. Produo de Presena. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC. Rio de Janeiro, RJ: 2010, p. 63)

os discursos narrativos abrem um espao no qual a mukltiplicidade de representaes pode ser integrada e ganhar a forma de uma sequ^ncia. Juntamente com a filosofia da histria e o evolucionismo, o realismo literrio do sculo XIX foi outro discurso que produziu uma pletora de reaes aos desafios do novo multiperspectivismo na viso do mundo. (GUMBRECHT, Hans. Produo de Presena. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC. Rio de Janeiro, RJ: 2010, p. 63)

As diferentes perspectivas que (por exemplo) os protagonistas de Flaubert encarnam nunca acabam por juntar-se numa viso homognea que seria o seu mundo (GUMBRECHT, Hans. Produo de Presena. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC. Rio de Janeiro, RJ: 2010, p. 63)

[j] o problema da (no) compatibilidade de uma apropriao do mundo por meio de conceitos e de uma apropriao do mundo por meio dos sentidos, no produziu sequer a iluso de uma soluo. [...] vemos apenas uma srie infindvel de tentativas, s vezes violentas mas nunca eficazes, de juntar a experincia e a percepo (GUMBRECHT, Hans. Produo de Presena. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC. Rio de Janeiro, RJ: 2010, p. 64)

Algumas das primeiras dessas reaes podem resumir-se na metfora de uma des-regulao do signo. Por des-regulao do signo entenda-se as vrias experincias para tentar modificar a distino muito ntida, inerente ao campo hermenutico, entre a superfcie puramente material do significante e a profundidade puramente espiritual (ou conceitual) do significado. (GUMBRECHT, Hans. Produo de Presena. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC. Rio de Janeiro, RJ: 2010, p. 64)

[Verlaine e Rimbaud] pretendiam investir de sentido, ou pelo menos de alguns sentidos conotativos, as estruturas sonoras dos seus textos. Um poema como Um coup de d, de Mallarm, parece sugerir que a disposio das palavras na pgina pode corresponder ao seu sentido e ao seu som potencial. O programm-Musik de Richard Wagner, finalmente, props a insero de sentido nos sons e nos ritmos da msica de orquestra. (GUMBRECHT, Hans. Produo de Presena. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC. Rio de Janeiro, RJ: 2010, p. 64)o objetivo explcito da srie de vinte romances de mile Zola, les Rougon-Marquart [era] explicar a histria de vrias geraes de uma famlia pela convergncia da sua disposio gentica e da influncia de ambientes sociais mltiplos (GUMBRECHT, Hans. Produo de Presena. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC. Rio de Janeiro, RJ: 2010, p. 64.

Friedrich Nietzsce, que fascinou Heidegger como o ltimo metafsico (ou o primeiro filsofo europeu a ultrapassar a metafsica), sempre elogiou a concentrao acadmica no valor filolgico da superfcie dos textos e na superficialidade material das mscaras, expondo ao ridculo os esforos para encontrar o sentido e a verdade ltimos por baixo ou atrs deles [...] Antes de estabelecer os fundamentos da psicanlise como nico mtodo interpretativo na obra A interpretao dos sonhos, publicada em 1900, Sigmund Freud trabalhara mais de uma dcada em vrios esquemas destinados a integrar o pensamento humano na fisiolofia humana. Por fim, tal como outros pensadores do seu tempo, Henri Brgson estava convencido de que a memria humana era um fenmeno que, conceitualmente dissecado, haveria de revelar as ligaes entre a mente e o crebro. (GUMBRECHT, Hans. Produo de Presena. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC. Rio de Janeiro, RJ: 2010, p. 65)

significativo que pensadores como Brgson, Freud e Nietzsche [...] tenham lutado em seu tempo na maioria dos casos, em vo para obter respeitabilidade acadmica. O mundo oficial das universidades seguia rapidamente em direo a solues radicais para reagir ao problema da mediao entre experincia e percepo, solues que acabavam por sugerir formas diferentes de separao dessas duas dimenses. Em nvel epistemolgico, uma dessas solues era apontada pelo estilo filosfico fundado por Edward Husserl, a que podemos chamar fenomenologia. Numa viragem polmica contra a crena ingnua dos cientistas naturais de que poderiam apreender as coisas do mundo, Husserl sugeriu (pelo menos muitos de seus leitores entenderam assim) que os objetos exteriores ao pensamento humano eram pura e simplesmente inacessveis. Era um dos finais do paradigma sujeito/objeto, do campo hermenutico e da metafsica ocidental. A filosofia fenomenolgica em breve se concentraria exclusivamente nos esforos introspectivos para descrever os mecanismos pelos quais o prprio pensamento humano produz (constroi) vises do mundo exterior. Tornou-se assim uma matriz de outros estilos ou escolas contemporneas [...] que caracterizamos como construcionistas por causa do princpio geral de que tudo que analisam ou com que se relacionam so construes (ou projees) da mente humana. (GUMBRECHT, Hans. Produo de Presena. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC. Rio de Janeiro, RJ: 2010, p. 66)Um passo institucional paralelo ocorreu na Universidade de Berlim durante a ltima dcada do sculo XIX. [...] E, 1893, o filsofo William Dilthey conseguiu impedir que a Universidade de Berlim contratasse Hermann Ebbinghaus, um eminente representante da psicologia cientfica, a quem acusava de transgresses para o campo da fisiologia. Precisamente dez anos depois, Dilthey e catorze dos seus colegas propuseram ao Ministrio da Cultura que todos os estudiosos que praticavam aquele modo de pesquisa forrem institucionalmente separados. Tal secesso (que acabaria por se concretizar) foi o incio da independncia institucional das Geistwissenschaften [cincias do esprito], um grupo de disciplinas que, na esteira do programa de Dilthey, concentrou-se na interpretao como prtica nuclear e na hermenutica como espao de reflexo. (GUMBRECHT, Hans. Produo de Presena. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC. Rio de Janeiro, RJ: 2010, p. 66

O preo que as Humanidades tiveram de pagar por esse passo foi evidente: a perda de todas as referncias do mundo que no fossem cartesianas nem estivessem fundadas na experincia. (GUMBRECHT, Hans. Produo de Presena. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC. Rio de Janeiro, RJ: 2010, p. 67)

