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I CONACSO I Congresso Nacional de Ciências Sociais: desafios da inserção em contextos contemporâneos
23 a 25 de setembro de 2015, UFES, Vitória-ES
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GT 07 - ANTROPOLOGIA E PLURALISMO JURÍDICO
Coordenadores:
Prof. Dr. Júlio Pompeu (UFES)
Prof. Dr. Sandro José da Silva (UFES)
Debatedores:
Prof.ª Dr.ª Brunela Vieira de Vincenzi (UFES)
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A DECISÃO DAS CORTES LATINAS EM MATÉRIA DE DIREITO DOS POVOS
TRADICIONAIS: UM ESTUDO EMPÍRICO
Alceu Fernandes da Costa Neto Faculdade de Direito da UnB
Resumo: Conflitos entre o desenvolvimentismo energético, movidos pelo capitalismo, e o
reconhecimento territorial latino-indígenas desafiam o judiciário no continente. Essa crise
institucional suscita problemas constitucionais complexos à medida que direitos conquistados pelos
povos-tradicionais são relativizados em função da influência do sistema econômico sobre o jurídico.
Nessa tela, objetivamos, pelo método do estruturalismo genético de Pierre Bourdieu, investigar como
Cortes Constitucionais, lugar último da interpretação-aplicação normativa na hierarquia jurídico-
estatal, decidem sobre essas matérias, as quais necessitam do aporte de conhecimentos sociais e
antropológicos. Como pano-de-fundo empírico utilizaremos os microcosmos das Cortes
Constitucionais brasileira e colombiana (decisões 3300/RR – Demarcação das Terras Indígenas
Raposa-Serra-do-Sol e SU-039/97 – Consulta para licença da exploração de hidrocarbonetos na
comunidade indígena U’wa). Examinaremos como o direito articula-se operativamente e quais forças
simbólicas interagem no campo, buscando mostrar a conjuntura do problema estudado.
Seguidamente, pela análise epistemológica de Toulmin (2006), desvelaremos até que ponto normas
internacionais em matéria de direitos-humanos pró-indígenas, destacadamente a convenção 169 da
OIT, caracterizada por apreciar demandas dos povos-tradicionais, têm sido vilipendiadas pelo
judiciário, proliferando uma construção jurisprudencial pouco reflexiva, que combina pura aplicação
da lei com interesses específicos. Finalmente, na conclusão, discutiremos como abordagem
transdisciplinar nas decisões fortalece os Direitos-Humanos-Fundamentais e a democracia.
Palavras-chave: Cortes Constitucionais; direito dos povos tradicionais; conflitos territoriais.
Abstract: Conflict between the energetic developmentalism, driven by capitalism, and Latin
indigenous territorial recognition challenges the judiciary on the continent. This institutional crisis
raises complex constitutional issues as the rights won by the traditional people are relativized due
the influence of the economic system over the legal. On this screen we aimed, by Pierre Bourdieu´s
genetic structuralism method, investigate how Constitutional Courts, the last place of normative
interpretation application on legal-state hierarchy, decide on these subjects, which require the
contribution of social and anthropological knowledge. As empirical background we will use the
microcosm of Brazilian and Colombian Constitutional Courts (decisions 3300 / RR – Demarcation
of Indigenous Lands Raposa-Serra do Sol and SU-039/97 – Consultation for hydrocarbon exploration
license in the indigenous community U'wa). We examine how the law is operationally linked and
which symbolic forces interact in the field, trying to show the situation of the studied problem. As
the next step, by the epistemological analysis of Toulmin (2006), we show the extent to which
international human rights standards for pro-indigenous, notably the 169 ILO Convention,
characterized by enjoying demands of traditional peoples, have been vilified by the judiciary,
proliferating a low reflective jurisprudential construction, which combines pure law application with
specific interests. Finally, in conclusion, we will discuss how a transdisciplinary approach in
decisions strengthens Fundamental Human Rights and democracy.
Keywords: Constitutional Courts; rights of traditional peoples; territorial conflicts.
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Introdução
As comunicações jurídicas, pela reprodução de seus símbolos buscam autonomia
sistêmica, diante de uma sociedade “multicêntrica” ou “policontextual” (LUHMANN 1983,
p. 64). A autonomia aqui citada ocorre em dois níveis: o direito busca ser autônomo em
relação ao ambiente e em relação às demais racionalidades nele contido, sendo que esse
exercício suscita tensões a medida que os sistemas se influenciam e podem se impor, uns
sobre os outros (TEUBNER, 2002). Com a globalização, observa-se que o sistema
econômico passou criar uma estrutura de poder que interfere nos demais códigos,
notadamente nos jurídicos (SANTOS, 2003, p. 19).
Nessa linha, se o direito passa a ser afetado por componentes econômicos, é possível
que os códigos jurídicos se comportem como instrumentos de dominação, sopesando, nas
relações de força, àquele que detiver maior capital1 (BOURDIEU, 2007, 210-214). O
problema desse desalinhamento no estado-das-coisas é que o direito é um componente
fundamental para um regime de democracia, especialmente quando tratamos dos direitos
humanos. Se ele passa a servir interesses específicos, por estar corrompido sistemicamente,
há um desafio às instituições democráticas.
A visão de nossa metodologia converge para o fato de que a construção do mundo
jurídico depende muito de como os interesses sociais se articulam operativamente
(GARCIA, 1999) sendo que o Estado aparece, então, como a instituição que reivindica, além
da força física, a força simbólica para impor a norma considerada oficial. Ele detém tanto as
estruturas objetivas, isso é, a arquitetura de formulação do direito, quanto as estruturas
subjetivas como esquemas de percepção mental (BOURDIEU, 2004, p. 98).
No âmbito dessas estruturas subjetivas está a luta pela interpretação aplicável em cada
caso, aplicação do direito, que, em última instância, será executada pelos juízes constitucionais.
São agentes que têm posição privilegiada, qualificada pela competência de desvelar como se
aplica a Norma Constitucional, a qual fundamenta todas as demais normas. Daí infere-se que a
Corte Constitucional retém o maior coeficiente de capital simbólico dentro do campo jurídico,
1 Numa primeira análise, o conceito de capital está relacionado à economia, conceitualmente, pode ser
equivalente à riqueza e/ou patrimônio (PIKETTY, 2014, p. 51), mas aqui esse é apenas uma das multifaces do
termo capital. Para Bourdieu (2007) o capital está ligado ao coeficiente de poder do agente social, que procurará
se distinguir a partir de sua representatividade simbólica, noutra instância os atores sociais procurarão
hierarquizar os grupos para manter as práticas específicas de sua classe. É possível identificar quatro tipos de
capitais, em Bourdieu: (i) capital social, (ii) capital simbólico, (iii) capital econômico e (iv) capital cultural.
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porque à medida que decide sobre os casos concretos, é ela que diz o que é ou não direito2 para
cada situação, podendo criar, a partir da leitura das conjunturas específicas, os precedentes
jurisprudenciais a ser seguido por todo o sistema da burocracia judiciária. Ao fazer essa ação,
ela, a Corte, condiciona práticas, cria moldes e parâmetros de agir aos demais agentes. Por isso
a homologação condiciona o habitus, a medida que é capaz de influenciar aparelhamentos
sociais na contemporaneidade, causando reflexos nas relações de identidade e unidade, nas
escolhas do estilo de vida e nas tendências homogeneizantes de uma classe.
Este artigo apresenta uma possibilidade analítica da argumentação das
fundamentações de dois acórdãos sobre os “direitos à permanência das populações
indígenas” segundo o entendimento das Cortes Constitucionais do Brasil e da Colômbia. Os
casos utilizados como macrocosmos empíricos servirão como pano de fundo, objetivando
verificar se os magistrados constitucionais têm ponderado questões de Direitos Humanos em
suas decisões. Feito o corte metodológico, é importante ressaltar que o estudo de “casos
difíceis” no direito é essencial, uma vez que as decisões tomadas a partir desses “lugares
comuns do direito” são capazes de vincular toda população de um país em mesmo tempo
que revelam o posicionamento dos juízes frente a demandas sociais sensíveis.
A escolha do caso de “Demarcação de Terras Raposa Serra do Sol”, no Brasil e da
“Consulta para Licença da Exploração de Hidrocarbonetos na Comunidade Indígena de
U’wa”, na Colômbia, se deu por uma série de variáveis que demonstram a similaridade dos
casos. Primeiramente, as Constituições do Brasil e da Colômbia foram promulgadas em um
curto espaço de aproximação entre elas, 1988 e 1991 respectivamente. Outro fato marcante foi
a utilização da convenção 196 da Organização Internacional do Trabalho como parte do
conteúdo argumentativo. Também foi observada a existência de direitos indígenas nas Cartas
Constitucionais de ambos os Estados. O mais importante, sobretudo, é a semelhança do objeto
dos litígios – o direito dos povos de serem ouvidos e permanecerem, e, sobretudo, decidirem
sobre seu próprio território. Após inferir se as Cortes têm levado em consideração as normas
internacionais em matéria de direito dos povos tradicionais, o artigo verificará qual o grau de
influência que o direito internacional público exerce sobre as Cortes Constitucionais e como
os magistrados têm as utilizado em suas decisões. A depender do grau de interferência,
2 O poder das cortes constitucionais alcança grandes dimensões e pode atingir nocivamente os outros poderes.
Atualmente um desses desvios é o chamado ativismo judicial qualificado quando o judiciário adentra em
competências atípicas retraindo os outros poderes, usurpando funções que não estão em sua competência e,
muitas vezes, impedindo que as demandas sociais sejam atendidas de maneira efetiva (BARROSO, 2008).
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poderemos analisar a abertura cognitiva de cada tribunal para o respeito aos direitos humanos
provenientes de normas internacionais, que são as maiores fontes de direitos humanos.
1. Análise do objeto
1.1 O corpus de direito internacional em matéria indígena: do Estado protecionista à
tentativa de um Estado pluralista.
O desenvolvimento do Direito Internacional indígena ocorreu gradualmente, em um
cenário de fortes embates políticos caracterizados pela competição econômica que se deu no
pós-guerra. Nesse sentido consideremos que
O conjunto de práticas e categorias discursivas de natureza jurídica
responde a uma lógica de construção bem específica. Essa lógica própria
se qualifica tanto pelas relações de força, que lhe confere a estrutura e
orienta as lutas internas pela concorrência ou competência entre os agentes,
quanto pela produção jurídica, que delimita cada momento o universo das
soluções aptas ao reconhecimento social (MARCHIONI, 2010, p. 97).
Práticas jurídicas podem se inclinar a responder questões que reproduzem lógicas
econômicas e de exploração, por isso muitos obstáculos apareceram na formação de um direito
indígena de fato protetivo, especialmente porque os povos tradicionais têm uma forte relação
com o território, alvo do desenvolvimentismo capitalista do século XX. Foi assim que a
exploração de matérias-primas, especialmente provindas da América Latina3, a necessidade de
reindustrialização dos países envolvidos nas grandes guerras, a existência de acordos
internacionais de integração econômica4, entre outras conformidades dos códigos econômicos
impediram a formação de uma legislação autônoma, comprometida, com os povos tradicionais.
3 Sobre exploração em territórios indígenas, especialmente na Amazônia, constata a Comisión Económica para América
Latina y el Caribe, órgão das Organizações das Nações Unidas (2014, p. 13) “A mediados del siglo XX, con los procesos
de colonización en la Amazonía y otras “zonas periféricas” de la región tuvo lugar un segundo ciclo de
desterritorialización de los pueblos indígenas, con graves consecuencias sobre sus condiciones de vida. Más
recientemente, el ciclo de la presión extractiva sobre los recursos naturales por parte de las empresas nacionales y
transnacionales y la ejecución de grandes obras civiles con impactos negativos sobre los ecosistemas, han irrumpido
con fuerza inusitada en todo el continente, agravando el cuadro histórico de despojo y vulnerabilidad. El último y más
reciente ciclo, el de la apropiación de los conocimientos tradicionales, la biodiversidad asociada a estos y los recursos
genéticos es el corolario de este extenso proceso histórico de desposesión de los pueblos indígenas de América Latina”. 4 A respeito dessa modalidade de acordos econômicos internacionais, reflete, Marchioni (2011, p. 16) “[...] o
‘Consenso de Washington’ (1989) foi exemplo de ‘micro-discurso-globalizante’ utilizado pelos Estados
Unidos para exigir um conjunto de reformas estruturais nas economias latino-americanas. Liberalização
comercial e financeira, abertura das contas de capital, privatização do patrimônio nacional e até
desregulamentação normativa de natureza tributária, trabalhista e ambiental, têm sido algumas das diretrizes
seguidas por esses países, ao longo de mais de uma década”.
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A primeira medida relevante, a promulgação do Convênio 107 (1957) da
Organização Internacional do Trabalho (OIT), apenas chancelou o posicionamento de
Estado dominador predominante na época, segundo o preâmbulo, a norma tem como
objetivo as populações “que não estão integradas ainda na coletividade nacional” (ONU,
1957). Dessa semântica compreende-se que há uma marcha de integração a ser seguida pelas
populações indígenas, rumo ao ambiente civilizado.
No final do século XX pode-se observar a migração do paradigma assimilacionista para
um ambiente de pluralismo étnico com autonomia participativa. Tal cenário estimulou a
formulação do convênio 169 da OIT, sobre Povos Indígenas e Tribais em Países Independentes
(no Brasil Decreto n. 5051 de 19.04.2004 e na Colômbia Lei 21 de 07.08.1991). O documento,
que substitui o Convênio 107/57 da OIT, privilegia aspectos da subjetividade indígena como a
consciência da identidade como definição de sujeito de direito5. Além disso, o convênio destaca
que deve ser considerada a participação dos povos em decisões, governamentais ou privadas, em
qualquer matéria que possa afetá-los (CONVENÇÃO 169/OIT, art. 6º, 7º; 15).
Segundo o dispositivo, os indígenas devem ter a possibilidade de utilizar, administrar e
conservar os recursos naturais localizados em seu território, mesmo que o Estado tenha a posse
dominial. Por isso deve sempre haver a consulta os habitantes locais, além disso, eles deverão
ser indenizados na medida em que o Estado lhe causem danos. E isso só é possível se os povos
tradicionais possuírem as regulamentações necessárias à propriedade e posse territorial. Assim
reconhece-se a fundamental do índio e seu chão (CONVENÇÃO 169/OIT, art. 14).
Em 2007, a 107ª plenária da Assembleia Geral (AG) das Nações Unidas (ONU)
aprovou a Declaração de Direitos dos Povos Indígenas (DDPI/07). Destaca-se nesse diploma
o direito à autonomia e ao autogoverno dos povos, o que implica em dizer que as comunidades
étnicas são livres para buscar o seu desenvolvimento (DDPI/07, art. 3, 4º) e, inclusive, deve-
se respeitar a justiça comunitária e valores tradicionais das comunidades (DDPI/07, art. 5º).
Dessa forma, há dois instrumentos jurídicos de proteção aos povos tradicionais.
Enquanto a Convenção 169/OIT é um instrumento legal cogente, para seus signatários, a
DDPI/07 ocupa um papel principiológico, sintetizando os debates relevantes, conceitos e
5 O Convênio 169 é muito influente nos países Latinos, especialmente pela recente onda de redemocratização
inspirada em estados sociais. No México, por exemplo, o Convênio baseou os movimentos indígenas criando aporte
jurídico às suas demandas. Houve até mesmo questionamentos à reforma constituinte daquele país a partir de uma
interpretação do acordo (ARELLANO, 2002). Outro exemplo foi na Guatemala. A assinatura do Acordo de Paz
com o governo foi condicionada pelos grupos rebeldes indígenas exigindo a ratificação pelo Estado do Convênio
169. No Chile, por outro lado, a pressão para a ratificação do Convênio (algo que somente ocorreu em março de
2008) funcionou como elemento de articulação interna para as organizações indígenas (MARIOTTI, 2004).
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princípios, sintetizando em seu âmago as demandas das comunidades (LANA et al, 2008, p.
205). Habermas (2003, p. 216) lembra que, se bem que a positivação (de um direito) implique
na diferença entre direito e moral, a fundamentação direta das normas deve ser balizada por
princípios. Em outras palavras, o direito precisa ser justificado no âmbito de uma moral pós-
convencional ou universalista (NEVES, 2013, p. 114). Diante da tensão entre “facticidade” e
“validade” o direito na contemporaneidade perdeu seu fundamento sacro e precisa ser
legitimado por procedimentos de agir racional e que sejam moralmente justificáveis
(HABERMAS, 2000). Nesse caso, a DDPI/07 poderá indicar, por ser um documento-base,
como os atores interessados poderão negociar politicamente com os Estados o provimento de
suas demandas servindo à fundamentação de decisões judiciais e produção legislativa.
2. O desenvolvimento dos fatos sociais: relatos da construção dos casos concretos.
2.1 O processo de demarcação da Terra Indígena (TI) Raposa Serra do Sol e a
complexidade das diversas relações de poder.
Se bem que os primeiros grupos de trabalho, visando a demarcação das Terras
Indígenas (TI) tenham surgido entre as décadas de 70 e 80 (BRASIL, 1996), o processo
demarcatório formal da Raposa Serra do Sol6 tem como marco inicial o ano de 1993, quando
foram dimensionadas suas coordenadas geográficas. A partir desse momento surgiu uma
série de controvérsias que passaram a contestar o procedimento administrativo de
demarcação de Terras Indígenas (TI) no país7, como resposta, o então presidente, Fernando
6 A área denominada “Raposa Serra do Sol” corresponde a uma parcela territorial inteiramente localizada no estado de
Roraima, compreendendo três municípios, Normandia, Pacaraima e Uiramutã. Esse espaço, que equivale a pouco mais
de 7,5% do estado, mede 1.678.000 há (GALAFASSI et al, 2009). Ali é possível encontrar aproximadamente dezenove
mil indígenas, de cinco etnias diferentes (Ingarikó, Makuxi, Taurepang, Wapixana e Patamona) distribuídas em 194
comunidades (GALAFASSI et al, 2009, p. 11). Antes do processo demarcatório, a economia local se baseava na
rizicultura, que ocupava uma área de 100.000 ha. Fontes indicam que 160 mil toneladas de arroz eram produzidas na
região localizada ao sul da reserva, às margens do rio Surumu (FACULDADE GETÚLIO VARGAS, 2009). 7 O fim da década de 80 foi marcado por práticas de governo caracterizadas pela implementação de políticas
desenvolvimentistas na região amazônica. Nesse quadro destacou-se o Projeto Calha do Norte, cuja finalidade
era apresentar medidas de segurança na região ao norte das calhas dos Rios Solimões e Amazonas. No âmbito
dessas políticas, o referido projeto apresentou medidas relacionadas também à política indigenista na região.
Foram eleitas as seguintes áreas como prioridade para as ações do governo: área Yanomami, Alto Rio Negro,
Roraima e a área do Alto Solimões. Em decorrência da implementação do projeto, o governo federal instituiu
dois modelos de demarcação das terras indígenas, conforme o grau de contato: as “colônias indígenas”,
pretendendo estabelecer o convívio entre índios e não índios; e as “áreas indígenas”. As medidas tomadas em
relação aos direitos dos povos indígenas foram duramente criticadas por especialistas, bem como por entidades
da sociedade civil organizada, de vez que havia a suspeita de existirem interesses nessas áreas indígenas em
razão da presença de jazidas minerais (DINIZ, 1994). De toda sorte, uma das consequências do Calha do Norte
foi o decreto 94.976/87 (já revogado) que estabeleceu modelos de demarcação das terras indígenas, inclusive
em parte do territorial hoje chamado de Raposa Serra do Sol (GALAFASSI et al, 2009, p. 20-21).
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Henrique Cardoso (1995-2002), expediu um decreto (1.775/96) que garantiu os princípios
do contraditório e da ampla defesa aqueles procedimentos. Como consequência, no estado
de Roraima, no município de Normandia, fazendeiros e uma mineradora apresentaram 46
contestações8 contra o processo de demarcação (MARCHIONI, 2011, p. 267).
Cada uma das solicitações foi avaliada pela FUNAI, levada até o ministro da justiça
Nélson Jobim (1995-1997), que impugnou a maioria, ressalvando pontos que foram
ajustados9. Essa revisão resultou na diminuição de 300 mil ha. do total original.
Os embates políticos envolvendo as lideranças indígenas que se sucederam após o
despacho somado ao posicionamento favorável do Ministério Público Federal (MPF) e da
Advocacia Geral da União (AGU) criaram uma conjuntura de pressão que estimulou o novo
ministro da justiça, Renan Calheiros (1998-1999), a assinar a portaria nº 820 de 14 de novembro
de 1998, declarando a área como de posse permanente de terras indígenas de área contínua10,
que não foi capaz de apaziguar o ambiente. Os anos subsequentes foram marcados por invasões
por parte de fazendeiros, ampliação de áreas agrícolas e pelo ajuizamento de muitas ações que
atravancavam o processo do Executivo de Constituição da reserva. Essa situação perdurou até o
ano de 2005, quando o chefe do Ministério da Justiça Márcio Thomaz Bastos (2003-2007)
assinou a Portaria nº 534 que, ao revogar a Portaria nº 820/98, procurou sanar as questões
judiciais suscitadas. Em conjunto com essa medida, o Presidente Luiz Inácio Lula da Silva
(2003-2010) publicou o decreto presidencial sem número cujo fito foi homologar a Terra
Indígena (TI). Essa demarcação administrativa estabeleceu a autorização para que fosse criado
o Parque Nacional do Monte Roraima11, qualificado por ser uma área de preservação ambiental
submetido ao regime jurídico de dupla afetação, o que implica em dizer que ao mesmo tempo
em que se destina a realização dos direitos constitucionais dos índios, também realiza a
preservação do meio ambiente, daí admitir uma administração compartilhada, por parte de dois
8 Para verificar o conteúdo de cada uma das contestações, verificar o despacho 080/96 da FUNAI. 9 “Em síntese, o Despacho n. 080/96 estabeleceu, em relação à demarcação anteriormente proposta: (i) a
exclusão das propriedades privadas tituladas pelo INCRA, a partir de 1982, bem como a Fazenda denominada
“Guanabara”, da área da terra indígena; (ii) a exclusão da sede municipal do recém criado município de
Uiramutã e das vilas de Surumu, Água Fria, Socó e Mutum, da área da terra indígena; e (iii) a vedação do uso
exclusivo pelos indígenas das vias públicas e respectivas faixas de domínio público existentes dentro da área
delimitada”. A justificativa para esse redimensionamento foi a necessidade de convergir interesses
concorrentes que são, em medida política e também jurídica necessários para resguardar o interesse público na
região (GALAFASSI et al, 2009, p. 20-21). 10 A área é contínua em regra, mas exceptua o 6º pelotão especial de fronteiras, assim como a sede municipal
de Uiramutã. 11 Houve um acréscimo na área, objeto do decreto ministerial, que passou a ser de 1,74 milhão ha. A justificativa são
correções que puderam ser feitas por novas tecnologias em medição geográfica (BRASIL, 2009).
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órgãos públicos de competências distintas, a FUNAI e o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente
e Recursos Renováveis, IBAMA (MLYNARZ, 2008).
A portaria assegura de forma explícita que, para garantia da segurança nacional, as
Forças Armadas e a Polícia Federal podem ingressar nos territórios em qualquer tempo, sem
solicitar qualquer permissão. Trata-se de um livre trânsito, no acesso das tropas, assim como
implantação de programas e projetos de controle e proteção da fronteira, com a reafirmação
de criação e manutenção de unidades militares (GALAFASSI et al, 2009, p. 31).
A homologação, feita nesses termos, não foi capaz de conformar todas as demandas de
atores sociais envolvidos, especialmente os não-índios, já que o território é o lugar de lutas e
busca da hegemonia por meio das diversas violências. Numa situação de enfraquecimento do
direito, o poder da norma, ainda que contrafactual e chancelado pela força de império estatal,
não é capaz de se fazer eficaz, uma vez que o estado-das-forças comportamentais da sociedade
já se estruturou de modo que apenas a ordem mandamental do Estado não é o suficiente para
o cumprimento, preferindo os atores permanecer na ilicitude. Outro fator que é relevante é a
falta de estabilização de expectativas dentro do próprio Estado, projetando lutas internas dentro
da máquina pública. A FUNAI (Fundação Nacional do Índio) passou a ser impedida, através
de liminares de juízes federais de Roraima, de executar as ações de retirada dos ocupantes não-
índios. Nas hierarquias organizativas, assim como em qualquer texto jurídico, estão em jogo
lutas de poder entre os agentes concorrentes do campo (GARZÓN, 2008, p. 22), nesse passo
a União se vale de sua competência constitucional para demarcar terras. Todavia o Judiciário
local e o estado de Roraima, que também se aparelham nos seus espaços de poder, contestam
essa competência no caso concreto, criando uma verdadeira instabilidade institucional,
fenômeno cada vez mais comum se considerarmos a intenção de cada agente em procurar ser
hegemônico, ainda que independente do cumprimento às regras.
Uma das funções das Cortes é a busca pela universalização, que ocorre pelo processo de
codificação do direito (BOURDEIU, 2007). Nessa conjuntura, os “casos-particulares-do-possível”
servem como parâmetros para contingência de normas gerais. Essa operação se destina à função
precípua do direito que é “confirmar que uma lógica precedente, que liga o presente ao passado e
fornece garantias de que o porvir também será solucionado àquela imagem”12 (MARCHIONI,
2011, p. 284). Nesse contexto, em junho de 2006, o STF considerou-se competente para julgar as
12 Sobre tópico, relevante é fala do então presidente do supremo (2008-2010), ministro Gilmar Mendes
afirmando que o julgamento sobre a demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, não deverá ficar
restrito ao caso específico, mas definirá o futuro da política demarcatória (BRASIL, 2009).
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ações que questionam a demarcação da Terra Indígena, avocando competência exclusiva sobre a
matéria, após a provocação feita pela ação popular 3.388/RR13.
2.2 Entre o mercado e a lei: as disputas simbólicas na Colômbia.
Em 1994 a subdireção de Ordenamento e Avaliação Ambiental, órgão direto ligado ao
Ministério do Meio Ambiente colombiano, emitiu um laudo técnico favorável (nº 90) permitindo
a realização de projetos de pesquisa e exploração no território correspondente aos departamentos
de Boyacá, Arauca e Norte de Santander, localizado no setor norte do país14. Esse laudo
objetivava verificar a existência de jazidas de petróleo. Os procedimentos eram reflexos de
acordos comerciais feitos entre a Sociedad Occidental de Colombia, Inc e a empresa estatal
Ecopetrol. O procedimento, aparentemente, tomado em uma única via, sem qualquer consulta
passou a ser contestado pela comunidade local, a qual afirmava que a permissão deveria ser
avaliada pelas comunidades nativas (OLSEN, 2008, p. 17). O cenário, de protestos enérgicos,
passou a chamar os holofotes internacionais, quando os habitantes ameaçaram suicídio coletivo,
caso as terras ancestrais fossem objeto de violação (VÉASE, 2005, p. 246-266).
