guerreiro ramos o personalismo negro

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    O personalismo negro

    A recuperao do pensamento e da trajetria do socilogo Alberto Guerrei-ro Ramos tem sido alvo de uma srie de trabalhos recentes, sobretudo de-

    pois da republicao de seus livros mais conhecidos: Introduo crtica sociologia brasileira ([1957]* 1995a) eA reduo sociolgica ([1958] 1995b).

    Neste artigo, tratar-se- de retomar essa preocupao geral desde um

    enfoque especfico: a compreenso da prxis negra humanista de GuerreiroRamos. uma interpretao que busca compreender a originalidade de seu

    pensamento, a partir de duas tradies filosficas marcantes de sua trajetria:

    a) a negritude francfona, em especial sartriana, conforme caracterizada emOrpheu negro (1948), que Guerreiro conheceu por intermdio de IronidesRodrigues intelectual do Teatro Experimental do Negro (TEN), do qual

    Guerreiro foi integrante entre 1948-1950 (cf. Barbosa, 2004); e b) sua heran-a filosfica personalista e existencialista. Uma formao intelectual marcantede sua juventude, na dcada de 1930, que se manteve enraizada em sua viso

    terico-poltica posterior (cf. Oliveira, 1995; Maio, 1997; Barbosa, 2004).A hiptese que guia este artigo que tal viso humanista do negro em

    Guerreiro Ramos pode ser compreendida como uma dialtica da negritude,alicerada sobre trs prerrogativas complementares: a) a assuno da negritu-de pelo homem de pele escura (termo de Guerreiro), o niger sum (tese); b) a

    Guerreiro Ramos: o personalismo negro

    Muryatan Santana Barbosa

    * A data entre colche-tes refere-se ediooriginal da obra. Ela indicada na primeiravez que a obra cita-da. Nas demais, indi-

    ca-se somente a edioutilizada pelo autor(N. E.).

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    suspenso da brancura (anttese); c) uma compreenso humanstica do valor

    objetivo da negrura e da luta negra (sntese)1. Trata-se de uma viso poltico-filosfica, aqui intitulada de personalismo negro, alicerada na percepo de

    que, para o homem de pele escura, a luta humanista passaria, inevitavel-mente, pela assuno dialtica de sua prerrogativa circunstancial como ne-gro, tido como o nico caminho para que o homem de cor (termo tambmdo autor) pudesse se elevar ao plano da pessoa.

    Tratar-se-ia, em outras palavras, de uma experincia particular de auto-

    realizao humana, em que o homem de pele escura concretizaria suaexistncia como ser potencialmente livre da unidimensionalizao; em par-

    ticular, daquela advinda da identidade racial essencialista, reproduzida pe-

    los discursos e normatizaes sociais que o teriam transformado em negrona histria do Ocidente (cf. Barbosa, 2004).

    Essa uma viso humanista sobre o negro que Guerreiro expe esparsa-

    mente, e, em geral, de forma implcita, em diversos escritos e notas dadcada de 1950, como Um heri da negritude(1952), O problema do

    negro na sociologia brasileira(1954a, em particular pp. 198-200), O ne-gro desde dentro (1954b) e Patologia social do branco brasileiro (1955)2

    e que retomada em duas notas posteriores, escritas na dcada de 1970,emque comenta a pintura do seu amigo Abdias do Nascimento: O mundotribal de Abdias ([1971] 1995) e Nascimento artistic faith [A f artsticade Abdias]([1973] 1975).

    A partir dessa compreenso dialtica da negritude guerreiriana,intitulada personalismo negro, procurar-se- mostrar, neste ensaio, comotal viso humanista do negro buscou responder a algumas questes canden-

    tes da prxis negra de ontem e de hoje, como por exemplo: a) como ponde-rar as afirmaes de identidade nacional contra as variantes contrastantes de

    subjetividade e identificao tnico-racial?; b) como fundamentar a ao po-ltica negra sem uma percepo essencialista da mesma?; c) como conciliartal viso poltica com a perspectiva multicultural? a partir dessas questese da citao de alguns dos textos referidos que se procurar mostrar, resumi-

    damente, a maneira pela qual o pensamento de Guerreiro se apresenta comoprxis libertadora do negro no Brasil e no mundo.