6Motivadas pela convergncia da recepo ampla (quase popular) e entusistica da fenomenologia de em toda Europa e da influncia institucional de Dilthey e de sua escola, as Humanidades concentraram-se mais do que nunca nas dimenses de sentido e na linguagem como lugares e instrumentos da construo do mundo. (GUMBRECHT, Hans. Produo de Presena. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC. Rio de Janeiro, RJ: 2010, p. 67)a fenomenologia, o construcionismo e os estudos culturais comparados, a nova crtica e o alto modernismo, em todas as suas variedades internas, como reaes e movimentos intelectualmente revolucionrios, formavam apenas um de dois ramos de reaes iniciadas pelos efeitos de longo prazo da crise epistemolgica do sculo XIX. Esse era o ramo a que ainda hoje se chama progressista. A outra sequncia de reaes relacionadas mesma origem caracterizava-se por um sentimento comum de perda e por uma nostalgia daquela referncia ao mundo dos objetos, em cuja disponibilidade a metafsica acreditara to longa e to fortemente. Durante vrias dcadas, pesquisadores de diferentes reas apontaram, s vezes com gestos dramticos de lamento ou de remorso, a perda de uma (crena numa) referncia ao mundo. A filosofia analstica, no seu incio institucional, pretendia provar que se poderia atingir pelo menos um grau mnimo de referncia ao mundo com a linguagem ou, pelo menos, com frases elementares cuidadosamente engendradas. Ao mesmo tempo, mas tanto quanto se possa imaginar divergindo da filosofia analtica nos seus estilos intelectuais, pensadores ferozes e artistas de gestos loucos, como Georges Bataille ou Antonin Artaud, acusavam a cultura ocidental de ter perdido o contato com o corpo humano. (GUMBRECHT, Hans. Produo de Presena. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC. Rio de Janeiro, RJ: 2010, p. 70)

Nesse contexto, nenhum pensador foi mais longe na crtica e na reviso da viso de mundo metafsica do que Martin Heidegger. Iniciado com a publicao de Ser e tempo em 1929, esse esforo logo atraiu a ateno internacional. Heidegger substituiu o paradigma sujeito/objeto pelo novo conceito de ser-no-mundo, que, por assim dizer, deveria devolver a autorreferncia humana ao contato com as coisas do mundo (GUMBRECHT, Hans. Produo de Presena. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC. Rio de Janeiro, RJ: 2010, p. 70)Contra o paradigma cartesiano, Heidegger reafirmava a substancialidade corprea e as dimenses espaciais da existncia humana; ele comeou a desenvolver a ideia de um desvelamento do Ser (nesse contexto, a palavra Ser refere-se sempre a alguma coisa substancial) para substituir o conceito metafsico de verdade (GUMBRECHT, Hans. Produo de Presena. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC. Rio de Janeiro, RJ: 2010, p. 70)

7durante as primeiras dcadas do sculo XX houve dois tipos paralelos de reao perda da referncia ao mundo e da dimenso da percepo: as vrias formas de construcionismo, por um lado, e as diferentes tentativas de reaver a referncia e a percepo, por outr. O contraste e a tenso entre esses dois tipos veio a ser uma alternncia entre estilos intelectuais duros e suaves no mbito das Humanidades por volta da dcada de 50. (GUMBRECHT, Hans. Produo de Presena. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC. Rio de Janeiro, RJ: 2010, p. 71)

Desde o final da dcada de 1950, porm, sucederam-se ondas simultneas de paradigmas aparentemente mais duros. Entre eles, estava a recepo dos estudos literrios ao estruturalismo, lingstica cultural e ao chamado formalismo russo. Pelo menos na ambio de ultrapassar a subjetividade da interpretao pura, essas teorias corresponderam a um novo entusiasmo por todos os tipos de abordagens sociolgicas, incluindo as diferentes variedades do marxismo e da histria da recepo literria. S dez anos depois, nas dcadas de 1970 e 1980, o ensino ps-moderno da literatura, sob a influncia suavizante da desconstruo e do novo historicismo, fez o que podia para tornar to ingnuo quanto possvel o desejo anterior de rigor terico e metodolgico. Apesar de divergncias filosficas internas, a desconstruo e o novo historicismo comearam por (diferentes) crticas ao estruturalismo (isto , a um paradigma duro), e tanto uma quanto o outro encontraram recepo mais frtil entre uma gerao de acadmicos da literatura que haviam sido educados no estilo interpretativo da nova crtica. (GUMBRECHT, Hans. Produo de Presena. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC. Rio de Janeiro, RJ: 2010, p. 72)

J deve ter-se tornado evidente que entendo a alternncia entre prticas duras e suaves nas Humanidades como uma reao tardia ao trauma de nasceno do grupo de disciplinas cujo principal ponto de convergncia e identidade era uma excluso, nomeadamente a excluso das dimenses epistemolgicas da percepo e da referncia. Mas essa tese ainda no uma resposta pergunta com a qual iniciei este captulo: por que estamos to ansios para ultrapassar a metafsica? Uma resposta que este captulo tornou possvel que ultrapassar a metafsica pode ser entendido, em retrospectiva, como uma tentativa de nos redimir da alternncia, em ltima anlise intil, entre prticas intelectuais suaves e duras. Espero, portanto, que meu interesse na emergncia do sentido e, acima de tudo, na oscilao entre efeitos de sentido e efeitos de presena, to diferente do tpico materialidades da comunicao, deixe de ser atribudo exclusivamente a uma ou a outra dessas polaridades [...] Se no a soluo para como ultrapassar a metafsica ou para como abandonar a metafsica, pelo menos a interrupo da alternncia entre paradigmas duros e paradigmas suaves pode ser um modo de escapar da (ou de esquecer a metafsica) como campo de foras intelectual. (GUMBRECHT, Hans. Produo de Presena. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC. Rio de Janeiro, RJ: 2010, p. 73)Para alm do sentido: posies e conceitos em movimento

1[em Gramatologia, Derrida] escreve sobre a era do signo (penso que se refere ao que tenho chamado metafsica). [...] l-se que a era do signo talvez nunca venha a ter um fim. O seu encerramento histrico, porm, est traado (GUMBRECHT, Hans. Produo de Presena. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC. Rio de Janeiro, RJ: 2010, p. 75)

H bons argumentos para terminar com a era da polaridade entre o significante puramente material e o significado puramente espiritual, mas no claro a partir do texto de Derrida, certamente no que de fato queiramos recorrer a esses argumentos de um modo que definitivamente significaria o fim da metafsica. [...] quem ter pacincia suficiente infinita pacincia para concordar com Derrida? (GUMBRECHT, Hans. Produo de Presena. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC. Rio de Janeiro, RJ: 2010, p. 76)

[Paul] De Man defendia que tinha terminado a iluso do que chamamos de leitura semitica mas, ao lamentar to fielmente a perda da referncia e do sentido estvel, tornou impossvel esquec-los (GUMBRECHT, Hans. Produo de Presena. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC. Rio de Janeiro, RJ: 2010, p. 76)