Como consequência dos protestos, o Ministério do Meio Ambiente realizou uma
reunião consultiva nos dias 10 e 11 de janeiro de 1995. Segundo os autos do processo, a adesão
das populações locais foi baixa, embora tenham comparecido membros ministeriais e dos
órgãos de controle das empresas envolvidas. Esse fato coloca “em que cheque” a legitimidade
da expedição de quaisquer licenças, em função do baixo quórum de populações locais.
Em setembro do mesmo ano, o caso chegou ao Tribunal Superior de Santafé de Bogotá
(1º instância daquele país), movida por uma ação de nulidade proveniente da defensoria pública.
O tribunal determinou suspensão do ato administrativo que permitia as ações empresariais porque
13 Ação Popular Petição n. 3388. Autor: República Augusto Affonso Botelho Neto (PT-RR), assistido pelo também
Senador Francisco Mozarildo de Melo Cavalcanti (PTB-RR). Re: União e Fundação Nacional do Índio (FUNAI).
Relator: Carlos Britto. Descrição: Ação popular com efeitos jurídicos liminares pleiteando a impugnação da Portaria
MJ n. 534/2005. O autor afirma que a portaria apresenta diversos vícios materiais semelhantes à Portaria 820/98,
representando ofensa aos princípios da razoabilidade, proporcionalidade, segurança jurídica, legalidade e devido
processo legal. O pedido de liminar foi declarado improcedente. O julgamento iniciou em 27 de agosto de 2008, época
em que o relator manifestou-se pela improcedência do pedido de Ação Popular, com a demarcação das Terrar Indígenas
Raposa Serra do Sol em forma contínua, e a consequente extrusão dos não-índios presentes nas áreas. Em dezembro do
mesmo ano o julgamento foi retomado, tendo o ministro Menezes Direito apresentado seu voto vista pela demarcação
contínua das terras da região, contudo, sujeita a dezoito condições. Depois de apresentados os votos de sete ministros,
suspendeu-se o julgamento que retornou em março do ano seguinte (MARCHIONI, 2011, p. 284). 14 O espaço em questão tem características do bioma da Amazônia colombiana, por isso lá há uma quantidade
expressiva de parques naturais e áreas de proteção. O local é o território de um grupo étnico denominado U’wa
tem 208.934 ha. e comporta uma população de mais de 5000 habitantes.
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considerou que o desenvolvimento do país não podia se dar em detrimento das comunidades
tradicionais15. Além disso, a exigência de consulta prévia, disse a corte, seria fundamental, a
inexistência desse processo iria de encontro a normas constitucionais16 e, portanto, anulavam
qualquer ato do poder público, por considerar uma atuação de estado de exceção.
Adotando uma posição diversa, a Corte Suprema de Justiça (segunda instância),
revogou a decisão, por não considerar a inexistência de consulta prévia um atentado
fundamental à vida. Além disso, o Conselho de Estado17 considerou as audiências
promovidas nos dias 10 e 11 de setembro de 1995 como válidas, fato que supre as demandas
jurídicas por participação. Como a questão suscita importantes direitos constitucionais
fundamentais, a Corte Constitucional foi provocada, através de uma ação de nulidade, pelo
Defensor do Povo, Jaime Córdoba Triviño, representando Grupo étnico Indígena U’WA,
contra o Ministério do Meio Ambiente e a empresa Occidental de Colômbia, Inc.
3. Stphen Toulmin: da teoria da argumentação ao caso concreto
O lugar da decisão jurídica é caracterizado pela pretensão à neutralização em relação
aos interesses equipolentes. Naquele campo onde se mediam conflitos aparentemente
irreconciliáveis, hard cases, acabam sendo reguladas soluções (veredictos), legitimadas
socialmente pelo cumprimento procedimental das regras do jogo.
15 Na visão do tribunal de primeira instância “El proyecto de exploración, y eventual futura explotación, de
hidrocarburos en zona geográfica nacional que comprende territorios reservados para el hábitat de comunidades
indígenas natural y previsiblemente ha de tener importantes y profundas consecuencias en la ecología, la
cultura, la economía y el ordenamiento social de aquéllas pues no resulta difícil vaticinar que los trabajos que
se realicen no sólo afectarán la estructura geológica de esos territorios y la fauna y flora que allí se dan sino
que causarán impacto en las costumbres, la lengua, las tradiciones, la cosmovisión y las instituciones familiares
y tribales porque no en vano se produce el encuentro de una cultura y una civilización con otras (COLÔMBIA,
1997)” A reprodução desse trecho sintetiza o argumento contrário em relação a deterioração da comunidade,
os defensores do povo que argumentaram e a literatura utiliza argumentos na mesma linha de raciocínio. 16 Os artigos constitucionais mais relevantes à decisão nesse sentido foram os art.7º, art.8º, art.14, art. 40, art.79,
art. 330. Esses artigos reconhecem e protegem a diversidade político cultural, garantem um ambiente saudável
às populações indígenas e estabelecem os procedimentos para consulta e informação resguardando o
autogoverno e autodeterminação. 17 É integrado por conselheiros-magistrados e desempenha as funções do Supremo Tribunal e atua como supremo
corpo consultivo do governo em assuntos de administração, dirigido em salas e seções. Além disso, apresenta e
elabora projetos de reforma da Constituição e de leis; assessora o governo em relação com os atos diplomáticos e
administra justiça. Ainda realiza algumas atividades em comum com a Corte Constitucional, o Conselho Superior
da Judicatura, a Corte Suprema de Justiça e a Fiscalização Geral da nação (COLOMBIA, 1991).
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No caso em tela, durante a decisão da Suprema Corte do Brasil, pode-se constatar até
certa unanimidade em relação à legalidade do processo demarcatório18. Houve uma anuência
dos ministros sobre o fato de que o modelo de demarcação encampado pelo presidente Lula
não gerou riscos a soberania estatal. Mas o voto triunfante foi aquele proposto pela tese do
ministro Menezes Direito que confirmou, por um lado, a regularidade do processo
demarcatório, todavia, por outro, impôs 18 condicionantes que, segundo o ministro, foram
fundamentais para assegurar o interesse público sobre o território que, resguardadas as
devidas proporções, pertence a União.
Como esse voto foi seguido pela maioria dos membros da corte, é sobre ele que se
pesará a avaliação. No referido voto, a fundamentação baseada em normas de direito
internacional se concentraram em quatro páginas e buscaram funcionar como avais para a
conclusão, que ao final resumiu-se nas 18 condicionantes. Esses avais, sob a ótica da
metodologia do “leyout de argumentos” de Stephen Toulmin (2006, 148-149) são chamados
de “apoios” ou “backing”. A função deles é mostrar que as proposições argumentativas são
pertinentes e gozam de legitimidade perante o auditório (TOULMIN, 2006, p. 141-142). Os
artigos da Convenção 169/OIT, utilizados como apoio, são similares aqueles encontrados na
Constituição Federal, sobre a mesma matéria, fato que foi reconhecido pelo ministro19. Noutra
face, a DDPI/07, ainda que aderida pelo Estado brasileiro, foi desvalida pelo magistrado20.
18 Sobre as falas dos ministros teremos “quando o estado de Roraima foi criado, os indígenas já ocupavam as
terras objeto da presente demarcação” (Min. Lewandowski). Assim “a posse dos indígenas é remota e
incontestável” (Min. Eros Grau). É daí que “a demarcação não exclui a presença do Estado brasileiro” (Min.
Carmen Lúcia). Nesse contexto o “Estado brasileiro deve se mobilizar para o pagamento de uma dívida ancestral
que o país tem com a população indígena” (Min. Ellen Gracie e Min. Peluzo) (MARCHIONI, 2011, p. 285). 19 Em relação a Convenção 169/OIT, os artigos utilizados pelo ministro foram: art. 2 §1, art. 5 (a), art.7 §4, art.
14 § 1 e 2, art. 15 §2 e art. 16 §1. Os artigos escolhidos pelo Ministro de fato têm similaridade com os art. 231
e 232 da CF/88, todavia acreditamos que a comparação é simplória tendo em vista que a Convenção 169/OIT
é muito mais abrangente em relação a quantidade de direitos e específica em relação ao objeto jurídico. Os
próprios artigos citados contemplam mais conteúdo do que pode ser encontrado na CF/88, então afirmar que
eles se equivalem, quanto ao volume de conteúdo, não nos parece a interpretação mais coerente. 20 Para justificar o rechaço da DDPI/07 o ministro afirma que ela é ambígua quando se trata de direitos de propriedade
territorial. Segundo o magistrado, o documento tem forte conotação política e, se levado às últimas consequências, não
se alinha com os princípios topográficos constitucionais e ameaça a unidade nacional. Por essa razão, ele justifica que
Estados como Austrália, Estado Unidos, Canadá e Nova Zelândia não a assinaram. O Min. Menezes Direito afirma que
os art. 32 e o art. 36, § 1, do DDPI/07, desprezam as fronteiras, de modo que a ambiguidade textual pode levar, por
alguns radicais, a pensar que os povos indígenas vão em “[...] direção a uma autonomia frente ao Estado do qual são
súditos (grifo nosso)”. Ainda não fugiu da apreciação do magistrado que a comunidade internacional não mediria
esforços para fazer valer direitos de propriedade indígenas, independente de como estejam colocados nas constituições
domésticas, assim como já tem feito a Corte Interamericana de Direitos Humanos (Caso Awas Tingni vs. Nicarágua).
Após exprimir suas temeridades, o Min. Menezes Direito esvaziou o conteúdo jurídico de obrigatoriedade da DDPI/07,
afirmando que o documento supracitado não poderia se categorizar na classificação de normas de direitos humanos
recepcionadas pela Constituição Federal, porque não foi integralizado pelos procedimentos adequados, como bem
elenca o art. 5 § 3º (após a emenda 45/2004) da Carta. Assim ele mostra-se “convencido que não é possível qualificar a
DDPI/07 como um instrumento normativo de Direito Internacional”, porque é uma resolução resultante de assembleia
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Noutro lado, o voto colombiano, diferente do brasileiro, é unificado. A decisão
corresponde à vontade da corte, não havendo diferenciação entre os argumentos individuais.
Todavia, quando o magistrado faz considerações personalíssimas relevantes, ela pode
aparecer anexa à decisão colegiada. Assim é possível fazer a análise de toda norma, não
apenas de parcela dela. A decisão da Corte constitucional inclinou-se à confirmação daquilo
que já tinha sido proferido pelo Tribunal de Primeira Instância.
Para a Corte Constitucional da Colômbia, a convenção 169/OIT (internalizada pela
lei 21/1991) tem status de norma constitucional, sendo parâmetro, inclusive, para bloqueio
de constitucionalidade. Nesse âmbito, a norma internacional tem uma função integrativa, de
soma à Carta Política (COLÔMBIA, 1991). Nas palavras da Corte, as normas constitucionais
são reforçadas pelas internacionais (COLÔMBIA, 1997, p. 20). É uma situação diferente
daquela encontrada no Brasil, onde a Convenção 169/OIT, aparentemente, não apresenta
relevância no cenário normativo interno, pois, segundo o magistrado Menezes Direito a
Constituição já abarca tudo aquilo que dito por ela, não significando novidade alguma
(BRASIL, 2009, p. 395-399). Em outras palavras, para o colegiado constitucional da
Colômbia, artigos constitucionais que são refletidos pela norma de direito internacional são
contidos de uma força semântica que precisa ser levada em consideração. Por isso os artigos
da Convenção 169/OIT utilizados como apoio21, no caso da Colômbia, não se confundem
com os artigos constitucionais utilizados da mesma forma, assim, há dois apoios que operam
diferentemente, mas com um único objetivo que é o reconhecimento dos direitos indígenas.
Em resumo, a utilização da norma internacional, no voto do ministro brasileiro foi
meramente ilustrativa, pois ao dizer que os dispositivos internacionais não significam
nenhuma novidade (porque já são contemplados pela Constituição) o Min. Menezes Direito
está aplicando apenas a própria Constituição e informado que a Convenção 169/OIT é
desnecessária. Como em seguida informou que a DDPI/07 não é pertinente ao caso, pois
falta-lhe carga jurídica, podemos inferir que o caso da Demarcação de Terras Raposa Serra
do Sol não teve nenhuma observância às regras de Direito Internacional, sendo nenhuma
e, segundo o autor citado Ian Brownilie, esses documentos não são vinculantes, antes servem para evidenciar
manifestações dos Estados rumo ao progresso de direitos. Para finalizar, informa que o art. 38 do Estatuto da Corte
Internacional de Justiça não menciona resoluções da assembleia geral como normas de direito. Por todos esses
argumentos ele informa que a DDPI/07 dos povos indígenas carece de ausência de integração porque é baldia de força
vinculante, por si só, como fonte de direito internacional (BRASIL, 2009). 21 Os artigos utilizados como apoio foram os art. 6, 7 e 15 da Convenção 169/OIT.
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delas utilizadas para apoiar o acórdão do Brasil, como visto, no caso colombiano em questão,
a situação foi formulada de maneira diversa.
Considerações Finais: todos somos intérpretes da constituição?
No Ocidente, a pós-modernidade está vinculada ao modelo de Estado Democrático de
Direito, lastreado pelo ordenamento constitucional que o dá validade. Trata-se de um processo
cíclico e lógico, no qual as condições do regime político dependem da estabilidade do respeito
às regras do jogo e vice-versa. Nesse sistema, as Cortes têm um papel fundamental à medida
que traz luz para os casos concretos à aplicação do direito por meio da interpretação judicial.
Todavia, o sistema jurídico não é monádico, portanto é influenciado e reproduz as lógicas e os
padrões que tendem a obedecer a interesses dos atores que dominam as forças do direito. Por
outro lado, também é verdade que o direito criou a humanidade o escape necessário a uma
convivência mais harmônica diante das grandes crises e revoluções, não é difícil esquecer que
é provável que os direitos trabalhistas conquistados pelo que Karl Marx chamou de
proletariado pode ter evitado suas previsões apocalípticas em relação ao Capitalismo. De todo
modo, o direito e a democracia, a arena do discurso, a racionalidade argumentativa, a defesa
da opinião contrária, nada mais significam do que a ratificação de que vivemos em uma
atmosfera social capaz de se modificar a partir dos acontecimentos históricos. Assim
indagamos: nos dias atuais, até que ponto as Cortes Constitucionais são – de fato – as únicas
e últimas intérpretes da Constituição? Pelo método de Toulmin pudemos questionar se a Corte
Brasileira aplicou adequadamente as normas de direitos humanos em matéria de defesa dos
povos indígenas. A partir da negativa, indaguemos: se o judiciário nesse hard case decidiu
adverso aos direitos dos povos, o que garante que ele não agirá da mesma forma em relação a
outros direitos humanos? O voto brasileiro, diferente do colombiano, utilizou como rationes
decidendi normas pátrias e que, nesse caso, limitam direitos já conquistados na seara
internacional. A Corte da Colômbia, de outro modo, ampliou as esferas de direito, por meio
do que Neves (2009) denomina como “transconstitucionalismo”, que seria a troca e influência
recíproca (pontes-de-transição) entre os ordenamentos internacionais e domésticos. Questões
constitucionais muitas vezes fogem a rigidez dos códigos, exigindo a interdisciplinaridade para
que as decisões mais adequadas sejam dadas. E são essas análises mais complexas que
subsidiam respostas mais adequadas para problemas morais da sociedade, como casamento de
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pessoas homoafetivas, autonomia da mulher frente ao aborto ou a descriminalização do uso de
drogas. Um exemplo mais alinhado às questões econômicas é a consagrada proliferação do
argumento da “reserva do possível”, muito comum quando o poder público se esquiva de
prover os serviços públicos de sua incumbência atestando não ter verba o suficiente. Esses
fatos apenas demonstram que o judiciário, embora afirme quase sempre o contrário, recebe
influências capazes de interferir em suas decisões. O veredicto é parte das atribuições de um
poder, não inerte e não irreflexivo. Assim, deve-se desmistificar o entendimento de que o
argumento do judiciário, especialmente do “Colegiado Constitucional” ao priorizar a técnica
da lei não é capaz de conter outros argumentos fora desse sistema. Assim, quando é necessário
compreender questões que o direito per si é incapaz de trazer respostas, isso precisa ser
levantado e não apenas como apoios deslocados. A relação do povo indígena com o seu solo
é, também, uma questão antropológica e argumentos dessas áreas precisam ter espaço dentro
da decisão. À medida que problemas complexos fossem lidos sob uma lupa com mais
variáveis, respostas mais eficientes poderiam ser tomadas, inclusive para solucionar decisões
que, embora sejam positivas, do ponto de vista da concessão de direitos, não podem ser
realizadas, porque o estado-das-coisas, em concreto, não cria o ambiente de possibilidades
para que o poder público densifique sua vontade. Decisões como a colombiana, que procurou
levar em consideração outras variáveis, dentre elas, a necessidade social dos habitantes de
decidir sobre seu próprio território cria às normas o caráter de universabilidade, isso é,
cristaliza o direito e amplia o grau de previsibilidade necessária, inclusive, a estabilização de
expectativas tão almejada pela ordem jurídica.
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OUTROS POSSÍVEIS MODOS DE HABITAR PROFISSIONALMENTE O PODER
JUDICIÁRIO
Anne Karoline Ferrari Salazar Mestre em Psicologia Institucional pela UFES. Assistente Social no TJ/ES.
Gilead Marchezi Tavares Doutora em Psicologia pela UFES. Professora Associada do Departamento de Psicologia e do
PPGPI da UFES.
Resumo: partindo do resgate histórico sobre as formas jurídicas e problematizando como a
judicialização de acontecimentos cotidianos tornou-se o signo de nossa organização social, a
dissertação de mestrado que dá origem a este artigo propõe-se analisar o modo pelo qual as práticas
de assistentes sociais e psicólogos atuantes no campo sociojurídico capixaba vêm se constituindo e
revelar os outros possíveis modos de habitar profissionalmente esta esfera de poder. Serviram de
campo de investigação da pesquisa os espaços institucionais destinados à interlocução e à formação
continuada dos profissionais e o próprio dia a dia da pesquisadora atuando nas Varas de Família e
Sucessões de Vitória. Nossa principal ferramenta de investigação foi o diário de campo, cujos
registros de narrativas, posições políticas, sentimentos e dificuldades, não só dos profissionais com
quem trabalhamos, mas também da própria pesquisadora, possibilitaram-nos a apreensão de
analisadores em plena operação. Desse modo, utilizando os conceitos-ferramenta da Análise
Institucional, partimos de analisadores que desvelavam tanto os modos de funcionamento instituídos
naquele espaço laboral, quanto provocavam a desestabilização do saber-poder daquelas categorias
profissionais, descortinando as formas de resistência que têm sido forjadas em favor de uma postura
ético-política de defesa da vida em meio a sua recorrente judicialização.
Palavras-chave: campo sociojurídico; práticas jurídicas; judicialização da vida.
Abstract: From the historic rescue of the legal forms and questioning how the legalization of regular
events has become the sign of our social organization, the dissertation that gives rise to this article
aims to analyze the way in which practices of social assistants and psychologists working in
Capixaba's social-juridical field have been constituting and show other possible ways of
professionally inhabit this sphere of power. The institutional spaces designated for interlocution and
continuing education of the professionals and also the daily work in Vitoria’s Family and Probate
Court were the research field. Our main research tool was the field journal, in which the registers of
narratives, political views, feelings and difficulties, not only the professionals with whom we work,
but also the researcher, allowed us to capture analyzers in full operation. Thus, using the concepts-
tool of Institutional Analysis, we start with analyzers that unveiled both operating modes established
in that work space, as caused the destabilization of knowledge-power of those professional
categories, revealing the forms of resistance that have been forged in favor of an ethical-political
stance in defense of life in the midst of its recurring judicialization..
Keywords: socio-juridical field; legal practices; judicialization of life.
Apresentação
A dissertação de mestrado que dá origem a este artigo é resultado de indagações em
torno do que conta a história do judiciário como um espaço laboral do serviço social e da
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psicologia, pretendendo, nessa medida, amplificar o modo de compreensão das práticas dessas
categorias profissionais na instituição Poder Judiciário a partir das múltiplas realidades e
verdades enredadas nas histórias que seu fazer profissional cotidianamente sistematiza.
Em tempos de maciço alargamento da importância conferida à dimensão jurídica no
cotidiano das práticas profissionais, problematizar o Poder Judiciário, como estrutura de
manutenção do status quo, torna-se fundamental ao desafio de efetivação dos projetos ético-
políticos das categorias profissionais em tela. Nesse sentido, é indiscutível a necessidade de
compreender que as demandas apresentadas como jurídicas se inscrevem no bojo da necessidade
de controle e manipulação da realidade, e correspondem aos interesses dominantes em vigor.
Torna-se comum, assim, a formulação de requisições aos profissionais do serviço
social e da psicologia, inscritos no campo sociojurídico, em favor de atuações de cunho
tecnicista e cientificista que possibilitem a compreensão da realidade, frequentemente
auferida pelo direito a partir de avaliações e intervenções guiadas por modelos idealizados
pela sociedade burguesa. É desafiador, desse modo, manter um fazer profissional que não
incorpore verdades jurídicas, que representam, na maior parte das vezes, interesses políticos
incompatíveis com os compromissos éticos e políticos de assistentes sociais e psicólogos.
1. O aporte teórico-metodológico
No bojo do que se apresenta como características natas ao judiciário como espaço
laboral de assistentes sociais e psicólogos, a dissertação comprometeu-se com a
imprescindível “crítica daquilo que somos”, e buscou recorrer a acontecimentos como forma
de demarcar diferentes experiências históricas, elucidando o jogo de forças desses
profissionais e de suas práticas. Para tanto se tornou imprescindível a demarcação do aporte
teórico-metodológico da Análise Institucional e dos conceitos-ferramenta utilizados por ele,
que sustentaram o processo de pesquisa e sua sistematização. Convém explicitar a noção
foucaultiana de prática, recuperada por Veyne (1998) e descrita por Cardoso Júnior (2005)
como o que permite delinear, no plano discursivo, a diferença temporal de um acontecimento
e a operação conceitual a que a ele se destina, expressando
[…] aquilo que os homens efetivamente fazem, não aquilo que eles pensam
a respeito do que fazem. Mais ainda: prática é o fazer que se reitera em
toda uma série de acontecimentos, disto derivando sua maneira de ser
oculta, disto derivando sua raridade (CARDOSO JÙNIOR, 2005, p. 108).
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Conforme Cardoso Júnior (2005), se as práticas definem acontecimentos históricos,
ao mesmo tempo em que se constituem como configurações históricas determinadas, a
pergunta sobre elas deve sempre aguçar a capacidade de visão, já que as práticas também
permitem estranhar o mundo, conduzindo à sua interrogação. Desse modo, a requisição
judicial pela atuação técnico científica de assistentes sociais e psicólogos parece disparar
nestes profissionais a “[...] necessidade de se analisar os vínculos afetivo libidinais, políticos,
profissionais e institucionais [...]” (COIMBRA; NASCIMENTO, 2007, p. 27), das práticas
no campo sociojurídico.
Alimentadas pelo cotidiano de excessivas tarefas a acumularem-se, e da imperiosa
necessidade de respostas técnicas céleres, algumas práticas de sobreimplicação1 têm sido
potencializadas pela ausência de espaços coletivos capazes de fomentar a constante análise
das práticas e seus efeitos no judiciário capixaba. Tal ausência de espaços coletivos de
discussão contribui para a conservação das dificuldades em desnaturalizar, como assinala
Prado Filho (2012a), as obviedades inquestionáveis do cotidiano, assim como limita a
construção de possibilidades favoráveis ao abrir-se ao encontro com o outro (seja ele um
outro profissional, um outro usuário, uma outra instituição).
A recente constituição de grupos de trabalho dedicados às diversas matérias do
judiciário capixaba nas quais se inscreve a atuação dos profissionais de serviço social e
psicologia pode, no entanto, tornar-se um dispositivo potente para a percepção da realidade
como constante produção, para a interrogação da realidade que as práticas no campo
sociojurídico têm produzido, podendo revelar-se, enfim, “[...] um dispositivo de intervenção
que se faz com o outro na medida em que é construído em articulação com aquilo que
interessa ao outro [...]” (MORAES, 2010, p. 30).
Assim, entendemos que colocar em análise a atuação desses profissionais no campo
jurídico é, exatamente, inventar junto com eles modos de exercitar criticamente o olhar sobre
o cotidiano das práticas que operam no espaço do judiciário sob a lógica da fiscalização, do
julgamento e da punição, afirmando a defesa da legalidade ao promover o efeito ameaçador
do policiamento mútuo, fundamental ao funcionamento da sociedade em tempos de
1 A sobreimplicação, conceito ferramenta desenvolvido por Rene Lourau, pode ser compreendida como o
conjunto de práticas sobre o qual a análise é realizada de forma isolada por meio da referência a um único
nível, a um só objeto, o que torna impossível que outras dimensões possam ser problematizadas, pensadas, e
multiplicidades se façam presentes neste processo. Para Coimbra e Nascimento (2007, p. 27), “[...] é a crença
no sobretrabalho, no ativismo da prática, que pode ter como um de seus efeitos a dificuldade de se processar
análises de implicações [...]”.
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biopoder. Analisar as práticas, neste trabalho, diz respeito, portanto, à abertura de um campo
sensível capaz de apreender os acontecimentos que podem fazer irromper novas práticas.
Apostando que o “estar com” possa atravessar o dia a dia das práticas no espaço do
judiciário, favorecendo uma nova ação política, a dissertação pretendeu discutir as práticas
dos profissionais de serviço social e psicologia nas Varas de Família e Sucessões do
judiciário capixaba. Na busca por alcançar o objetivo do trabalho, elegeu-se como campo
prioritário de investigação as reuniões da Comissão Temática na Área de Família, instituída
a partir das alterações no regimento interno do Fórum dos Assistentes Sociais do Poder
Judiciário do Estado do Espírito Santo.
2. O campo e a análise
As reuniões mantiveram-se como campo de investigação da pesquisa, assim como a
aposta metodológica de que um diário compartilhado pudesse favorecer as discussões e a
produção cooperativa da pesquisa. Também serviram de sustentação aos registros
sistematizados no diário de campo as experiências profissionais da pesquisadora no
cotidiano do judiciário capixaba. A organização do diário de campo se deu pela afetação
produzida pelas práticas institucionalizadas; pelas práticas derivadas das novas requisições
judiciais; pelas estratégias forjadas individualmente ou coletivamente em meio a rotina de
trabalho, tornando-se o registro das impressões de sentimentos da pesquisadora tão
importante quanto o registro dos diálogos que mantinha com os demais assistentes sociais e
psicólogos do campo sociojurídico, com os demais serviços da rede formatada pelas políticas
públicas do município de Vitória e com as demais categorias profissionais (professores,
pedagogos, agentes comunitários de saúde, terapeutas ocupacionais, enfermeiros, médicos,
etc.) que atravessaram o cotidiano profissional e, assim, o campo de investigação da
pesquisa. A intenção da construção coletiva desse instrumento de pesquisa norteou-se pela
proposta metodológica de “pesquisar com o outro e não sobre o outro”.