    Personalismo negro: humanismo e ps-colonialismo

    O personalismo negro de Guerreiro Ramos tem um carter humanista e

    existencialista que o predispe contra qualquer forma de essencializao ou

    1. Neste sentido, adialtica da negritudede Guerreiro comoassuno da negrura encontra-se, aparente-mente, prxima vi-so sartriana da negri-tude, que visa a com-preend-la como racis-mo anti-racista (hojedir-se-ia racialismoanti-racista, cf. Gui-

    mares, 1999). Ouseja, a negritude comoanttese do suprematis-mo branco (tese), pas-so primordial para acriao de uma socie-dade a-racial (sntese)(cf. Sartre, [1949]1960, p. 145). Entre-

    tanto, a negritude deGuerreiro se diferenciadessa interpretao sar-triana, pois, no devir danegritude dialticaguerreiriana, a teseno seria o supremacis-mo branco, mas a afir-mao da negritude (oniger sum). Tratar-se-ia

    de uma assuno queGuerreiro trata comohermenutica primria,a ser potencialmenteconquistada por todohomem de pele escura ecaracterizada comosou negro.

    2.Esses artigos foram

    reunidos e editados emlivro em 1957, com ottuloIntroduo crtica

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    mesmo definio do que seja a pessoa humana. No por acaso, o filsofo

    clssico do personalismo francs, Emmanuel Mounier ([1950] 1976, p.18), fala do carter indefinvel da pessoa, pois s se poderia tratar como

    objeto aquilo que fosse exterior nossa existncia. Nesse sentido, Guerreirose pronuncia diversas vezes defendendo o carter indefinvel no apenas dapessoa humana em geral, mas do prprio negro, como ser dinmico eindecifrvel. Esse o sentido, por exemplo, de passagens como a seguinte,

    do ensaio Patologia social do branco brasileiro (1955), em que Guerreiro

    distingue entre as categorias negro-vida e negro-tema.

    H o tema do negro e h a vida do negro. Como tema, o negro tem sido, entre ns,

    objeto de escalpelao perpetrada por literatos e pelos chamados antroplogos esocilogos. Como vida ou realidade efetiva, o negro vem assumindo o seu desti-

    no, vem se fazendo a si prprio, segundo lhe tm permitido as condies particu-

    lares da sociedade brasileira. Mas uma coisa o negro-tema; outra, o negro-vida.

    O negro-tema uma coisa examinada, olhada, vista, ora como ser mumificado,

    ora como ser curioso, ou de qualquer modo como um risco, um trao da realida-

    de nacional que chama a ateno.

    O negro-vida , entretanto, algo que no se deixa imobilizar; despistador, prof-

    tico, multiforme, do qual, na verdade, no se pode dar verso definitiva, pois hoje o que no era ontem e ser amanh o que no hoje (Guerreiro Ramos,

    1955, p. 215).

    Nesse sentido, portanto, Guerreiro traz para a leitura de relaes raciaise para a poltica negra uma prerrogativa humanista recorrente, em especial

    no campo filosfico. Trata-se de argumentao segundo a qualtoda formade classificao e identificao do homem uma forma sutil de desumaniz-

    lo3. Todavia, uma dvida persiste, irrequieta. Segundo essa tradio clssi-ca, no seria o designativo negro, referido por Guerreiro, uma forma tam-bm sutil de desumanizao do Homem? A resposta a essa pergunta marcao cerne da contribuio especfica do personalismo negro para uma viso

    humanista dos problemas tnico-raciais.Citou-se, de passagem, que uma das prerrogativas do personalismo ne-

    gro seria sua percepo da assuno negra como caminho especfico para o

    homem de pele escura alcanar o universal. Um exemplo explcito dessa

    viso de Guerreiro encontra-se na seguinte passagem do artigo O proble-ma do negro na sociologia brasileira (1954), quando o autor polemiza com

    os estudos tradicionais que trataram do problema racial no Brasil:

    sociologia brasileira,reeditado em 1995.