Ora, o que significaria e o que implicaria pr fim era do signo? [...e] o fim da metafsica? [...] julgo que o para alm, em metafsica, s pode querer dizer algo somado interpretao isso, claro, sem abandonar a interpretao como prtica intelectual elementar e provavelmente inevitvel. Seria o mesmo que tentar desenvolver conceitos que nos permitiriam, nas Humanidades, nos relacionar com o mundo de um modo mais complexo do que a simples interpretao, o que, em si, j mais complexo do que a simples atribuio de sentido ao mundo (ou, para usar uma topologia mais antiga, mais complexo do que extrair sentido do mundo) (GUMBRECHT, Hans. Produo de Presena. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC. Rio de Janeiro, RJ: 2010, p. 76)

provavelmente no existe maneira de acabar com o domnio exclusivo da interpretao, nem de abandonar a hermenutica e a metafsica nas Humanidades, sem recorrer a conceitos que os possveis inimigos intelectuais no caracterizem polemicamente como substancialistas, ou seja, conceitos como substncia, presena e quem sabe at realidade e Ser (GUMBRECHT, Hans. Produo de Presena. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC. Rio de Janeiro, RJ: 2010, p. 77)

acreditar na possibilidade de nos referirmos ao mundo sem ser pelo sentido tornou-se sinnimo do grau mais elevado de ingenuidade filosfica (GUMBRECHT, Hans. Produo de Presena. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC. Rio de Janeiro, RJ: 2010, p. 77)Apesar de suas ideias revolucionrias e da crena de que possui o potencial intelectual para encerrar para sempre a era do signo, a desconstruo, em grande medida, tem recorrida a um suave terror para consolidar a ordem vigente nas Humanidades (GUMBRECHT, Hans. Produo de Presena. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC. Rio de Janeiro, RJ: 2010, p. 78)

2neste captulo [...] tento alcanar e pensar em uma camada nos objetos culturais, e em nossa relao com eles, que no a camada do sentido. [...] tambm ser bom lembrar algumas afinidades importantes no cenrio contemporneo das Humanidades (GUMBRECHT, Hans. Produo de Presena. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC. Rio de Janeiro, RJ: 2010, p. 78)

Na hermenutica atual, [Gianni] Vattimo pertence queles maximalistas que esto convencidos de que a crena [...] em que a interpretao a nica maneira de nos relacionarmos com o mundo j atingiu h muito as cincias e, como resultado, enfraqueceu todas as reivindicaes cientficas de facticidade: O mundo como conflito de interpretaes, e nada mais, no uma imagem do mundo que tenha de ser defendida contra o realismo e o positivismo da cincia. a cincia moderna, herdeira e remate da metafsica, que transforma o mundo num lugar onde (j) no h fatos, apenas interpretaes (GUMBRECHT, Hans. Produo de Presena. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC. Rio de Janeiro, RJ: 2010, p. 79)

Vattimo talvez estivesse de acordo comigo sobre o que Heidegger quer dizer com histria do Ser mas nossas reaes a esse conceito no poderiam ser mais divergentes. Eu pretendo virar a substancialidade do Ser contra a tese da universalidade da interpretao, enquanto Vattimo quer que o Ser (o desejo de Ser?) desaparea por sob uma reiterao infindvel de interpretaes (GUMBRECHT, Hans. Produo de Presena. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC. Rio de Janeiro, RJ: 2010, p. 80)

Que Vattimo, alm disso, chame sua posio antipresena e antissubstancialista de leitura esquerdista de Heidegger revela o que pretendo dizer quando afirmo que a hermenutica e a interpretao, nos discurso das Humanidades, esto protegidas por gestos de intimidao intelectual (GUMBRECHT, Hans. Produo de Presena. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC. Rio de Janeiro, RJ: 2010, p. 80)

[Umberto Eco] defendeu a anacrnica tese do regresso a uma forma de interpretao textual que, em vez de ser uma produo infindvel de variantes, produzisse resultados definitivos ou pudesse ao menos resultar em critrios que permitissem distinguir interpretaes melhores e interpretaes piores. Os limites da interpretao, diz Eco [...], coincide com os direitos do texto (o que no quer dizer os direitos do autor) (GUMBRECHT, Hans. Produo de Presena. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC. Rio de Janeiro, RJ: 2010, p. 80)

h razes para duvidar que tal retorno voluntrio ingenuidade epistemolgica, em ltima anlise, possa ser vivel, depois de todas as crises na histria da filosofia ocidental do sculo XX. Hoje, o paradigma sujeito/objeto que exclui qualquer simples referncia ao mundo e precisamente nesse paradigma que Eco no toca (ou inadvertidamente restaura) quando se compromete com os direitos do texto. Por isso, exatamente, creio que deveramos tentar restabelecer o contato com as coisas do mundo fora do paradigma sujeito/objeto (ou numa verso modificada desse paradigma), tentando evitar a interpretao sem mesmo criticar a altamente sofisticada e altamente autorreflexiva arte de interpretao que as Humanidades h muito instituram (GUMBRECHT, Hans. Produo de Presena. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC. Rio de Janeiro, RJ: 2010, p. 81)

Tambm por essa razo sinto forte afinidade com a premissa do livro de Jean-Luc Nancy, The Birth to Presence [...]: Chega um momento em que s se pode sentir raiva, uma raiva absoluta, contra tantos discursos, tantos textos que no tm outro objetivo seno fazer um pouco mais de sentido, ou refazer ou aperfeioar delicadas obras de significao (GUMBRECHT, Hans. Produo de Presena. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC. Rio de Janeiro, RJ: 2010, p. 81)

Nancy alude a uma concepo de presena que difcil ou impossvel reconciliar com a moderna epistemologia ocidental, pois torna a trazer a dimenso de proximidade fsica e de tangibilidade (GUMBRECHT, Hans. Produo de Presena. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC. Rio de Janeiro, RJ: 2010, p. 82)

uma presena que escapa dimenso do sentido tem de estar em tenso com o princpio da representao: [diz Nancy que] a presena no vem sem apagar a presena que a representao gostaria de designar (os seus fundamentos, a sua origem, o seu tema) (GUMBRECHT, Hans. Produo de Presena. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC. Rio de Janeiro, RJ: 2010, p. 82)

a presena no pode passar a fazer parte de uma situao permanente, nunca pode ser uma coisa a que, por assim dizer, nos possamos agarrar.

Deve ser essa a razo pela qual Nancy [...] associa esse conceito quilo que chamo de condies de temporalidade extrema. Para Nancy, a presena, pelo menos a presena nas condies contemporneas, o nascimento, a chegada que apaga a si mesma e devolve a si mesma (GUMBRECHT, Hans. Produo de Presena. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC. Rio de Janeiro, RJ: 2010, p. 82)

[Para Karl Heinz Bohrer], o sbito, o carter efmero de certos surgimentos e partidas, a caracterstica fundamental da experincia esttica, e ele se refere a isso como a negatividade esttica: a negatividade da conscincia da presena evanescente. O que, nessas condies, se torna evidente no conceito de experincia esttica segundo Bohrer obviamente a substncia, no o sentido. Mas parece ser exclusivamente a substncia do significante. Ao referir-se, por exemplo, famosa reflexo de Kafka acerca da impresso que nele deixou um grupo de atores judeus, Bohrer escreve que Kafka no l as expresses do ator em relao ao que o ator exprime (isto , o seu papel), l apenas a partir da expresso (GUMBRECHT, Hans. Produo de Presena. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC. Rio de Janeiro, RJ: 2010, p. 83)

