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Viriato Soromenho-Marques, Guerra, Ambiente, e Cooperação Compulsiva, O Futuro Frágil. Os Desafios da Crise Global do Ambiente, Mem Martins, Publicações Europa-América, 1998, pp. 153- 184. QUINTO ENSAIO GUERRA, AMBIENTE E COOPERAÇÃO COMPULSIVA §1. Guerra e Pensamento. Em plena Primeira Guerra Mundial, acusando o indescritível horror desse conflito, escrevia o filósofo francês Alain, aliás, Émile Chartier (1868-1951): "Esta guerra é um erro de pensamento" (Cette guerre est une erreur de Pensée, Alain,1995: 488). Ao contrário das guerras do período da Revolução Francesa -- onde batalhas como a de Valmy (1792) serviam, mesmo aos olhos de inimigos privilegiados dos republicanos gauleses, como Goethe, para dividir a história em duas idades -- em que o sangue vertido e as vidas dissipadas pareciam estar ao serviço de um propósito válido, o terrível massacre das trincheiras, opondo sobretudo Franceses e Alemães, aparecia como uma automutilação, mesmo um suicídio da cultura europeia. Alain, coberto pela lama vermelha dos campos de batalha, não hesitava em escrever que o holocausto dos dois povos decisivos para o futuro da Europa constituía "uma luta contra aquele que é mais semelhante; contra o outro, que sente e pensa do mesmo modo" (contre le plus semblable; contre l'autre, qui sent et pense de même, idem). Sem disso ter imediata consciência, Alain acabava por identificar a Grande Guerra como a realização de uma profecia de Nietzsche, escrita quarenta anos antes da eclosão do conflito: "Mas, tal como os Gregos se enfureciam no sangue grego, assim o fazem agora os europeus no sangue europeu..." (Aber wie die Griechen in Griechenblut wütheten, so die Europäer jetzt in Europäerblut. .., MA-I, 442, Werke-2:.288). A meditação de Alain expressa uma das posições centrais da filosofia em relação à guerra: esse fenómeno de aparente desmesura tem uma relação com o pensamento. A aparente destruição categorial que, para as testemunhas e participantes na empresa bélica, acompanha a destruição sistemática dos corpos, não é a última palavra dos filósofos sobre os desafios colocados à razão pela guerra. Na mesma altura em que Alain sofria as suas dolorosas experiências de homem maduro obrigado, aos 46 anos de idade, a

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Viriato Soromenho-Marques, “Guerra, Ambiente, e Cooperação Compulsiva”, O Futuro Frágil. Os Desafios da Crise Global do Ambiente, Mem Martins, Publicações Europa-América, 1998, pp. 153-184.

QUINTO ENSAIO

GUERRA, AMBIENTE E COOPERAÇÃO COMPULSIVA

§1. Guerra e Pensamento. Em plena Primeira Guerra Mundial,

acusando o indescritível horror desse conflito, escrevia o filósofo francês Alain, aliás, Émile Chartier (1868-1951): "Esta guerra é um erro de pensamento" (Cette guerre est une erreur de Pensée, Alain,1995: 488).

Ao contrário das guerras do período da Revolução Francesa --

onde batalhas como a de Valmy (1792) serviam, mesmo aos olhos de inimigos privilegiados dos republicanos gauleses, como Goethe, para dividir a história em duas idades -- em que o sangue vertido e as vidas dissipadas pareciam estar ao serviço de um propósito válido, o terrível massacre das trincheiras, opondo sobretudo Franceses e Alemães, aparecia como uma automutilação, mesmo um suicídio da cultura europeia.

Alain, coberto pela lama vermelha dos campos de batalha, não

hesitava em escrever que o holocausto dos dois povos decisivos para o futuro da Europa constituía "uma luta contra aquele que é mais semelhante; contra o outro, que sente e pensa do mesmo modo" (contre le plus semblable; contre l'autre, qui sent et pense de même, idem). Sem disso ter imediata consciência, Alain acabava por identificar a Grande Guerra como a realização de uma profecia de Nietzsche, escrita quarenta anos antes da eclosão do conflito: "Mas, tal como os Gregos se enfureciam no sangue grego, assim o fazem agora os europeus no sangue europeu..." (Aber wie die Griechen in Griechenblut wütheten, so die Europäer jetzt in Europäerblut..., MA-I, 442, Werke-2:.288).

A meditação de Alain expressa uma das posições centrais da

filosofia em relação à guerra: esse fenómeno de aparente desmesura tem uma relação com o pensamento. A aparente destruição categorial que, para as testemunhas e participantes na empresa bélica, acompanha a destruição sistemática dos corpos, não é a última palavra dos filósofos sobre os desafios colocados à razão pela guerra.

Na mesma altura em que Alain sofria as suas dolorosas

experiências de homem maduro obrigado, aos 46 anos de idade, a

Viriato Soromenho-Marques, “Guerra, Ambiente, e Cooperação Compulsiva”, O Futuro Frágil. Os Desafios da Crise Global do Ambiente, Mem Martins, Publicações Europa-América, 1998, pp. 153-184.

envergar o uniforme de artilheiro, o grande estrategista inglês Liddell Hart parecia chegar à mesma conclusão de que a Primeira Guerra Mundial significava um erro intelectual. Mais precisamente, para Liddell Hart alguns dos milhões de combatentes mortos nas trincheiras teriam sido poupados se os chefes militares europeus não tivessem cometido o erro teórico de conceder um valor absoluto aos ensinamentos do pensador prussiano, Carl von Clausewitz, que com o seu incontornável tratado Vom Kriege havia seduzido os Estado-Maiores para a necessidade de mobilizar todos os recursos dos Estados num esforço imoderado e incessante para apressar o momento do confronto decisivo, da "decisão pelas armas" (Waffenentscheidung).

Apesar da diferença entre Alain, para quem a noção de

'pensamento' possui uma dimensão e uma amplitude que não é confundível com a orientação técnica, de matiz estratégico-táctico, de Liddell Hart, ambos os autores estão de acordo numa tese central: a guerra, na sua pletórica explosão de sangue e destruição manifesta uma estrutura conceptual, um fio condutor, tanto no sentido teleológico mais profundo, como na condução operacional dos homens e das armas. A guerra não é a manifestação espasmódica da violência, a eclosão espontânea da agressividade. A guerra é o contrário de tudo isso. Implica organização, controlo e autocontrolo, planeameneto sistemático, disciplina sem limites, educação dos homens e dos povos para resistir a doses aparentementre intoleráveis de sofrimento, ou, pelo menos, a aprendizagem do diferimento temporal do trauma e do luto.

Mas as semelhanças entre Alain e Liddell Hart cessam,

provavelmente, aqui. As consequências do "erro" de que fala Alain não são do mesmo tipo das do militar britânico. O erro que Alain descobre não é da ordem simples do cálculo estratégico. É de uma ordem muito superior. Tão elevada que talvez nos conduza a duvidar se hoje continuará a ter sentido falar-se na racionalidade do fenómeno bélico. Será que pensar hoje a guerra não será pensar o impensável?