    3.Para um exemplo re-cente, ver Michel Ser-res (2005).

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    Em princpio, o negro, no domnio da sociologia brasileira, foi problema porque

    seria portador de traos culturais vinculados a culturas africanas, pelo que, em

    seu comportamento, apresenta como sobrevivncia. Hoje, continua a ser assunto

    ou problema, porque tende a confundir-se pela cultura com as camadas maisclaras da populao brasileira.

    Neste ponto, oportuno perguntar: Que que, no domnio de nossas cincias

    sociais, faz do negro um problema, ou um assunto? [...].

    Determinada condio humana erigida categoria de problema quando, entre outras

    coisas, no se coaduna com um ideal, um valor ou uma norma. Quem a rotula como

    um problema, estima-a ou a avalia anormal. Ora, o negro no Brasil objeto de estu-

    do como problema na medida em que discrepa de que norma ou valor?

    Os primeiros estudos no campo trataram das formas de religiosidade do negro.Ter, porm, o negro, entre ns, religio especfica? Objetivamente, no [...].

    Tem sido, tambm, considerada com freqncia a criminalidade do negro. Tero,

    porm, o negro e seus descendentes criminalidade especfica? Objetivamente,

    ainda no [...].

    Por outro lado, careceria de base objetiva a afirmao de que o negro no Brasil

    manifestasse tendncias especficas essenciais na vida associativa, na vida conju-

    gal, na vida profissional, na vida moral, na utilizao de processos de competio

    econmica e poltica. O fato que o negro se comporta sempre essencialmentecomo brasileiro, embora, com o dos brancos, esse comportamento se diferencie

    segundo as contingncias de regio e estrato social. [...].

    Nestas condies, o que parece justificar a insistncia com que se considera como

    problemtica a situao do negro no Brasil o fato de que ele portador de pele

    escura. A cor da pele do negro parece constituir o obstculo, a anormalidade a

    sanar. Dir-se-ia que na cultura brasileira o branco o ideal, a norma, o valor, por

    excelncia (Guerreiro Ramos, 1954a, pp. 190-191).

    Nesse texto, ao criticar as correntes acadmicas tradicionais quanto aoproblema do negro no Brasil, Guerreiro exacerba seu ponto de vista, ques-tionando todas as anlises que procurariam algo especfico ao negro, que

    no se restringisse ao fato de ele ter uma cor de pele mais escura, e, conse-qentemente, as decorrncias psicolgicas da existncia dessa cor em uma

    sociedade colonial racista, cujo ideal valorativo seria o branco europeu. Em

    suas palavras, uma sociedade europeizada, mentalmente subserviente a

    padres exteriores sua comunidade.Aqui se chega a uma reflexo interessante. No tendo o negro brasilei-

    ro cultura, religio, territrio, lngua ou aspectos diferenciais da vida so-

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    cial, qual seria o fator que condicionaria sua existncia social como grupo

    tnico e/ou racial no Brasil? Alis, uma referncia corrente nos prpriosartigos de Guerreiro. A hiptese aqui levantada, de acordo com o princ-

    pio do personalismo negro, que essa aparente contradio na viso deGuerreiro se esclarece ao observar-se que, para o autor, a condio tni-ca do negro brasileiro derivaria de sua pertena a um grupo socialmenteconstrudo que, embora majoritrio no pas, possuiria uma identidade so-

    cial dada pelo Eu, no caso, o branco brasileiro. Em outros termos,

    poder-se-ia dizer que, para Guerreiro, s existiria o negro no Brasil por-que o branco o v como racialmente diferente de si, mesmo quando

    perfeitamente identificado com aquele pela cultura, religio, territrio etc.

    nesse sentido que, para Guerreiro, a partir do momento que se passas-se a considerar o negro como elemento normal da populao brasileira,

    no haveria por que falar em problema do negro, visto que, para o autor,

    no Brasil, o negro povo, para alm de sua condio tnica produzida pelobranco brasileiro.