Uma forma maliciosa, reconheo de caracterizar o construtivismo seria dizer que uma verso gasta da premissa fenomenolgica segundo a qual s podem ser objeto de anlise filosfica os contedos da conscincia humana. Com base numa consequncia necessria dessa posio (ou seja, no postulado de que o que quer que identifiquemos como realidade/realidades s pode ser abordado como projeo ou construo da nossa conscincia), acrescentado da tese dupla, mais precria, de que nessas construes possvel identificar traos de uma conscincia partilhada por todos os seres humanos (o sujeito transcendental), e que se podem encontrar tambm vestgios desses traos partilhados em todas as sociedades existentes (mundos da vida), o construtivismo acaba por concluir que todas as realidades que partilhamos com os outros seres humanos so construes sociais. Contrariando, penso, suas origens filosficas, o construtivismo transformou-se hoje na crena trivial de que tudo, desde sexo at paisagem, via cultura, est facilmente ao dispor da vontade humana de mudar (GUMBRECHT, Hans. Produo de Presena. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC. Rio de Janeiro, RJ: 2010, p. 85)

a obra de Judith Butler, Bodies That Matter (1993) [], ao trazer para a discusso a materialidade do corpo e a inrcia que essa materialidade ope a qualquer tipo de transformao, [...] provocou o construtivismo como ponto de partida largamente aceito nas discusses ento abertas na filosofia de gnero: o que proponho no lugar dessas concepes de construo um regresso noo de matria, no como stio ou superfcie, mas como processo de materializao que estabiliza ao longo do tempo para produzir o efeito de fronteira, fixidez e superfcie que chamamos matria. Butler quer dizer que no basta uma simples deciso para alterar o gnero de uma pessoa [...]; so necessrias formas de comportamento e de ao, mantidas ao longo do tempo (nesse contexto, Butler recorre ao conceito de performance), capazes de moldar e de produzir diferentes formas e identidades corporais (GUMBRECHT, Hans. Produo de Presena. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC. Rio de Janeiro, RJ: 2010, p. 86)Ao concentrar-se na questo de saber como a substncia corporal pode se transformar questo que, tanto quanto sei, nunca foi excluda por nenhuma filosofia que operasse com o conceito de substncia -, Butler pretende provar que possvel abandonar a doxa construtivista sem abdicar do valor poltico do direito e da capacidade de mudana do sujeito (GUMBRECHT, Hans. Produo de Presena. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC. Rio de Janeiro, RJ: 2010, p. 86)

Sob o termo aparncia, [Martin] Seel rene as condies com as quais o mundo nos dado e apresentado aos sentidos humanos (outra palavra que ele usa no mesmo contexto Wahrnehmung, percepo). Como bvio, uma esttica da aparncia uma tentativa de nos devolver, conscincia e ao corpo, a coisidade do mundo (GUMBRECHT, Hans. Produo de Presena. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC. Rio de Janeiro, RJ: 2010, p. 88)

o que quer que aparea est presente porque se oferece aos sentidos do ser humano. Existem dois aspectos a que ele d particular ateno. Em primeiro lugar, a aparncia das coisas, para Seel, produz sempre uma conscincia das limitaes do controle humano sobre tais coisas [Unverfgbarkeit]. Em segundo lugar, e esta parece ser a questo central para a reflexo de Seel, procura identificar e compreender as condies e instrumentos com os quais possvel produzir aparncia num ambiente social e cultural em que a atribuio de sentido e no a percepo sensorial institucionalmente primordial (GUMBRECHT, Hans. Produo de Presena. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC. Rio de Janeiro, RJ: 2010, p. 89)

Hans-Georg Gadamer, que, mais do que qualquer outro filsofo do nosso tempo, est associado hermenutica (incluindo sua reivindicao de universalidade) e interpretao como produo contnua de sentido, sugeriu que se desse maior reconhecimento ao no semntico, ou seja, s componentes materiais dos textos literrios. (GUMBRECHT, Hans. Produo de Presena. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC. Rio de Janeiro, RJ: 2010, p. 89)

[Em entrevista recente, Gadamer elabora] uma posio que de fato desafia a assuno de que o sentido sempre e necessariamente a dimenso predominante na leitura de um poema: Mas poderemos de fato supor que a leitura desses textos uma leitura exclusivamente concentrada no sentido? No cantamos o texto [Is es nicht ein singen]? Ser que o processo pelo qual o poema fala s deve ser conduzido por uma inteno de sentido? No existe ao mesmo tempo uma verdade na sua performance [eine Vollzugswahrheit]? esta, penso, a tarefa com que o poema nos confrontaGadamer chama dimenso no hermenutica do texto literrio o seu volume e faz corresponder tenso entre as suas componentes semnticas e no semnticas a tenso entre mundo e terra que Heidegger desenvolve no ensaio A origem da obra de arte. a sua componente terra que permite obra de arte ou ao poema firmar a si mesmo; a terra que d obra de arte existncia no espao. (GUMBRECHT, Hans. Produo de Presena. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC. Rio de Janeiro, RJ: 2010, p. 90)

3do ponto de vista de Heidegger, a fenomenologia de Husserl era o ponto de chegada de uma trajetria filosfica milenar, na qual o paradigma sujeito/objeto ou seja, a configurao conceitual da contnua divergncia entre a existncia humana e o mundo como esfera puramente material conduzira a cultura ocidental a um estado extremo de alienao do mundo. Mais do que Husserl (que tinha boas razes para chamar cartesiana sua filosofia), Descartes era o objeto explcito da crtica de Heidegger: por isso, Ser e tempo apresenta como pecados originais da filosofia moderna o fundamento cartesiano da existncia humana no pensamento (e s no pensamento) e as subsequentes dissociaes entre a existncia humana e o espao e entre a existncia humana e a substncia. Visto dessa perspectiva, o passo conceitual decisivo no livro de Heidegger , como disse, a caracterizao da existncia humana como ser-no-mundo, ou seja, como uma existncia que est sempre j em contato substancial, e, por isso, espacial com as coisas do mundo (GUMBRECHT, Hans. Produo de Presena. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC. Rio de Janeiro, RJ: 2010, p. 91)