Do mesmo modo, nos propusemos a realizar o resgate da pesquisa histórica ordenada
por Foucault em torno das formas jurídicas para instrumentalizar a apresentação do campo
de análise da dissertação, a judicialização da vida, e das histórias que assistentes sociais e
psicólogos inscrevem no campo sociojurídico a partir de suas práticas. Aplicando-a ao
contexto das práticas profissionais de assistentes sociais e psicólogos desempenhadas no
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campo jurídico, torna-se imprescindível recuperar a análise de Foucault (1995) em torno das
relações de poder constituídas nos espaços institucionais fechados.
Isto implica na observação de fatores importantes, como os mecanismos de poder
que a instituição aciona para assegurar sua própria conservação, criando relações de poder
de caráter essencialmente reprodutor, e do hábito de se analisar as relações de poder a partir
da instituição, de sua origem e função quando, na realidade, o que se torna necessário é que
se parta da análise das relações de poder que a instituição abriga.
A mudança do foco de análise sobre as relações de poder nos espaços institucionais
proposta por Foucault (1995) é defendida como essencial para minimizar o risco de se
compor formulações que apontem, exclusivamente, para “modulações da lei e da coerção”.
Pensar as estratégias de luta às relações de poder inerentes à atuação profissional do serviço
social e da psicologia na instituição judiciária implica, portanto, na análise da ação tomada
sobre a ação possível, ou seja, a análise dos mecanismos utilizados por ambos (instituição e
categorias profissionais) nas relações de poder que estabelecem.
A dissertação pretendeu, desse modo, explorar, a partir dos analisadores2 que
emergiram no percurso da pesquisa, as estratégias construídas pelo serviço social e
psicologia do judiciário capixaba em favor de movimentar experiências que ultrapassem o
esperado alinhamento de suas práticas com a moralização, a culpabilização e a
criminalização dos conflitos familiares sobre os quais são chamados a formular um saber.
Pretendeu, ainda, como estabelece Souza Filho (2008, p. 22), “[...] dar ênfase na escuta de
saberes singulares, dos testemunhos de experiências específicas das pessoas [...]”, dar
visibilidade aos desdobramentos de suas atuações e invenções.
Nesse sentido, a articulação do nosso campo de análise3 – a judicialização da vida –
e do campo de intervenção – as práticas profissionais de assistentes sociais e psicólogos nas
Varas de Família e Sucessões do judiciário capixaba – pautou-se na compreensão de que
para experimentar é preciso construir um modo de permanecer como parte integrante do
2 Os analisadores são compreendidos como situações concretas, tensões, conflitos e/ou mudanças que
perpassam a instituição, a oferta profícua de elementos que possibilitarão a análise, tomando por referência a
disposição de Lourau, para quem o analisador é o que “[…] permite revelar a estrutura da instituição, provocá-
la, forçá-la a falar […]” (LOURAU apud L’ABBATE, 2012, p. 205). 3 Torna-se indispensável demarcar os conceitos atribuídos por Baremblitt (2002) ao “campo de análise” e ao “campo
de intervenção”. O primeiro corresponde ao “recorte” da vida social que se delimita para, a partir dos conceitos-
ferramenta do Institucionalismo, buscar a compreensão de suas causas, suas determinações, o modo pelo qual opera e
os efeitos que gera. O segundo corresponde ao âmbito que se delimita para que sobre ele recaiam as estratégias a serem
planejadas, os meios de gestão e operacionalização a serem forjados em favor de sua efetiva transformação.
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processo que demanda intervenção. Buscando estranhar domínios de referência teórico-
metodológica e técnico-operativa tornou-se, desse modo, fundamental colocar em cena a
experimentação de um modo de produção de conhecimento no encontro com outros atores e
com outros saberes, que auxiliava a descoberta dos possíveis caminhos a serem percorridos
para que novas formas de habitar o campo sociojurídico fossem inventadas.
O processo de pesquisar com o diário de campo permitiu narrar histórias de vidas
atravessadas pela intervenção do Poder Judiciário, braço do Estado a quem compete a
sentença sobre suas dinâmicas conflituosas, e possibilitou, com isso, um olhar sensível para
cenas geralmente desfocadas pelo “tarefismo” cotidiano de assistentes sociais e psicólogos
trabalhadores do Poder Judiciário. Desse modo, ao dar visibilidade àquilo que estava no
ponto cego dos profissionais, os analisadores que emergiram espontaneamente na pesquisa
propiciaram ampliar a discussão das práticas de assistentes sociais e psicólogos no campo
sociojurídico, apontando para um trabalho cotidiano de progressiva formulação de
alternativas inventivas e avaliação crítica da realidade.
Considerações Finais
A investigação dos modos pelos quais as práticas têm sido compreendidas e
apropriadas e o que disparam com sua execução é o que nos permite provocar o
tensionamento de saberes, poderes e verdades, desnaturalizando as práticas postas em análise
e contribuindo para o desvelamento de caminhos de resistência ao instituído. Nessa
perspectiva, nossa análise sobre as práticas no campo sociojurídico convergiu com o trabalho
de Vasconcelos e Morschel (2009) em torno da inexistência da formulação de políticas que
sejam boas ou que sejam ruins em si mesmas mas que colocam em operação movimentos
instituintes que imputam diferenciação, transformação e ampliação dos sentidos, permitindo
assim a produção de novas realidades.
De maneira semelhante, a dissertação alinhou-se com a aposta de Neves e Heckert
(2007) de que as atuações coletivas de formação e de expansão de redes revelam-se
dispositivos potentes à desestabilização de processos instituídos, promovendo movimentos
afirmadores de vida. O aquecimento, a construção e a expansão de redes no judiciário
permitem a problematização de saberes-poderes, o compartilhamento de experiências e a
deflagração de estratégias de atuação frente aos desafios colocados pelo modo de
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funcionamento das instituições. A aposta em práticas pautadas na composição de redes
pressupõe corresponsabilizações pela pactuação coletiva na produção de novos possíveis,
desvia-se de prescrições e abre-se ao imprevisível da experiência (NEVES; HERCKET,
2007). Essa conjuntura permitiu considerar que nossa pesquisa contou histórias em
permanente produção e, portanto, distantes de uma verdade única e de um final categórico.
Este trabalho acredita na potência que os espaços de formação e interlocução, como
os das Comissões Temáticas, que serviram de campo de investigação da pesquisa, contêm
para impulsionar análises sobre os processos de trabalho de assistentes sociais e psicólogos
no campo sociojurídico que possibilitem “[...] perceber não somente o que foi feito, mas
como foi feito, o que se deixou de fazer, o que foi desfeito e o que não se conseguiu fazer”
(NEVES; HECKERT, 2007, p. 5). Acredita, ainda, que se trata de perceber, como propõem
Lazzarotto e Carvalho (2012, p. 27) “[...] que nossas questões são feitas de vidas”, e que
nossas práticas podem contar histórias que suscitem e garantam a ampliação da vida.
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A ARQUITETURA DA VULNERABILIDADE: A ESTRUTURA DAS INSTITUIÇÕES
DE ACOLHIMENTO E OS DIREITOS DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE
Alessandra Dale Giacomin Terra Professora da UFRJ e Mestre pelo PPGSD/UFF com bolsa CAPES.
Bárbara Terra Queiroz Graduada em Direito pela UVV e Bolsista de Iniciação Cientifica pela FAPES.
Lílian Cazorla do Espírito Santo Nunes Professora do Centro Universitário UniCarioca e Mestre pelo PPGDC/UFF com bolsa CAPES.
Thiago Guerreiro Bastos Mestre pelo PPGDC/UFF com bolsa CAPES.
Resumo: A presente pesquisa tem por objetivo refletir sobre a atual estrutura física das instituições
de acolhimento, outrora denominadas orfanatos, e sobre como tal arquitetura pode afetar o
desenvolvimento psicossocial das crianças e adolescentes ali abrigados. Tal questão ganha
importância a partir da adoção da doutrina da proteção integral inaugurada pela nova ordem
constitucional e consolidada pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). A partir desta
pesquisa, formulou-se o conceito de arquitetura da vulnerabilidade a fim de destacar o papel que a
ambiência possui no processo de desenvolvimento do público infanto-juvenil. O presente artigo parte
da aplicação de uma Avaliação Pós Ocupação (APO) em uma unidade de Abrigo Institucional
localizada no Município de Cariacica no Estado do Espírito Santo, à luz da doutrina da proteção
integral, inaugurada no ordenamento jurídico brasileiro pela Constituição de 1988 e consolidada pela
edição do Estatuto da Criança e do Adolescente, e tem como marco teórico a doutrina de Pierre
Bourdieu sobre como a arquitetura, em que esta, apesar de constituir uma potencial ferramenta de
desenvolvimento psicossocial, muitas vezes acaba sendo um instrumento de exclusão, reforçando a
situação de vulnerabilidade vivenciadas por milhares de menores que hoje residem em abrigos
institucionais. Para desenvolver esta pesquisa, adotou-se metodologia empírica, com levantamento
de bibliografia interdisciplinar nas áreas do Direito, Arquitetura e das Ciências Sociais. Concluiu-se
que pela necessidade de aperfeiçoamento de tais ambientes a fim de assegurar o conforto e bem estar
das crianças, garantindo seu desenvolvimento saudável.
Palavras-chave: políticas públicas; Direitos da Criança e do Adolescente; vulnerabilidade.
Abstract: This research aims to reflect on the current physical structure of the host institutions,
formerly called orphanages, and how such architecture can affect the psychosocial development of
children and adolescents housed there. This issue gains importance from the adoption of the doctrine
of full protection inaugurated by the new constitutional order and consolidated by the Child and
Adolescent Statute (ECA as known in Portuguese). From this research, we formulated the concept of
architecture of vulnerability in order to highlight the role that the ambience has in the development of
children and youth public. This article presents the application of a Post Rating Occupation (APO) in
an Institutional Shelter located in Cariacica Municipality in the State of Espírito Santo, in the light of
the doctrine of full protection, inaugurated by the Brazilian legal system in the 1988 Constitution and
consolidated by the Statute of Children and Adolescents, and its theoretical framework is the doctrine
of Pierre Bourdieu that explains how the architecture, in this, although it is a psychosocial development
potential tool, often ends up being an instrument of exclusion, reinforcing the vulnerability experienced
by thousands of children currently residing in Institutional Shelters. To develop this research, we
adopted empirical methodology, with a survey of interdisciplinary literature in the fields of law,
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architecture and social sciences. It was concluded with the need for improvement of such environments
to ensure the comfort and well being of children, ensuring their healthy development.
Keywords: public policy; Rights of Children and Adolescents; vulnerability.
Introdução
O presente artigo tem por objetivo refletir sobre a atual estrutura física das instituições
de acolhimento, outrora denominados orfanatos, e sobre como tal arquitetura pode afetar o
desenvolvimento psicossocial das crianças e adolescentes ali abrigadas. Tal preocupação com o
bem-estar do público infanto-juvenil ganhou importância após a adoção da doutrina da proteção
integral inaugurada pela nova ordem constitucional e consolidada pelo Estatuto da Criança e do
Adolescente (ECA) e por diversos tratados internacionais do qual o Brasil é signatário.
A pesquisa foi desenvolvida a partir de metodologia empírica com a utilização de
Análise Pós-Ocupação de uma instituição de acolhimento, visitas in loco, análise de
documentos, normas técnicas e da bibliografia básica sobre o tema. Justifica-se pela necessidade
de aperfeiçoamento dos ambientes destinados a acolhimento de crianças e adolescentes afastadas
do convívio familiar, de modo que estes assegurem conforto e bem-estar necessários para seu
saudável desenvolvimento, bem como permita a integração com as famílias e a comunidade.
Conforme levantamentos do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), mais
de 30.000 crianças e adolescentes no Brasil encontram-se afastados de seu convívio familiar e
inseridos em instituições de acolhimento. Dentre os inúmeros motivos que levam o
encaminhamento destes aos serviços de acolhimento, destacam-se como as principais causas:
a negligência dos pais e/ou responsáveis, o abandono; a pobreza das famílias; a dependência
química; o abuso sexual; a violência doméstica; a vivência de rua; a orfandade; entre outros1.
A infância e a adolescência são importantes períodos de desenvolvimento e de
construção do sujeito. A qualidade dos cuidados nessa época, nos aspectos físico e afetivo-
social, proporcionam o crescimento e amadurecimento sadio. O ambiente habitacional torna-
se importante tão quanto as relações afetivas e estimulantes dos moradores, assegurando
sensação de acolhimento, bem-estar e segurança.
1 CONSELHO NACIONAL DO MINISTÉRIO PÚBLICO (CNMP). Relatório da Infância e Juventude –
Resolução nº 71/2011: Um olhar mais atento aos serviços de acolhimento de crianças e adolescentes no País.
Brasília: Conselho Nacional do Ministério Público, 2013.
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1. Arquitetura da vulnerabilidade
Na sociedade brasileira, milhares de crianças encontram-se afastadas de seu convívio
familiar e inseridas em instituições de acolhimento. Estes espaços, muitas vezes, são
desconhecidos pela população, tornando invisíveis seus direitos e necessidades. Grande
parcela das edificações destinadas a este tipo de uso são construções já existentes que, para
seu funcionamento, sofreram adaptações, sendo desprezadas em tais ambientes
características fundamentais que influenciam diretamente na relação ambiente-usuário.
A situação de vulnerabilidade em que se encontram tais atores sociais não se restringe
às problemáticas envolvendo a suspensão ou destituição do poder familiar ou ao óbito de
seus familiares, mas também é inerente a todo e qualquer menor em razão de sua delicada
condição de pessoa em desenvolvimento.
Os Abrigos Institucionais são locais que oferecem acolhimento provisório a crianças
e adolescentes de 0 a 18 anos afastados de seu convívio familiar por meio de medidas
protetivas. A edificação deve conter infraestrutura adequada para receber vinte crianças e
estar inserida em uma área residencial, na qual seja possível estabelecer vínculos com a
comunidade e fazer utilização de equipamentos e serviços públicos disponíveis no local2.
No Brasil, há aproximadamente 50 anos, vem sendo desenvolvidos estudos relacionados
ao controle de qualidade, através de avaliações sistemáticas, do ambiente construído. Tais
estudos visam à satisfação dos usuários em relação à edificação, assim como também a detecção
do desempenho, a fim de proporcionar melhorias se caso constatada a necessidade. Estas
análises são obtidas através da metodologia de Avaliação Pós-Ocupação (APO), que utiliza
métodos e técnicas variadas para o desenvolvimento do diagnóstico arquitetônico3.
Nesse contexto, a qualidade física e funcional da edificação é de extrema
importância, sendo necessária a reavaliação do conjunto já existente e que encontra-se em
uso, a fim de apurar seus principais problemas e desconfortos e, a partir de um diagnóstico
propor condições adequadas de moradia, trabalho e desenvolvimento, visando a otimização
do convívio entre os habitantes e a integração com a sociedade. A arquitetura do ambiente
habitacional pode constituir uma ferramenta de desenvolvimento psico-social, estimulando
2 CONANDA; CNAS. Orientações técnicas: serviços de acolhimento para crianças e adolescentes. Brasília, 2009. 3 ORNSTEIN, S e ROMERO, M. Avaliação pós-ocupação do ambiente construído. São Paulo: Studio
Nobel/Edusp, 1992.
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o desenvolvimento da criança ao oferecer uma ambiência de conforto e infraestrutura
adequada que lhe permita uma integração com tal espaço.
O desenvolvimento infantil considerado de qualidade está associado aos diversos e
diferentes estímulos e cuidados proporcionados às crianças ao longo do seu crescimento. A
qualidade destes cuidados, nos aspectos físico e afetivo-social, provém de condições estáveis de
vida. Sendo assim, conforme o meio onde se encontra inserido, a construção afetiva nas relações
provocam aconchego, proteção, intimidade, além de induzir a autonomia e independência.
O espaço físico destinado ao ambiente habitacional da criança torna-se importante
tão quanto as relações afetivas e estimulantes dos moradores. A sensação de bem estar,
segurança e acolhimento nestes locais são fundamentais para tal desenvolvimento
psicossocial sadio. Desta forma, o espaço construído pode tanto ser uma ferramenta para o
desenvolvimento ou pode acabar constituído um instrumento de exclusão, ao reforçar uma
situação de vulnerabilidade, razão pela qual a partir desta pesquisa formulou-se o conceito
de arquitetura da vulnerabilidade, a fim de se destacar o papel que a ambiência possui no
processo de desenvolvimento do público infanto-juvenil.
O conceito arquitetura da vulnerabilidade não tem por fim abarcar apenas a estrutura
de imóveis mais simples e desconfortáveis, utilizados por grupos marginalizados, mas
também visa a destacar como esta estrutura pode contribuir para reproduzir tal condição,
intensificando ainda mais a vulnerabilidade.
2. Dos direitos da criança e do adolescente
A história da política de atendimento de crianças e adolescentes em situação de
negligência, no Brasil e no mundo, sofreu diversas transformações. Segundo Marcílio, o
abandono de crianças é um ato presente em todos os tempos, variando apenas os motivos,
causas e circunstâncias que levam a concretização do fato e sua aceitação4.
No Brasil, até o início do período Republicano o acolhimento de crianças e adolescentes
órfãos ou afastadas do convívio familiar era realizado preponderantemente pela Igreja Católica.
Segundo relata Amin, a primeira casa de recolhimento de crianças do Brasil foi fundada em 1551
e era “gerida pelos jesuítas que buscavam isolar as crianças índias e negras da má influência dos
4 MARCÍLIO, M.L. História social da criança abandonada. São Paulo: Hucitec, 1998.
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pais, com seus costumes ‘bárbaros’”5. A autora destaca, ainda, que no século XVIII intensificou-
se o abandono de crianças (crianças ilegítimas e filhos de escravos, principalmente), razão pela
qual importou-se da Europa a Roda dos Expostos, mantida pelas Santas Casas de Misericórdia.
No período republicano, em decorrência do aumento da população dos centros urbanos
e dos problemas sociais em razão do fim da escravidão, foram fundadas entidades assistenciais
voltadas à “prática de caridade e medidas higienistas”. Essas instituições se dividiam em
escolas de prevenção (destinadas a educar menores abandonados), bem como escolas de
reformas e colônias correcionais (voltadas a atender menores em conflito com a lei)6.
Em relação aos direitos das crianças e adolescentes, a partir da Constituição de 1988,
e posteriormente com a edição do Estatuto da Criança e do Adolescente, houve uma mudança
de paradigma, passando a viger no Brasil a doutrina da proteção integral, na qual além de
se reconhecer a criança e o adolescente como sujeitos de direitos e deveres, destacou os
mesmos como pessoas humanas merecedoras de especial atenção e tutela do Estado, devido
a sua delicada condição de pessoa em desenvolvimento. Assim, a ordem legal reconheceu a
situação de vulnerabilidade das crianças e adolescentes por constituírem pessoas em
formação psicológica, emocional e moral. Segundo Andrea Rodrigues Amin:
Coroando a revolução Constitucional que colocou o Brasil no seleto rol de
nações mais avançadas na defesa dos interesses infanto-juvenis, para as
quais crianças e jovens são sujeitos de direitos, titulares de direitos
fundamentais, foi adotado o sistema garantista da proteção integral.
Objetivando regulamentar e implementar o novo sistema, foi promulgada
a Lei 8. 069 de 12 de julho de 1990, de autoria do Senador Ronan Tito e
relatório da Deputada da Rita Camata, que incorporou em seu texto os
compromissos expostos na Convenção Sobre os Direitos da Criança, de 20
de novembro de 1989, da qual o Brasil é signatário7.
A adoção da Doutrina da proteção Integral constituiu em uma verdadeira mudança
de paradigma. Crianças e adolescentes passam a ser titulares de direitos subjetivos, que para
serem assegurados, foi estabelecido um sistema de garantias de direitos. Amin caracteriza
este novo paradigma como um modelo universal, democrático e participativo, em que o
Estado e a sociedade civil são co-gestores do sistema de proteção8.
5 Amin, Andréa Rodrigues. Evolução histórica do direito da criança e do adolescente. In MACIEL, Kátia
Regina Ferreira Lobo Andrade. Curso de direito da criança e do adolescente: aspectos teóricos e práticos. 8ª
ed. Saraiva, São Paulo, 2015, p. 45-50. 6 Idem, p. 50 7 Ide, p. 50 8 P. 51
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Até então vigia a Doutrina do Menor, que surgiu no início do século e teve como
marco internacional o Congresso Internacional de Menores (1911) e a Declaração de Genova
de Direitos da Criança (1924), e no plano interno O Código de Menores (1927), decreto
5.083 posteriormente revogado pelo Decreto n. 17.943A, o Código Mello Mattos. Tal
doutrina também era conhecida como doutrina da situação irregular, uma vez que era
fundada no binômio carência-delinquência, ou seja, tinha por público alvo crianças e
adolescentes em situação de miserabilidade ou em conflito com a lei.
Segundo Fuscaldi, a implantação do ECA colaborou para transformações eficazes no
que se refere às instituições de assistência e a sua estrutura como um todo, partindo não de uma
visão assistencialista, mas se configurando em espaços de desenvolvimento e socialização9.
Desta forma, até a Constituição de 1988, vigia a doutrina da situação irregular, que se
preocupava apenas com crianças e adolescentes em situação de risco, isto é, em situação de carência
ou abandono e os menores em conflito com a lei. Já a doutrina da proteção integral tem por
característica a universalidade, pois atribuiu-se direitos fundamentais todas as crianças e
adolescentes, impondo, como contrapartida, deveres ao Estado. A Carta Magna garantiu, além dos
mesmos direitos fundamentais assegurados a todos os cidadãos, outros em razão da sua delicada
condição de pessoa em desenvolvimento, isto é, em processo de formação psíquica, mental e física.
Reconheceram-se direitos especiais e específicos a todas as crianças e adolescentes10. Outrossim,
verifica-se que a Constituição também estabeleceu que era dever do Estado e da sociedade zelar pela
efetivação de direitos fundamentais da criança e do adolescente, garantindo-lhes absoluta prioridade.
A Doutrina da Proteção Integral tem um importante marco internacional, a Convenção
dos Direitos da Criança da ONU (1989), internalizado pelo Decreto Legislativo nº 28 de 1990 e
que influenciou diretamente no ECA. Enquanto, o Conselho Nacional dos Direitos da Criança e
do Adolescente (CONANDA) foi uma importante medida de proteção aos menores, criada para
atender ao comando do artigo 88 do ECA. Tal órgão visa impulsionar a implantação do Estatuto
e garantir, através de parâmetros de funcionamento e ações, os direitos das crianças e
adolescentes perante as instituições competentes envolvidas. Outrossim, a partir de tal lei as
instituições, anteriormente conhecidas como orfanatos, casa dos expostos, asilos, educandários
ou colégios internos, passaram a ser denominadas abrigos. Estes locais de acolhimento,
caracterizam-se por receber crianças e adolescentes com distintos e múltiplos problemas sociais,
9 Fuscaldi, Solange Viegas. Filhos Sobre medida de Proteção em Abrigo: os significados construídos por suas
famílias. Belo Horizonte: UFMG, 2004. 10 Ishida, p. 1.
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variando desde a orfandade até o afastamento do convívio familiar devido a decisões judiciais.
Conforme Amin, a Doutrina da proteção integral se assenta em três pilares:
reconhecimento da peculiar condição da criança e jovem como pessoa em
desenvolvimento, titular de proteção especial; 2) crianças e jovens têm
direito à convivência familiar; 3) as Nações subscritoras obrigam-se a
assegurar os direitos insculpidos na Convenção com absoluta prioridade11.
O princípio da prioridade absoluta encontra-se previsto no art. 227 da CF88 e nos
artigos 4º e 100, parágrafo único, inciso II do ECA e, segundo Amin, o mesmo:
Estabelece a primazia em favor de crianças e dos adolescentes em todas as
esferas de interesse. Seja no campo judicial, extrajudicial, administrativo,
social ou familiar, o interesse infanto-juvenil deve preponderar. Não
comporta indagações ou ponderações sobre o interesse a tutelar em
primeiro lugar, já que a escolha foi realizada pela nação por meio do
legislador constituinte [...] Ressalta-se que a prioridade tem um objetivo
bem claro: realizar a proteção integral, assegurando primazia que facilitará
a concretização dos direitos fundamentais enumerados no art. 227. Caput,
da Constituição da República e renumerados no caput, do art. 4 do ECA.
Mais. Leva em conta a condição de pessoa em desenvolvimento, pois a
criança e o adolescente possuem uma fragilidade peculiar de pessoa em
formação, correndo mais riscos que um adulto por exemplo12.
Desta forma, o executivo deve orientar suas escolhas administrativas e orçamentárias
atentando ao princípio da prioridade absoluta. Contudo, infelizmente a distribuição de verbas
e a liberação os recursos são comumente realizadas sem atentar para tal princípio.
O ECA estabeleceu no art. 4º um rol exemplificativo de situações que deverá ser dada
preferência a infância e juventude, sendo importante destacar que o parágrafo único do art.4
do ECA determina a destinação preferência de recursos públicos nas áreas relacionadas a
infância e juventude. Assim cabe ao ente estatal prever recursos para promoção de interesses
infato-juvenis, a fim de assegurar que as instituições de acolhimento tenham as verbas e
infraestrutura indispensáveis para cumprir seus fins.
Muitas vezes, a administração alega não possuir recursos suficientes para desenvolver
determinada política pública, suscitando, assim, a reserva do possível, ou ainda que não pode
realizar determinada ação estatal por ausência de previsão orçamentária. Importante destacar que
11 Idem p. 55. 12 P. 62.
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o judiciário já consolidou jurisprudência no sentido de que não há colidência entre princípios
orçamentários e o princípio da prioridade absoluta. Conforme Amin, o superior interesse da criança
e do adolescente “trata-se de princípio orientador para legislador como para o aplicador
determinado a primazia das necessidades da criança e do adolescente como critério de
interpretação da lei, deslinde de conflitos, ou mesmo para elaboração de futuras regras”13.
Desta forma, tanto a Constituição, quanto o ECA impõem a observância do princípio
da primazia ou da prioridade absoluta, que atribui preferência na formulação e execução das
políticas sociais públicas, destinando de modo privilegiado recursos nas áreas correlatas à
proteção da infância e juventude. Neste contexto, a criação de um ambiente confortável (apto
a permitir o sadio desenvolvimento de seus acolhidos) nas instituições de acolhimento não é
ato discricionário do administrador, mas direito constitucionalmente assegurado àqueles
tutelados pelo Estatuto. Portanto, valer-se de subterfúgios como limitação ou ausência
orçamentária não é válido, pois a implementação da estrutura arquitetônica adequada tem
prioridade no orçamento público por força do princípio constitucional elencado.
O ECA, por sua vez, em seu art. 7º, tutela a vida e a saúde das crianças e adolescentes
por meio de políticas sociais públicas que permitam seu total desenvolvimento em um ambiente
sadio e harmonioso. O Princípio da Prioridade Absoluta tem assento no artigo 227 do Texto
Constitucional, materializando-se por meio do artigo 4º do Estatuto no qual pormenoriza como
sociedade e o poder público irão priorizar o atendimento aos direitos infanto-juvenis14.