    Desse ngulo filosfico-existencial e sociolgico, a viso guerreirianado negro e da negritude no Brasil est prxima daquela preconizada porFrantz Fanon, no clebre Pele negra, mscaras brancas ([1952] 1983). Ex-

    plicando: tanto para Guerreiro, como para Fanon, a condio negrano uma existncia racial objetiva, mas uma identidade socialmenteconstruda pelo dominador, os europeus e seus descendentes. Entretan-

    to, trata-se de uma identidade sem a qual tal homem tido, ento, pornegro no poderia alcanar sua humanidade plena. Para os autores,portanto, essa uma condio circunstancial, que, apesar de sua inexora-

    bilidade, no deve fazer esquecer ao negro que ele totalmente humanocomo ser biolgico, embora apenas potencialmente humano como ser

    social. Em outros termos, poder-se-ia definir tal percepo, seguindo HomiBhabha (1998), como uma vivncia mltipla e ambgua da identidade,um entretempo que no estaria totalmente condicionado por nenhu-ma experincia fixa de subjetividade.

    Dessa forma, portanto, o personalismo negro de Guerreiro, como dis-curso locado na ambigidade intrnseca da identidade marginal no caso,

    negra , pode ser relido como uma prerrogativa ps-colonial, que busca

    deslocar o discurso ocidental naquilo que lhe mais fundamental: o Ho-

    mem. Trata-se aqui, no por coincidncia, de uma percepo prxima sanlises de Homi Bhabha (1998) em relao a Fanon, como autor ps-

    colonial.

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    Esse enfoque humanista no essencialista sobre o negro brasileiro

    uma das razes terico-polticas que leva Guerreiro Ramos a destacar aproblemtica inconsciente (em suas palavras, psicolgica), em particu-

    lar, da esfera esttica, como enfoque analtico dos problemas e solu-es relativos questo tnico-racial4. Para o autor, essa uma particu-laridade da forma de reproduo da dominao europia ocidental sobreas sociedades colonizadas, inclusive a brasileira. Entre outras passagens,

    Guerreiro demonstra tal preocupao em trechos como o seguinte, reti-

    rado do artigo O problema do negro na sociologia brasileira. Afirmaele:

    As categorias da esttica social nas culturas autnticas so sempre locais e, emltima anlise, so estilizaes de aspectos particulares de circunstncia histri-

    ca determinada. Tais categorias so assimiladas pelo indivduo na vida comuni-

    tria. Aprende-se a definir o belo e o feio por meio da convenincia quotidiana,

    do processo social. Cada sociedade, na medida em que se conserva dotada de

    autenticidade ou de integridade, inculca, em cada um dos seus membros, pela

    aprendizagem, padres de avaliao esttica, os quais reforam as suas particu-

    laridades. [...] Todavia, o processo de europeizao do mundo tem abalado os

    alicerces das culturas que alcana. A superioridade prtica e material da culturaocidental face s culturas no europias promove, nestas ltimas, manifesta-

    es patolgicas. Existe uma patologia cultural que consiste, precisamente, so-

    bretudo no campo da esttica social, na adoo pelos indivduos de determina-

    da sociedade, de padro esttico exgeno, no induzido diretamente da

    circunstncia natural e historicamente vivida. , por exemplo, este fenmeno

    patolgico o responsvel pela ambivalncia de certos nativos na avaliao est-

    tica. O desejo de ser branco afeta, fortemente, os nativos governados por euro-

    peus. [...]Ora, o Brasil, como sociedade europeizada, no escapa, quanto esttica social,

    patologia coletiva acima descrita. O brasileiro, em geral, e, especialmente, o letra-

    do, adere psicologicamente a um padro esttico europeu e v os acidentes tni-

    cos do pas e a si prprio, do ponto de vista deste. Isto verdade, tanto ao brasi-

    leiro de cor como ao claro. Este fato de nossa psicologia coletiva , do ponto de

    vista da cincia social, de carter patolgico, exatamente porque traduz a adoo

    de critrio artificial, estranho vida, para a avaliao da beleza humana. Trata-se,

    aqui, de um caso de alienao que consiste em renunciar induo de critrioslocais ou regionais de julgamento do belo, por subservincia inconsciente a um

    prestgio exterior (Guerreiro Ramos, 1954a, pp. 194-195).