Ser-no-mundo um conceito perfeitamente ajustado a um tipo de reflexo e anlise que tenta recuperar a componente de presena em nossa relao com as coisas do mundo. Nas pginas que se seguem, porm, eu gostaria de revelar a complexidade de outro conceito-chave de Heidegger [...] o conceito de Ser [...] Espero que o esforo de revelar as vrias dimenses do conceito [...] possa produzir uma conscincia mais ntida de at onde deveria ir uma transformao em nosso estilo conceitual atual se, de fato, quisssemos tentar desenvolver um discurso mais ajustado [ reflexo sobre a] presena (GUMBRECHT, Hans. Produo de Presena. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC. Rio de Janeiro, RJ: 2010, p. 92)o Ser, na arquitetura da filosofia de Heidegger, toma o lugar da verdade (ou, para ser mais preciso, toma o lugar do contedo da verdade) que havia sido ocupado, desde o tempo de Plato [...], pelas ideias. [...] Heidegger fala da verdade como algo que acontece [ein Geschehen]. (GUMBRECHT, Hans. Produo de Presena. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC. Rio de Janeiro, RJ: 2010, p. 93

o Ser, enquanto est sendo revelado, por exemplo, numa obra de arte, no nem espiritual nem conceitual. Ser no um sentido. Ser pertence dimenso das coisas (GUMBRECHT, Hans. Produo de Presena. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC. Rio de Janeiro, RJ: 2010, p. 93)

a funo da obra de arte mostrar algo que tem o carter de coisa [...] Se o ser tem o carter de coisa, quer dizer que tem substncia e, por isso, ao contrrio de algo puramente espiritual, ocupa espao (GUMBRECHT, Hans. Produo de Presena. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC. Rio de Janeiro, RJ: 2010, p. 93Com o nosso questionar[, diz Heidegger, ]entramos numa paisagem; estar dentro dessa paisagem um requisito fundamental para restabelecer o enraizamento do histrico Dasein. Ter uma substncia e, assim, ocupar espao implica a possibilidade de o Ser revelar um movimento: O Ser como phusis o balano em fuso. (GUMBRECHT, Hans. Produo de Presena. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC. Rio de Janeiro, RJ: 2010, p. 94)

o movimento do Ser no espao acaba por se revelar multidimensional (tridimensional, para ser mais exato) e [...], na sua total complexidade, esse movimento multidimensional explica o que Heidegger chama de acontecimento da verdade. (GUMBRECHT, Hans. Produo de Presena. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC. Rio de Janeiro, RJ: 2010, p. 94)

[Diz Heidegger:] Phusis o balano emergente, o suster-se-ali-em-si-mesmo, a constncia. Ideia, o aspecto como o que visto, a determinao do constante como aquilo que, e apenas na medida em que, se sustm do lado oposto ao ver. Mas Phusis como balano emergente tambm j aparecer. Certamente, justo que aparecer tenha dois sentidos. Primeiro, aparecer denota o evento autocoletor de fazer-com-que-se-sustenha e, assim, suster-se no coligido. Mas aparecer tambm quer dizer: uma coisa que j se sustm ali, para oferecer uma zona de entrada, uma superfcie, um olhar como um oferecer-se para ser olhado.

Julgo que est correto associar a dimenso vertical [de balano] no movimento do Ser ao simples fato de estar ali (mais exatamente, sua emergncia em estar ali e ocupar um espao), ao passo que a dimenso horizontal [de ideia e aspecto] aponta para o Ser como estando a ser percebido, o que tambm quer dizer o Ser oferecendo-se vista de algum (como uma aparncia e como um ob-jeto, uma coisa que se move em direo a ou contra um observador). (GUMBRECHT, Hans. Produo de Presena. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC. Rio de Janeiro, RJ: 2010, p. 95)

Heidegger sugere que o Ser se retira em vez de se oferecer a ns, de modo que as coisas que aparecem na retirada do Ser deixam de ter o carter de objetos. Estou convencido de que essa retirada parte do movimento duplo de revelo e retirada que, como vimos, constitui o acontecimento da verdade, e que a parte da revelao contm tanto o movimento vertical de balano (de emergncia e do seu resultado: estar ali), quanto o movimento horizontal de ideia (como o que se apresenta, a aparncia). (GUMBRECHT, Hans. Produo de Presena. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC. Rio de Janeiro, RJ: 2010, p. 95)

[o Ser] pretende referir-se s coisas do mundo independentemente da (ou anteriormente ) sua interpretao e da sua estruturao por meio de uma rede qualquer de conceitos histrica ou culturalmente especficos. Dito de outro modo, penso que o Ser se refere s coisas do mundo antes de elas se tornarem parte de uma cultura (ou, para usar a figura retrica do paradoxo, o conceito refere-se s coisas do mundo antes de elas fazerem parte de um mundo). (GUMBRECHT, Hans. Produo de Presena. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC. Rio de Janeiro, RJ: 2010, p. 95)o Ser s ser Ser fora das redes da semntica e de outras distines culturais. Para que pudssemos ter a experincia do Ser, porm, este teria de atravessar o limiar entre, de um lado, uma esfera (que podemos pelo menos imaginar) livre das grelhas de qualquer cultura especfica e, de outro, as esferas bem estruturadas das diferentes culturas. Alm disso, para ser experimentado, o Ser teria de tornar-se parte de uma cultura. Assim que atravessar esse limiar, porm, deixar de ser, claro, Ser. Por isso, a revelao do Ser, no acontecimento da verdade, tem de se perceber a si mesma como um duplo movimento contnuo de vir para diante (em direo ao limiar) e de se retirar (afastando-se do limiar), de revelao e ocultao (GUMBRECHT, Hans. Produo de Presena. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC. Rio de Janeiro, RJ: 2010, p. 96)

a mesma estrutura constitui a concepo mais ampla de Heidegger de uma Histria do Ser [Seingeschichte]. Se o Ser se revela ou no, no depende apenas da (maior ou menor) serenidade que cada Dasein capaz de investir. Depende tambm de cada momento especfico no tempo da Humanidade. Nesse sentido, Heidegger estava convencido, por exemplo, que a Grcia antiga tinha uma possibilidade incomparavelmente maior de estar presente na revelao do Ser do que, digamos, os habitantes do incio do sculo XX (GUMBRECHT, Hans. Produo de Presena. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC. Rio de Janeiro, RJ: 2010, p. 96)[Recapitulemos] a funo do Dasein (palavra usada por Heidegger para designar a existncia humana) no acontecimento da verdade. [...] Dasein no sinnimo das definies padro de sujeito ou subjetividade [que] pertence[m] ao contexto epistemolgico do paradigma sujeito/objeto. Dasein o ser-no-mundo, isto , a existncia humana que est sempre j em contato funcional e espacial com o mundo. O mundo com o qual o Dasein est em contato est ao-alcance-da-mo, um mundo sempre j interpretado. Ao pressupor a situao de Ser-no-mundo, Heidegger caracteriza a possvel contribuio do Dasein para a revelao do Ser como serenidade [Gelassenheit], a capacidade de deixar que as coisas aconteam. Ento, o impulso ou a iniciativa para a revelao do Ser (se que tais palavras so adequadas) parece vir do lado do Ser, no do lado do Dasein. Assim, interessante que outra determinao da serenidade seja o seu estatuto de estar de fora da distino entre atividade e passividade. Na medida em que o Dasein, para Heidegger, tem de estar-no-mundo (e no pode, como um sujeito, estar-em-frente-do-mundo), tambm plausvel que ele descreva a serenidade como a capacidade de abandonar quaisquer imaginao e projeo transcendentes. Claramente, o Dasein no deve ocupar uma posio que possa estar conectada manipulao, transformao ou interpretao do mundo. (GUMBRECHT, Hans. Produo de Presena. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC. Rio de Janeiro, RJ: 2010, p. 97)Eis um excerto de A origem da obra de arte [de Heidegger] que faz convergir alguns aspectos que tenho citado o acontecimento da verdade como um evento que nos faz ver as coisas de um modo diferente do habitual, por exemplo, e esse modo diferente associado ao nada, isto , a uma dimenso de onde esto ausentes todas as distines culturais:

Ento, a arte o surgimento e o acontecimento da verdade. Mas ser ento que a verdade surge do nada? De fato, assim , se por nada se entender a mera negao daquilo que , e se aqui pensarmos naquilo que como um objeto presente, no sentido comum, que a partir da surge luz e desafiado pela existncia da obra como s presumivelmente um ser verdadeiro. A verdade no resulta nunca de objetos que esto presentes e so comuns. Pelo contrrio, o abrir-se do Aberto, o descerrar do que , acontece apenas enquanto projetada a abertura (GUMBRECHT, Hans. Produo de Presena. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC. Rio de Janeiro, RJ: 2010, p. 98)

Heidegger ocupa algumas pginas com a recordao de um antigo templo grego, e a que, na sua tentativa de caracterizar o Ser, desenvolve dois outros conceitos, mundo e terra (GUMBRECHT, Hans. Produo de Presena. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC. Rio de Janeiro, RJ: 2010, p. 99)

Uma resposta complexa pergunta de como a presena do templo pode contribuir para provocar a revelao do Ser dada nas descries contrastantes de mundo e terra: O mundo a abertura autorreveladora dos trilhos largos de decises simples e essenciais no destino de um povo histrico. A terra a vinda espontnea para diante daquilo que continuamente se autoisola e, nessa medida, d abrigo e esconderijo (GUMBRECHT, Hans. Produo de Presena. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC. Rio de Janeiro, RJ: 2010, p. 99)

um aspecto muito importante e s vezes ignorado do texto de Heidegger [] a ideia de que ver as coisas como fazendo parte do Ser, isto , independentemente das formas que se lhes impem as culturas historicamente especficas, no quer dizer que essas coisas ou no tenham nenhuma forma ou tenham formas necessariamente imutveis (eternas). Portanto, no deveremos concluir, por exemplo, que o Ser revelado a um antigo campons ou filsofo grego teria sido o mesmo Ser que pode ser revelado a ns, dois milnios e meio mais tarde. Terra poderia referir-se a Ser como substncia, e mundo s configuraes e estruturas em mudana, das quais o Ser como substncia pode se tornar uma parte. (GUMBRECHT, Hans. Produo de Presena. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC. Rio de Janeiro, RJ: 2010, p. 102)

A outra soluo para o estatuto de mundo [...] entende que, para Heidegger, o Ser revela-se sempre e s na forma e na substncia (assim como contra ou por meio da forma e da substncia) de coisas que fazem parte de culturas especficas (seres e mundos como configuraes de tais coisas). que, ao contrrio das ideias platnicas, o Ser no deve ser uma coisa geral, nem uma coisa meta-histrica por sob ou atrs de um mundo de superfcies. Talvez seja simples defini-lo como proponho: o Ser so as coisas tangveis, consideradas independentemente das situaes culturais especficas o que no simples de fazer nem provvel de acontecer (GUMBRECHT, Hans. Produo de Presena. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC. Rio de Janeiro, RJ: 2010, p. 102)

Uma coisa parece certa, sejam quais forem nossas interpretaes de mundo. Sempre que uma situao cultural especfica desaparece (se o deus escapa do templo), as coisas pertencentes a essa situao deixam de poder ser o ponto de partida para uma revelao do Ser, pois lhes falta mundo como dimenso integrante que parece dar-lhes vitalidade (GUMBRECHT, Hans. Produo de Presena. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC. Rio de Janeiro, RJ: 2010, p. 103)

Por mais provisria que seja minha tentativa de revelar a complexidade do conceito heideggeriano de Ser, no h dvida de que o conceito est muito prximo do de presena (que procurei identificar, no incio deste captulo, como o ponto convergncia entre diferentes reflexes contemporneas, que tentam ir alm de uma epistemologia metafsica e de sentido). Ambos os conceitos [...] implicam substncia; ambos esto relacionados com o espao; ambos podem se associar ao movimento (GUMBRECHT, Hans. Produo de Presena. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC. Rio de Janeiro, RJ: 2010, p. 103

o que propus chamar de os movimentos do Ser, na concepo heideggeriana, tornam impossvel pensar no Ser como algo estvel. O mais importante ponto de convergncia, porm, a tenso entre o sentido (isto , aquilo que torna as coisas culturalmente especficas), de um lado, e a presena ou Ser, de outro. (GUMBRECHT, Hans. Produo de Presena. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC. Rio de Janeiro, RJ: 2010, p. 104)4

tempo de romper com certos tabus discursivos [...], de desenvolver conceitos que possam ao menos permitir apreender os fenmenos de presena, em vez de s podermos passar ao largo dessa dimenso [...:] a nica estratgia que poder nos ajudar a progredir nisso o recurso a culturas e discursos pr ou no-metafsicos do passado (GUMBRECHT, Hans. Produo de Presena. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC. Rio de Janeiro, RJ: 2010, p. 105)

Por falta de conhecimento da cultura grega da Antiguidade, recorro, para me inspirar, cultura medieval e ao contraste entre a cultura medieval e o incio da cultura moderna (GUMBRECHT, Hans. Produo de Presena. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC. Rio de Janeiro, RJ: 2010, p. 105)

O que pretendo propor [...] um conjunto de conceitos [...] que nos ajude a ultrapassar o estatuto exclusivo da interpretao nas Humanidades (GUMBRECHT, Hans. Produo de Presena. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC. Rio de Janeiro, RJ: 2010, p. 105)

apesar do princpio de que todos os discursos de autodescrio coletiva contm elementos de cultura de sentido e de presena, est certo supor que alguns fenmenos culturais (por exemplo, os sacramentos da Igreja Catlica ou a racionalidade de atuais cultos afro-brasileiros) esto mais do lado da cultura de presena, ao passo que outros (como a antiga poltica de Roma ou a burocracia do incio do Imprio Espanhol) so predominantemente fundados na cultura de sentido (GUMBRECHT, Hans. Produo de Presena. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC. Rio de Janeiro, RJ: 2010, p. 106)

Primeiro, a autorreferncia humana predominante numa cultura de sentido o pensamento (poderamos dizer tambm a conscincia ou a res cogitans), enquanto a autorreferncia predominante numa cultura de presena o corpo (GUMBRECHT, Hans. Produo de Presena. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC. Rio de Janeiro, RJ: 2010, p. 106)