§2. Nos labirintos da guerra. A primeira deficiência de apreciação

em que alguém pode incorrer ao pensar a guerra é ignorar a sua labiríntica complexidade. A segunda consistirá em ignorar a necessidade de um caminho de saída. Quer dizer, a urgência de um princípio unificador de questionação e compreensão das questões da guerra, e, consequentemente, também da paz.

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A polemologia constitui um esforço relativamente recente e interessante para assumir o repto desse labirinto. O seu saldo, nomeadamente aquele que podemos descortinar através da leitura das obras de Gaston Bouthoul, previne-nos seguramente contra o risco de teorias aparentando virtualidades explicativas a partir de uma grelha redutora e unilateral de princípios. Mas, devemos confessá-lo, fica-nos a impressão de que o esquema de tratamento conceptual está montado de tal forma sobre um modelo de abertura eclética que o dédalo das representações integráveis no interior da polemologia corre o risco de ser tão interminável como paralisante, no que respeita à necessidade de decisões teóricas fundamentais.

A etologia, de acordo com Konrad Lorenz, insiste na necessidade

de compreender, simultaneamente, a relação e a diferença entre a agressividade e a guerra. As pulsões agressivas foram essenciais na evolução da espécie humana. A 'selecção natural' privilegiou os indivíduos agressivos na medida em que eles aumentavm as possibilidades de sobrevivência da espécie num horizonte de dura competição em ambientes hostis.

Todavia, a guerra não é redutível às tendências agressivas

filogenéticas. A guerra já implica uma elaboração e apropriação culturais dos impulsos agressivos. A mensagem final de Lorenz aponta mesmo no sentido de uma inversão do papel desempenhado pela combinatória agressividade-guerra no interior da economia da sobrevivência. Essa combinatória que longamente contribuiu para a viabilidade do frágil ser humano, animal desprovido de defesas naturais ostensivas, tornou-se um elemento destrutivo, um obstáculo à continuidade da marcha histórica da cultura, um "pecado mortal" civilizacional de dimensões apocalípticas.

Os enigmas da guerra e a premonição dos perigos mortais para a

cultura por ela representados foram, certamente, um dos factores decisivos na elaboração freudiana da segunda teoria das pulsões em 1920, quando as sombras ameaçadoras da Grande Guerra ainda se estendiam por uma Europa central em convulsão.

A tensão entre pulsões de vida (Lebenstriebe) e pulsões de morte

(Todestriebe), entre Eros e Tanatos implicou o alargamento da esfera de aplicação da psicanálise, o deslocamento do fulcro da sua análise do domínio estritamente clínico e individual para o plano social e civilizacional. Mais do que qualquer outro motivo, julgo correcto

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considerar ter sido o choque da guerra que transformou Freud também num pensador dos destinos da cultura e da história.

§3. Filosofia e política: uma tentativa de periodização. A tarefa

de restrição do questionamento filosófico em torno da guerra e da paz, a resposta filosófica às tentações do labirinto, clarificam-se desde a tematização, nos alvores da modernidade, da categoria de Estado em Thomas Hobbes. É em torno do Leviatã que tem sentido procurar a pista da guerra e da paz. Neste domínio, a ética, a filosofia da educação e a antropologia filosófica são saberes sobredeterminados pela estrela mais brilhante da constelação, que é constituída pela necessidade de desenvolver uma teoria do Estado que integre a possibilidade crucial do exercício dos direitos e deveres de cidadania, ou, por outras palavras, de uma filosofia política que não reduza a acção política à esfera de intervenção majestática do Leviatã.

Se é verdade que a filosofia moderna se caracteriza pela crítica

das possibilidades, métodos e limites do conhecimento -- como condição para aseegurar o êxito da expansão fáustica da cultura europeia sobre o planeta -- não é menos verdade a estreita correspondência que se estabelece entre a categoria gnosiológica de sujeito e a categoria política de cidadão. Essa correspondência, em muitos casos mesmo analogia funcional, permite-nos compreender o modo como a filosofia da guerra se transmuta em filosofia da construção e manutenção da paz.

Com efeito, a guerra deixa de ser um objecto permanente e

enigmático, um sinal inevitável da finitude e da imperfeição da natureza humana para se tornar num problema cuja solução depende da identificação da paz, não como uma esperança transcencedente, mas como uma tarefa possível de ser realizada no quadro da mobilização dos recursos políticos de uma sociedade. E essa 'descida à Terra' dos anjos da paz é visada no duplo sentido da paz dentro das fronteiras do Leviatã, como, igualmente, entre as soberanias estatais específicas. Ora, com oscilações e incertezas podemos afirmar que um dos modelos de leitura mais interessantes da filosofia política moderna consiste na consideração de que a possibilidade da paz dependerá da construção de uma sociedade de cidadãos com uma dinâmica universal.

Tentemos, pois, uma breve e discutível tentativa de periodização

dessa emergência da cidadania como condição da paz, que, como se verá, não é confundível com um processo progressivo e unilinear.

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Deliberadamente, para assinalar o carácter de hipótese de trabalho desta periodização, mantemos o seu carácter de esboço. Por outro lado, importa alertar para o facto de que os períodos não são totalmente sequenciais do ponto de vista cronológico, antes apresentando traços de coincidência e competição temporal, como ocorre, particularmente, entre o 1º e 2º períodos:

1º PERÍODO: A razão calculadora do realismo. Iniciado em 1513 com O Príncipe de Maquiavel, continuado nas

obras de Jean Bodin, Grotius e Hobbes. CARACTERÍSTICAS: A política e o Leviathan descobrem-se

como instâncias autónomas relativamente à teologia, à revelação e à filosofia moral. O deslumbramento de uma práxis política apurada tecnicamente como um relógio na sua eficácia, ou rigorosa, como se fosse 'demonstrada à maneira dos geómetras'. A tarefa do Leviatã consiste em gerir o conflito dentro e fora das fronteiras dos Estados particulares. A guerra 'natural' domestica-se e culturaliza-se, torna-se uma opção racional do soberano. O papel do cidadão é o de uma actividade muito limitada: a transferência do poder no acto do contrato (Hobbes), ou a aclamação dos actos do príncipe (Maquiavel).

2º PERÍODO: A paz como obra da razão emancipadora. Obras de referência: o "espírito" das obras de Vitoria (Dos índios

e do direito de guerra, 1538) e Las Casas (Brevíssima Relação da Destruição das ìndias, 1552); Tratado Teológico Político (1670, Espinosa); Carta sobre a Tolerância (1685-86, Locke); Declaração da Independência Americana (1776. Thomas Jefferson); terminou com a Metafísica dos Costumes (1797, Kant)

CARACTERÍSTICAS: A política ao serviço do ideal da liberdade e

dos Direitos Humanos. Primado da concepção de unidade da espécie humana, e entendimento da dependência da práxis política face a uma esfera ideal de fundamentação de acento fortemente ético. Almeja-se, como horizonte de uma acção efectiva e institucional, a construção das condições políticas para o fim da guerra, seja na perspectiva de um entendimento razoável entre as soberanias e soberanos, seja como alargarmento do exercício da cidadania através da consagração internacional do republicanismo constitucional, condição para ser

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possível admitir a possibilidade de um Estado de direito nas relações internacionais (Jefferson, Paine, Kant, Fichte).