Cumpre destacar que a colocação da criança e adolescente em instituição de
acolhimento é reputada pelo ECA como medida provisória e excepcional (arts. 19 e 101,
parágrafo primeiro), prevendo-se, ainda, a necessidade de avaliação da situação
semestralmente, sendo certo que a permanência do menor em tal instituição não poderá ser
superior a dois anos, salvo comprovada necessidade que atenda ao seu superior interesse.
A provisoriedade é uma regra que, na prática, pode ser entendida como exceção, já que
a maior parte dos menores permanece nestas instituições por tempo prolongado. Este cenário,
associado com a falta de investimento e a inadequação de sua infraestrutura, impossibilita o
surgimento de um ambiente verdadeiramente acolhedor. Logo, por mais que os acolhidos
passem anos nas instituições, é possível observar que não lhes despontem qualquer sentimento
13 P. 70. 14 Barros, p. 23.
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sobre os abrigos que se aproxime do conceito de “lar”. Não há que se falar, assim, em ambiente
sadio, acolhedor e muito menos apto a desenvolver dignamente nenhum de seus internos.
Segundo levantamentos do Conselho Nacional do Ministério Público - CNMP, mais de
30.000 crianças e adolescentes no Brasil encontram-se afastados de seu convívio familiar e
inseridos em instituições de acolhimento. O artigo 92 do ECA impõe que as instituições de
acolhimento devem observar os seguintes princípios: preservação dos vínculos familiares e
promoção da reintegração familiar; integração em família substituta, quando esgotados os recursos
de manutenção na família natural ou extensa; atendimento personalizado e em pequenos grupos;
desenvolvimento de atividades em regime de coeducação; não desmembramento de grupos de
irmãos; evitar, sempre que possível, a transferência para outras entidades de crianças e
adolescentes abrigados; participação na vida da comunidade local; preparação gradativa para o
desligamento e, participação de pessoas da comunidade no processo educativo.
Considerações Finais
O acolhimento das crianças e adolescentes, historicamente realizado por instituições
religiosas e beneficentes, ainda é simbolicamente visto como caridade. Contudo, a partir da nova
ordem constitucional, tornou-se um direito fundamental, de dever do Estado e da Sociedade.
Conclui-se pela necessidade de aperfeiçoamento de tais ambientes a fim de assegurar
o conforto e bem-estar das crianças, garantindo seu desenvolvimento saudável. O espaço
físico destinado ao ambiente habitacional da criança é tão importante quanto suas relações
afetivas, pois estimulam seus moradores. As sensações de bem-estar, segurança e
acolhimento nestes locais são fundamentais para tal desenvolvimento.
Pode-se afirmar que um ambiente com instalações adequadas juntamente com
condições psicológicas favoráveis proporcionam o crescimento e amadurecimento sadio,
gerando adultos aptos a viver em sociedade.
A utilização destas instituições como empilhamento de atores sociais vulneráveis por
meio do prolongamento de suas internações em condições totalmente inadequadas e
contrastantes aos mandamentos constitucionais e legais é característica que merece repúdio.
Enquanto estas instituições não assumirem seu real papel, isto é, de propiciar um ambiente
arquitetônico e psicologicamente equilibrado apto a gerar adultos sadios.
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A CONSTRUÇÃO DA NEGAÇÃO DE BRASILIDADE
Edson Bomfim dos Santos Bacharel em Filosofia - UFES.
Resumo: O presente artigo busca conformar a relação do método de construção da cidadania brasileira,
através da negação dos povos originários e dos descendentes de africanos aqui trazidos na condição de
escravizados, ao tempo que exalta a colonização, dependência social, cultural e econômica europeia,
impondo uma europeização da sociedade brasileira e consequente negação de brasilidade.
Palavras chaves: intelectualidade; nacionalismo; brasilidade.
Abstract:. This article aims to establish a relationship of Brazilian citizenship construction method,
through the denial of indigenous peoples and African descendants brought here in the enslaved condition,
at the time that exalt the European colonization and social, cultural and economic dependencies, imposing
an Europeanization of Brazilian society and consequent denial of Brazilianness.
Keywords: intellectuality; nationalism; brazilianness.
Introdução
O presente estudo busca através do desenvolvimento de pesquisa bibliográfica
constatar o processo de negação de brasilidade contida na construção do conceito de
nacionalismo brasileiro, através da exclusão da população indígena, negra e mestiça como
relevante histórica, cultural e politicamente ao mesmo tempo em que busca a exaltação da
descendência europeia em um explícito conceito de negação da multiculturalidade e
exarcebação do embranquecimento, a qual se dedicou o país desde a sua “Independência”.
Durante este estudo tentaremos mostrar este processo de desqualificação de parcela
considerável da população durante o processo histórico de afirmação do Brasil como país
independente e integrado no contexto mundial, a partir da desconstrução da sua história de
colonização, escravização e sua herança dos povos originários – indígenas – e africanos
trazidos na condição de escravos.
Negação através do embranquecimento físico, intelectual e político da sua história,
instituições e cotidiano, consubstanciando, assim, o enraizamento de um processo de
naturalização da inferiorização dos povos não brancos e solidificando uma estrutura
segregacionista ímpar e única no mundo de racismo e, consequentemente, naturalização dos
processos de extermínio político, cultural e físico destas populações.
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Assim sendo, buscamos dentro de um diálogo com Nilo Odalia em seu livro: As Formas
do Mesmo – ensaios sobre o pensamento historiográfico de Varnhagen e Oliveira Viana;
fundamentar a construção da negação de brasilidade e construção de um nacionalismo branco,
voltado às origens portuguesas e da imigração europeia como forma de um enquadramento
estético – étnico-racial – supremacia racial branca, buscando apresentar o Brasil como
continuidade da nação europeia, negando a sua multiculturalidade, com fortes traços negros e
indígenas e conformando um projeto embranquecimento, através da miscigenação contínua.
A releitura aqui proposta se apropria da constituição do processo histórico brasileiro
que surge com a fundação do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro em 1838, com o
objetivo de produzir a nossa história a partir da ótica do governo imperial, nos colocando
como nação civilizada.
A condição de nação civilizada, para tanto, busca escamotear a realidade da sua
multiculturalidade já presente, negando, omitindo e manipulando criminosamente a presença
negra, ao mesmo tempo em que previa a desaparição desta presença ao longo do tempo.
Tal projeto é apresentado por Karl Friedrich von Martius, considerado como “amigo
do Brasil”, e desenvolvido por Francisco Adolfo de Varnhagen, ambos alemães os quais se
dedicaram inicialmente ao processo de construção da historiografia nacional observando
desde esta a supremacia da “raça caucasiana”, além de classificar indígenas e negros como
barbáries a serem absorvidos.
Importante destacar a cumplicidade e/ou coincidência na construção deste processo
de nacionalidade brasileira, assim temos a luta dos jesuítas em defesa dos indígenas e
contrário à escravização destes, porém, mantendo-os dentro de um regime de servilismo, a
incansável busca pela atualização intelectual da nossa corte imperial, principalmente através
de D. Pedro II, seja participando ativamente das exposições ”cientificas” apresentadas com
os “zoológicos humanos”, inclusive fornecendo para tanto as nossas populações indígenas e
a constante presença de intelectuais europeus na sua corte a convite deste, tendo entre eles
Tomas Malthus, defensor bem como, da extinção negra através da mestiçagem.
Tais elementos históricos, não apenas consubstanciam a necessidade de releitura da
nossa historiografia, bem como nos remete a necessidade de reescrever a mesma, visto que
os prognósticos aqui pontuados e colocados em práticas durante todo este período não
apenas fracassaram como projeto de embranquecimento, e arianismo civilizatório, como
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também conformou a naturalização do racismo nacional, o sentimento de não
pertencimento e de brasilidade.
Ao nos depararmos com tal releitura histórica, podemos avançar no entendimento de
todo o processo aqui vivido e conceber a origem do nosso racismo nacional, bem como a
consecução de suas etapas de construção, nos remetendo à meio século posterior e ao
acelerado processo de imigração quando da evidência do fim do regime escravocrata.
Importante destacar o papel desenvolvido pela intelectualidade desta época, século
XIX, marcado como o século da ciência, do positivismo e do evolucionismo, que dão
margem ao surgimento do darwinismo social e da miscigenação e que pautaram as teorias
de hegemonia étnica branca baseados em discursos “científicos” e que pautam os projetos
sócio-culturais que se desenvolvem até os nossos dias.
1. A construção histórica da negação
Ao analisarmos o processo de construção da cidadania brasileira através da
construção historiográfica, podemos identificar a origem do processo de europeização, bem
como, a negação dos povos originários e da população negra, tendo esta como um processo
degenerativo da sociedade brasileira.
É de extrema importância o papel do historiador e o seu compromisso com as elites,
mesmo que para isso venha a omitir fatos e personagens que tiveram destacado papel na
nossa historiografia, para que apenas figurassem o papel da elite seja no período colonial e
imperial com a exaltação do bragantismo, ou posterior aos grupos que assumem o poder, em
um completo descaso com a verdade e negligência com o passado como cultura.
Este processo está integrado ao processo de servilismo metodológico que surge a
partir da criação do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, que através da sua revista,
lançou em 1840 um concurso para um plano de escrita da história do Brasil, concurso este
vencido pelo alemão, naturalista Karl Friedrich Von Martius, com a dissertação “Como se
deve escrever a história do Brasil”.
Von Martius, considerado o “amigo do Brasil”, e Francisco Adolfo de Varnhagen
considerado o “Heródoto brasileiro”, projetista e executor da história da historiografia
brasileira, estabelecem a dependência com a ideologia assumida e não autonomia de um
pensar a partir de nós mesmo, negando e desfigurando assim, as já existentes contribuições
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como por exemplo, citada por Manoel Bomfim em seu livro O Brasil na História –
deturpação das tradições, degradação política, sobre o livro de Frei Vicente do Salvador1,
considerado a primeira e genuína história do Brasil.
Estas linhas delineadoras do fazer a história brasileira irão conformar o padrão a ser
desenvolvido, divulgado e estudado por nós dentro de um centralismo governamental e ao
atendimento dos interesses da nossa elite. Ao mesmo tempo em que nos imputa o primeiro
projeto de miscigenação como forma de branquear nossa sociedade e conforma uma
estrutura econômica assimilada com o modo de produção escravista proporcionando o
intrínsecamento da interação capitalismo racismo brasileiro, visto que mesmo no projeto de
miscigenação, os negros aqui são considerados um mal para o país, ou seja, esta
miscigenação é buscada apenas com a população indígena.
Para tanto, nos é imputado uma submissão e dependência das teorias importadas,
principalmente com a parceria desenvolvida entre o IHGB e o seu equivalente francês,
Institut Historique de Paris, o qual desenvolveram ampla parceria com “a troca de
publicações e correspondência, e à abertura de espaço na revista parisiense para tratamento
de temas e veiculação de notícias relativas ao Brasil” (GUIMARÃES, 1988, p. 12).
Resgata-se aqui a preocupação de construção de uma história voltada para
apresentação do Brasil como continuidade de um padrão europeu a partir da sua herança
imperial, ou seja, a continuidade da família Bragança no poder, assim perpetrando uma
herança europeia, assumindo assim o seu conceito eurocêntrico e a nossa não história e não
filosofia a partir da nossa realidade brasileira e sua multiculturalidade.
Este parâmetro perpetrado é explicitado por Nilo Odalia no parágrafo abaixo:
E sobre a estrutura racial, que dissimula uma realidade de estrutura de
classes, que vão convergir todos os esforços de interpretação da nossa
história de parte significativa dos intelectuais brasileiros do século XIX e das
primeiras décadas do século XX, demonstrando de maneira eloqüente que,
em primeiro lugar, uma opção de sociedade já havia sido feita, tendo como
paradigma a sociedade européia e, em segundo, que essa opção era também
formada de integração a essa sociedade. Integração que demandava uma
metamorfose dos elementos espúrios da estrutura racial, índios e negros,
pelo remédio da fusão ou miscigenação racial (ODALIA, 1997, p. 19).
1 Frei Vicente do Salvador escreveu a história do Brasil o qual terminou em dezembro de 1627, animado por seu amigo
Manuel Serafim de Faria, o qual foi enviado para publicação, que após dez anos não fora publicado sendo que “duas
cópias do mesmo foram recolhidas ao grande arquivo de papeis históricos do Estado português – a Torre do Tombo”
(BOMFIM. Manoel. 2ª Edição. 2013. p. 118). Importante destacar que Varnhagen teve acesso a esta obra.
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Negação de brasilidade, através da exaltação do arianismo eurocêntrico, herança da
colonização portuguesa e descendência imperial através da família Bragança. Miscigenação
como forma de branqueamento de parte da população, com ênfase na população indígena;
sendo que a população negra escravizada e/ou vítima do escravismo é considerada com um
dos males brasileiro, e com o acréscimo de um completo vazio ideológico, buscando apenas
sua interação com o continente europeu é assim definido o conceito de nação à qual foi e
estamos expostos como brasileiro.
A opção irrecorrível por uma nação branca e européia nasce, segundo o
autor da História geral do Brasil, como o fruto amadurecido e temperado
de uma experiência histórica em que as linhas da nova Nação são legadas
e determinadas por uma civilização superior. Aos demais grupos étnicos e
culturais, considerados vencidos, só lhes resta uma participação passiva no
projeto da nova Nação e apenas na medida em que se deixarem ou forem
absorvidos e integrados, racial e culturalmente, pelo branco – única fonte
de legitimação, pois dele decorrem os valores básicos da nova
nacionalidade (ODALIA, 1997, p. 47).
Esta é a estrutura de construção de nação e mesmo da negação de um sentimento de
brasilidade que se mantém até os nossos dias, em busca do sempre ideal europeu – leia-se ariano
– que ao se conformar ente nós, naturaliza um processo de inferiorização e de racismo único.
Neste processo, os movimentos históricos de autonomia – revoltas, quilombagens,
expulsão de invasores, são tomados como elementos unificadores da nação, pela sua ação
do Estado brasileiro na sua destruição, através da intervenção salvadora branca que
agregando aos seus exércitos indígenas e negros impuseram derrotas aos inimigos. “Os
sujeitos da história do Brasil são o homem branco e o Estado Imperial. O passado colonial
deve ser reconstruído como suporte de um Brasil branco e europeu” (REIS. José Carlos.
Varnhagen (1853-7) o elogio da colonização portuguesa. p. 113).
Ao definir a Nação brasileira enquanto representante da idéia de
civilização do Novo Mundo, esta mesma historiografia estará definindo
aqueles que internamente ficarão excluídos deste projeto por não serem
portadores da noção de civilização: índios e negros. O conceito de Nação
operado é eminentemente restrito aos brancos, sem ter, portanto, aquela
abrangência a que se propunha no espaço europeu. Construída no campo
limitado da academia de letrados, a Nação brasileira traz consigo forte
marca excludente, carregada de imagens depreciativas do “outro”, cujo
poder de reprodução e ação extrapola o momento histórico preciso de sua
construção” (GUIMARÃES. Manoel Luis Salgado. 1988. p. 7).
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2. Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro
O IHGB é criado a partir da proposta apresentada na Sociedade Auxiliadora da
Industria Nacional em 18 de agosto de 1838 e aprovada em sua Assembleia em 19 de outubro
do mesmo ano, este – o IHGB – passa a ter vida independente e é composto por 50 membros,
sendo 25 para cada seção História e Geografia e já a partir da reunião de constituição em 01
de dezembro de 1838 se coloca sobre a proteção do imperador, que dotará financeiramente
o mesmo. Marca importante da sua fundação é que é composto majoritariamente por pessoas
que têm funções no aparelho do Estado e ainda de origem portuguesa.
É a partir de 1849, ao desvincular-se fisicamente da SAIN - Sociedade Auxiliadora
da Industria Nacional, através da inauguração de sua sede em 15 de dezembro, que
aprofunda-se a sua relação com o Estado Imperial, onde este passa a sugerir “temas para
discussão e reflexão dos membros, no estabelecimento de prêmios para trabalhos de natureza
cientifica e no apoio financeiro que assegura o processo de expansão da instituição”
(GUIMARÃES. Manoel Luis Salgado. 1988. p. 10).
Assim, sobre a influência do Império, este intituto passa a desenvolver suas atividades com
base no armazenamento de documentos e tendo como prioridade a produção de trabalhos nos
campos da história, geografia e etnografia, sendo esta área, etnográfica, exclusivamente aos povos
indígenas. Este trabalho etnográfico e arqueológico da temática indígena posteriormente travará
um acirramento entre a história e a literatura “sobre a viabilidade da nacionalidade brasileira estar
representada pelo indígena” (GUIMARÃES. Manoel Luis Salgado. 1988. p. 11).
3. O papel da intelectualidade na exaltação eurocêntrica
Observamos aqui a deliberada omissão dos povos negros trazidos na condição de
escravos e o papel desenvolvido pelo Estado brasileiro juntamente com as elites e a
intelectualidade no processo de negação da sua multiculturalidade mantiveram fiel ao projeto
desenvolvido por Von Martius, da exaltação do colonizador português e a mescla com a
população indígena e completa exclusão da população negra.
O vencedor impõe a sua superioridade étnica, cultural e religiosa. Aos
vencidos resta a exclusão, a escravidão, a repressão e a assimilação pela
miscigenação, isto é, pelo “branqueamento” racial e cultural (REIS. José
Carlos. 1997. p. 116).
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Conforma-se, assim, os primeiros passos da negação de alteridade e coisificação do ser
negro, obviamente que ao tomarmos o processo histórico necessitamos nos situar nas condições
objetivas e subjetivas da época, no entanto, não podemos desprezar as consequências da
conformação deste projeto que se mantém sofrendo transformações pouco significativas e é base
fundante do nosso complexo de inferioridade e de baixa-estima, ao buscarmos dentro da negação
de multiculturalidade pluriétnica a exaltação da herança europeia.
Esta conformação por parte da nossa intelectualidade que forja o homem branco
brasileiro, que buscou preservar a sua concepção européia em detrimento dos povos
indígenas e africanos aqui trazidos, procurando “mostrar o que o diferencia e o aproxima do
indígena, e o que o distancia do negro” (ODALIA. Nilo. 1997. p. 91).
A resposta das elites: O Brasil não quer ser, indígena, negro, republicano,
latino-americano e não-católico. O que significa dizer: o Brasil quer
continuar a ser português e para isto não hesitará em recusar ou reprimir o
seu lado “brasileiro”. Este “Brasil português” será defendido e produzido
pelas elites brancas, pelo Estado, pela Coroa. O novo país será uma
continuação da colônia. A diferença é que a colônia não é mais exterior,
mas interior. E é portuguesa ainda” (REIS. José Carlos. 1997. p. 114).
Importante destacarmos o pensamento de Varnhagen sobre a situação do negro na
sociedade brasileira:
Como a colonização africana, distinta principalmente pela cor, veio para o diante
a ter tão grande entrada no Brasil, que se pode considerar hoje como um dos três
elementos de sua população, julgamos de nosso dever consagrar algumas linhas
neste lugar e tratar da origem desta gente, a cujo vigoroso braço deve o Brasil
principalmente os trabalhos do fabrico do açúcar, e modernamente os da cultura
do café, mas fazemos votos para que chegue um dia em que as cores de tal modo
se combinem que venham a desaparecer totalmente no nosso povo as
características da origem africana, e por conseguinte a acusação da procedência
de uma geração, cujos troncos do Brasil vieram a ser conduzidos em ferro do
continente fronteiro, e sofreram os grilhões da escravidão, embora talvez com
mais suavidade do que nenhum outro país da América, começando pelos
Estados Unidos do Norte, onde o anátema2 acompanha não só a condição e a
cor como todas as suas degradações (ODALIA. Nilo. 1997. p. 95 e 96).
2 Anátema significa excomunhão, execração, maldição, reprovação enérgica. Do grego “Anáthema” (coisa posta
de lado), formada da preposição “aná” (de lado) mais “tithemí” (colocar). Anátema é uma palavra canônica (relativa
às regras da igreja) que se refere à condenação de uma doutrina contrária a qualquer verdade do Evangelho de Cristo.
Anátema é a expulsão, a condenação, a excomunhão e execração, do seio da Igreja, de qualquer pessoa que segue
doutrina contrária à verdade da fé católica. Os adjetivos excomungado, maldito e amaldiçoado, qualificam aqueles
indivíduos que condenam o patrimônio da fé católica. <http://www.significados.com.br/anatema/>. Importante
analisarmos o conteúdo religioso empregado, o que caracteriza mínimamente a crença religiosa na aplicação do
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Fica evidente, que este pensamento ideológico não foi ainda superado entre nós, além do
que ao ser incorporado no imaginário coletivo da nossa intelectualidade passou a condição de
identidade cultural, dando uma percepção de unidade em torno deste conceito, no entanto, como
vemos esta unidade se encontra apenas no interior do Estado brasileiro e em parte da nossa elite.
O instrumento central para essa política de branqueamento é a miscigenação
biológica; os que o seguirem terão um arsenal mais rico e amplo de
argumentos pseudocientíficos para a defesa do branqueamento e procurarão
ultrapassar as fronteiras do biológico, por meio da ampliação da
miscigenação que passa a ser um fato cultural (ODALIA. Nilo. 1997. p. 97).
Encontramos aqui o racismo não apenas como deformação de caráter ou como
questão subjetiva de cada indivíduo, mas sim, como estruturante na concepção de
conformação do Estado brasileiro e de nação, que como tal nos relegou historicamente o
processo estruturante da desigualdade social a partir da sua “independência”, e que
consolidou-se através do seu processo histórico de Império e Republica, sendo ainda base
estrutural do sistema capitalista implementado.
Paralelo a esta conformação de nação e de branqueamento do país vimos a progressiva
entrada de estrangeiros no país e o desenvolvimento de um processo de fixação destes como
forma de embraquecimento. “Entre 1823 e 1830 foram editadas mais de duas dezenas de
documentos, entre Decisões, Portarias, Decretos e Leis que regulavam ou davam instruções
sobre a entrada e fixação de não-nacionais em solo pátrio (PAIVA, Odair da Curz. 2004. p. 35).
Comumente temos a questão da imigração com o processo de internacionalização da
economia brasileira sem nos atentarmos ao processo de negação de brasilidade e da
plurietnicidade constante no bojo de construção de nação, e o processo deliberado de expulsão
de comunidades indígenas e negras de seus habitat para a ocupação imigrante, além do que
todo o desenvolvimento de uma política imigratória que foi da “realização de propaganda do
país na Europa e a responsabilidade em firmar acordos de emigração/imigração com países
como Itália, Espanha, Portugal. Alemanha, etc.”3 ao financiamento e estabelecimento de uma
política educacional como forma de fixação deste em território nacional.
conceito de exclusão do povo negro e ainda minimiza o processo escravagista brasileiro, apresentando-o com mais
suavidade, em explicita defesa do caráter escravocrata português. 3 (PAIVA, Odair da Curz. 2004. p. 50).
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O embranquecimento como política de Estado pode ser constatado em diversos
momentos históricos a partir da “independência”, porém, é necessário ressaltarmos o
Decreto 528, de 28 de junho de 1890, logo em plena vigência da primeira República, que
trata do espírito do branqueamento brasileiro.
O art. 1°. Do referido decreto explica que era livre a entrada, nos portos da
República, “dos indivíduos válidos e aptos para o trabalho que não se
acharem sujeitos à ação criminal do seu país, excludentes da Ásia, ou da
África que somente mediante autorização do Congresso Nacional poderão
ser admitidos de acordo com as condições que forem estipuladas” (PAIVA,
Odair da Curz. 2004. p. 67).
Tal conceito de branqueamento da nação como vemos passa a ser uma política de
Estado e também de significativa parcela da sociedade, principalmente pela nossa
intelectualidade da época, como veremos abaixo;
Naquele momento, pensadores como Silvio Romero (1851-1914),
Raimundo Nina Rodrigues (1862-1906), Oliveira Lima (1883-1951), entre
outros, avaliavam como positiva a imigração de brancos. Ela teria a função
de impor uma atualização histórica na sociedade brasileira, igualando-a aos
padrões étnicos e sociais europeus, considerados, então, como paradigma
de civilização (PAIVA, Odair da Curz. 2004. p. 68).
Encontra-se implícito a continuidade do projeto de Von Martius e Varnhagen de
extinção da população negra através da miscigenação, tendo esta como um processo de
melhoria da raça, visto que negros eram tidos como raças inferiores. Não obstante a este
processo, subjetivamente é constituído um conceito de inferiorização de nação e negação de
brasilidade, com a constituição de uma elite eurocentrizada e constituída em núcleos
migratórios que terminam por reforçar sua herança europeia e negatividade de brasilidade,
ao mesmo tempo em que se mostra subserviente a um modelo de sociedade que nos mantêm
presos ao conservadorismo colonialista.
Tal situação que chamaremos de complexo tupiniquim eurocêntrico, onde nossa elite
busca comportar-se, referenda e submete-se a cultura eurocêntrica ou estadunidense, ao
mesmo tempo, em que nega a plurietnicidade local e referenda através da sua omissão e/ou
apoio a inferiorização de não brancos.
Ao constatamos o complexo conceito tupiniquim eurocêntrico vale destacar a preservação
identitária dos diversos agrupamentos imigrantes e a até hoje atual necessidade de auto-
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identificação desenvolvida através de inúmeras campanhas de reconhecimento de sua
hereditariedade eurocêntrica, ao mesmo tempo em que assistimos ao massacre dos povos
indígenas e a destruição histórica dos arquivos referentes a origem dos povos negros escravizados.
A negação de brasilidade, como podemos observar, encontra-se implícita em todos
os setores da sociedade, e “naturalizou-se” tornando-se base estruturante do Estado
brasileiro, que mesmo quando não explícitas, estas impactam sobre a população não branca,
é assim que a absorção desta naturalização impacta negativa desde à aplicação de qualquer
princípio econômico como na negação de justiça ou direitos sociais, caracterizando uma
espécie de apartheid brasileiro, o qual nos negamos a enfrentar.
Aqui é entendido que a nossa autonegação impactou em uma desconstrução social,
tendo o eurocentismo como uma intervenção salvadora branca, agindo na desregulação
social indígena, e condenando a população negra a condição de espúrio, desde o projeto de
nação e mesmo em nossos dias, esta situação pouco difere, sendo ainda negada a participação
plena, seja pela origem eurocêntrica racista, seja pelo não reconhecimento do próprio
processo de negação, ou ainda, pelo medo do enfrentamento de tal negação diante dos
impactos, históricos, sociais, políticos e econômicos advindos de tal assumimento.
A construção de um projeto de brasilidade urge como forma de construção de uma
verdadeira nação brasileira, voltada aos seus próprios interesses, negando o caráter
etnocêntrico eurocentrado que nos foi imposto, nos resgatando do complexo tupiniquim de
submissão e inferioridade e, por fim, nos libertando mentalmente da condição de colônia.
A riqueza contida em nossa plurietnicidade e consequente multiculturalidade, negada
através deste complexo tupiniquim de inferioridade, que visa exaltar uma supremacia ariana,
condenou a todos nós a um processo sistêmico de submissão ideológica e econômica, e que
necessita ser enfrentada, como afirma Manoel Bomfim.