Segundo, [...] a subjetividade ou o sujeito ocupam o lugar da autorreferncia humana predominante numa cultura de sentido, enquanto nas culturas de presena os seres humanos consideram que seus corpos fazem parte de uma cosmologia (ou de uma criao divina). Nesse caso, no se vem como excntricos ao mundo, mas como parte do mundo. [...] Numa cultura de presena, alm de serem materiais, as coisas do mundo tm um sentido inerente (e no apenas um sentido que lhes conferido por meio da interpretao), e os seres humanos consideram seus corpos como parte integrante da sua existncia (GUMBRECHT, Hans. Produo de Presena. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC. Rio de Janeiro, RJ: 2010, p. 107)

Terceiro, o conhecimento, numa cultura de sentido, s pode ser legtimo se tiver sido produzido por um sujeito no ato de interpretar o mundo [...] Para uma cultura de presena, o conhecimento legtimo se for conhecimento tipicamente revelado. conhecimento revelado pelos(s) deus(ES) ou por outras variedades daquilo que se poder descrever como eventos de autorrevelao do mundo. [...] o impulso para esses eventos de autorrevelao nunca vem do sujeito [...] O conhecimento resultante da revelao e do desvelamento, porm, [...] no apenas conceitual. Pensar de acordo com o conceito heideggeriano de Ser deve nos dar coragem para imaginar que o conhecimento revelado ou desvelado pode ser a substncia que aparece, que se apresenta nossa frente (mesmo com seu sentido inerente), sem requerer a interpretao como transformao em sentido. (GUMBRECHT, Hans. Produo de Presena. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC. Rio de Janeiro, RJ: 2010, p. 108)Essas trs primeiras oposies [...] tornam plausvel, quarto, que explcita ou implicitamente cada cultura opere com concepes diferenciadas daquilo que entende por signo. claro que numa cultura de sentido o signo tem de ter precisamente a estrutura metafsica que Ferdinand de Saussure defende ser a sua condio universal: a unio de um significante puramente material com um significado (ou sentido) puramente espiritual. Ora, importante acrescentar que, numa cultura de sentido, o significante puramente material deixa de ser objeto de ateno quando se identifica o seu sentido subjacente. Uma forma (para ns) muito menos familiar de signo [... a] definio aristotlica de signo, que j expliquei, segundo a qual um signo a juno de uma substncia (algo que exige espao) e uma forma (algo que torna possvel que a substncia seja percebida). Este conceito-signo dispensa a distino clara entre o puramente espiritual e o puramente material nos dois lados do que se junta no signo. (GUMBRECHT, Hans. Produo de Presena. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC. Rio de Janeiro, RJ: 2010, p. 108)

gostaria de mencionar minha recordao de um guia turstico no Japo, que, depois de me ter descrito os significados precisos, um por um, de cada uma das diferentes rochas num famoso jardim de pedras, acrescentou: Mas a beleza dessas pedras tambm est em que elas esto sempre chegando perto do nosso corpo, sem nunca nos pressionarem. Um mundo assim, [...] onde a verdade pode ser a substncia, ou seja, o mundo da cultura da presena, um mundo em que, quinto, os seres humanos querem relacionar-se com a cosmologia envolvente por meio da inscrio de si mesmos, ou seja, de seus corpos, nos ritmos dessa cosmologia. Numa cultura de presena, a vontade de desviar ou de alterar esses ritmos [...] vista como sinal da inconstncia humana ou, pura e simplesmente, como pecado. Pelo contrrio, numa cultura de sentido, os seres humanos tendem a ver a transformao (a melhora, o embelezamento, etc.) do mundo como sua principal vocao. Aquilo que chamamos de motivao imaginar um mundo parcialmente transformado pelo comportamento humano, e qualquer comportamento orientado para realizar essas imaginaes uma ao. Tais vises do futuro e tais tentativas de tornar reais essas vises surgem, tanto mais legtimas, quanto mais so fundadas num conhecimento do mundo produzido pelo homem. O que mais chega perto de um conceito de ao numa cultura de sentido , numa cultura de presena, o conceito de magia, ou seja, a prtica de tornar presentes coisas que esto ausentes [e vice-versa]. Porm, a magia nunca apresenta a si mesma como fundada num conhecimento humano. Ao contrrio, ela depende de receitas [secretas ou reveladas], cujo contedo mostrou fazer parte dos movimentos imutveis numa cosmologia em que os seres humanos se consideram integrados (GUMBRECHT, Hans. Produo de Presena. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC. Rio de Janeiro, RJ: 2010, p. 109

Se o corpo a autorreferncia predominante numa cultura de presena, ento, sexto, o espao ou seja, a dimenso que se constitui ao redor dos corpos deve ser a dimenso primordial em que se negociem a relao entre os diferentes seres humanos e a relao entre os seres humanos e as coisas do mundo. Em contrapartida, o tempo a dimensoo primordial em qualquer cultura de sentido, pois parece existir uma associao inevitvel entre a conscincia e a temporalidade (lembre-se o conceito husserliano de corrente de conscincia). Acima de tudo, porm, o tempo a dimenso primordial em qualquer cultura de sentido pois leva tempo para concretizar as aes transformadoras por meio das quais as culturas de sentido definem a relao entre os seres humanos e o mundo. (GUMBRECHT, Hans. Produo de Presena. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC. Rio de Janeiro, RJ: 2010, p. 110)