3º PERÍODO: as razões imperiais e teleológicas. De 1815, com a vitória de Metternich e da Restauração, até 1945,

com a derrota da Alemanha hitleriana e do Japão imperial. CARACTERÍSTICAS: A política vê-se orientada por uma

normatividade de alcance não universal. O fundamento ideal é ocupado pela tradição histórica (Savigny), pelo finalismo histórico (Marx, Spengler, etc), pelo messianismo de classe ou racial (Lénine, Chamberlain, Hitler, etc.), pelo decisionismo iluminado do Chefe ou do Partido (Mussolini, Carl Schmitt, Mao, etc.). O nacionalismo e a lógica de exclusão da 'comunidade' (Gemeinschaft) impõem-se ao universalismo da 'sociedade' (Gesellschaft). A guerra perde o anátema moral das Luzes e reconquista um lugar necessário na construção da(s) finalidade(s) histórica(s). A tese clausewitziana do carácter meramente instrumental da práxis bélica perante o primado das vontades políticas torna-se um valor consensual.

4º PERÍODO: Em busca duma razão cooperativa. Da Declaração Universal dos Direitos do Homem das Nações

Unidas de 10 de Dezembro de 1948, às conferências sobre ambiente de 1972 e 1992.

CARACTERÍSTICAS: O regresso da dominância de uma

exigência jurídico-projectiva à práxis política. A guerra central entre as potências hegemónicas torna-se uma quase impossibilidade tanto à luz das categorias éticas como no quadro de uma razão estratégica calculadora (um absurdo, face à emergência de paridade nuclear entre EUA e URSS, que conduziria, em caso de guerra, a uma destruição mútua assegurada). O perigo da catástrofe nuclear obriga a uma penosa distorção da racionalidade estratégica com matriz clausewitziana. Reforço dos movimentos sociais condenatórios da guerra. Contestação, crescente após 1968, das teleologias históricas justificativas da instrumentalização da guerra. Fragmentação dos movimentos sociais emancipatórios, unidos, contudo, por uma comum recusa da trivialização da guerra.

Viriato Soromenho-Marques, “Guerra, Ambiente, e Cooperação Compulsiva”, O Futuro Frágil. Os Desafios da Crise Global do Ambiente, Mem Martins, Publicações Europa-América, 1998, pp. 153-184.

§4. Razão de Estado, mecanismo e liberdade (Abbé de Saint-Pierre e Kant).

Apesar dos contributos precursores de Vitoria e de Grotius,

respectivamente nos séculos XVI e primeira metade do século XVII, o moderno modelo de relações internacionais, saído da Guerra dos Trinta Anos, só se consolidará definitivamente no século XVIII. A categoria chave desse modelo é o conceito de equilíbrio ou balança do poder. Não é difícil perceber que se tratava da transferência para o plano da política internacional da tese mecanista prevalecente na "filosofia natural" depois das mutações fundamentais introduzidas por Galielu, Bacon e Descartes: as relações de poder entre os Estados devem ser avaliadas objectivamente e não doutrinariamente. O que é relevante para o Chefe de Estado é compreender qual o grau de colisão ou de partilha entre os interesses dos Estados em presença e qual a relação efectiva de forças.

Assim como o cosmo físico era explicável, pelo menos no seu

funcionamento actual, sem a introdução da noção de milagre (excepção feita a alguma condescendência 'anti-moderna' de Newton neste domínio), também a paz e a guerra resultavam das leis objectivas de um equilíbrio de forças, onde o papel da vontade subjectiva dos agentes políticos era irrelevante.

A razão de Estado conduzia a uma ordem internacional

funcionando em moldes inteiramente mecanistas. Contra esta visão, vários foram os autores que se ergueram, tentando introduzir alguma capacidade de iniciativa à vontade política, isto é, tentando evitar que o desenlace da paz e da guerra fosse totalmente isento de uma intervenção voluntária e livre dos agentes políticos.

Nessa aventura intelectual da razão política setecentista merecem

destaque dois nomes: Abbé de Saint-Pierre e Kant. Como veremos, o primeiro foi um reformador do modelo mecanista da razão de Estado-equilíbrio do poder. Kant, pelo contrário, foi um revolucionário. As suas reflexões sobre a paz constituem, simultaneamente, o auge e a herança mais preciosa da Aufklärung em matéria de direito internacional público.

A proposta de Saint-Pierre pode ser exposta com simples

brevidade: tratava-se da criação de uma organização internacional capaz de arbitrar os conflitos, decretar sanções e fazer cumprir o direito internacional. O autor propugnava (Project pour rendre la Paix

Viriato Soromenho-Marques, “Guerra, Ambiente, e Cooperação Compulsiva”, O Futuro Frágil. Os Desafios da Crise Global do Ambiente, Mem Martins, Publicações Europa-América, 1998, pp. 153-184.

Perpétuelle en Europe, 1713) a fundação de uma sociedade ou "união europeia" (union européene) de Estados, que funcionaria como um sistema de "arbitragem perpétua" (arbitrage perpétuel), garantindo a todos os seus membros a perspectiva de uma "segurança suficiente" (sureté suffisante).

Em vez de quebrar as regras do jogo do sistema do equilíbrio

europeu, Saint-Pierre propõe-se administrá-lo com eficácia e inteligência superior. O tratado que ele propõe ao reduzido número de cabeças coroadas e governantes apresentava a tarefa de um cálculo rigorosamente racional dos interesses em presença, em alternativa ao uso unilateral da força para duvidosas vantagens conquistáveis no incerto e sangrento campo de batalha.

Levando o bom-senso até ao limite extremo, Saint-Pierre tornava-

se numa espécie de doutor Pangloss da ordem internacional barroca. O essencial do seu pensamento, que afastava totalmente os cidadãos do concurso para a decisão da paz e da guerra, reduzia-se a duas teses estruturais decisivas:

O artigo II, propunha a manutenção do sistema político vigente nos

Estados, à data da sua entrada na União, ao ponto de oferecer a sua ajuda militar para sufocar qualquer revolta interna (as considerações sobre a eventual justiça dos revoltosos são deixadas deliberadamente de lado) que pusesse em causa a ordem estabelecida. Tratava-se de um autêntico seguro de vida para os mais variegados regimes que resolvessem aderir à União:

"A sociedade europeia não se intrometerá de nenhum modo no

governo de cada Estado, a não ser para conservar a sua forma fundamental, e para conceder um pronto e suficiente socorro aos príncipes nas monarquias, e aos magistrados nas repúblicas, contra os sediciosos e os rebeldes." (La société européenne ne se mêlera point du gouvernment de chaque Etat, si ce n'est pour en conserver la forme fondamentale, et pour donner un prompt et suffisant secours aux Princes dans les Monarchies, et aux Magistrats dans les Républiques, contre les Séditieux et les Rébelles. Abbé de Saint-Pierre, ob. cit.: 164).