Finalmente, a substância da história é feita desses embates em que, sob a
rubrica de povos, ou de classes, as tradições se afrontam e lutam, para o
avassalamento de umas pelas outras, com o resultado de substituições,
fusões, eliminações, extinções – lentas ou súbitas, até que prevalece a
tradição que representa um maior progresso humano, ou, pelo menos, a
virtualidade de progresso, em energias jovens, próprias para a
indispensável renovação de formas – políticas, sociais, econômicas [...]
(BOMFIM. Manoel.2013. p. 38).
Tal enfrentamento não se limita a uma ação meramente política ou econômica, que
possa vir a ser implementada com ascensão de um partido ao governo central/federal, isto
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porque, no campo dos partidos de direita encontraremos não apenas a mentalidade
conservadora, como também a incitação irresponsável de uma unicidade em torno de seus
conceitos levando ao ódio do outro, pelo campo da esquerda, mesmo esta encontrando
aspectos da negação burguesa, encontra-se limitada a luta classista e economicista, sem ter
em conta a unimultiplicidade cultural e pluriétnica do nosso país.
Assim, a desconstrução da negação perpassa pela necessidade de criação de um
sentimento de brasilidade, no enfrentamento da releitura da nossa história e a partir da
consciência e comprometimento de construção de um processo revolucionário, na qual a
afirmação de nossa multiculturalidade signifique o caminhar para o novo.
Manoel Bomfim empreendeu uma criteriosa e detalhada revisão
historiográfica, mostrando que entre os males brasileiros estava a maneira
pela qual a nossa história estava sendo escrita, contada e, principalmente,
ensinada (BOMFIM. Manoel. 2013. p. 19).
Não é demais lembrar que o abandono do complexo tupiniquim constitui
principalmente na destruição do etnocentrismo eurocêntrico que instalou-se em nosso seio
desde sempre. Porém, não significa desconsiderar possíveis contribuições, visto que a partir
da plurietnicidade e multiculturalidade as heranças se conformam em uma construção
identitária própria, que chamamos de brasilidade.
Referências
ODALIA. Nilo. As formas do mesmo - Ensaios sobre o pensamento histotiográfico de
Varnhagen e Oliveira Vianna. Editora UNESP. ISBN: 85-7139-142-4
PAIVA. Odair da Cruz. Histórias da (i)migração - Imigrantes e Migrantes em São Paulo
entre o final do século XIX e o início do século XXI. Arquivo Público do Estado de São
Paulo. ISBN: 978-85-63443-07-6
BOMFIM. Manoel. O Brasil na história - Deturpação das tradições, Degradação política.
2 Edição - Rio de Janeiro; Topbooks; Belo Horizonte, MG: PUC-Minas, 2013. ISBN 978-
85-7475-221-1
REIS. José Carlos; Departamento de História/UFOP. Varnhagen (1853-7) o elogio da
colonização portuguesa. VARIA HISTÓRIA, Belo Horizonte, n 17, Mar/97, p. 106-131
PEREIRA. José do Egito N. (Me. UFCG) SESC; <http://www.sescpb.com.br>. Karl Friedrich
Von Martius e Francisco Adolfo de Varnhagen: o Brasil e a infeliz presença negra.
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CARTELI. Karin Kreismann. A identidade nacional brasileira. Trabalho apresentado
como pré-requisito para a conclusão da disciplina Cultura Brasileira e Patrimônio
Histórico, ministrada por Bernardo Lewgoy, no Curso de Especialização em Educação e
Patrimônio Histórico-Cultural em setembro de 2001.
GRINBERG, Keila; SALLES, Ricardo (orgs.) O Brasil Imperial. V. II: 1831-1870. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 2009. Conflitos e experiências na formação do estado
imperial brasileiro.
GUIMARÃES. Manuel Luis Salgado. Nação e civilização nos trópicos: O Instituto
Histórico e Geográfico Brasileiro e o Projeto de uma História Nacional. Estudos
Históricos. Rio de Janeiro, n 1, 1988. P. 5-27.
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O PROCESSO DE DESTITUIÇÃO DO PODER FAMILIAR E SUAS
IMPLICAÇÕES NAS RELAÇÕES FAMILIARES
Franciele Helena da Silva UEPG
Cleide Lavoratti UEPG
Resumo: A presente pesquisa é resultado de um Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) e procura
abordar os aspectos significativos do Processo de Destituição do Poder Familiar, bem como suas
implicações nas relações familiares, das crianças e adolescentes, destituídas do poder familiar no
contexto do Serviço Auxiliar da Infância e Juventude (SAI), da Comarca de Ponta Grossa-PR. Trata-
se de uma pesquisa qualitativa e os procedimentos metodológicos selecionados foram: a pesquisa
bibliográfica; pesquisa documental e a análise hermenêutica dialética. As principais categorias a
serem discutidas no decorrer do processo de investigação científica serão: Família; Poder Familiar;
Convivência Familiar, para assim compreender melhor a Destituição do Poder Familiar e suas
implicações na vida de crianças, adolescentes e suas famílias.
Palavras-chave: família; convivência familiar; destituição.
Abstract: This research is the result of a course conclusion work - CCW and seeks to address the
significant aspects of the Dismissal Process Family Power and their implications on family
relationships of children and adolescents deprived of family power in the context of the Auxiliary
Service Childhood and Youth - ASC, in the District of Ponta Grossa, State of Paraná. This is a
qualitative research and the selected methodological procedures were: a literature review; documentary
research and the dialectic hermeneutical analysis. The main categories to be discussed during the
process of scientific research are: Family; Family power; Family living, to better understand the
Dismissal of Family Power and its implications in the lives of children, adolescents and their families.
Keywords: family; family living; dismissal.
Introdução
O Estatuto da Criança e do Adolescente (1990) apresenta em seu art. 22 que incumbe “aos
pais o dever de sustento, guarda e educação dos filhos menores, cabendo-lhes ainda, no interesse
destes, a obrigação de cumprir e fazer cumprir as determinações judiciais”. E não havendo o
cumprimento dessas incumbências, pode ser ocasionada a perda ou extinção do poder familiar.
Mais adiante, o art. 23 estabelece que “a falta ou a carência de recursos materiais não
constitui motivo suficiente para a perda ou a suspensão do poder familiar”, ainda que “não
existindo outro motivo que por si só autorize a decretação da medida, a criança ou o
adolescente será mantido em sua família de origem, a qual deverá obrigatoriamente ser
incluída em programas oficiais de auxílio”.
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No entanto, como apresentado por Fávero (2007), são constantes as situações em que
essa ruptura tem como origem a condição de carência econômica e social vivenciada pelas
famílias a quem são dadas essa medida. Por mais que a determinação da perda do poder familiar
não se dê explicitamente por causa das condições de pobreza, o que seria contra lei, essa questão
vem subentendida e aparece como justificativa dos pais na “entrega” de seus filhos.
A Destituição do Poder Familiar é um processo que implica bastante atenção quanto
à sua legislação e critérios de execução, no entanto, como apresenta Fávero (2007), ainda há
uma carência autores que debatem as questões tocantes a essa temática.
Aliado a isso, inserida no estágio curricular, realizado no Serviço Auxiliar da Infância
e Juventude (SAI), da Comarca de Ponta Grossa-PR, passei a notar que constantemente
tramitam processos de destituição do poder familiar, nos quais o assistente social contribui
com seu parecer social.
Tais processos, na maioria das vezes, transformam-se em autos de adoção, mas, por
vezes, não estão em consonância com o preconizado pela legislação.
1. Aspectos teórico-conceituais relativos ao tema
Ao escolher abordar a temática da destituição do poder familiar, faz-se necessário, num
primeiro momento, remeter-se ao conceito de família. Tercioti (2011) nos apresenta que “a
família, como instituição social, é uma entidade muito anterior ao Estado, anterior à própria
religião e anterior ao Direito que hoje a regulamenta, e que resistiu a todas as transformações
que sofreu a humanidade [...]” e não há como negar a essa afirmativa, pois é uma instituição
pertinente a todo e qualquer indivíduo e atualmente alvo das mais diversas políticas.
Para entender a origem da família, é necessário lembrar que, como apresenta Dias
(2014), cultivar certos vínculos afetivos não é uma prerrogativa da espécie humana, o que
sempre existiu foi o acasalamento, sendo tanto pelo extinto de conservação da espécie,
quanto pela aversão que em geral temos à solidão. Essa autora coloca ainda que:
Mesmo sendo a vida aos pares um fato natural, em que os indivíduos se
unem por uma química biológica, a família é um agrupamento informal,
de formação espontânea no meio social, cuja estruturação se dá através do
direito (DIAS, 2014, p. 27).
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Ela destaca também que a família preexiste ao Estado e que a própria organização da
sociedade se dá em torno da estrutura familiar. No entanto, foi a intervenção do Estado que
levou a instituição do casamento que é “nada mais do que uma convenção social para
organizar os vínculos interpessoais, a família formal era uma invenção demográfica, pois
somente ela permitiria à população de multiplicar” (DIAS, 2014, p. 27).
Tais afirmações nos faze reavaliar diversas prerrogativas que temos internalizado,
nos faz relembrar que somos seres primitivos, dotados de instinto que são reprimidos
socialmente e moralmente, meio pelo qual se instituiu o casamento e a família formal.
A família citada no primeiro Código Civil brasileiro, como coloca Dias (2014),
possuía uma formação extensiva, predominantemente rural, integrada por todos os parentes,
formando uma unidade de produção, com grande incentivo a procriação.
No entanto, como apresenta a mesma autora, a família nesses moldes perdurou
somente até a revolução industrial, já que a partir dela, houve um aumento da necessidade
de mão de obra e as mulheres passaram a ser inseridas no mercado de trabalho, deixando o
homem de ser o único provedor da subsistência.
Com isso, entende-se que ao ocuparem as cidades e se inserirem no trabalho dentro
das indústrias, as necessidades das pessoas passaram a ser outras. A ideia de se ter filhos que
antes era voltada a quantidade, na qual quanto mais filhos, mais mão de obra rural, passou a
ser ligada a afetividade, entendendo a prole como fruto do amor entre o casal.
Entende-se, também, que “a família não é um simples fenômeno natural, ela é uma
instituição social variando através da história e apresentando até formas e finalidades
diversas numa mesma época e lugar, conforme o grupo social que esteja sendo observado”
(PRADO, 1985, p. 12).
Dessa forma, o direito de crianças e adolescentes a conviver em meio a uma família
e a comunidade em que está inserida é um direito assegurado pela lei. Tem como marco o
Plano Nacional de Promoção, Proteção e Defesa do Direito de Crianças e Adolescentes à
Convivência Familiar e Comunitária, que surge como o resultado de um processo
participativo de elaboração conjunta.
Configurou-se em um marco para as políticas públicas no Brasil, quando rompe com
a cultura da institucionalização de crianças e adolescentes e ao fortalecer o paradigma da
proteção integral e da preservação dos vínculos familiares e comunitários preconizados pelo
Estatuto da Criança e do Adolescente.
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Com esta iniciativa, também como apresenta Brasil (2006), reconhecemos a
importância da mobilização de Estado e sociedade para que as crianças e os adolescentes
sejam vistos de forma indissociável de seu contexto familiar e comunitário.
Ou seja, as crianças e adolescentes não são fragmentados e, portanto, devemos
sempre pensar no seu atendimento humano integral, por meio de políticas públicas
articuladas com vistas à plena garantia dos direitos e ao verdadeiro desenvolvimento social.
Também considero importante destacar a partir do texto do Plano quando se reafirma
a criança e ao adolescente como “sujeitos de direitos”, entendo-os como:
Indivíduos autônomos e íntegros, dotados de personalidade e vontade
próprias que, na sua relação com o adulto, não podem ser tratados como seres
passivos, subalternos ou meros ‘objetos’, devendo participar das decisões
que lhes dizem respeito, sendo ouvidos e considerados em conformidade
com suas capacidades e grau de desenvolvimento (BRASIL, 2006, p. 26).
E o fato de terem tais direitos significa, então, que são beneficiários de certas
obrigações por parte de terceiros como: a família, a sociedade e o Estado. Estes devem
proteger a criança e o adolescente e propiciar-lhes as condições para o seu pleno
desenvolvimento, no seio de uma família e de uma comunidade, ou prestar-lhes cuidados
alternativos temporários, quando afastados do convívio com a família.
Houve, então, uma mudança de olhar e a busca por novos meios de por em prática as
políticas, não apenas as voltadas à infância e juventude, mas todas as que compõem o chamado
Sistema de Garantia de Direitos, inserindo assim a percepção das crianças e adolescentes como
sujeitos de direitos e pertencentes a um contexto sócio familiar e comunitário.
No entanto, de acordo com Silveira et. al. (2010), esse direito muitas vezes é violado,
mediante dificuldades, sejam elas socioeconômicas, situações de risco ou falta de apoio do
Estado, nas quais a família não consegue sozinha cumprir suas funções, sendo assim,
crianças e adolescentes têm ficado abandonados socialmente. E, como forma de proteção,
são submetidas, muitas vezes, a medida de acolhimento institucional, privando-as do
ambiente familiar natural.
Não foi raro observar em minhas experiências enquanto estagiária da Vara da
Infância e Juventude, alguns profissionais de diversas áreas que ainda têm a concepção
“menorista”, preferindo o acolhimento ao convívio da criança ou adolescente com a família
em situação de pobreza.
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Apesar disso, nos casos onde realmente haja violação dos direitos das crianças e
adolescente, se forem esgotados todos os recursos de permanência dos mesmos em família
natural e/ou extensa, a colocação em família substituta na modalidade adoção, torna-se uma
alternativa, como forma de garantir o direito à convivência familiar e comunitária.
De acordo com o ECA em seu artigo 41, a adoção é medida excepcional e irrevogável e
atribui a condição de filho ao adotado, com os mesmos direitos e deveres, inclusive os sucessórios,
desligando-o de qualquer vínculo com pais e parentes, salvo impedimentos matrimoniais.
Baseado nisso, os profissionais que atuam na área da criança e adolescente, entre
eles, o Assistente Social, precisam ter sempre claro que o ideal para uma criança, tendo
ocorrido o acolhimento, é intervir de forma multidisciplinar para que o contato com a família
de origem permaneça, e que o mais breve possível a criança possa retornar para a sua família.
Da mesma forma, as políticas setoriais – assistência social, saúde, educação e
habitação, devem atuar de forma conjunta, dialogando, e intervindo nestas famílias, com
vistas ao fortalecimento das mesmas, e evitando-se a destituição do poder familiar em casos
com possibilidades de reintegração familiar.
2. Poder familiar e destituição do poder familiar
A expressão Poder Familiar começou a ser inserida na legislação a partir do Código
Civil de 2002, que substituiu o termo “pátrio poder”. Considera-se que, como apresenta
Comel (2003), a expressão “pátrio poder” era denotadora da prevalência do pai em relação
à mulher e aos filhos.
Com a revisão da legislação e notando que o termo não dava conta de englobar o
contexto familiar atual, foi reconhecida a necessidade dessa substituição, para que não
houvesse dúvida sobre a posição da mulher na direção da sociedade conjugal, exercida por
ambos, em colaboração.
O poder familiar é o centro do sistema civil no que se refere a proteção da criança e
adolescente. Ele consiste em deveres aos pais em relação aos filhos como está disposto no
art. 229 da Constituição Federal de 1988: “Os pais têm o dever de assistir, criar e educar os
filhos menores [...]”, tendo sempre as figuras do pai e da mãe em igualdade de condições.
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Segundo Comel (2003), “o poder familiar é uma função: o encargo de atender ao
filho, assegurando-lhe o atendimento de todos os direitos que lhe são reconhecidos como
pessoa, em face de sua condição peculiar de desenvolvimento”.
A mesma autora também coloca que o poder familiar apresenta três características
fundamentais que são: a irrenunciabilidade; a intransmissibilidade e a imprescritibilidade.
De acordo com algumas experiências, percebemos que é comum em nossa sociedade
certas situações de castigos físicos, psicológicos, ou negligência em relação às crianças e
adolescentes, em boa parte dos casos por famílias que vivem em extrema pobreza, com suas
dificuldades, falta de recursos para manter a família, que movidos por descontroles de momento,
pela dureza cotidiana (ou não), acabam descarregando nos filhos seus traumas e frustrações.
Entretanto, de acordo com Comel (2003), a perda do poder familiar é a mais grave medida
imposta em virtude do não cumprimento dos deveres dos pais para com o filho. Tal medida é
imposta quando qualquer dos pais agir desviando-se ostensivamente do que se é esperado, sendo
assim retirada a autoridade, destituindo-o de toda e qualquer prerrogativa em relação ao filho.
O Código Civil de 2002 em seu art. 1638 apresenta os casos em que caberá a
destituição do poder familiar:
Perderá por ato judicial o poder familiar o pai ou a mãe que:
I - Castigar imoderadamente seu filho;
II - Deixar o filho em abandono;
III - Praticar atos contrários à moral e aos bons costumes;
IV - Incidir, reiteradamente, nas faltas previstas no artigo antecedente.
O Estatuto da Criança e do Adolescente apresenta em seu art. 22 que incumbe “aos pais
o dever de sustento, guarda e educação dos filhos menores, cabendo-lhes ainda, no interesse
destes, a obrigação de cumprir e fazer cumprir as determinações judiciais”. E não havendo o
cumprimento dessas incumbências pode ser ocasionada a perda ou extinção do poder familiar.
É importante destacar que, em seguida, no art. 23 é estabelecido que:
A falta ou a carência de recursos materiais não constitui motivo suficiente
para a perda ou a suspensão do poder familiar, ainda que não existindo
outro motivo que por si só autorize a decretação da medida, a criança ou o
adolescente será mantido em sua família de origem, a qual deverá
obrigatoriamente ser incluída em programas oficiais de auxílio.
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No entanto, como coloca Fávero (2007), são constantes as situações em que essa
ruptura tem como origem a condição de carência econômica e social vivenciada pelas famílias
a quem são dadas essa medida. Por mais que a determinação da perda do poder familiar não
se dê explicitamente por causa das condições que pobreza, o que seria contra lei, essa questão
vem subentendida e aparece como justificativa dos pais na entrega de seus filhos.
Devido a isso, de acordo com Torres et. al. (2012), o juiz que destitui o poder da
família deve ser muito criterioso, por ser uma sanção grave, que além de punir os pais (seja
um dos genitores ou ambos), também pode causar traumas à criança e danos irreversíveis.
3. Conhecendo o universo da pesquisa
Após termos abordado os aspectos teóricos relativos ao tema central desse trabalho,
passamos a nos aproximar mais do objeto de estudo.
Como se trata de uma organização hierárquica, falaremos de início do Tribunal de
Justiça do Estado do Paraná, que de acordo com dados encontrados no site oficial, tem início
desde a época em que o nosso país era colônia de Portugal, pois em 22 de junho de 1700 D.
Pedro criou a Ouvidoria Geral para as Capitanias do Sul, sendo Paranaguá a ela subordinada.
Foi regulamentado pela Lei n. 3, de 12 de junho de 1891, na qual esta lei autorizou cada
estado a organizar os serviços públicos, decretar o orçamento para o novo estado e criar um
“Tribunal de 2ª e última instância”, com a denominação de “Tribunal de Appellação”.
A Comarca de Ponta Grossa foi instalada em 16 de dezembro de 1876, sendo logo
após no ano de 1877 extinta. Houve então grande luta de todos os Pontagrossenses, até que
foi restaurada pela Lei Provincial nº 572/1880, tendo como primeiro Juiz de Direito da
Comarca o Dr. Acindino Vicente de Magalhães.
A Comarca conta com a Vara de Execuções Penais, as Varas Cíveis, Varas Criminais,
Varas de Família e a Vara de Infância e Juventude, a qual interessa para nosso trabalho.
A Vara da Infância e Juventude que visa efetivar os direitos das crianças e
adolescentes volta seus esforços para o fortalecimento do sistema de garantia de direitos e
age conforme o ECA.
Ligado a esta Vara, está o SAI - Serviço Auxiliar da Infância e Juventude, nosso
universo de pesquisa, que surgiu a partir do Decreto Judiciário nº 1057, de 09 de dezembro
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de 1991, com atuação junto a Vara da Infância e Juventude e Vara de Família, que estão
diretamente subordinados a Corregedoria de Justiça.
De acordo com a regulamentação, cabe ao SAI assessorar a Justiça da Vara da
Infância e Juventude, atendendo ao Juiz de Direito competente, no desempenho de suas
funções e atribuições, previstas pelo Estatuto da Criança e do Adolescente.
Suas demandas de trabalho estão diretamente ligadas à garantia dos direitos das
crianças e adolescentes e envolvem condições sócio históricas, econômicas, sociais e
culturais, ou seja, necessitam de ações que possibilitem uma intervenção propositiva e
transformadora, visando a efetivação da cidadania, a autonomia e emancipação dos sujeitos.
Contribuindo assim, com subsídios para que os usuários superem a condição de
vulnerabilidade e risco social e/ou pessoal.
4. A realidade dos sujeitos de pesquisa - famílias e crianças envolvidas nos processos
de destituição do poder familiar.
Seguindo com os objetivos da nossa pesquisa, vamos, a partir de agora, traçar o perfil
das famílias das crianças em processo de destituição do poder familiar, no período de janeiro
de 2014 a março de 2015.
Para que isso fosse possível, elaboramos um formulário que orientou a pesquisa
documental realizada junto aos processos. Por pesquisa documental entendemos que:
[...] é aquela realizada a partir de documentos, contemporâneos ou
retrospectivos, considerados cientificamente autênticos (não fraudados);
tem sido largamente utilizada nas Ciências Sociais, na investigação
histórica, afim de descrever/comparar fatos sociais, estabelecendo suas
características ou tendências (PÁDUA, 1997, p. 62).
Como se tratam de processos que tem seu sigilo preservado, solicitamos uma
autorização, via ofício, da Juíza de Direito responsável pela Vara da Infância e Juventude da
Comarca de Ponta Grossa.
Com a autorização em mãos, solicitamos ao Cartório da Vara uma busca no sistema
digital onde são disponibilizados os processos. Pudemos localizar 14 processos em
tramitação no período selecionado, dos quais dois não conseguiram ser repassados, pois o
sistema bloqueou o acesso. De acordo com uma das funcionárias do cartório, é provável que
isso tenha ocorrido pelos processos estarem com algum documento pendente.
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Dessa forma, tivemos acesso a 12 processos para a pesquisa, que envolvem 21 crianças,
uma vez que há casos de mais de uma criança por família incluídas no mesmo processo.
A partir disso, quanto às famílias envolvidas, demos ênfase a questões como: número
de filhos; renda familiar; escolaridade; situação habitacional; uso de substâncias psicoativas,
entre outras observações. Dessa forma, obtivemos o perfil que segue:
Tabela 1 - Número de Filhos por Família
Famílias Porcentagem
De 1 a 3 filhos 5 42%
De 3 a 5 filhos 6 50%
Mais de 5 filhos 1 8%
Total 12 100%
Fonte: Processos estudados na pesquisa documental. Organizado pelas autoras.
Observamos com isso, que a maioria expressiva das famílias incluídas no estudo
possui até cinco filhos. Cabendo ressaltar, também, que de acordo com os dados obtidos,
50% tiveram outros filhos destituídos, a maior parte incluída no mesmo processo.
Quanto à renda aproximada dessas famílias, tivemos certa dificuldade em localizar,
tendo em vista que em alguns processos não estava incluído o estudo social com a família,
ou até mesmo o estudo social não apresentava tal informação.
Tabela 2 - Renda Familiar
Famílias Porcentagem
Inferior a 1 salário mínimo 1 8,5%
Igual a 1 salário mínimo 7 58%
Acima de 1 salário mínimo 1 8,5%
Não consta 3 25%
Fonte: Processos estudados na pesquisa documental. Organizado pelas autoras.
Percebemos na tabela acima que somente uma dessas famílias possui renda superior
a um salário mínimo, tendo como agravante o fato de que 58% não recebe nenhum outro
tipo de benefício.
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Tabela 3 - Recebem Algum tipo de Benefício?
Sim 2 17%
Não 7 58%
Não Consta 3 25%
Fonte: Processos estudados na pesquisa documental. Organizado pelas autoras.
Ao buscarmos informações a respeito da escolaridade dos genitores, percebemos que
dos 12 processos, somente em três constava no estudo social que a mãe concluiu o ensino
fundamental. Quanto aos pais, não era mencionado a escolaridade.
Para a construção do perfil, foram consideradas também informações acerca da
situação habitacional das famílias, bem como as condições de sua moradia.
Tabela 4 - Situação Habitacional e Condições de Moradia
Situação Habitacional
Casa Própria 2 Alvenaria 1
Casa Alugada 0 Madeira 7
Casa Cedida
Sem residência fixa
Moradores de rua
6
2
2
Mista
Ocupações Irregulares
1
3
Fonte: Processos estudados na pesquisa documental. Organizado pelas autoras.
Além disso, pelo que consta nos relatórios de estudo social, a maioria das casas
contam com condições precárias, tanto de construção, quanto de limpeza (interior e exterior),
algumas vezes com fiação elétrica exposta e presença de lixo como restos de comida.
No que se refere às condições de saúde da família, são citadas questões muito
pontuais, em alguns processos da saúde das crianças e em outros de algum outro membro da
família. Foram encontradas nos processos doenças como: escabiose, anemia, desidratação,
paraplegia, bronquite, paralisia cerebral, problemas respiratórios, comprometimento
psicológico e déficit de atenção.
Cabendo destacar que muitas dessas doenças são relacionadas com as condições de
vida dessas famílias e com o ambiente em que estão inseridas, suas condições de higiene e a
falta de acesso a informação quanto aos cuidados básicos com a saúde.
Quanto ao uso de substâncias psicoativas, das 12 famílias estudadas, em 10 casos,
pelo menos um dos genitores fazia uso de algum tipo de droga e em 2 não faziam nenhum
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tipo de uso, sendo que a maior parte consumia bebidas alcóolicas e os demais tipos de
substâncias não foram descriminadas nos relatórios.
Podemos observar que os dados apresentados até o momento trazem a tona o fato de
que famílias que têm seus filhos destituídos do poder familiar são, em grande maioria, famílias
com condições de sobrevivência muito comprometidas e também desamparadas pelo Estado,
que não dá conta de cumprir com suas obrigações para com a população mais necessitada.
Sabemos que isso é reflexo de uma questão estrutural, pois o sistema em que estamos
inseridos faz com que o Estado se enxugue para o social, e a população como, coloca Paiva (2000):
Conta sempre com menor proteção social seja como consequência da
legislação (modificada ou não), seja pela redução dos serviços sociais do
Estado [...] A era democrática de serviços não contributórios como direito
humano ficou para trás (PAIVA, 1999, p. 52).
Pensando nesse sentido, notamos que essas famílias muitas vezes não conseguem
manter seus filhos por estarem completamente desassistidas.
Tendo conhecido a realidade das famílias envolvidas nos processos de destituição do
Poder Familiar a partir das informações coletadas na pesquisa documental podemos também
identificar as características das crianças inseridas no processo.
Como já citado anteriormente, foram localizadas (nos 12 processos) 21 crianças.
Desse total constatamos que 11 são do sexo feminino e 10 são do sexo masculino.