    4.Outra razo polticaque explica essa viso danegritude em GuerreiroRamos foi analisada porJoel Rufino dos Santos(1995) e Marcos ChorMaio (1996; 1997). Tra-ta-se de uma tentativa

    consciente do autor derelativizar a importnciada identidade negra,diante de sua preocupa-o mais premente po-ca: a construo da na-o, em especial, depoisde sua integrao ao Ins-tituto Superior de Estu-dos Brasileiros (Iseb). A

    viso aqui proposta secoaduna com tal perspec-tiva, complementando-acom base emoutra ticade anlise e interesse.

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    A reverso desse quadro colonial, para o autor, dependeria da possibi-

    lidade do brasileiro de superar a dominao eurocntrica que teria engen-drado uma perspectiva racista e imperialista, diante da populao mes-

    tia e negra local. Esse o intento do artigo Patologia social do brancobrasileiro (1955). Posicionando-se na perspectiva do negro-vida, Guer-reiro defende que o racismo seria fruto de uma viso alienante do pas,em que o brasileiro teria introjetado e estaria reproduzindo uma perspec-

    tiva colonialista diante da populao local, objetivamente mestia. Tratar-

    se-ia de uma situao tpica de colonialismo interno de base racialista,conforme tratada, recentemente, por exemplo, pelo socilogo Anbal Qui-

    jano, em termos de colonialidade do poder (1997; 2000).

    Superar tal condio, nessa perspectiva, passaria, para Guerreiro, pelaassuno da condio tnica (majoritariamente esttica) da negritude,

    premissa da assuno provvel do ser brasileiro autnomo. Esse seria o pas-

    so primordial de um processo mais amplo de auto-afirmao nacional queo Brasil estaria passando na dcada de 1950.

    Para Guerreiro, essa assuno do Brasil real seria parte do fenmeno glo-bal de lutas pela autodeterminao das sociedades coloniais e capitalistas de-pendentes, contra a dominao dos centros capitalistas desenvolvidos. Esse

    o sentido que se pode observar de sua incorporao do conceito de negritu-de em seu livro clssicoA reduo sociolgica (1958). Neste, quando o autorse refere negritude, d a ela um carter universalista, como face do fenme-

    no global das lutas de libertao das sociedades coloniais ou dependentespara se tornarem sujeitos de sua prpria histria.

    Para Guerreiro, tal fenmeno no deveria ser compreendido como um

    nacionalismo xenfobo, que levaria tais povos a um enclausuramentoem relao ao mundo moderno. Pelo contrrio, seria a reivindicao des-

    tes de participar dessa universalidade moderna desde sua auto-afirmaoparticular: econmica, cultural, poltica, tnica etc., exprimindo, assim,sua legtima pretenso de realizar sua plenitude como personalidade cul-tural do mundo (Guerreiro Ramos, 1995b, p. 49). Uma expresso de

    evidente tendncia personalista que, para o autor, passaria, inevitavelmen-te, pela completa autonomia nacional.

    Personalismo negro e multiculturalismo

    A temtica humanista do personalismo negro retomada por Guerreiro

    em uma nota publicada pelo autor acerca das pinturas de Abdias do Nasci-

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    mento, intitulada Nascimento artistic faith (1975)5, desta vez concilian-

    do-a como uma viso relativista de tendncia multicultural. Trata-se deuma nota em que Guerreiro mostra rara disposio para explicitar suas

    perspectivas filosficas e religiosas mais ntimas, referindo-se ao carter es-piritual de sua percepo humanista. Afirma o autor:

    H na arte de Nascimento um sentido restaurador que d conseqncia ao signi-

    ficado contemporneo da cultura negra no Brasil e em toda parte. Mais freqen-

    temente no se d ateno cultura negra, o que decepciona, uma vez que sua

    extenso equivale cultura prevalecente no Ocidente. uma negligncia. Por

    exemplo, os smbolos religiosos africanos so encarados como apenas significan-

    tes em uma perspectiva evolucionista, como se fossem um ponto datado no tem-po, a se constituir puramente um sujeito de matria ou esttica para pesquisas

    histricas e sociolgicas. A viso artstica de Nascimento confronta-se de modo

    decisivo com este pressuposto e afirma que os smbolos religiosos podem diferir

    no tempo e no espao, mas que a experincia humana que eles expressam basi-

    camente idntica. Assim, a verdade dos smbolos religiosos africanos no menos

    vlida que a verdade dos smbolos religiosos ocidentais. [...].