Por outro lado, o artigo IV definia a perenidade da repartição

territorial vigente:

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"Cada soberano contentar-se-á para si e para os seus sucessores com os territórios que ele possui actualmente, ou que deve possuir pelo tratado em anexo." (Chaque Souverain se contentera pour lui et pour ses Successeurs du territoire qu'il posséde actuellement, ou qu'il doit posséder par le traité cijoint. Ob. cit.: 168).

Se quisemos encontrar uma fórmula simples poderemos dizer que

as propostas de Saint-Pierre enfermavam de um equívoco medular. Transformavam o status quo europeu, isto é, o problema que deveria ser solucionado e removido, num inquestionável e absoluto ponto de partida.

Na sua preocupação em não ofender a realidade, Saint-Pierre

transformava-se num arauto da mais míope das utopias, aquela que sustenta a perpetuidade do presente estado de coisas. O olhar e comentários trocistas que muitos dos seu contemporâneos, de Leibniz a Frederico II, lhe dedicaram prendia-se a esse facto decisivo: a pretensão de que seria possível sacralizar a ordem estabelecida, precisamente, aquela que a maioria dos governantes europeus estava interessada em modificar na primeira oportunidade que se vislumbrasse.

A reflexão kantiana sobre a paz, sobretudo os textos da década de

1790, vão num sentido bem diverso do de Saint-Pierre. Em linhas muito gerais podemos afirmar que três são os pressupostos fundamentais da postura kantiana em relação à problemática da paz:

a) -- A paz só seria possível com a modificação da ordem

constitucional interna de cada Estado. O despotismo, que colocava a decisão sobre a guerra na mão solitária dos monarcas, transformava a empresa bélica numa "espécie de diversão" (Art von Lustpartie) dos príncipes, era o principal inimigo da paz. Contra isso, os Estados deveriam adoptar constituições republicanas, capazes de assegurar governos representativos que garantissem a expressão da opinião dos cidadãos no momento de decisão acerca da paz e da guerra.

Esta tese kantiana, sobre a necessidade de definir

constitucionalmente a tutela popular sobre a decisão acerca da paz e da guerra, já havia sido quatro anos antes formulada eloquentemente por Thomas Paine, o famoso publicista da Revolução Americana, no quadro da sua polémica contra a apreciação conservadora que Edmund Burke efectuara dos acontecimentos revolucionários em França:

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Escrevera Paine:

"Nesta questão da guerra devem ser considerados três aspectos.

Primeiro, o direito de a declarar; em segundo lugar, as despesas para a suportar; em terceiro lugar, o modo de a conduzir depois de ter sido declarada. A Constituição Francesa coloca o direito onde as despesas têm de recair, e esta união só pode ter lugar na Nação. Quanto ao modo de conduzir a guerra depois de ela ter sido declarada, a Constituição consigna-o ao departamento executivo. Acontecesse o mesmo em todos os países e nós ouviríamos doravante falar muito pouco acerca de guerras." (On this question of war, three things are to be considered. First, the right of declaring it; secondly, the expence of supporting it; thirdly, the mode of conducting it after it is declared. The French Constitution places the right where the expence must fall and this union can be only in the Nation. The mode of conducting it after it is declared, it consigns to the executive department. Were this the case in all countries, we should hear but little more of wars. The Rights of Man, 1791: 57).

b) -- Existe uma unidade entre a política interna e externa dos

Estados. Como escreve Fichte, numa recensão sobre o opúsculo de Kant:: "[...] um Estado que no seu interior é injusto, deve necessariamente incorrer na pilhagem dos seus vizinhos." ([...] ein Staat, der seinen Innere ungerecht ist, nothwendig auf Beraubung der Nachbarn ausgehen muss. Fichte, 1796: 228).

Sem o respeito pelos direitos humanos fundamentais dos cidadãos

no plano constitucional, sem o Estado de direito dentro das fronteiras seria vão pretender que a paz, o respeito pelo direito internacional público fosse possível no plano das relações entre Estados. Quem faz a guerra aos seus súbditos não hesitará em continuar a fazê-la aos povos de Estados estrangeiros.

c) -- Essa unidade obriga a que só possam aderir a uma

organização internacional para a paz Estados com alguma homogeneidade nos seus princípios de orientação política, i.e., Estados republicanos. Por isso, Kant considera que o republicanismo constitucional deve figurar como o primeiro artigo definitivo conducente à paz perpétua: "A constituição civil de cada Estado deve ser republicana." (Das bürgerliche Verfassung in jedem Staate soll republikanisch sein. Frieden, VIII: 349).

Viriato Soromenho-Marques, “Guerra, Ambiente, e Cooperação Compulsiva”, O Futuro Frágil. Os Desafios da Crise Global do Ambiente, Mem Martins, Publicações Europa-América, 1998, pp. 153-184.

O critério do republicanismo confere ao projecto kantiano uma

característica projectiva e utópica deliberada. Na verdade, enquanto Saint-Pierre conhecia os seus interlocutores pelos nomes próprios, Kant sabe que ainda se está muito longe da generalização da constituição republicana à maioria dos Estados. O filósofo de Königsberg ao considerar que só países com governos representativos da vontade soberana do povo poderiam tomar assento na organização internacional para a paz, confessa que o seu projecto se dirige a uma realidade que ainda não existe. Dirige-se a um possível histórico, relativamente ao qual existiam tendências e sinais positivos, mas apenas isso.

Se há algum paralelo a estabelecer neste domínio entre Kant e

outros autores da sua época será com Thomas Jefferson e a sua Declaração da Independência Americana, onde se expõe uma teoria da independência nacional baseada no respeito dos direitos universais do homem e do cidadão, ao contrário da prática corrente no nosso século XX em que os direitos nacionais têm sido repetidamente apresentados como alibi aceitável para o esmagamento dos direitos civis e políticos dos indivíduos e das minorias (Soromenho-Marques, 1996b: 137-164).

§5. A racionalidade clausewitziana. Os sonhos universalistas

das Luzes terminaram nas Guerras da Revolução e do Império. O século XIX não seria o da construção de uma ordem internacional cosmopolita, regendo-se pelo alargamento da concepção de Estado de direito à esfera do Direito das Gentes (leia-se direito internacional público), mas sim pela consolidação de um poderoso e aguerrido novo sujeito da cena política europeia: o Estado-nação.

Seria injusto não considerar que o Estado-nação realizou uma

parte significativa do programa das Luzes. Do ensino obrigatório ao serviço militar obrigatório, da construção de infra-estruturas de transportes e comunicações que permitiram o aprofundamento da revolução técnica e industrial à edificação de um corpo jurídico-abstracto, oposto à fragmentação jurídica por castas do Antigo Regime, o Estado-nação levou a cabo alguns dos desideratos de transparência e mobilização política dos povos que estavam contidos nas promessas da Aufklärung.