Quanto à idade, estabelecemos no formulário três faixas etárias, de 0 a 5 anos –
encontramos 11 crianças; de 5 a 10 anos – 10 crianças e na faixa etária de crianças com mais
de 10 anos, não encontramos nenhuma.
Quanto à atual situação dessas crianças, observamos que quinze estão inseridas em
família substituta, ou seja, foram adotadas. Três estão em instituição de acolhimento, pois
apesar de terem sido destituídas do Poder Familiar, ainda não foram localizadas nos
cadastros, pretendentes a adoção em que o perfil se encaixe.
Além disso, duas crianças conseguiram ser reinseridas no contexto familiar materno,
após ter ocorrido à contestação da Inicial do Ministério Público1 com ganho de causa. E, por
fim, uma das crianças encontra-se em lugar incerto, já que evadiu da instituição de acolhimento.
1 É o documento que o Ministério Público redige ao iniciar um pedido de destituição do poder familiar,
descrevendo o caso, elencando os motivos que levaram a destituição, bem como a legislação que o embasa.
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No que se refere ao tempo de tramitação do processo, utilizamos como início a data
em que o Ministério Público entrou com a Inicial de Destituição do Poder Familiar e como
final a data da sentença final autorizando a Destituição.
Tabela 5 - Tempo de Tramitação do Processo
De 1 a 3 meses 5
De 3 a 6 meses 4
De 6 a 9 meses 1
De 9 meses a 1 ano 1
Não se concluiu 1
Fonte: Processos estudados na pesquisa documental. Organizado pelas autoras.
É perceptível o fato de que os processos são concluídos em muito pouco tempo,
deixando o questionamento dos métodos utilizados, bem como a consistência dos
argumentos elencados.
Não podemos deixar de destacar que muitos processos de destituição do poder familiar
são fruto de outro processo de providências que já correm há mais tempo, mas chegamos a
estudar processos em que a destituição ocorreu dois dias após o nascimento da criança.
Durante o processo de construção da pesquisa documental, nos interessou também
identificar quais os motivos que autorizavam o processo de Destituição do Poder Familiar,
tendo em vista que como apresentado no primeiro Capítulo, trata-se da sanção mais grave
aplicada aos pais em relação aos filhos e só deve acontecer em último caso.
Por isso, essa questão se apresentou com bastante destaque. O quadro abaixo apresenta os
principais motivos contidos nas Iniciais de Destituição do Poder Familiar do Ministério Público.
Quadro 1 - Motivos que Autorizam a Destituição do Poder Familiar
Negligência
Ausência de visitas dos pais aos filhos no acolhimento
Maus tratos
Longo período de acolhimento institucional
Imóvel com precárias condições
Uso de substâncias psicoativas pelos genitores
Mendicância e suspeita de abuso sexual (mesmo processo)
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Entrega espontânea dos pais por ausência de condições
Prostituição da mãe
Fonte: Processos estudados na pesquisa documental. Organizado pela autora.
A Negligência foi a questão mais citada quando nos remetemos aos motivos. No
entanto, essa expressão nos incomoda, pois vem denotada de julgamentos e valores que não
devem ser generalizados, uma vez que:
É dita negligente a família que não cumpre a sua função, esperada, de
cuidar/proteger os filhos. Entretanto, a ideia que norteia essa prática é aquela
baseada na ordem familiar burguesa, instituída socialmente, pautada por
valores hegemônicos – que ditam o certo e o errado, como uma criança deve
ser educada e protegida. Desqualificam-se, assim, distintas organizações
familiares que não seguem esse modelo burguês. A família dita negligente
deixa de fazer o que é esperado, apesar de poder constituir outras práticas que,
entretanto, não são legitimadas socialmente (NASCIMENTO, 2012, p. 182).
Ou seja, a família é categorizada como negligente, mas desconsidera-se que muitas
vezes ela é quem está sendo negligenciada pelo Estado, a família pobre é privada de direitos,
e consequentemente não tem como suprir/garantir as necessidades de seus filhos.
Outro ponto chave é a questão da não construção de vínculos ou a falta de visitas aos
filhos na instituição de acolhimento que foi citado como motivo de destituição pelo
Ministério Público em vários processos, principalmente de bebês, sendo que, nos estudos
sociais constatamos que as visitas eram suspensas judicialmente e o processo corria
rapidamente, assim os vínculos não poderiam mesmo ser construídos.
Destacam-se, também, situações onde o relatório das assistentes sociais apontam
membros da família extensa com interesse de acolher a criança ou adolescente e o documento
do Ministério Público contradiz, mencionando que não foi encontrado ninguém, fato que
viola o direito dessa criança permanecer em sua família de origem.
Não negamos que em casos extremos de maus tratos, violência sexual, abandono, a perda
do poder familiar é necessária, ou ainda quando não há vínculo afetivo construído na gestação e
conscientemente os pais entregam seu filho a adoção é compreensível. Mas motivos como
negligência, situação de mendicância, prostituição, ausência de condições frente aos cuidados
básicos, são estritamente ligadas às condições econômicas das famílias e a falta de acesso a rede
de serviços públicos, o que faz com que a perda do poder familiar contrarie a legislação.
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Considerações Finais
Os resultados obtidos nesse processo de pesquisa permitiram uma compreensão
acerca dos aspectos do processo de destituição do poder familiar, tanto de maneira teórica
quanto como ocorre na prática.
Identificamos que, quando o processo não ocorre conforme previsto pela legislação
vigente, pode acarretar muitos danos às relações familiares, como por exemplo filhos
crescendo sem ter a possibilidade de conhecer e conviver com sua família de origem e
famílias que estarão sempre permeadas pela sensação de injustiça e de perda de algo
irreparável que é um filho.
Percebemos, também, que em boa parte dos casos há uma culpabilização da família em
relação às suas condições econômicas, que surge implicitamente nas decisões. Também notamos
a presença de julgamentos morais em relação às mulheres com maior número de filhos.
Em relação às crianças, percebemos que quando bebês, a destituição ocorre com
muita rapidez, pois se trata de demandas prioritárias aos pretendentes de adoção, sendo
retirados do convívio familiar logo na maternidade, para que não sejam criados vínculos e
mesmo quando há vontade dos genitores em ficar com seus filhos, existem situações que são
suspensas visitas por vias judiciais.
Portanto, trata-se de um cenário preocupante, no qual muitos direitos da família e
principalmente das crianças e adolescentes estão sendo violados. Não negamos aqui que
existem casos onde é necessário e compreensível a destituição do poder familiar, mas, deve-
se agir em consonância com a legislação, tendo em vista os direitos dos envolvidos, evitando
assim danos irreversíveis.
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O HOMEM DA RELAÇÃO: O PROCESSO LEGISLATIVO DE
RECONHECIMENTO DE DIREITOS DOS HOMOSSEXUAIS
Janaína Gomes Garcia de Moraes UFES
Resumo: O projeto de pesquisa apresentado para o Mestrado em Direito da UFES visa discutir os
direitos civis dos homossexuais na atualidade. Como, para negar o acesso desses grupos a tais
direitos, a defesa da família é frequentemente invocada, é necessário examinar o conceito desta.
Assim, o presente trabalho visa discutir a essência social e histórica da noção de família, a fim de
inseri-la, posteriormente, no contexto da formação familiar por homossexuais, sua composição e suas
formas de filiação. No trabalho que ora se apresenta, o objetivo é apresentar o estado da arte no que
tange às noções de família que permeiam o imaginário brasileiro, por meio de revisão bibliográfica,
demonstrando que a configuração de família conhecida e compartilhada no Brasil não é uma ideia
natural e intrínseca ao instituto.
Palavras-chave: família; adoção; construção social.
Abstract: The dissertation research project presented to the UFES Law Masters intends to discuss
the homosexual´s civil rights nowadays. As, for denying the access of these groups to such rights,
the defense of the family é frequently called for aid, it is necessary to examine its concept. Therefore,
this paper aims to discuss the social and historical essence of the family notion in order to insert it in
the context of homosexual families, its arrangements and parenting forms. In this paper, the goal is
to present the state of art about the family concepts that surround Brazilian collective imagination,
through bibliographic review, showing that the family feature known and shared in Brazil is not a
natural and an inherent idea to the institution.
Keywords: family; adoption; social construction.
Introdução
Não é preciso muito esforço para encontrar filmes, propagandas e programas de TV
que contenham uma imagem da família ideal: papai, mamãe e filhinhos. Ao vê-la,
pressupomos que o pai e a mãe se apaixonaram e, então, casaram-se. Em seguida, vieram os
filhos. Assim, formou-se a família e todos viveram felizes para sempre.
Não é difícil, também, encontrar histórias cujo objetivo do protagonista é estabelecer essas
relações, superando adversidades para conquistar seu grande amor, e com este se casar e ter filhos.
Porque essas histórias são tão frequentes e porque, hoje, muitas pessoas se identificam com
elas, a impressão que se tem é de que esse é o curso natural da vida e que essa imagem de família
corresponde à família mesma, tal qual é e sempre foi. Assim, identificam-se as famílias atuais com
as antigas, como se essa instituição fosse natural e inerente ao homem.
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No entanto, o estudo de dados históricos e sociológicos dão conta de que essa
formação familiar, centrada no casal e nos filhos, vivendo numa mesma casa, onde impera
o amor, surgiu em um determinado momento histórico relativamente recente, e estava, então,
circunscrita a um grupo da sociedade. Somente com o tempo, a configuração hoje tida por
tradicional se estendeu a outros grupos.
São os apontamentos históricos e sociais a esse respeito que pretendo abordar neste
trabalho, a fim de desconstruir a ideia de naturalidade na formação familiar contemporânea.
Isto é, por meio de revisão bibliográfica, pretendo demonstrar que a noção de família
atualmente vigente é fruto de uma construção social. E, então, tendo isso em vista, refletir
criticamente sobre a exclusão de outros modelos.
Antes, porém, de entrar no tema do trabalho propriamente dito, são necessários
alguns esclarecimentos e delimitações.
Primeiro, a fim de não gerar interpretações errôneas ou enviesadas, esclareço que
reconhecer o caráter eminentemente social, em detrimento do natural, da ideia de família
não importa em juízo de valor bom/mau, certo/errado ou afins. De acordo com os textos que
serão citados ao longo deste artigo, verifica-se que a família conjugal fundada no amor do
casal não é um dado da natureza, mas uma criação humana. Contudo, isso não significa que
haja algo de ruim nesse modelo. Não há correspondência que implique natural = bom e social
= mau, neste trabalho. A intenção, aqui, é demonstrar que esse modelo tradicional não
precisa excluir outros, em nome de uma naturalidade que lhe seria intrínseca.
É preciso esclarecer também quais são os limites da investigação. Considerando que
o modelo de família propagado no Brasil do século XXI é este fundado no amor do casal
que procria, tem-se que sua origem está na Europa Ocidental, no período após a queda do
Antigo Regime. Assim, uma vez que o objetivo deste trabalho é demonstrar a construção
desse modelo, e dadas as limitações temporais e espaciais, serão excluídas as formas de
organização familiares indígenas (dos nativos do Brasil), africanas (tanto dos escravos
trazidos quanto das pessoas que ficaram na África), orientais (aí incluída a Índia, a China, o
Japão, os países do Oriente Médio, as ilhas da Polinésia e da Melanésia etc). O objetivo deste
trabalho não é fazer um tratado sobre todas as organizações possíveis para as famílias, mas
apenas demonstrar que o atual modelo ocidental não é o único existente e nem mesmo no
próprio Ocidente ele foi sempre assim. Dessa maneira, o corte metodológico engloba apenas
o Ocidente, em especial a Europa e o Brasil, a partir da queda do Antigo Regime.
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Dito isso, cabe um último esclarecimento prévio: estou ciente de que procurar na
Europa Ocidental um modelo de família que se aplica ao Brasil é incorrer no vezo de se
tomar a história da França como a história do mundo, obliterando as particularidades
regionais que fazem com que os modelos e as visões acerca do tema não sejam
completamente coincidentes. No entanto, é reconhecida aqui a influência que o modelo
emergido com a ascensão da burguesia provocou no Ocidente, inclusive no Brasil, de
maneira que entendo possível sua consideração para os fins desse trabalho.
Assim, fixado o campo de investigação e seu método, é possível passar ao estudo do tema.
1. A família conjugal: uma construção social
Diz-se do Direito que ele é uno, sendo dividido em ramos com objetos, princípios e
regras diferentes para fins apenas didáticos.
Um desses ramos do Direito é voltado expressamente para regular e tutelar a família.
Embora esse fato revele a importância que essa instituição ostenta no meio jurídico, é de se
notar que nenhuma lei se preocupe em conceituá-la.
Isso se deve ao fato de que a sociedade brasileira regida pela Constituição Federal de
1988 e pelo Código Civil de 2002 tem uma ideia compartilhada do que seja uma família, de
maneira que o seu conceito possa estar implícito na legislação sem prejuízo à compreensão
dos destinatários da lei. É possível, então, afirmar que a noção de família protegida pelo
Direito brasileiro é uma representação social, entendida como um conhecimento prático
acerca de um objeto ao qual os membros de um grupo aderem e do qual participam
(JODELET, 1989). Desse modo, sendo o conceito de família um saber prático partilhado na
comunidade, o legislador pode prescindir de defini-la. No entanto, ele deixa pistas muito
sugestivas daquilo que entende como família.
No Código Civil, a estrutura do Livro IV, que trata do Direito de Família, deixa claro
que ela é pensada a partir do casamento; após, pensam-se outros temas, como os filhos. Assim,
a disposição das seções esclarece o que ora se afirma, como se infere da reprodução abaixo:
LIVRO IV
Do Direito de Família
TÍTULO I
Do Direito Pessoal
SUBTÍTULO I
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Do Casamento
[...]
SUBTÍTULO II
Das Relações de Parentesco
CAPÍTULO I
Disposições Gerais
CAPÍTULO II
Da Filiação
A escolha dessa sequência, dentre tantas outras possíveis, revela como se organizam
(ou devem organizar-se) as famílias no imaginário brasileiro.
Com base nela, verifica-se que, embora não haja nenhum impedimento legal ou fático
para que os filhos venham antes do casamento (ou mesmo a despeito dele), a ordem dos
dispositivos demonstra como a nossa cultura está impregnada pela ideia de que o casamento
entre homem e mulher – que pressupõe fidelidade recíproca; vida em comum, no domicílio
conjugal; mútua assistência; sustento, guarda e educação dos filhos; respeito e consideração
mútuos (art. 1.566, CC) – funda a noção de família no Brasil.
A par disso, não se pode deixar de notar que o Código Civil dedica, no que tange aos
Direitos Pessoais de Família, 71 artigos ao casamento (arts. 1.511 a 1.582) e 55 (arts. 1.5831
a 1.638) a outros assuntos – estando excluídos, dessa conta, os dispositivos referentes aos
Direitos Patrimoniais relativos à Família (Título II do Livro), como as regras que regulam o
regime de divisão de bens do casal.
Do mesmo modo que o Código Civil, a Constituição, no capítulo dedicado à família, à
criança, ao adolescente, ao jovem e ao idoso, refere-se, tão logo quanto possível – isto é, no
primeiro parágrafo do primeiro artigo – ao casamento, como se confere da transcrição a seguir:
Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado.
§ 1º O casamento é civil e gratuita a celebração.
§ 2º O casamento religioso tem efeito civil, nos termos da lei.
§ 3º Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre
o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua
conversão em casamento.
§ 4º Entende-se, também, como entidade familiar a comunidade formada
por qualquer dos pais e seus descendentes.
§ 5º Os direitos e deveres referentes à sociedade conjugal são exercidos
igualmente pelo homem e pela mulher.
§ 6º O casamento civil pode ser dissolvido pelo divórcio.
1 Os artigos 1.583 a 1.590 estão no subtítulo que trata do casamento, no entanto, por se referirem à guarda
compartilhada dos filhos, entendi adequado não os contabilizar como relativos ao casamento, mas a outros
temas. Se fossem recolocados no grupo que versa sobre o casamento, a diferença seria ainda mais expressiva.
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§ 7º Fundado nos princípios da dignidade da pessoa humana e da
paternidade responsável, o planejamento familiar é livre decisão do casal,
competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e científicos para o
exercício desse direito, vedada qualquer forma coercitiva por parte de
instituições oficiais ou privadas.
§ 8º O Estado assegurará a assistência à família na pessoa de cada um dos
que a integram, criando mecanismos para coibir a violência no âmbito de
suas relações.
Esse protagonismo do casamento, e, após sua menção, a referência aos filhos,
demonstra como o Brasil aderiu a uma configuração específica da instituição familiar.
Como dito anteriormente, esse modelo de família, entendido, nas palavras de
MELLO (2005, p. 34), como o grupo “[...] formado por um homem provedor e uma mulher
afetuosa que se amam, que são casados civil e religiosamente, [...] que têm pelo menos dois
filhos, de preferência um casal [...]”, é uma representação social. E como tal, “é importante
reconhecer que o objeto-mundo vai além de nossos esforços para representá-lo. [...] porque
a pluralidade humana abre este objeto para os esforços de representação de outros diferentes
e diferentes contextos [...]” (JOVCHELOVITCH, 2004, p. 23-24), fazendo com que as
famílias adquiram configurações diversas nas variadas sociedades e ao longo da história.
Em razão disso, ou seja, de que a família não é uma entidade em si (ZAMBRANO,
2006), parto da premissa de que ela “é apenas uma palavra, uma simples construção verbal,
[e assim] trata-se de analisar as representações que as pessoas têm do que designam por
família” (BOURDIEU, 1996, p. 125). Nesse sentido, são os esforços desse trabalho.
De acordo com BOSWELL (1994), imersos que estamos nessa cultura segundo a qual o
propósito da vida é encontrar seu grande amor e com ele se casar, não percebemos como essas
ideias não estavam presentes no passado ocidental e não estão em muitas sociedades atuais, em
que se enfatizam, por exemplo, as histórias de heróis ou as sagas de famílias, sem que o amor
romântico desempenhe qualquer papel relevante. Embora, segundo o autor destaca, não haja
estudos explicando o porquê disso, é possível relacionar essa tendência romântica a uma
mudança estrutural nas relações familiares e sociais existentes no passado recente.
O casamento foi, por muito tempo, visto como uma aliança entre grupos. O amor só
passou a fazer parte do seu conceito recentemente, com o sucesso das técnicas de vigilância
sobre as famílias e sobre o corpo que se instituíram a partir do século XVIII. Nesse sentido,
ZAMBRANO (2006) ensina que a família passou “ser o local privilegiado da afetividade,
uma das características da família nuclear, apenas no século XIX”.
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Segundo DONZELOT (1986), em meados do século XVIII, na Europa Ocidental, os
médicos, imbuídos da finalidade de conservar as crianças, em razão da alta taxa de
mortalidade, passaram a se preocupar com dois objetos que haviam ficado fora do interesse
da medicina: as mulheres e as crianças. Elas estavam, até então, restritas ao domínio dos
cuidados das comadres, posteriormente, tidos como perniciosos e supersticiosos.
O movimento de preocupação com essas pessoas levou a uma ressignificação do
papel da mulher, enquanto responsável pela criação dos filhos e intermediária entre o médico
e a família (DONZELOT, 1986). Isso acabou por construir uma imagem da mulher que é
permeada por ideias que tampouco são naturais, a exemplo do instinto materno2, da
feminilidade3 e da intuição feminina4. Sendo assim, com efeito, a mulher não existe5.
Nesse contexto, houve, também, uma ressignificação da noção de criança, como
destinatária de cuidados especiais e específicos, diferentes dos cuidados dos adultos. A nova
concepção instaurou uma noção de criança como objeto de zelos, retirando-lhes a capacidade
de serem sujeitos de ações. Isso se irradiou no imaginário popular, de modo a enviesar a
interpretação de narrativas, em razão da “percepção das crianças como vítimas às quais
emprestamos pouca ou nenhuma capacidade de agência”, como o notou RIFOTIS (2007, p.
3) em relação à história de João e Maria.
O discurso médico, em nome da saúde dos membros da família, pregava uma série
de regras higienistas que, combinadas com o controle social visado pelo Estado, conduziu
ao enclausuramento do grupo familiar, que “se retirou da rede extensa de parentela e
compartimentalizou os espaços de seus membros, tornando a rua fora do âmbito de mulheres
2 De acordo com ZAMBRANO (2006): “Chodorow (1990) argumenta que o aprendizado do ‘cuidado com as crianças’
é parte fundamental da socialização das mulheres, em nossa sociedade. É importante salientar, também, a existência de
trabalhos clássicos, como o de Elisabeth Badinter (1985), contrapondo-se às teorias que postulam a existência de um
‘instinto materno’, inato e universal, compartilhado por todas as mulheres. A autora defende que amor materno é, na
verdade, um mito, que assume um valor social incalculável e exerce uma imensa coerção sobre os nossos desejos. Isso,
porém, não implica ser ele universal, nem estar presente nas mulheres sob forma de um instinto”. 3 Segundo BOURDIEU (2012, p. 82): “Delas se espera que sejam ‘femininas’, isto é, sorridentes, simpáticas,
atenciosas, submissas, discretas, contidas ou até mesmo apagadas. E a pretensa ‘feminilidade’ muitas vezes
não é mais que uma forma de aquiescência em relação às expectativas masculinas, reais ou supostas,
principalmente em termos de engrandecimento do ego. Em consequência, a dependência em relação aos outros
(e não só aos homens) tende a se tornar constitutiva de seu ser”. 4 BOURDIEU (2012, p. 42) observa, quanto à intuição feminina, o seguinte: “Forma peculiar da lucidez especial dos
dominados, o que chamamos de ‘intuição feminina’ é, em nosso universo mesmo, inseparável da submissão objetiva e
subjetiva que estimula, ou obriga, à atenção, e às atenções, à observação e à vigilância necessária para prever desejos
ou pressentir desacordos. Muitas pesquisas puseram em evidência a perspicácia peculiar dos dominados, sobretudo das
mulheres [...]: mais sensíveis aos sinais não verbais (sobretudo à inflexão) que os homens, as mulheres sabem identificar
melhor uma emoção não representada verbalmente decifrar o que está implícito em um diálogo [...]”. 5 Valho-me da célebre frase de Lacan, em trocadilho, para enfatizar a ideia de construção social da imagem do
feminino. Não há alusão à psicanálise aqui.
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e crianças” (FONSECA, 1995, p. 20), a fim de permitir o pleno e sadio desenvolvimento
destas, sem a interferência corruptora da criadagem (DONZELOT, 1986). Com isso, de
acordo com FOUCAULT (1988, p. 9):
A sexualidade é, então, cuidadosamente encerrada. Muda-se para dentro de
casa. A família conjugal a confisca. E absorve-a, inteiramente, na seriedade
da função de reproduzir. Em torno do sexo, se cala. O casal, legítimo e
procriador, dita a lei. Impõe-se como modelo, faz reinar a norma, detém a
verdade, guarda o direito de falar, reservando-se o princípio do segredo. No
espaço social, como no coração de cada moradia, um único lugar de
sexualidade reconhecida, mas utilitário e fecundo: o quarto dos pais.
Essa preocupação médica com a saúde das crianças e dos demais membros da família
(focalizando no controle das doenças venéreas), no entanto, não se desenvolveu na forma da
aliança médico-mulher nas camadas mais pobres. Nelas, segundo DONZELOT (1986), as
práticas eram coercitivas. Para que tivessem acesso a benefícios sociais, as famílias populares
tinham que aderir ao modelo de família pai-mãe-casados-filhos-legítimos, bem como à divisão
da habitação em quartos separados para o casal e para os filhos (estes apartados por sexo),
retirando-se os agregados e quaisquer terceiros. Nas palavras de DONZELOT (1986, p. 27):
Não se trata mais de arrancar as crianças às coerções inábeis, mas sim de
entravar liberdades assumidas (abandono de crianças em hospícios para
menores, abandono disfarçado em nutrizes), de controlar as uniões livres
(desenvolvimento do concubinato com a urbanização na primeira metade
do século XIX), de impedir linhas de fuga (vagabundagem dos indivíduos,
particularmente das crianças). Em tudo isso não se trata mais de assegurar
proteções discretas, mas sim, de estabelecer vigilâncias diretas.
Assim, foi no contexto da implantação das novas práticas médicas e das imposições
estatais de controle social (estímulo ao casamento oficial, concessão de habitações que
evitassem o contato dos corpos e a agregação de terceiros, fechamento das rodas e dos
hospícios) – visando a diminuir gastos públicos, o crescimento de indigentes e a mortalidade
infantil – que surgiu a concepção atual de família.
Desse modo, verifica-se que a “definição dominante, legítima, da família normal [...]
apoia-se em uma constelação de palavras – casa, unidade doméstica, house, home, household –
que, sob a aparência de descrevê-la, de fato constroem a realidade social” (BOURDIEU, 1996,
p. 124) e se referem a um período específico da história, em um espaço delimitado. Como resume
DONZELOT (1986, p. 11), “o sentimento moderno da família teria surgido nas camadas
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burguesas e nobres do Antigo Regime estendendo-se, posteriormente, através de círculos
concêntricos, para todas as classes sociais, inclusive o proletariado do fim do século XIX”.
2. A família conjugal: um mito e um fato
Segundo visto no capítulo anterior, “a família que somos levados a considerar como
natural, porque se apresenta com a aparência de ter sido sempre assim, é uma invenção
recente” (BOURDIEU, 1996, p. 124).
Não bastasse isso, essa “imagem, manifesta em cartilhas escolares reproduzidas a
partir da década de 50, de papai, mamãe e filhos reunidos em torno da mesa de jantar”
(FONSECA, 1995, p. 115) não só é uma criação histórica artificial, como também não
corresponde à maioria das organizações entre pessoas verificadas desde sua invenção.
Nesse sentido, BOURDIEU (1996, p. 124):
[...] uma série de grupos que designamos como “famílias” absolutamente não
correspondem à definição dominante nos Estados Unidos na atualidade e que
a família nuclear é, na maior parte das sociedades modernas, uma experiência
minoritária em relação aos casais que vivem juntos sem serem casados, às
famílias monoparentais, aos casais casados que vivem separados etc.
Essa mesma constatação foi verificada no Brasil, onde a família tradicional, chefiada
pelo pai, casado com a mãe, que tinha muitos filhos, também seria uma minoria, segundo os
dados apontados por FONSECA (1995, p. 73):
Na última década, avanços no campo de pesquisas históricas têm
demonstrado que este modelo nunca foi realizado por mais do que uma
pequena minoria da população. O que se verifica, na realidade, é a
preponderância de uniões consensuais (nas quais é muito difícil julgar a
taxa de estabilidade ou de separação conjugal), de famílias nucleares
pequenas, e a presença persistente de crianças “em circulação”. Em certas
instâncias (cidades de Minas Gerais e São Paulo no início do século XIX),
a família chefiada por uma mulher, o suposto protótipo da família
desagregada, chegava a ser tão comum quanto a família conjugal.
Desse modo, percebe-se que a imagem evocada pelas leis atuais não se refere, em
absoluto, a um modelo natural, nem no sentido de algo que independe da vontade humana,
nem no sentido usual de algo que represente a maioria.