Ora, se o espao a principal dimenso pela qual numa cultura de presena, a relao entre os seres humanos, isto , entre corpos humanos, se constitui, ento, stimo, esta relao pode ser constantemente transformada (e de fato muitas vezes transformada) em violncia ou seja, na ocupao e no bloqueio do espao pelos corpos contra outros corpos. Para as culturas de sentido, em contrapartida, habitual (talvez seja mesmo obrigatrio) adiar infinitamente o momento da verdadeira violncia e, assim, transformar a violncia em poder, o que poderemos definir como potencial para [violncia]. Quanto mais a autoimagem de determinada cultura corresponde tipologia da cultura de sentido, mais ela tentar ocultar e at excluir a violncia como o mais avanado potencial de poder. [Houve] historiadores e filsofos da nossa cultura que, nas dcadas mais recentes, confundiram relaes de poder com relaes definidas pela distribuio do conhecimento. Mas as linhas de distribuio do conhecimento s vo coincidir com as linhas de relaes de poder enquanto as linhas de distribuio do conhecimento estiverem, em ltima anlise, cobertas, mesmo numa cultura de sentido, pelo potencial e pela ameaa da violncia fsica (GUMBRECHT, Hans. Produo de Presena. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC. Rio de Janeiro, RJ: 2010, p. 111)Oitavo: numa cultura de sentido, o conceito de evento inseparvel do valor de inovao e, consequentemente, do valor de surpresa. Numa cultura de presena, porm, a inovao equivale sada necessariamente ilegtima das regularidades de uma cosmologia e dos cdigos de conduta humana inerentes a essa cosmologia. Por isso, imaginar uma cultura de presena implica o desafio de imaginar um conceito de eventidade, desconectado da inovao e da surpresa. Tal conceito recordar-nos-ia que at mesmo as transformaes e mudanas regulares, que podemos prever e esperar, implicam um momento de descontinuidade. Sabemos que, pouco depois das oito da noite, a orquestra comear a tocar a abertura de uma pea que tantas vezes ouvimos. Apesar disso, a descontinuidade que marca o momento em que produzem os sons iniciais atinge-nos e produz um efeito de eventidade que no trans consigo nem surpresa nem inovao (GUMBRECHT, Hans. Produo de Presena. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC. Rio de Janeiro, RJ: 2010, p. 111)O exemplo de um evento de palco cnico leva-nos, nono, ao ldico e fico como conceitos por meio dos quais as culturas de sentido caracterizam interaes em que os participantes tm uma ideia vaga, limitada ou nula das motivaes que lhes orientam o comportamento. Essa ausncia de (uma conscincia das) motivaes dos seus comportamentos a razo pela qual, em situaes de jogo ou de fico, as regras sejam preestabelecidas ou definidas medida que decorre o jogo ocupam o lugar das motivaes dos participantes. Uma vez que as aes, definidas como comportamento humano estruturado por motivaes conscientes, no tm lugar nas culturas de presena, estas no so capazes de produzir um equivalente dos conceitos de ldico ou de fico nem o contraste entre ldico/fico e a seriedade das interaes do cotidiano. Se, numa cultura de sentido, a seriedade das interaes do cotidiano encontra um contraste interno no jogo e na fico, as culturas de presena tm de ser suspensas durante perodos de tempo estritamente definidos sempre que queiram permitir uma exceo nos ritmos de vida fundados na cosmologia. essa a estrutura que os acadmicos, inspirados na obra de Mikhail Bakhtin, chamam metonimicamente de carnaval. (GUMBRECHT, Hans. Produo de Presena. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC. Rio de Janeiro, RJ: 2010, p. 112)

os debates parlamentares so um ritual adequado s culturas de sentido, ao passo que a Eucaristia um ritual prototpico das culturas de presena. [...] Mas qual ser o objetico de um ritual que produz a presena real de Deus se essa presena real de Deus j constitui um enquadramento geral, uma condio da vida humana? A nica resposta que a celebrao da Eucaristia, cotidianamente, no s manter, como intensificar a j existente presena real de Deus. A noo de intensificao nos faz entender que nas culturas de presena no raro quantificar aquilo que no estaria disponvel para quantificao numa cultura de sentido: [...] emoes, por exemplo, ou as impresses de proximidade, ou escalas de aprovao e de resistncia. (GUMBRECHT, Hans. Produo de Presena. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC. Rio de Janeiro, RJ: 2010, p. 113)

Gostaria de concluir este captulo que dediquei s vrias tentativas de imaginar uma relao com os textos e com o mundo em geral que no seja uma relao exclusivamente interpretativa com outra tipologia. [...] essa segunda tipologia concentra-se em diferentes tipos de apropriao-do-mundo pelos seres humanos (GUMBRECHT, Hans. Produo de Presena. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC. Rio de Janeiro, RJ: 2010, p. 113)

Comer as coisas do mundo, o que inclui prticas de antropofagia e de teofagia, mascar a Madame Bovary, como Nietzsche um dia imaginou, ou comer o corpo e beber o sangue de Cristo pertencem a um modo bvio e crucial de apropriao-do-mundo [...] sobre o qual, porm, no gostamos de falar [...] A razo mais bvia para essa antipatia no apenas intelectual a tenso entre a nossa cultura como cultura predominantemente centrada no sentido, por um lado, e o comer o mundo como modo mais direto de nos tornarmos um s com as coisas do mundo na sua presena tangvel, por outro. (GUMBRECHT, Hans. Produo de Presena. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC. Rio de Janeiro, RJ: 2010, p. 114)

em cada tipo de apropriao-do-mundo, aqueles que so os agentes de apropriao [...] sentem o receio de se tornar objetos desse mesmo tipo de apropriao. Portanto, comer o mundo vai sempre provocar nos seres humanos, como partes corpreas do mundo, o medo de que eles prprios possam ser comidos. por isso que a maioria das sociedades faz do ato de comer carne humana um tabu (GUMBRECHT, Hans. Produo de Presena. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC. Rio de Janeiro, RJ: 2010, p. 114)Penetrar coisas e corpos ou seja, contato corporal e sexualidade, agrsso, destruio e assassnio constitui um segundo tipo de apropriao-do-mundo, no qual a fuso de corpos com outros corpos ou com coisas inanimadas sempre transitria e, por isso, abre necessariamente um espao de distncia ao desejo e reflexo. Penso que esse contexto explica por que a sexualidade permite uma conotao to forte com a morte, com o arrebatar outro corpo ou ser arrebatado por ele. Tal como no desejar a morte, essa conotao pode vir do desejo de tornar eterna uma unio transitria. Mas tal como no temer a morte, parece ser desencadeada, mais uma vez, pelo medo de uma reviravolta. [...] Uma estratgia [...] de defletir esse medo , claro, o hbito quase generalizadamente aceito em nossa cultura de espiritualizar a sexualidade at o ponto em que ela se torna mtua autoexpresso e comunicao. (GUMBRECHT, Hans. Produo de Presena. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC. Rio de Janeiro, RJ: 2010, p. 115)

H um modo de apropriao-do-mundo no qual, por um lado, a presena do mundo ou do outro ainda fisicamente sentido, embora, por outro lado, no se perceba um objeto real que pudesse justificar esse sentimento. aquilo a que se chama misticismo. interessante, no mbito dessa tipologia, que nossa cultura classifique todas as formas de misticismo como formas de vida espiritual o que deixa [em aberto] o problema da dupla experincia de que tais estados de arrebatamento mstico muitas vezes so induzidos por prticas corporais altamente ritualizadas e vm sempre com a percepo de um impacto fsico. [...] tambm o misticismo pode se transformar no medo de ser possudo. Como o misticismo pode ser relacionado a uma posio de sujeio pelo menos incipientemente desenvolvida entre os seus praticantes, isso significa que ele se relaciona com o medo de perder para sempre o controle sobre si mesmo. Esse medo em particular obrigou a maioria dos msticos famosos a dedicar longas e complexas reflexes questo de saber que prevenes e mecanismos poderiam assegurar a possibilidade de retorno de um estado de possesso mstica. Talvez mais interessante, e certamente mais radical, a estratgia inversa de algum que se dispe voluntariamente ao ato violento de ser possudo por um deus. Nesse caso, que o caso dos chamados pais-de-santo na maioria dos cultos afro-brasileiros, parece ser o desejo de ser possudo, transformado em inteno e estratgia completas de ser possudo, que deflete o medo de ser arrebatado. (GUMBRECHT, Hans. Produo de Presena. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC. Rio de Janeiro, RJ: 2010,