Contudo, o esclarecimento oitocentista das massas, o aumento

das posibilidades de participação contido na esfera da cidadania, a sua preparação para o "trabalho semântico", usando a interessante

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expressão de Ernest Gellner, não se traduziram no aumento das condições culturais e institucionais da paz à escala europeia. A relativa paz que a Europa gozou entre 1815 e 1914 nunca deixou de se revestir do semblante de uma trégua bastante longa quando analisamos a lenta, persistente e explosiva acumulação de elementos espirituais e materiais que conduziriam à Segunda Guerra dos Trinta Anos (1914-1945).

Com efeito, nesse século a Europa combinou industrialismo com

militarismo, expansão imperial mundial com a santificação do nacionalismo, o racismo para com todos os povos colonizados com a afirmação de um patriotismo chauvinista erigido num sistema misto de ciência e preconceito, que tornava quase ontológica as diferenças entre as nações europeias. Não foi pólvora, mas dinamite em estado puro aquilo que no coração da Europa foi sendo armazenado, despreocupadamente, durante o século que separou Waterloo do Marne.

Um dos pensadores que mais contribuiu para a legitimação da

guerra como instrumento adequado a uma política racional foi, indubitavelmente, Carl von Clausewitz, atrvés da sua obra, cedo tornada em clássico do pensamento, 'Da Guerra' (Vom Kriege).

A obra de Clausewitz pode ser caracterizada como um enorme

esforço de conciliação entre duas tendências contraditórias: por um lado, o reconhecimento da complexidade labiríntica da guerra e, por outro, a necessidade da sua clarificação categorial tendo em vista o imperativo da operacionalização do recurso ao conflito bélico como instrumento da razão de Estado.

Por vezes, srpreendemos em Clausewitz a paixão filosófica pelo

problema da guerra, a procura do aprofundamento da teia intrincada e dos meandros laterais da sua complexidade. Mas, sem dúvida, que é a pulsão clarificadora do militar que acaba por prevalecer nas teses de Vom Kriege.

Assim como o Abbé de Saint-Pierre, Rousseau ou Kant

consideravam que o único método para evitar que a reflexão sobre o binómio paz-guerra resvalasse na neblina de encadeamentos causais intermináveis -- cortando transversal e indisciplinadamente os planos da ética e da histórica, da antropologia e da pedagogia, entre muitos outros -- consistiria em concentrar a análise na problemática jurídico-política do Estado e das relações internacionais, também Clausewitz vai focalizar o

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seu pensamento na esfera do Estado e da política. Não na demanda de uma forte arquitectura dos argumentos racionais, mas sim na fundamentação de uma esfera de racionalidade calculadora e instrumental inerente às relações de força dentro dos Estados e, sobretudo entre estes.

O exercício de clarificação conceptual começa na própria forma

como a estratégia é definida por Clausewitz. Trata-se de uma tripla caracterização:

a) A estratégia não se ocupa do fenómeno da violência em geral,

mas somente dos conflitos entre Estados. b) O pensamento estratégico não se reveste de um âmbito

estritamente militar, antes combinando o concurso de diversas disciplinas e saberes.

c) A estratégia não pretende para si um estatuto científico em

sentido estrito. As suas teses não são verificáveis do mesmo modo que nas ciências formais e nas ciências naturais. Como que antecipando a polémica entre as ciências nomotéticas e ideográficas, Clausewitz prefere usar para a estratégia a denominação tradicional de "arte da guerra" (Kriegskunst, ob. cit.: 681).

Por outro lado, o quadro de referência do pensamento estratégico

é delimitado por um conjunto de teses cujo valor normativo, de tipo quase axiomático, percorre o conjunto dos tópicos de reflexão do autor prussiano.

Sumariamente podemos enunciar essas teses do seguinte modo: a) O Estado como sujeito organizador, princípio e alvo da

acção político-militar: trata-se de um Estado concebido como organismo. Ao contrário das analogias físico-mecanistas de alguma filosofia política do século XVII, o Estado clausewitziano comporta-se como um ente biológico, uma criatura viva, possuidora de uma alma, onde se aglutinam as condições psíquicas e morais da vida dos povos (ob. cit.: 680). O Estado tem ainda uma vida histórica que pode ser traduzida como o processo da sua identificação com a Nação (ob. cit.: 648).

Viriato Soromenho-Marques, “Guerra, Ambiente, e Cooperação Compulsiva”, O Futuro Frágil. Os Desafios da Crise Global do Ambiente, Mem Martins, Publicações Europa-América, 1998, pp. 153-184.

b) A essência da guerra pertence ao domínio da política: na condução da guerra o primado dos fins poíticos deve sobrepor-se às considerações de âmbito estritamente militar (op. cit.; 677-678). A única autonomia tolerável do elemento militar situa-se na estreita esfera dos detalhes (ob. cit.: 676), no plano "gramatical", mas não no horizonte lógico que o subordina ("Ela [guerra] tem, sem dúvida, a sua própria gramática, mas não a sua própria lógica"[Er hat freilich seine eigene Grammatik, aber nicht seine eigene Logik], ob. cit.: 675). Só o ponto de vista político permite a visão integrada e de conjunto que a estratégia exige. Poderíamos ir mais longe, afirmando que para Clausewitz, leitor de Hegel, a política ganha supremacia sobre as considerações particulares e técnicas de foro estritamente militar, porque só na política se realiza o momento sintético da totalidade (Schramm, 1977: 19).

c) A guerra implica uma gestão gradual da violência

teleologicamente orientada pelo objectivo de uma "decisão pelas armas" (Waffenentscheidung): Clausewitz não considera que a natureza da guerra se avalie pela quantidade de danos e sofrimentos causados aos beligerantes. A natureza da guerra define-se pelo objectivo de impor a vontade política de um Estado a outro. Todavia, ao contrário de Sun Tzu, Clausewitz não considera sequer a hipótese da guerra mínima que consistiria na eficácia da simples ameaça do uso da força em alternativa ao uso da força propriamente dito (seria preciso subir todo o calvário armamentista até à estação nuclear para o bluff e a dissuasão voltarem a ter significado).

A partir de um determinado momento a vontade de um Estado só

poder ser vergada se forem destruídas as suas forças armadas (ob. cit.: 640). É por aqui, por este imperativo combativo, que o próprio desenvolvimento das armas de fogo torna inevitável, que entra a razão calculadora da acção recíproca, dos contrapesos, da combinação de forças, da organização da escalada e da retaliação. E os cálculos da razão combatente têm como pressuposto inquestionável uma geografia estratégica baseda num espaço-tempo servindo como coordenadas newtonianas, apenas acessíveis pela lenta mobilização de recursos humanos e materiais finitos postos gradualmente ao serviço das operações bélicas.