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Tendo isso em vista, não se sustentam os discursos que pregam que a família precisa ser
protegida de ameaças diversas, como o casamento gay e a adoção por homossexuais. Sendo
construída socialmente, a família está sujeita a mudanças em sua configuração, à medida que mude
a sociedade. Demais disso, enquanto ente abstrato, ela não pode ser defendida ou ameaçada. Tais
discursos fazem parte de uma ideologia que, com a finalidade de prescrever a “maneira correta de
viver as relações domésticas” (BOURDIEU, 1996, p. 126), antropomorfiza a família.
Em todo caso, o mito da família perfeita existe, e ele está assentado sobre o
casamento reprodutor. Por isso, pertencer a uma dessas famílias concede aos membros um
capital simbólico importante: “o de ser como se deve, dentro da norma, portanto, de obter
um lucro simbólico da normalidade” (BOURDIEU, 1996, p. 130). Conhecedores, ainda que
inconscientes, desse privilégio na nossa sociedade, queremos desfrutá-lo.
Esse capital é capaz de explicar o motivo por que os homossexuais objetivam a
normalização de suas relações por meio da positivação legal de seu casamento (a despeito de
poderem celebrá-lo atualmente sem maiores embaraços), bem como por que enfatizam, nos
processos de adoção, a “adequação de suas famílias aos modelos hegemônicos, evidenciados
pelas características heterossexuais, [como] uma forma de confirmar o sucesso de sua
paternidade/maternidade, ainda que ‘homoafetiva’” (COITINHO FILHO, 2014, p. 38).
3. A dádiva da criança
Como visto, a representação que se tem da família embute a presença de filhos que
sejam legítimos.
A ideia de legitimidade dos filhos de hoje nada tem a ver com aquela do início do
século XX, por exemplo. Atualmente, uma criança formalmente adotada, mediante o uso
dos aparelhos do Estado, é, por muitos, considerada legítima.
De qualquer modo, em geral, para que, no Brasil do XXI, se afirme ter constituído
uma família, os filhos são necessários. Nesse contexto, aqueles que, por qualquer motivo,
não podem biologicamente se reproduzir buscam, muitas vezes, a adoção.
No direito, conforme ensina FONSECA (1995, p. 115), “ainda existe em muitos
tratados jurídicos, uma 'naturalização' da família conjugal. Evidentemente, a maioria dos
juristas têm isto em mente quando diz que a adoção deve ‘imitar a natureza’, ou quando fala
da ‘família normalmente constituída’”.
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No entanto, sem embargo da concepção jurídica de adoção, há outras maneiras de
um grupo de pessoas receber uma criança.
Durante os séculos XVIII e XIX, vigoraram no Brasil e na Europa as rodas de crianças
expostas, como forma daqueles que não podiam manter seus filhos poderem enjeitá-los de uma
maneira mais “humana” (DONZELOT, 1986; VENÂNCIO, 1999). No Brasil, as crianças que
sobreviviam (a taxa de mortalidade infantil era a mais alta, superando até mesmo a entre os
escravos), eram entregues a nutrizes, que com elas tinham responsabilidade até os sete anos. Após
essa idade, algumas famílias permaneciam com as crianças em seu meio (VENÂNCIO, 1999).
Contudo, dentre essas famílias que ficavam com as crianças, a adoção propriamente dita,
ou seja, em sentido formal, não era comum. Segundo VENÂNCIO (1999, p. 137), isso se devia
ao fato de as que “as regras da adoção legal mais pareciam regras da 'não-adoção', tal era o grau
de dificuldades impostas ao casal que quisesse integrar o enjeitado à própria família”.
De acordo com FONSECA (1995), há uma explicação econômica sobre porque,
antes do século XX, “os poderes centrais agiam contra a adoção” (FONSECA, 1995, p. 118):
Assim, mantinham relativamente alto o número de pessoas sem herdeiros,
fazendo com que o patrimônio de muitas famílias escoasse para o senhor
feudal ou para a Igreja (ver Godoy, 1982).
Apesar do grande número de enjeitados deixados na roda dos expostos,
assim como os bandos de jovens que viviam nas vias públicas (Donzelot,
1980, Rizzini, 1993), antes do século XX houve poucos movimentos ou
debates para adaptar as leis sobre adoção ao problema destas “crianças
abandonadas”. Não era raro as pessoas receberem no seu lar um jovem
desamparado. Filhos de criação existiam de fato. Mas raras vezes pensava-
se em legalizar sua situação pela adoção.
Ainda hoje, a adoção “prática” é uma realidade, e talvez seja mais frequente que a
formal. Dentre as camadas populares contemporâneas, verifica-se, com regularidade, a
criação de crianças por outras pessoas que não os pais biológicos, sem que haja qualquer
participação do Estado. É o que FONSECA (1995) denomina de “crianças em circulação”.
Essas crianças que circulam, como aponta a autora, muitas vezes, designam mais de uma
pessoa como pai ou mãe, o que revela um senso familiar mais amplo.
Essa prática da circulação é observada também, segundo ZAMBRANO (2006), entre
travestis e transexuais, que, em razão de sua baixa escolaridade e de suas profissões
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frequentemente ligadas ao sexo, sequer cogitam recorrer ao Judiciário (ao contrário de como agem
os homossexuais cis6, como informado acima). Nesse sentido, ZAMBRANO (2006) informa:
O recorte de classe torna-se obrigatório para a compreensão do modo
escolhido pelas travestis e transexuais para chegar à parentalidade. Além
da escolaridade (apenas uma das oito informantes completou o primeiro
grau) pesa, também, a profissão das entrevistadas que, com exceção de
uma, são ou foram profissionais do sexo. A baixa escolaridade e o tipo de
profissão – objetos de restrições por parte das instituições oficiais –
dificultam não apenas a possibilidade de adoção e guarda, mas, também, o
acesso aos meios para lutar por ela.
A mudança nos documentos de identidade é, para as transexuais, de
enorme importância para o acesso à parentalidade, pois é pelo uso de
documentos adequados à sua identidade social que pensam conseguir a
adoção legal de uma criança. Assim, algumas fazem planos de adotar
legalmente, mesmo tendo presente a possibilidade de serem impedidas
devido às diferentes formas do poder judiciário tratar a questão.
As travestis, porém, raramente pensam na possibilidade de acionar a via
judicial para adotar, devido ao preconceito que temem sofrer quando
tentarem uma adoção. Como não fazem a cirurgia de transgenitalização,
dificilmente conseguem trocar os documentos, o que, junto com a classe
social (popular), a escolaridade (baixa) e a profissão (prostituição), torna
muito pouco provável o deferimento de um pedido de adoção. Como diz
uma informante: “Se para os heterossexuais já é complicado adotar,
imagina pra nós travestis que já sofremos tanto preconceito”.
Como se infere dos dados apontados (FONSECA, 1995; ZAMBRANO, 2006), sem
embargo das regras legais e das representações sociais, as famílias se organizam e sempre
se organizaram, na realidade, de inúmeras formas diferentes do modelo pai-mãe-filhos.
Sendo assim, é de se refletir acerca da legitimidade de outras configurações, como o
fez o operador do direito entrevistado por ZAMBRANO (2006), que observou que:
[...] uma criança infectada [pelo HIV], a mais cuidada do ambulatório, a
mais paparicada, a que não tinha uma assadurinha, era cuidada por uma
travesti... acho que em relação a travestis e transexuais a gente teria que
repensar, estudar, desconstruir alguma coisa... ou reconstruir, não é?
6 Cis é aqui tomado no sentido de coincidência de identidade de gênero com sexo biológico.
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Conclusão
Neste trabalho, procurei demonstrar que a literatura especializada é farta em
apontamentos no sentido de que a família conjugal, formada pelos pais casados e pelos filhos
biológicos concebidos dentro do casamento, não é um dado da natureza. Trata-se de um
modelo construído historicamente, “que teria sido impossível ele se consolidar sem certos
elementos históricos – a centralização do Estado, por exemplo, e a individualização de
salários” (FONSECA, 1995, p. 20).
Ademais, pretendi esclarecer que esse modelo é tampouco majoritariamente
verificado na sociedade, não sendo válido senão para uma parte das pessoas. Entretanto, por
ser imposto como o padrão, ele permeia o senso de normalidade, conferindo aos que nele se
amoldam um capital simbólico na sociedade. Dessa forma, os grupos excluídos do padrão
visam à sua inclusão no modelo.
A par do modelo pai-mãe-filhos ser difundido como legítimo, tem-se que as pessoas
organizam as relações de parentesco e afetividade de inúmeras maneiras, como sempre o
fizeram, de maneira que a “naturalidade” de uma configuração não precisa excluir outras.
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AFRO-AMÉRICA: PRÁTICAS CULTURAIS COMO POSSIBILIDADES DE
SUPERAÇÃO DA MODERNIDADE COLONIAL1
Jane Seviriano Siqueira Mestranda em Ciências Sociais. PPGCS/UFES. Email: [email protected].
Resumo: Pensar sobre experiências atuais de agrupamentos latino-americanos negros permite ir
além do universalismo apregoado pela modernidade colonial. Deste modo, o presente trabalho tem
como objetivo traçar a ideia de Afro-América. Interessa indicar proposições de superação à narrativa
unívoca da modernidade eurocentrada. São apresentadas reflexões preliminares sobre manifestações
culturais afrodescendentes empreendidas em agrupamentos situados na região sudeste do Brasil e na
região centro sul do Peru. Para tal, a metodologia deste estudo consistiu em revisão bibliográfica e
consulta de dados. O intuito de fundo é tecer linhas acerca da nomeação de ambas as manifestações
como Patrimônio Cultural em seus respectivos países.
Palavras-chave: América Latina; Afro-América; práticas culturais.
Abstract: Think about current experiences of Latin-American Black People groups allows leading
beyond of the universalism that is claimed by colonial modernity. Hence, the present study aims to
trace the notion of Afro-America. It is interesting indicate overcoming propositions against the
univocal narrative of eurocentered modernity. Preliminary reflections are presented about African
descendents cultural activities that are undertaken by groups located in the southeastern region of
Brazil and in South Central region of Peru. For this purpose, the methodology of this study consisted
in a literature review and consulting of data. The fundamental objective is to build lines about the
appointment of both manifestations in the tow geographic regions as Cultural Heritage in their
respective countries.
Keywords: Latin-America; Afro-America; cultural practices.
Introdução
Este escrito enfoca manifestações culturais afrodescendentes que são praticadas no
Brasil e no Peru, sob um ponto de vista da patrimonialização. A ideia de América Latina
resulta de um processo histórico. O desenvolvimento da modernidade é componente deste
processo histórico. A modernidade se consolidou em cima do processo de colonização da
América Latina. Pensar na colonização implica em rever os prolongamentos do processo da
escravização de africanos. Afrodescendentes são pessoas que se remetem à ancestralidade
africana para se identificarem no tempo presente. A definição de Afro-América condensa as
experiências e as histórias de pessoas negras latino-americanas.
1 Trabalho inicialmente realizado na matéria “Críticas Contemporâneas: Intelectuais, América Latina e
Decolonialidade” ministrada pela professora Adélia Miglievich e pelo professor Luis Fernando Beneduzzi, no
mestrado em Ciências Sociais da Universidade Federal do Espírito Santo.
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Afro-América se constituiu com a difusão e reconstrução da cosmovisão de homens
e mulheres negras no continente latino-americano. Esta interpretação encontrou respaldo no
trabalho do historiador estadunidense Henry Louis Gates Jr. (2014) e nas inferências
produzidas a partir da leitura do texto da socióloga colombiana Betty Lozano Lerma (2010).
A definição de Afro-América delineada por Gates Jr. apresenta um vínculo duplo para o
movimento de dispersão de pessoas negras pelo continente latino-americano, durante os
séculos XVI e XVIII. De um lado, o autor destaca a diáspora forçada em decorrência do
tráfico negreiro. Do outro, aponta os deslocamentos de intelectuais, escritores, comerciantes
e estudantes negros que transitavam pelos continentes europeus, americano e africano.
Lerma, por sua vez, destaca as reelaborações singulares de afrodescendentes na América
Latina. Reelaborações que foram empreendidas desde o tráfico de africanos escravizados e
que seguem em remodelações no contexto atual, segundo a socióloga. O caso que a autora
aborda é na Colômbia, todavia, podemos extrapolar para falar das situações de
afrodescendentes na América Latina. Em suma, a ideia de Afro-América, neste estudo,
abarca as narrativas sobre a presença de pessoas negras na América Latina.
As manifestações culturais afrodescendentes são aquelas que reúnem cantos e danças cujos
sentidos são transmitidos entre as gerações de pessoas que acionam a ancestralidade negra para se
identificarem, como é o caso dos Jongos no Brasil e dos Atajos de negritos no Peru. Os Jongos
estão situados na região sudeste do Brasil e seus praticantes são chamados de jongueiros. Os
jongueiros se organizam em rodas realizadas com percussão de tambores e com acompanhamentos
de cantos. A elaboração dos cantos tem a ver com elementos do cotidiano dos jongueiros. Quanto
aos Atajos de negritos, os grupos estão localizados, em especial, na região centro sul do Peru. Eles
saem em peregrinações, no período de natal e em 06 de janeiro, e se organizam em duas filas
enquanto caminham. Os seus cantos são acompanhados por sapateados.
Interessa olhar manifestações culturais afrodescendentes na região latino-americana
sob o viés da patrimonialização. Patrimonialização é tornar uma prática cultural como
Patrimônio da nação. Patrimônio é quando o Estado atribui proteção legal para uma
expressão cultural e com isto ele passa a garantir a continuidade desta manifestação – o
Estado pode fornecer p.e., incentivos materiais auxílio para compra de
uniformes/indumentárias e instrumentos.
A metodologia utilizada consistiu em revisão bibliográfica e consulta de dados. O escrito
está ancorado em quatro colunas: a primeira delas contém o referencial teórico que acomoda as
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noções de Afro-América e Patrimônio, a segunda traz apontamentos referentes à metodologia, a
terceira deslinda o material sobre Jongos e Atajos de negritos articulando ambas as
manifestações como Patrimônio Cultural em seus respectivos países e, por fim, a quarta coluna
traz notas de considerações acerca da temática do escrito. Abordar manifestações culturais de
afrodescendentes na América Latina que foram registradas como Patrimônio Cultural, em seus
países, consiste em movimento inicial para dissertar acerca da Afro-América.
1. Afro-América e Patrimônio Cultural
O referencial teórico teve como fio condutor definir América Latina de modo que
dentro desta definição fosse possível inserir a ideia de Afro-América. Os autores utilizados
são Bethel (2009) para América Latina, Gates Jr. (2014) e Lerma (2010) para Afro-América.
Referente à noção de Patrimônio Cultural acionamos a compilação de textos organizada por
Abreu e Chagas (2003).
1.1 Afro-América
A perspectiva crítica dos estudos sobre América Latina aponta que tal conceito não
contempla uma realidade rígida. A ideia de América Latina passa por constantes
reformulações. De acordo com Bethel (2009), dentre os intelectuais que primeiro utilizaram
o nome América Latina estão o chileno Francisco Bilbao e o colombiano José Maria Torres
Caicedo, no século XIX. O pensamento político latino-americano no referido século
fomentava manifestações anticoloniais. Nesta instância, intelectuais latino-americanos
propuseram reflexões concernentes à constituição social, cultural, econômica e política do
continente. Imersos em seu tempo, Bilbao e Caicedo utilizaram o nome América Latina para
abordar questões sobre independência, libertação, soberania, anticolonialismo e para discutir
a elaboração da identidade continental.
No período histórico da segunda metade do século XIX, a França foi difusora do
termo Amérique Latine. A utilização desta nomenclatura cobria a justificativa do
imperialismo francês no México entre os anos de 1861 e 1867, como diretriz do governo de
Napoleão III. Sob tal perspectiva, a ideia de América Latina abrangia todo o continente
americano de maneira imbricada à ideia de América Espanhola. A América Lusa – formada
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por Brasil – não estava inclusa na nomenclatura de América Latina. A argumentação
francesa para a construção de uma unidade latina repousava na percepção de “afinidade
cultural e linguística” entre os países hispano-americanos (BETHEL, 2009, p. 290). Ao final
do século XIX, o conceito de América Latina foi incorporado e significado pelos intelectuais
latino-americanos como a luta por uma região forte.
No decorrer do século XX, a noção de América Latina foi constantemente
ressignificada. No período da Guerra Fria aconteceram transformações no cenário político
global. O processo de globalização que emergiu neste contexto implicou em mudanças
fundamentais na política e na economia brasileira. O país logrou marcar presença e
influência no cenário mundial. Na primeira metade do século XXI, o Brasil teceu
aproximações com os países vizinhos. Estas aproximações ocorram em torno do
pertencimento à América do Sul. A trama do pertencimento se deu em especial pelo
engajamento econômico e político (ibidem, p. 313). Nesse momento, as manifestações
culturais não foram incluídas como elementos catalisadores de aproximações entre os países
latino-americanos. Contudo, após a Conferência de Durban realizada em 2001, iniciou-se
um processo de alinhamento entre a busca pelo aprimoramento de direitos afro-americanos
e a demanda por reconhecimento das práticas culturais como prerrogativas de reivindicações
sociais2. Acredito que será pertinente averiguar os ecos desta Conferência na
patrimonialização de manifestações culturais associadas aos agrupamentos de
afrodescendentes no continente latino-americano em trabalhos futuros.
Tendo definido América Latina como resultante de um processo histórico, é pertinente
a inserção do conceito de Afro-América. Afro-América tem por meta ampliar o reconhecimento
sobre os agrupamentos negros na América Latina. Afro-América é abordada por intermédio das
definições de Henry Louis Gates Jr. (2014) e de Betty Lozano Lerma (2010).
Entre os anos de 1502 e 1866 chegou à América Latina o número de 10.700 milhões
de africanos escravizados. Esta afirmação está no trabalho “Os negros na América Latina”
que foi escrito por Gates Jr. (2014, p. 14-5). O objetivo deste autor é responder o que
significa ser negro na América Latina. Conforme observa, há semelhanças e diferenças nas
experiências históricas e nas instituições sociais e culturais que afrodescendentes criaram no
2 “III Conferência Mundial contra o Racismo, a Xenofobia e formas correlatas de Intolerância”, realizada na cidade
de Durban, África do Sul, em 2001. Esta ideia será aprofundada futuramente, para a nova versão do trabalho.
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continente americano. Ele destaca que o empreendimento do tráfico negreiro foi o ponto
nodal para emergência da noção de Afro-América.
Acerca da escravização de africanos, Lerma (2010) indica que os elementos que
primeiro impactaram a experiência dos africanos têm a haver com o projeto de colonização
das Américas. A identificação da Afro-América é atravessada pelo papel de controle que a
Igreja Católica exerceu no projeto colonial. O principal papel da Igreja como agente a serviço
do colonizador era o de controle dos sujeitos colonizados e escravizados. Um dos
mecanismos encontrados para exercer o controle sobre os negros escravizados nas Américas
correspondeu ao castigo físico. Sobre isto, Lerma aponta que os padres católicos açoitavam
os negros que participavam dos toques de tambor. As festividades e celebrações que
utilizavam tal instrumento eram denominadas de rituais africanos regidos pelo demônio. A
ação da Igreja Católica, principalmente com o trabalho do tribunal de “Santa Inquisição”,
infiltrou-se na vida prática dos negros provocando o ‘apagamento’ suas lembranças sobre as
terras africanas. A negação da autonomia para negros escravizados resultou em modos
específicos de acionar a ancestralidade africana.
Com este panorama, a autora encontra uma cosmovisão original que ela não
interpreta como remanescente de manifestações africanas. O que seu olhar encontra são
modos genuínos de negros interagirem com a sociedade mais abrangente.
Valendo-me desta leitura, tenho que a concepção de Afro-América corresponde a um
universo próprio estruturado por reelaborações específicas tecidas por afro-americanos
diante de diversos contatos com distintos grupos. A produção de identificações ocorrida
desde o período da colonização nas Américas se constituiu com base em negociações entre
os grupos étnicos que conviviam no continente. As identificações afro-americanas, portanto,
emergiram desde o tráfico de africanos escravizados em direção às Américas e estão
alicerçadas na multiplicidade de elementos que resultaram das relações de alteridade
estabelecidas com outros agrupamentos, em especial nas relações e trocas estabelecidas com
o Outro subalternizado nas Américas – o indígena.
Conforme o que foi delineado, a definição de Afro-América proposta por Gates Jr. se
aproxima da percepção inferida por intermédio de Lerma. A definição de Afro-América
apresentada por Gates Jr. é importante porque descontrói as representações de passividade que
permeavam a figura de africanos e negros na América Latina. Ele aponta que o tráfico escravista
era um empreendimento de negócios no qual estavam envolvidos tanto grupos europeus quanto
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de africanos (ibidem, p. 18). Sua contribuição é romper com a ideia de homens e mulheres negros
debilitados intelectualmente, tal como apregoado no racismo científico.
Por intermédio de Gates Jr. (2014) e Lerma (2009), aponto que Afro-América se
constituiu com a difusão e reconstrução da cosmovisão de homens e mulheres que se auto-
definem como negras, no continente latino-americano. Esta noção prioriza a diferenciação
em oposição à postura essencialista da modernidade que permeou a construção dos Estados
nacionais. Pleiteio Afro-América como possibilidade de superar a homogeneização imposta
aos agrupamentos negros na América Latina por meio da obliteração da sua presença.
1.2 Patrimônio Cultural: ponto de articulação entre Jongos e Atajos.
Patrimônio Cultural se torna o eixo que permite articular o olhar entre os Jongos
brasileiros e os Atajos peruanos. O intuito é falar sucintamente sobre Patrimônio Cultural a
fim de acomodar a categoria comum às duas manifestações culturais apresentadas. A
explanação encontra respaldo na compilação de escritos intitulada “Memória e patrimônio:
ensaios contemporâneos”, organizada pelos professores Regina Abreu e Mário Chagas
(2003), cuja temática recai sobre patrimônio e memória social. O enfoque proposto não cobre
um apanhado sobre a agenda patrimonial nem no Brasil nem no Peru.
Durante décadas, predominou a atuação do tipo preservacionista em relação à
concepção de Patrimônio Cultural. O enfoque preservacionista ressaltava a preservação de
coisas materiais. Este tipo de atuação priorizava questões referentes às construções
arquitetônicas, p.e. casas, igrejas, pontes e prédios que remontavam a épocas e estilos
arquitetônicos específicos. De acordo com Abreu e Chagas, a concepção de Patrimônio
Cultural emergiu na modernidade interligada ao processo de construção do Estado nacional.
No ano de 1989, a Unesco aprovou o documento de Salvaguarda da Cultura
Tradicional e Popular. Este documento propôs a ampliação oficial da noção de Patrimônio
Cultural. A compreensão da materialidade intrínseca à concepção do Patrimônio se alargou
com a inserção da meta de manutenção dos processos de transmissão dos saberes e de
valorização dos fazeres e dos valores locais – percepção que divergia dos países europeus,
segundo texto de Maria Cecília da Fonseca compilado por Abreu e Chagas (ibidem, p. 60).
A partir deste período, manifestações e expressões culturais foram incorporadas como
elementos possíveis da patrimonialização.
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Dentre as diretrizes atuais para o Patrimônio Cultural estão a identificação e proteção
da cultura popular, viabilizadas por meio de registros oficiais e do suporte econômico aos
grupos comprometidos com a transmissão de conhecimentos. No Brasil, o órgão responsável
pelo Patrimônio Cultural é o Instituto do Patrimônio Histórico e Artísitico Nacional
(IPHAN/MINC), subordinado ao Ministério da Cultural Nacional. No Peru, o Patrimônio
Cultural está sob a incumbência do Vice-Ministério de Patrimônio Cultural e Indústrias
Culturais, vinculado ao Ministério da Cultura do país.
Patrimônio Cultural é uma categoria em alto relevo neste escrito. Ela é pensada como
elo entre manifestações que ocorrem em tempo e locais distintos na instância da Afro-
América. Na região do sudeste brasileiro, em especial no norte do Espírito Santo, a
patrimonialização dos Jongos forja encontros, a presença de pessoas negras é pensada por
meio de falas dos jongueiros acerca da interação com agentes institucionais. No caso
peruano, proponho uma descrição preliminar dos Atajos via o texto do decreto que anunciou
a manifestação como Patrimônio nacional a fim de apontar a presença de negros no país.
2. “Projeto Jongos” e busca pelos Atajos
A metodologia utilizada é do tipo qualitativa, com base em revisão bibliográfica e
consulta de dados. No caso dos Jongos, considerei dados registrados no contexto da
catalogação de grupos jongueiros no estado do Espírito Santo, a partir do ano de 2012 –
período posterior à nomeação dos Jongos como Patrimônio Cultural do Brasil. Acerca dos
Atajos, observei o Decreto 035 do ano de 2012, porque nele o governo peruano indicou a
manifestação dos Atajos como Patrimônio Cultural do Peru.
Jongos. O enfoque permeia a Lei 3.551 do ano de 2000 que trata do Patrimônio
Cultural Imaterial no Brasil. Os Jongos foram patrimonializados, no ano de 2005, através do
Título de Patrimônio Cultural outorgado pelo IPHAN. O procedimento utilizado consistiu
em rastreamento e descrição de falas que mostram reações advindas do contato dos
jongueiros com agentes institucionais. O objetivo é destacar narrativas de jongueiros da
região norte do Espírito Santo a respeito dos momentos em que buscaram acionar os
dispositivos de favorecimento e de preservação apregoados pela patrimonialização. As
narrativas foram compartilhadas na Oficina de Mobilização Comunitária realizada no
distrito de Santana, município de Conceição da Barra, em 26 de agosto de 2012. A Oficina
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aconteceu no bojo do Programa de Pesquisa e Extensão “Territórios e territorialidades rurais
e urbanas: processos organizativos, memórias e patrimônio cultural afro-brasileiro nas
comunidades jongueiras do estado do Espírito Santo” (chamado pela equipe de “Projeto
Jongos”), vinculado à Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), especificamente ao
Departamento de Ciências Sociais da Universidade (DCSO/UFES), e coordenado pelo
antropólogo Osvaldo Martins de Oliveira (2011). O referido Programa ocorreu em 2012,
mediante aprovação no Edital PROEXT, 2011 - MEC/UFES.
A Oficina de Mobilização Comunitária3 foi realizada com participação dos integrantes
dos grupos de Jongos da região norte do Espírito Santo, com a superintendente IPHAN, quatro
técnicos da Sub-Secretaria de Patrimônio Cultural da Secretaria de Cultura do Estado
(SECULT/ES), duas representantes da Secretaria Municipal de Educação do município de
Conceição da Barra (responsáveis pelos bens culturais do município) e a equipe do Programa.
O objetivo principal consistia em reunir os integrantes dos grupos com os agentes
institucionais estaduais para discutir sobre os Jongos como um bem cultural. As ações estão
registradas em vídeo e áudio. Os jongueiros estavam cientes dos registros. Este material
compõe atualmente o Banco de Dados do Programa, disponibilizado no DCSO/UFES.