    Abdias acredita que nenhuma pessoa e nenhuma raa especfica deve ser desti-

    tuda de suas caractersticas para merecer as prerrogativas do universal. Comonegro, e porque o negro tem sido o ser mais destitudo dos ltimos sculos,

    Abdias fez de sua misso tentar descobrir e explorar maneiras de trazer ao fluxo

    principal da Histria da humanidade aquilo que tem sido excludo. Assim, ele

    aceita sistematicamente e profundamente a sua condio circunstancial como

    uma perspectiva concreta sob a qual se pode alcanar o eterno. O divino, a bele-

    za, podem ser encontrados na negritude, onde convencionalmente se enxerga a

    degradao. Mas o fato de a arte de Abdias ser verdadeiramente uma arte negra

    deriva apenas do compromisso autntico com um acidente biogrfico. Seus sm-bolos visam ao que est alm da negritude, da brancura ou de qualquer contin-

    gncia, e dizem que todos os homens podem ser reunidos na base de uma heran-

    a divina comum (Guerreiro Ramos, 1975, p. 3, traduo minha).

    Nessa passagem, portanto, Guerreiro comenta o papel que a f teria

    como caminho espiritual para a redeno humana, desde sua capacidade

    intrnseca de agir como parte de Deus e, conseqentemente, libertar o esp-

    rito do atual mundo objetivado e convencional. O carter espiritualista dotexto revela, ademais, o fundo religioso de sua herana intelectual personalista

    e existencialista, advinda de sua formao crist juvenil.

    5.Agradeo a ElisaLarkin Nascimento acesso desta nota deGuerreiro Ramos.

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    Tal genealogia, entretanto, no o leva a uma perspectiva unidimensional

    da espiritualidade. Pelo contrrio, de acordo com os princpios do relativismocultural multiculturalista, Guerreiro proclama que os espectros da divinda-

    de poderiam ser encontrados em diversas religies, como, por exemplo, asreligies africanas enfocadas nas pinturas de Abdias. Nesse sentido, alis,Guerreiro considera que Abdias segue o caminho inevitvel de sua realiza-o humana: assumir e transformar sua condio circunstancial (performa-

    ticamente, o acidente biogrfico) em uma perspectiva concreta, sob a qual

    se poderia alcanar o Eterno. Essa a proposio sobre a qual Guerreiroretoma o personalismo negro, reforando-lhe, agora, seu carter espiritual e

    universalista.

    Desse modo, pois, em sua caracterizao, a viso do personalismo negrode Guerreiro segue completa, alicerada sobre uma nova compreenso da

    negritude agora entendida, tambm, como assuno do significado con-

    temporneo da cultura negra.De fato, uma evidente percepo multicul-turalista de mundo, to cara s mobilizaes negras desde as dcadas de

    1960-1970, em especial nos Estados Unidos, onde o autor se estabeleceu apartir de 1966.

    Tal percepo, entretanto, como em seus escritos da dcada de 1950, no

    remonta a uma viso passadista e/ou essencialista da cultura negra. Fora apassagem citada, essa posio poltico-terica do autor fica evidente em ou-tra nota, intitulada O mundo tribal de Abdias (1995). Nela, Guerreiro

    enfoca os quadros de Abdias interpretando-os como o pice de sua trajetriade vida. Tratar-se-ia, para ele, de uma destinao fruto de intensa elaboraopessoal, cujo cerne seria uma viso humanista de mundo, em que a desalie-

    nao do negro seria parte fundamental. A residiria, segundo Guerreiro, otribalismo de Abdias: sua capacidade de se colocar no plano do universal

    desde a assuno contempornea de sua circunstncia especfica; compro-metido, mas sem segregacionismos. Diz o autor:

    Os quadros de Abdias abrem as portas de um mundo no qual o instinto e a razo

    esto reconciliados. Conduzem-nos para alm do pesadelo da vida cotidiana e nos

    incitam a recapturar os talentos tribais. [...] Esse tribalismo, porm, no represen-

    ta o retorno a uma congelada etapa primordial episdica. Embora Abdias se apre-

    sente como artista negro, ele no alimenta a v esperana de voltar ao passado, a

    uma falaciosa frica original. Evidentemente, ele est comprometido com suaherana negra, porm recorre a ela para enriquecer sua experincia da histria

    contempornea. Sua viso tribal, no por ser exclusivista e segregacionista, mas

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    por ser inclusiva e compatvel com as propriedades do homem global de Marshall

    McLuhan um verdadeiro cidado deste nosso mundo. A arte de Abdias se im-

    pe como uma caracterstica autntica da revoluo negra de hoje. Como negro,

    ele se identifica com todos os esforos de libertao destacados por aqueles preju-dicados pela escurido da sua pele (apudNascimento, 1995, p. 96).

    Ao proclamar esse carter humanista da luta negra de Abdias, Guerreiro

    destaca sua importncia universal como parte da revoluo negra mundial,

    caminho especfico daqueles homens prejudicados pela escurido de suapele, contra a alienao geral do Homem. Nesse contexto, sem dvida, o

    personalismo negro de Guerreiro revive com toda sua fora terica e prti-

    ca, colocando-se como instrumento contemporneo da prxis negra e, con-seqentemente, humana.

    Referncias Bibliogrficas

    BARBOSA, Muryatan S. (2004), Guerreiro Ramos e o personalismo negro. So Paulo.

    Dissertao de mestrado. Departamento de Sociologia, FFLCH, USP.

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    2 2 7novembro 2006

    Muryatan Santana Barbosa

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    Resumo

    Guerreiro Ramos: o personalismo negro

    Baseando-se em pesquisa recm-finalizada sobre a trajetria intelectual do socilogo

    Alberto Guerreiro Ramos (1915-1982) (cf. Barbosa, 2004), este ensaio apresenta a

    filosofia poltica do personalismo negro, cerne do pensamento de Guerreiro Ramos

    acerca do negro brasileiro e mundial. Ademais, tratar-se- de estabelecer, sucinta-

    mente, a proximidade de tal viso humanista do negro com recentes perspectivas

    multiculturalistas e ps-coloniais, a fim de mostrar a contemporaneidade desta con-

    tribuio de Guerreiro Ramos teoria social e prxis dos movimentos negros.Palavras-chave:AlbertoGuerreiro Ramos; Sociologia das relaes raciais; Multicultu-ralismo; Ps-colonialismo; Modernidade negra.

  • 8/8/2019 Guerreiro Ramos o Personalismo Negro

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    Tempo Social, revista de sociologia da USP, v. 18, n. 22 28

    Guerreiro Ramos: o personali smo negro, pp. 217-228

    Muryatan SantanaBarbosa, bacharel emhistria e mestre emsociologia pela USP, ,atualmente, professoruniversitrio nas reasde histria e sociolo-gia, com especializaoem sociologia das re-laes raciais e hist-

    ria da frica. E-mail:[email protected].

    Abstract

    Guerreiro Ramos: black personalism

    As a result of nearly a finished research about the intellectual performance of the

    sociologist Alberto Guerreiro Ramos (1915-1982), this paper envisages the politicalphilosophy ofblack personalism. This was the kern of Guerreiro Ramos thought

    about Brazilian and World-dimensioned Black. An attempt is made to connect this

    humanistic vision of Blackmen with recent multiculturalist and postcolonial visions,

    in order to point out the present day contribution of Guerreiro Ramos to social

    theory and praxis of Black movements.

    Keywords: Alberto Guerreiro Ramos; Social relations sociology; Multiculturalism;

    Postcolonialism; Black modernity.