O que impressiona em Clausewitz, e o que explica a sua

permanência como autor de referência para os estudiosos da problemática da paz e da guerra, é a forma como a sua meditação pressupõe uma 'cosmovisão' (Weltanschauung) sem, porém, jamais

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incorrer na tentação da sua enunciação ostensiva. A sua obra reflecte com finura a emergência dos Estados-nação, mas também as modificações revolucionárias que afectavam tanto as instituições políticas como os paradigmas epistemológicos e, inevitavelmente, a acelerada projecção da técnica na modificação da vida quotidiana das populações dos países ocidentais.

Acusado por muitos de ter com a muito mal compreendida

categoria de "guerra absoluta" (der absolute Krieg) -- que algumas leituras medíocres identificaram precipitada e erroneamente com o conceito de "guerra total" (der totale Krieg) -- convidado os generais europeus a enveredarem pelo holocausto inaudito da Grande Guerra (veja-se a clássica crítica de Liddell Hart acima mencionada), Clausewitz deixou, todavia, entreaberta a porta decisiva para a metamorfose da guerra em paz.

Com efeito, o primado conferido por Clausewitz à política na

reflexão estratégica manteve intacta a estrutura dialógica do fenómeno bélico. A guerra é uma forma mortífera de relação entre Estados, mas a morte dos combatentes, que sempre acompanha a guerra, não é identificável com uma guerra de morte, com uma guerra de extermínio entre os "interlocutores" temporariamente envolvidos nas operações militares. Os inimigos, na concepção clausewitziana, apenas o são funcional e conjunturalmente. As armas apenas se fazem ouvir quando a voz da política não se deixa entender por outros meios e para que esses meios, de configuração mais diplomática e pacífica, possam, depois da borrasca, prevalecer de novo.

Com Clausewitz estamos ainda muito longe daquilo que Konrad

Lorenz designa por "guerras ideológicas", isto é, conflitos onde a construção da imagem do inimigo é efectuada não funcionalmente, mas ontologicamente. Na verdade, quando o inimigo deixa de ser definido pela posição relativa ocupada no quadro conjuntural das relações de interesses e forças da arquitectura internacional, para passar a ser definido pela sua identidade intrínseca (como judeu, comunista, etc.), então abandonamos o universo intelectual da razão estratégica para penetrarmos no pesadelo genocida.

Clausewitz compreendeu melhor que ninguém ser a guerra mais

do que o simples jogo de uma pretensa e neutral "álgebra da acção" (Algebra des Handelns, ob. cit.: 74), mas por esse mesmo motivo jamais aceitaria que fosse o espasmo de uma paixão enraivecida a

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tomar o comando que só pode caber à avaliação racional da proporcionalidade entre meios e fins, sem o que a guerra deixa de ser um instrumento da política para se tornar na sua trágica máscara, na idolatria do massacre.

§6. A destruição nuclear da 'decisão pelas armas'. Em

Clausewitz a racionalidade da guerra era inseparável de uma economia teleológica. Os sacrifícios inumanos exigidos aos combatentes eram justificados pela vitória. Só ela permitia atingir os fins pretendidos pelo Estado: vergar a vontade do inimigo.

A racionalidade estratégica clausewitziana, como observámos

acima, movia-se no interior de um universo de referência bem preciso, implicava uma ideia de totalidade dependente de teses e normas com um grau muito diverso de explicitação.

Um dos elementos, simultaneamente mais implícitos e essenciais,

é aquilo que poderemos designar como o carácter discursivo e finito dos recursos envolvidos nas acções bélicas: entre a decisão de fazer a guerra e a vitória exigia-se, para a razão clausewitziana, a necessidade de organizar, mediadamente, no espaço e no tempo uma série de recursos materiais e humanos, da mobilização das tropas ao envolvimento nas operações militares directas. A vitória implicava um jogo dialéctico entre os inimigos manifestado através da acção recíproca sangrenta de forças militares finitas no espaço-tempo newtoniano em que as guerras podiam ser contidas.

Ora, aquilo que a introdução de armas de destruição maciça, em

especial as armas nucleares, vai produzir no pensamento estratégico no decurso dos quarenta anos decisivos da guerra-fria (1949-1989) é a destruição da sóbria arquitectura clausewitziana: com uma voracidade crescente as novas armas vão forçar um "pensamento do impensável". As armas nucleares conduzem à produção de um novo conceito de racionalidade bélica capaz de conviver com o eclipse do conceito de vitória, exigindo a gestão de forças militares tornadas, pela capacidade de overkill, numa quantidade infinita capaz de implodir a harmonia do espaço-tempo newtoniano.

Vejamos alguns dos aspectos centrais do desmonoramento da

totalidade clausewitziana:

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a) A volatização da noção de frente: num universo de forças finitas, que necessitam de tempo para se deslocarem no epaço ao encontro do inimigo, a possibilidade -- permitida pela panóplia das armas nucleares -- de mobilização praticamente instantânea (o tempo de chegada aos alvos dos mísseis intercontinentais balísticos lançados de silos terrestres é no máximo de 30 minutos) de forças destrutivas capazes de arrasarem várias vezes as áreas urbanas e os alvos militares do Planeta era um pesadelo apocalíptico inimaginável ao tempo de Clausewitz. Essa dura realidade, que aliás foi sendo preparada pelo advento da artilharia convencional de longo alcance e pela utilização da aviação para fins militares, obrigou a alterar completamente conceitos clássicos como os de 'mobilização', 'concentração de forças', edificação de 'linhas defensivas', 'escalada', etc.

b) A relativização espaço-tempo estratégicos: Na guerra o

espaço-tempo é função da capacidade de mobilização de forças, que, de acordo com Clausewitz, devem ser consideradas necessariamente finitas. Por isso podemos afirmar que os acontecimentos militares, no universo clausewitziano, ocorrem dentro, ou estão contidos no espaço-tempo. A 'frente', por exemplo, é um ponto de atrito entre forças finitas, contido pelo horizonte mais vasto das coordenadas espacio-temporais da guerra.

No novo quadro nuclear, quando qualquer ponto da Terra pode

ser várias vezes varrido, quase em simultâneo, pela devastação atómica, então o que ocorre é uma alteração do espaço-tempo estratégico tão radical como, por analogia com a física, o foi a transição do paradigma newtoniano para o paradigma relativista einsteiniano. O relativismo físico introduziu uma leitura pluralista da concepção de espaço-tempo. As leis consideradas absolutas da física newtoniana não foram abolidas -- como também não o foi a guerra convencional onde a doutrina de Clausewitz continua a ser válida --, mas foram relativizadas, deixaram de ser válidas em todo o universo para passarem a conviver com fenómenos, 'singularidades' que as desafiam, que exigem um outro quadro legal, que se oferece apenas numa representação probabilística da (in)certeza.

A simples possibilidade de uma guerra nuclear central significa

que, doravante, os estrategistas têm de incluir a categoria de implosão do espaço-tempo estratégico como uma hipótese de trabalho para a

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realização da qual todos os meios materiais já estão efectivamente reunidos.

A implosão significaria que as forças mobilizadas por uma guerra

nuclear total já não seriam finitas face ao universo de referência, antes o transbordariam. Numa guerra nuclear total, os acontecimento bélicos não ocorreriam dentro do espaço-tempo. Pelo contrário, o espaço-tempo clausewitziano seria distorcido, contraído e finalmente destruído pelo potencial de caos contido nas quinze ou vinte mil megatoneladas que aguardam pela sua vez nos silos subterrâneos, no ventre dos submarinos, ou no bojo dos bombardeiros estratégicos.

c) O eclipse da categoria de vitória: O culminar da derrocada do

mundo clássico de Vom Kriege ocorre com a colocação em causa do centro nevrálgico teleológico da doutrina estratégica, i.e., o conceito reitor de vitória.

A paridade nuclear transformou o conceito de vitória num

sinónimo absurdo: "destruição mútua assegurada" (mutual assured destruction-MAD). No plano da confrontação central entre as superpotências atómicas o objectivo já não consistia em preparar as condições propícias à vitória no cenário extremo da confrontação aberta e generalizada. Em vez de um plano de guerra vitorioso (a categoria de vitória foi deslocada para os conflitos periféricos convencionais de baixa intensidade) o máximo que as grandes potências do mundo bipolar da guerra-fria poderiam almejar seria uma dispendiosa simulação da guerra, uma dissuasão convincente (deterrence) que evitasse a eclosão de um conflito de dimensões estritamente escatológicas: equivalente a um fim real da história humana.

Não surpreende, pois, perante este quadro de distorção do

universo da racionalidade bélica clausewitziana que os quarenta anos de guerra-fria teham produzido no pensamento estratégico muitos sintomas de esquizofrenia, de "comportamento arriscado" (risky behaviour), onde se expressaram várias tentativas, por bluff ou com sinceridade, de regressar a um horizonte neo-clausewitziano, onde, mesmo com armas nucleares fosse possível travar uma guerra vitoriosa (Soromenho-Marques, 1985: 67-88).

§7. Modelos de cooperação compulsiva. Apesar das sucessivas

vertigens e crises cujo desfecho esteve muito próximo do abismo, a guerra-fria terminou sem que o conflito central se tivesse registado. Os

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motivos que para isso concorreram são de uma vastidão e omplexidade que em muito ultrapassam o presente quadro da nossa reflexão.

O mais relevante, numa perspectiva filosófica, será destacar em

que medida resistiu, ou não, a tese central deste breve ensaio ao teste da guerra-fria. Por outras palavras, que razões terão permitido que mesmo num quadro de oposição cerrada entre Estados que a paz tivesse sido salva no interior das próprias possibilidades políticas garantidas pelo papel central do Estado nas relações internacionais. Sublinhe-se que no período da guerra-fria o ingrediente da inimizade ideológica, cuja virulência foi sublinhada por K. Lorenz, se juntou a todos os outros factores de agressividade internacional, a saber, o mecanismo de forças do equilíbrio do poder e a fria reabilitação clausewitziana da guerra como instrumento legítimo de expressão da vontade e interesse dos Estados.

Como vimos, a introdução das armas de destruição maciça foi o

instrumento da destruição da racionalidade bélica. A paridade nuclear entre as duas superpotências, a multiplicação da capacidade nuclear de overkill nos arsenais dos blocos rivais veio ferir mortalmente o pensamento estratégico, pois retirou-lhe o suporte teleológico em que assentava, isto é, a própria noção de vitória militar como condição essencial para a obtenção de ganhos políticos correlativos. Quem ousaria, doravante, iniciar as hostilidades de um conflito central entre as superpotências quando, antecipadamente, o resultado seria a destruição total de ambos os contendores, bem como dos seus aliados?

É esta interrogação a chave que nos permite compreender como

em plena guerra-fria foi possível encontrar, em paralelo com a estratégia indirecta traduzida em conflitos de baixa ou média intensidade, em que os blocos rivais se confrontavam através de aliados distantes, uma conduta pautada pela necessidade, compulsiva, obrigatória, de cooperação.

Desta forma, a destruição do edifício conceptual em que se

baseava a racionalidade estratégica, que é a causa suficiente para o extraordinário fenómeno Gorbatchev, deu origem antes dele à complexa teia de negociações para o controlo da corrida armamentista, assim como a uma copiosa série de dispositivos de precaução e aviso mútuo, cujo desiderato consistia em evitar o início de um conflito nuclear, ou de uma escalada precipitada, na base de uma decisão fundada sobre um conjunto deficiente ou insuficiente de informações.

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Por outro lado, a partir do final da década de 1960 tornou-se

particularmente visível que um outro fenómeno forçava, em determinadas condições, a condutas de cooperação entre Estados com interesses diametralmente divergentes. Estamos a referir-nos ao advento dos primeiros sintomas da crise ambiental e social global.

Mesmo antes do declínio da guerra-fria, o trabalho percursor de

algumas comissões, trabalhando geralmente no âmbito das Nações Unidas, chefiadas por personalidades políticas de reconhecida dimensão internacional veio dar visibilidade à estreita relação entre ambiente e segurança, veio demonstrar que na fase crítica da civilização tecnocientífica de rosto planetário em que nos movemos, a degradação do ambiente é simultaneamente uma causa e um factor de insegurança, e uma consequência grave da negligência conceptual que consiste em associar a questão da paz e da segurança a considerações do foro estritamente militar.

Entre o final dos anos 70 e o final dos anos 80 deve ser destacado

o trabalho das seguintes Comissões: A Comissão para as Relações Norte-Sul, chefiada por Willy Brandt,

antigo chanceler da República Federal da Alemanha. A Comissão para o Desarmamento Internacional e a Segurança,

sob a responsabilidade de Olof Palme, o malogrado primeiro-ministro sueco.

A Comissão sobre o Desenvolvimento e o Armamento,

cooredenada por Inga Thorson, ministra sueca para o desarmamento. A Comissão para o Ambiente e o Desenvolvimento, liderada por

Gro Harlem Brundtland, ex-primeira-ministra da Noruega (Käkönen, 1992: 149).

As conclusões destes grupos de trabalho apontaram para a corrida

aos armamentos como uma das principais causas para o aumento da insegurança, que aparentemente essas opções armamentistas pretenderiam evitar. A visão estritamente militar da segurança agravava e tornava invisível a deterioração das condições sociais e ambientais em que a verdadeira e duradoura paz tem de assentar.

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Por analogia com o ocorrido no decurso da fase terminal da guerra fria poderemos afirmar que muitas dos problemas ambientais, sobretudo aqueles que se revestem de características e alcance globais, constituem imperativos para uma cooperação compulsiva, já que nehum dos actores da cena internacional consegue externalizar para os outros parceiros da comunidade internacional os prejuízos, guardando para si os hipotéticos benefícios. Assim como no desfecho de uma eventual guerra nuclear todos os envolvidos sofreriam, também no que à crise ambiental e social diz respeito, todos os Estados e povos envolvidos sofrerão, mais tarde ou mais cedo, em maior ou menor grau, as consequências do adiamento das decisões que poderão corrigir o agravar dos factores críticos.

Nalguns casos, como ocorre na gestão de bacias hidrográficas

internacionais, parece ser contrariada esta visão que aponta para a cooperação compulsiva. Assim, na maioria dos casos, os países que se encontram a montante têm vantagem sobre os países que se situam a jusante. As obras hidráulicas que os primeiros fazem retiram aos segundos um potencial hídrico que pode comprometer as suas opções de desenvolvimento. Mas, mesmo neste horizonte que se pode inscrever na matriz clássica dos conflitos zero-sum, de acordo com a teoria dos jogos, dificilmente se poderá falar de uma vitória consolidável. Na verdade -- como o demonstrou recentemente Stefan Kratz num estudo sobre as lutas em torno das bacias hidrográficas do Jordão, do Nilo, do Tigre-Eufrates e do Ganges -- a complexidade, delicadeza e interacção dos factores envolvidos nos litígios sobre rios internacionais é da ordem do sindroma, envolvendo questões que não podem ser resolvidas num quadro de concorrência e confrontação aberta, como é o caso do crescimento demográfico exponencial e de actividades agrícolas insustentáveis (Kratz, 1996: 25-27) (ver quadro nº1).

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Quadro nº1 Ambiente e Segurança: um sistema complexo

Os factores ambientais não são unívocos, entram em redes de causalidade

complexa.

--Relação de feed back entre:

• Escassez de recursos naturais • Degradação ambiental • Problemas sociais secundários • Probabilidade de escalada violenta de conflitos --Exemplo de rede-ciclo causal em feed back:

• desflorestação • degradação da fertilidade dos solos • conflitos • migração • intensificação das práticas agrícolas • pressão do serviço da dívida externa • termos de troca comércio internacional • aceleração ou mitigação de conflitos

--Problemas sociais secundários:

• tensão cidade-campo • êxodo rural para a periferia urbana • migrações • pobreza • crise alimentar-fome • problemas de saúde e epidemias

--Áreas críticas para conflitos com forte componente ambiental:

• Sahel/Corno de África/Médio Oriente (desertificação, desflorestação, depleção hídrica)

• Bangladesh, China, América Central (alterações do regime hídrico, desflorestação, etc.)

• Haiti, Filipinas, Indonésia (desflorestação) • Cintura tropical equatorial das florestas húmidas (risco para a

biodiversidade, disputas por territórios)

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Fonte principal: Carius, et al., 1996a __________________________________________________

Em sentido claramente menos ambíguo, muitos dos novos

problemas ambientais, de entre aqueles que foram sendo diagnosticados cientificamente nas últimas duas décadas, convidam nitidamente os Estados a uma conduta cooperante face a perigos como os constituídos pelas chuvas ácidas, depleção da camada de ozono, contaminação dos mares e oceanos, ou alterações climáticas.

§8. Depois da guerra ? O fim da guerra-fria sem a ocorrência de

um conflito central entre as duas potências dominantes no sistema bipolar que a acompanhou ao longo de quase meio-século, deixou pelo menos tantas esperanças quantas inquietações.

A proliferação, após 1989, de conflitos regionais de baixa

intensidade veio provar que a diminuição do risco de uma guerra nuclear central não é equivalente à diminuição do perigo da banalização do recurso às armas como metodologia comum para a resolução dos conflitos entre Estados e no interior dos mesmos.

A diminuição do risco de uma hecatombe termonuclear deve ser

interpretada num horizonte meramente conjuntural e não estrutural ou definitivamente. Na verdade, a paz relativa em que vivemos é uma paz sem ordem, são as tréguas mais ou menos longas que aguardam dois tipos de desfecho possíveis:

a) Ou a construção de uma ordem internacional fundada nos

princípios do Estado de direito, o que significa a partilha progressiva de soberania entre os Estados e a ampliação da esfera de intervenção da cidadania.

b) Ou a reconstrução de um novo directório imperial entre

potências candidatas a uma nova divisão da hegemonia mundial. A filosofia política clássica, de Hobbes a Kant, identificou o centro

nevrálgico do problema da paz e os caminhos de alternativa: onde reina a 'guerra de todos contra todos', isto é, 'o estado de natureza' e os ditames do interesse escudado apenas na brutalidade da força, é dever construir a paz, o mesmo é dizer, uma ordem, tanto civil como internacional, fundada na força da razão e no império do direito.

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A história veio conferir ao dilema político e ético, inerente à

escolha da melhor sociedade possível, o timbre da necessidade máxima, aquele que só ocorre quando é a própria sobrevivência que está em jogo.

A vitória sobre a guerra depende da capacidade de se conjugarem

politicamente muitos outros factores que se agitam na crise civilizacional da modernidade em que nos debatemos, Podemos já não ter as mesmas bandeiras nem os mesmos nomes para as nossas esperanças, mas convivemos debaixo das sombras das mesmas ameaças. Enquanto a humanidade continuar a crescer contra a Terra, enquanto a prosperidade das gerações futuras for conseguida à custa da degradação ecológica com o inevitável empobrecimento das possibilidades de escolha das gerações futuras, enquanto o fosso entre pobres e ricos continuar a aumentar não haverá uma paz duradoura e sustentável sobre o Planeta.

O que está em causa só pode ser traduzido visivelmente na

ordem, nas instituições e na linguagem da esfera política. Esse primado do político, como já o vimos, é o que liberta a meditação filosófica do risco da perda no labirinto quando a guerra cai sob o foco da reflexão.

Contudo, a filosofia política ensina-nos, igualmente, que se a

guerra não deve ser sujeita a uma simples condenação ética, se não podemos ignorar o papel essencial desempenhado pela guerra na génese das culturas mundiais, da noosfera que a história humana acrescentou aos outros anéis da Vida, também não deixa de ser verdade que só modificações radicais no âmbito dos valores da nossa respiração cultural, da nossa habitação do mundo, poderão firmar e assegurar de modo consistente os ganhos políticos que venham entretanto a ser conseguidos.

A paz deve ser construída na ágora pública, na luz do confronto

político, na complexa teia de relações jurídico-políticas, mas ela só poderá ser confirmada no lento profundo e disciplinado esforço de alteração dos padrões e finalidades que determinam a condição e o coração dos seres humanos. Trata-se de uma tarefa ciclópica, a um tempo individual e comum, silenciosa e institucional, ética e educacional.

Viriato Soromenho-Marques, “Guerra, Ambiente, e Cooperação Compulsiva”, O Futuro Frágil. Os Desafios da Crise Global do Ambiente, Mem Martins, Publicações Europa-América, 1998, pp. 153-184.

O desafio consiste em ampliar os factores que permitam a vitória das possibilidades de continuação da vida e da história humanas sobre os fortes perigos de derrapagem e autodestruição. Ou, dito de outra maneira, a tarefa de vitória da paz sobre a guerra, é o programa da modernidade, a um tempo residual e essencial, que resta por cumprir.