Atajos. Descrever o texto do Decreto 035 do ano de 2012 consiste em exercício
preliminar que permite perceber como o Estado peruano pensa a formação da nação, em
especial, como considera a presença e participação de negros na constituição da cultura
peruana. A busca é por perceber valores e sentidos expressos no texto oficial. O decreto está
disponível na página oficial do Estado peruano. Encontrei-o na busca por documentos sobre
os Atajos de negritos.
Este escrito condensa uma parte das experiências como bolsista do “Projeto Jongos”
durante ano e meio. Muito do que foi vivenciado naquele período começou a decantar neste
tempo mais recente. As manifestações dos Atajos de negritos foram inseridas como interesse
em razão das semelhanças percebidas em relação ao meu ponto inicial de mirada – os Jongos.
Este escrito é o primeiro esforço em pensar os Atajos.
3 Dentre as propostas de execução do Programa no ano de 2012 constava realização de Oficinas de Mobilização
Comunitária nas regiões norte e sul do Espírito Santo. As datas das Oficinas foram: Sul - 16 e 17/06/2012 em Celina,
município de Anchieta/ES. Norte - 25 e 26/08/2012 em Santana, município Conceição da Barra/ES.
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3. Experiências atuais de agrupamentos afro-americanos
3.1 Jongos e a busca por direitos de salvaguarda: narrativas de jongueiros acerca do
contato com agentes institucionais
Os Jongos são manifestações tomadas como elemento mediador das interações entre
as pessoas: pessoas dos Jongos e pessoas do Estado. É na busca por garantir a política de
salvaguarda que as pessoas do Jongo encontram os agentes institucionais, estes interagem
com aquelas por meio das suas representações de mundo. Observar as narrativas sobre tais
contatos explicita confrontos.
Na pauta das reinvindicações/propostas pelos jongueiros, no ano de 2012, estava
romper com o preconceito e com a racialização que ora dificulta, ora impede o acesso aos
bens materiais e simbólicos garantidos pela Lei do Patrimônio no Brasil. Outra reivindicação
encarrilhada corresponde à adequação dos editais e assessoria para elaboração de projetos
que concorrem nestes editais. Os jongueiros também pediam políticas específicas para o
reconhecimento das atividades dos mestres dos Jongos.
Algumas observações mais específicas. Senhor Antônio – mestre do grupo “Jongo de
Santo Antônio”, distrito de São Cristóvão, município de São Mateus –, relatou dificuldades
para acessar o “apoio do poder público”. Segundo disse, eles estão desassistidos dos serviços
públicos e não sabem qual órgão do governo devem acionar para garantir a continuidade da
prática dos Jongos. Senhor Antônio diz que não percebeu nenhum benefício direto para o
grupo após a nomeação dos Jongos como Patrimônio Cultural. Em seu grupo, executam
atividades a partir dos recursos financeiros dos próprios jongueiros. Ele narrou que tentou
recolher informações sobre como obter alguma ajuda da Secretaria de Cultura do município
de São Mateus. Em suas palavras: “Eu cheguei na Secretaria de Cultura de São Mateus. A
dona me pergunta: ‘O que é Jongo?’. É. Eu disse: ‘Se a senhora que ‘tá na Secretaria de Cultura
não sabe o que é o Jongo... Eu não sei o que fazer” (Senhor Antônio - 26/08/2012).
A interpretação que senhor Antônio tem a respeito do desconhecimento da
funcionária da Secretaria aponta para a racialização. Para ele há uma divisão histórica que
marca o lugar social dos negros e dos brancos (que ele aponta como os agentes institucionais,
descendentes de italianos) no município de São Mateus.
A solução que Senhor Antônio indica para a animosidade entre negros e brancos, é
recusar a participação em festividades religiosas organizadas por pessoas que depreciam a
prática dos Jongos. Esta resposta aparece de maneira quase inesperada; ela faz pensar sobre
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o elemento que age a partir da imprevisibilidade. Silviano Santiago (2009) diz que este
elemento nasce de confrontos, de oposições, de condutas de oposição e não de assimilação.
Ele leva ao questionamento do instituído e, por isto, provocam redefinições. Senhor Antônio
redefine o contato interétnico proposto pelo discurso da miscigenação racial como mistura
homogênea realizada de maneira pacífica. Ele denuncia abusos e expropriações dos povos
descendentes de africanos no território brasileiro. Considerar a narrativa do senhor Antônio
é pertinente com a questão da Afro-América, porque trata de reelaborações originais que
contrariam o instituído desde a modernidade colonial.
A Senhora Maria Amélia, integrante do “Jongo de São Bartolomeu”, distrito de Santana,
Conceição da Barra, estimulada pela fala de Senhor Antônio, expôs a violência patrimonial e
física que permeia as interações étnicas no município. Durante evento de celebração ao santo
padroeiro – São Bartolomeu –, no mês de julho daquele ano de 2012, o “Jongo de São
Bartolomeu” foi cerceado na possibilidade de participar como um dos representantes da cultura
local no festejo realizado na praça central de Conceição da Barra. Persistindo na tentativa, os
integrantes do grupo contam que foram empurrados pelos devotos católicos, “suspendidos” dos
tambores nos quais estavam posicionados para tocar os Jongos, tiveram os instrumentos
derrubados no local da apresentação e não foram anunciados pela senhora que cumpria o papel
de mestre de cerimônia do evento. A senhora se recusou a nomeá-los.
O Senhor Antônio e a mestre do “Jongo de São Benedito”, município de São Mateus, a
Senhora Dilzete Nascimento Pereira, conhecida como Nêga, disseram que um prefeito do
município de São Mateus durante seu mandato elegeu um dia na semana para tratar de assuntos
referentes aos agrupamentos negros do município. Segundo narram, o prefeito atendia pessoas
negras e resolvia as demandas que elas levavam neste dia pré-estipulado. Este prefeito também
patrocinava um campeonato de futebol amador do qual podia participar pessoas negras.
Contudo, em ambas as situações a participação era condicionada para pessoas que possuíam o
Título de Eleitor. Senhor Antônio contou que este requisito foi um problema, porque uma parcela
de pessoas no município não tinha o documento, mas queria participar do futebol.
Para os jongueiros, permitir o preconceito abre lugar para mais discriminações. Nota-
se nesta narrativa o discurso regionalista (BOURDIEU, 1989), o intento do grupo é se auto-
reposicionar no centro das discussões das políticas públicas. Os jongueiros reconhecem o
discurso oficial e dialogam com os agentes do Estado, entretanto, o desafiam porque ele não
dá conta das diferenças. Assim, o confronto pode ser compreendido como reação à
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negligência do Estado brasileiro em atender e garantir a manutenção das práticas culturais
dos agrupamentos afrodescendentes. Na interpretação dos jongueiros, o Estado ignora tais
demandas em razão do preconceito racial.
3.2 Descrição do texto do Decreto nº 035/2012: Atajos como Patrimônio Cultural da
Nação Peruana
Acredito que a descrição do Decreto 035 de 2012 que nomeou os Atajos de negritos
como Patrimônio Cultural associado aos agrupamentos afro-peruanos permite esboçar como
o Estado peruano interage com os afrodescendentes.
A função de registro e reconhecimento dos Patrimônios constitui uma atribuição do
Ministério da Cultura do Peru por meio do Viceministério de Patrimônio Cultural e
Indústrias Culturais, sendo que este orienta as ações da Secretaria Geral de Patrimônio
Cultural do país. A Lei 28.269 do ano de 2004 trata do Patrimônio Cultural da Nação
Peruana. O texto da Lei indica a posse exclusiva do Estado sobre as práticas culturais.
Decreto 035 indica a prática dos Atajos no singular, embora os grupos sejam distintos e
com vivências plurais. De acordo com interlocutores ligados aos grupos de Atajos, os praticantes
optam por manter a nomenclatura plural em diferenciação ao texto institucional. Eles
argumentam que a prática é plural, é a prática doS AtajoS. Silviano Santiago (2000) mostra que
evitar o pluralismo explicita um dispositivo hegemônico para manutenção do poder colonialista.
A relevância da oralidade é destacada no texto do Decreto, contudo ela é vincula às
narrativas de sofrimento. As cantigas dos Atajos são apresentadas como expressão de
desconforto frente à escravização de pessoas negras no período colonial. Extrapolando do
texto do Decreto, interessa destacar que a oralidade reelaborada nos agrupamentos negros
abarca também as lembranças dos antepassados, os segredos de religiosidade, as prescrições
curativas e as histórias do cotidiano. Os cantos e narrativas vão além da restrição aparente
de fala do sofrimento como quer fazer difundir a retórica da colonialidade. A oralidade traz
a vida e transporta no tempo as maneiras de ser no mundo e os modos de construí-lo na
perspectiva dos próprios praticantes.
O texto do Decreto indicou a composição mestiça dos Atajos. Segundo apresenta, a
manifestação tem influência andina em suas músicas, influência espanhola (europeia) nas
suas cantigas e influência africana em suas danças. A ideia de mestiçagem também foi
utilizada no Brasil a partir da década de 1930.
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A difusão desta ideia ocorreu em perspectiva de positivação do passado brasileiro.
Foi elaborada a ideia de formação da nacionalidade por meio da mescla entre os três
principais grupos sociais que viviam no Brasil colonial: indígena, branco/europeu e negro.
Na perspectiva ideológica da miscigenação, os três grupos teriam se misturado de forma
harmônica e pacífica. Destacamos que os debates acerca das relações raciais no país
ganharam novos contornos a partir da década de 1950, principalmente com atuação dos
movimentos sociais negros. No ano de 1988, com o novo texto da Constituição do Brasil,
ocorreu a criminalização de práticas racistas no país.
No caso peruano, a atribuição de povo mestiço aparece junto à expressão
“intercâmbio”. De acordo com o texto do Decreto, os Atajos resultariam de um “intercâmbio”
entre as matrizes culturais dos europeus, dos indígenas e africanos (na página 461.201 do
Decreto). A expressão “intercâmbio” remete às trocas mútuas. Esta pode ser uma estratégia
para continuidade do poder hegemônico. Isto está alinhado com o texto de Fonseca (2003, p.
64), ela diz que as políticas de Patrimônio tal como realizadas no contexto atual terminam por
registrar uma imagem da identidade nacional que se identifica à cultura trazida pelos
colonizadores europeus e isto pode levar à reprodução das relações de poder colonialistas.
Não foi possível averiguar, durante a realização deste trabalho, quais os agentes que
influenciaram a nomeação dos Atajos como Patrimônio Cultural da Nação peruana. Esta
pode ser uma questão importante para aprofundarmos a pesquisa.
Pontos Finais
Os Jongos foram nomeados como Patrimônio Cultural brasileiro no ano de 2005.
Após a nomeação, no caso do estado do Espírito Santo, surgiu um contexto propício para
catalogação dos grupos jongueiros e para o registro da manifestação cultural. Foi aberta
também uma porta para que os grupos de Jongos acionassem um suporte econômico por
meio de editais para o acesso e para continuidade da manifestação. Os Atajos foram
nomeados como Patrimônio Cultural peruano no ano de 2012. A manifestação dos Atajos é
a primeira expressão cultural associada à ancestralidade africana a ser nomeada como
Patrimônio Cultural pelo Estado peruano. A nomeação como Patrimônio Cultural
proporcionou visibilidade aos afrodescendentes no Peru. Junto da nomeação surgiu no país
o mês dedicado à cultura afrodescendente, que é o mês de julho.
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Apesar dos benefícios garantidos pela patrimonialização destas duas manifestações
culturais afrodescendentes, há um descompasso entre o texto legal e a vivência dos seus
praticantes. No caso dos Jongos no estado capixaba, as narrativas dos jongueiros indicam
limitações do discurso oficial sobre o Patrimônio Cultural.
Aponto, por hora, que mesmo existindo o descompasso entre o discurso e a prática, é
interessante considerar que a atribuição como Patrimônio Cultural dos Jongos no Brasil e dos
Atajos de negritos no Peru tem ampliado a visibilidade das narrativas de seus praticantes. São estas
narrativas de pessoas que se auto-definem como negras que compõem a Afro-América. E são estas
narrativas que podem indicar caminhos para a superação da modernidade colonialista.
Referências
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1602
DE BRINCADEIRA À PATRIMÔNIO: AS VÁRIAS DIMENSÕES DO
JONGO/CAXAMBU NO ESPÍRITO SANTO1
Larissa de Albuquerque Silva
Cientista Social formada pela UFES. Mestranda pelo PPGCS - UFES.
Resumo: A memória é um elemento articulador na construção dos discursos dos indivíduos, cujo
conteúdo é de valorizar o passado e suas recriações, e releituras do presente. Tal fato ocorre com os
praticantes do Jongo/Caxambu no Espírito Santo, já que, em detrimento a atual conjuntura jurídica
por meio dos artigos 215 e 216 da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988,
fomentam-se as políticas de patrimonialização das práticas culturais por parte do Estado. Dessa
forma, esses agentes étnicos adentram sob esse viés no jogo de negociações com os representantes
dessas agências, a fim de pleitearem ações de cunho político-social. Assim, é proposto uma análise
de alguns discursos proferidos durante os trabalhos de campo etnográfico desenvolvido por dois
programas de pesquisa e extensão da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). Os jongueiros
e caxambuzeiros capixabas legitimam sua prática cultural, pois é por meio dela que será atribuída
uma representação de luta por reconhecimento social e político no espaço público.
Palavras-chave: jongo/caxambu; memória; patrimônio.
Abstract: Memory is an articulating element in the construction of individuals discourse whose content is
to value the past and their recreations and reinterpretations of present. This fact occurs with the practitioners
of Jongo/Caxambu in Espírito Santo (Brazil), as in despite of the current legal situation by Articles 215 and
216 of Brazilian 1988 Constitution, promote it patrimonialization policies of cultural practices by the State.
Thus, these ethnic actors enter from this perspective in the game negotiations with the representatives of
these agencies in order to plead actions of political and social character. Thus, it´s proposes an analysis of
some speeches during the ethnographic field work developed by two programs of extension and research at
the Federal University of Espírito Santo (UFES). The jongueiros and caxambuzeiros from the State of
Espírito Santo legitimize their cultural practice because is a way through which will be assigned a
representation of the struggle for social and political recognition in the public space.
Keywords: jongo/caxambu; memory; patrimony.
Introdução
Esta comunicação se propõe a realizar uma discussão inicial sobre os processos de formação
da categoria jongueiros/caxambuzeiros capixabas em vistas ao reconhecimento das “manifestações
das culturas populares” (CFB, 1988) por parte da União, garantido pelos os artigos 215 e 216 da
Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 (CFB/1988), sendo os assegurados aqueles
que fazem parte dos “grupos participantes do processo civilizatório nacional” (CFB 215).
1 O presente artigo é uma reedição do artigo “Dança Direito, menino, na roda desse tambor”: A construção da
categoria jongueiro/caxambuzeiro no Espírito Santo” apresentado no Grupo de Pesquisa “Descolonialidade e
América Latina”, durante o V Congresso da Associação Brasileira de Pesquisadores em Sociologia do Direito
(ABRASD), ocorrido em novembro de 2014, na Faculdade de Direito de Vitória (FDV).
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Nessa linha de análise, serão exploradas de forma analítica as políticas de
salvaguarda vinculadas aos patrimônios imateriais brasileiros, sobretudo a prática do Jongo
e, por isso, preliminarmente, se faz jus uma pequena apresentação dessa estrutura. Isso será
necessário, pois é por objetivo perceber como essas políticas são formas de intervenção do
Estado no processo de construção das identidades coletivas e da memória dos grupos
subalternizados e que, por consequência, lutam pelo seu reconhecimento e pelo direito de
falarem por si (GONÇALVES, 2007; SANSONE, 2011).
Nesse sentido, serão expostos aqui alguns discursos de jongueiros e caxambuzeiros
do Espírito Santo proferidos durante algumas ações dos Programas de Pesquisa e Extensão
“Territórios e Territorialidades rurais e urbanas: processos organizativos, memórias e
patrimônio cultural afro-brasileiro nas comunidades jongueiras do Espírito Santo” e “Jongos
e Caxambus: culturas afro-brasileiras no Espírito Santo”, desenvolvidos pelo Departamento
de Ciências Sociais da Universidade Federal do Espírito Santo (DCSO/UFES), sob
coordenação do professor e antropólogo Osvaldo Martins de Oliveira, do qual a autora
participou como bolsista durante os dois anos de execução.
De forma estrutural, o presente artigo está dividido em três seções subsequentes a esta
introdução. Na seção segunda será apresentado sobre a prática do Jongo/Caxambu2,
especialmente no Espírito Santo, a fim de situar ao leitor como as identidades dos grupos
praticantes são construídas e reconstruídas sob a memória transmitidas por seus ancestrais. Na
seção terceira, abordarei o cenário jurídico das políticas de patrimonialização brasileira e suas
atuações com os jongueiros no Espírito Santo. Na seção quarta, será verificado como essa
memória é de grande embasamento na construção dos discursos desses agentes étnicos em sua
luta pelo reconhecimento sócio-político. E, por fim, encerrando o artigo, as considerações finais.
1. Jongo/Caxambu
Ah, eu acho assim uma alegria muito importante (dançar o Caxambu),
porque vem do tronco, né? Então a gente tem que valorizar o que [...] foi
ensinado. Então se eu jogasse pra escanteio, igual muitos, parece que a
2 O Jongo e o Caxambu são denominações que correspondem ao mesmo ritual afro-brasileiro. Mesmo obtendo
variações na forma de condução do ritual pelas comunidades que o pratica, o Inventário Nacional de
Referências Culturais (INRC), desenvolvido pelo Instituto de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional
(Iphan), reconhece esses dois nomes, além de tambu, batuque e tambor. No Espírito Santo, tal diferenciação
pode ser vista regionalmente, a saber: ao norte capixaba é denominado Jongo, enquanto, ao sul, é chamado de
Caxambu (nome que se refere ao principal instrumento da roda, o tambor). Ainda nessa região, há exceções,
como os grupos dos municípios de Itapemirim e de Presidente Kennedy que o denomina como Jongo.
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gente, não tem, assim, amor. Que a gente tem que ter amor pelas coisas.
Principalmente as coisas que os mais antigos ensinam (PROGRAMA
TERRITÓRIOS E TERRITORIALIDADES, 2012a).
O valor do ensinamento ancestral, como é destacado na epígrafe, é um ponto crucial na
fala da mestra de caxambu. A expressão é dita com propriedade, pois por meio dela, é possível
entender que o Jongo/Caxambu não somente é uma manifestação folclórica, mas sim, uma
herança de um momento histórico brasileiro, dos quais negros africanos escravizados afirmavam
não serem sujeitos passíveis da dominação escravocrata, e sim de indivíduos que buscavam
protestar e lutar individualmente e coletivamente pela sua humanidade.
O Jongo/Caxambu têm suas raízes nos saberes, ritos e crenças dos povos africanos,
sobretudo, os de língua bantu, provenientes do sul da África, especialmente de Angola. A
consolidação dessa expressão cultural se deu pelos negros escravizados que trabalhavam nas
lavouras de café localizadas no Sudeste brasileiro, região que abriga exclusivamente tal
manifestação (ABREU; MATTOS, 2008).
Praticado em comunidades que se definem como negras e/ou quilombolas dos meios
rurais e urbanos dessa região, os jongueiros e caxambuzeiros reinventam-se a partir de sua
prática cultural pela luta por reconhecimento sócio-político no cenário público. Essa memória
herdada é um elemento articulador na construção dos discursos dos indivíduos, cujo conteúdo
é de valorizar o passado e suas recriações, e releituras do presente (LE GOFF, 2003).
Por meio de sua prática é possível compreender uma reconstituição do passado em
tempos atuais. Ajuda-nos a responder como a memória é elemento articulador da construção
de identidade e “[...] também um instrumento e um objeto de poder” (LE GOFF, 2013, p.
435). Ela é transformada em uma função legitimadora do discurso; decreta a apropriação por
parte dos agentes étnicos de suas heranças culturais.
O modo de condução do ritual é uma particularidade que cada uma dessas
comunidades possui, mas, em comum, o ritual é caracterizado por sua forma circular,
constituído por homens e mulheres que dançam e tocam o tambor incessantemente à beira
de uma fogueira. Nessa sincronia, há a criação de pontos, que são versos musicalizados
criados (ou recantados) durante a roda. Na “brincadeira” (como muitos deles se referem a
esse momento) são retratados os fatos do cotidiano, histórias, personalidades, trabalho e
crença religiosa da localidade praticante. Tais versos são categorizados pelos próprios
praticantes como: ponto de louvação, ponto de saudação, ponto de despedida e os pontos de
demanda, sendo esse último também chamado de jongo de ponto ou desafio (RIBEIRO,
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1984). Ele simboliza, verbalmente, um ataque, um acerto de contas de situações que
ocorreram dentro ou fora do círculo entre alguns indivíduos. Acredita-se que esses pontos
possuem um sentido mágico-fetichista.
[...] o termo Jongo refere-se não apenas à dança, mas também, às cantigas que
o acompanham, também conhecidas como pontos. [...] os jongos [...] são
cantados em português, mas com frequência apresentam palavras e expressões
de origem bantu [...]. O jongo tem uma característica central o uso de uma
linguagem poética metafórica [...], que serve para transmitir mensagens ou
enigmas a serem decifrados (PACHECO, 2007, p. 25, grifo do autor).
Os tambores são de modelagem arcaica, feitos de tronco escavado e recoberto numa
extremidade por uma membrana, em sua maioria, de couro de boi, salvos relatos que diziam
que, em algumas vezes, utilizava-se couro de bode. Durante as celebrações festivas é
possível perceber nas narrativas dos jongueiros e caxambuzeiros que esse instrumento é
revestido por um caráter mágico, seja pela sua constituição e/ou pela sua sonoridade.
Variando em forma, dimensão e material empregado na sua produção, os tambores recebem
nomes que lhe são próprios como caxambu (nome que também caracteriza a dança) e ainda
outros, como nome de pessoas e/ou apelidos.
A regência da roda de jongo/caxambu é realizado pelo(a) mestre(a). Essa principal
função é ocupada por um homem ou por uma mulher que, geralmente, são os mais velhos
ou velhas da comunidade. Entretanto, tal maestria é transmitida por gerações dentro do
próprio laço de parentesco, permitindo que, o saber e fazer desse patrimônio permaneça
dentro do núcleo familiar nessas comunidades.
No Espírito Santo, foram mapeados por meio do trabalho de campo desenvolvidos
pelos programas de pesquisa e extensão que exporei mais adiante, vinte e quatro
comunidades praticantes do Jongo/Caxambu em todo o território. São distribuídos
espacialmente em quatorze comunidades na região sul e dez na região norte.
Na abordagem a seguir, serão demonstrados o cenário jurídico e político em torno
dessa prática cultural, a qual a União passa a englobá-la como um “patrimônio imaterial
cultural”. Nesse sentido, serão analisados três vieses distintos na forma de apropriação desse
“patrimônio” pelos próprios jongueiros e caxambuzeiros e pelos agentes da política de
patrimonialização, na qual, leva-se em consideração, o ponto de onde esses sujeitos estão
situados em um dado momento e para quem eles se dirigem.
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2. Em torno das políticas públicas, seus diferentes agentes
No contexto jurídico e político cultural que compreende os artigos 215 e 216 da CFB
de 1988, é de dever do Estado o apoio, o incentivo a valorização, a difusão, promoção e a
produção dos patrimônios culturais, da mesma maneira que fica estabelecido suas duas
categorias: os bens de natureza imaterial (também chamados de intangível) e os bens de
caráter material (os conhecidos por “pedra e cal”).
Os bens imateriais são expressões simbólicas, os saberes e fazeres das práticas
cotidianas dos grupos étnicos, suas memórias, relações sociais e “experiências diferenciadas
nos grupos humanos-fundamentos das identidades sociais” (VIANNA, 2004, p. 15) e, por
outro lado, os bens materiais, são monumentos de caráter arquitetônico, urbanístico e
arqueológico. Ambos compõem o grande guarda-chuva denominado de patrimônio cultural
brasileiro, esse um processo de gestão das práticas culturais empreendidas pelo Estado.
Com propósitos em atender as exigências postas nos artigos supracitados, foi
fomentado pelo Instituto de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan)3, a edição do
Decreto nº 3.551 de 04 de agosto de 2000, emanado pelo Ministério da Cultura (MinC), que
institui o registro de bens culturais de natureza imaterial, criando o Programa Nacional do
Patrimônio Cultural Imaterial (PNPI), cujo caráter é de nortear e organizar os processos de
registros dos inventários dos bens imateriais e que, por sua vez, consolida o Inventário
Nacional de Referências Culturais (INRC)4. Ainda nesse sentido, sobre as políticas de
salvaguarda do patrimônio imaterial, foi criado dentro do Iphan um setor que abrangerá
assuntos de pertinência à legislação e às políticas públicas vinculadas aos patrimônios
imateriais, o Departamento do Patrimônio Imaterial (DPI).
Dito isso, o “Jongo do Sudeste” foi identificado, reconhecido e titulado por essas
políticas públicas no ano de 2005, como um patrimônio imaterial brasileiro. Tal ação não se deu
de uma forma espontânea por parte das agências patrimonializadoras, mas sim, por uma série de
ações de mobilizações sócio-políticas das comunidades praticantes do Jongo/Caxambu.
3 Uma agência federal criada no final dos anos de 1930 que, inicialmente, foi nomeada de Serviço do
Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN) e dirigida por Rodrigo Melo Franco de Andrade. A sua
criação tornava evidente os propósitos em que o Estado tinha em construir ou de inventar tradições
(HOBSBAWM, 1997) que legitimariam uma memória oficial traçada em prol de uma totalidade, o que
justificaria a ideia de Estado-nação (ABREU e FILHO, 2007). 4 O INRC é um instrumento metodológico de pesquisa regida pelo Iphan, na qual, por ele é realizado pesquisas de
cunho investigativo em identificar bens culturais imateriais, além de gerenciar ações direcionadas a essa categoria.
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Essas atuações iniciaram em redes de encontro dos jongueiros no Rio de Janeiro e em São
Paulo desde 1996 que, até 2008, já haviam realizado onze encontros. Essas mobilizações foram
fomentadas pelos próprios agentes étnicos que contavam com a colaboração e participação da
Universidade Federal Fluminense (UFF), que atuou de forma mediadora na organização, e com
recursos comunitários e pequenas doações (MONTEIRO e SACRAMENTO, 2009).
Destacam-se nesses momentos a criação da Rede de Memória do Jongo/Caxambu durante
o V Encontro dos jongueiros, em Angra dos Reis, no Rio de Janeiro, no ano de 2000. A Rede e os
Encontros culminaram a aprovação do registro do Jongo/Caxambu como patrimônio cultural
brasileiro pelo Iphan, após a realização do INRC sob coordenação da antropóloga Letícia Vianna
(VIANNA, 2008). Nesse ritmo, em 2007, o Iphan, juntamente com o MinC, propuseram a criação
dos Pontões de Cultura de Bens Registrados, que atuariam em três linhas, que seriam: na
articulação, na capacitação e na divulgação e difusão desses bens registrados.
Diante disso, foi estabelecida parceria com a UFF que dela foi criado o programa
Pontão de Cultura do Jongo/Caxambu, sob coordenação geral de Elaine Monteiro, e que
tinha como vertente “[...] o desafio de ‘fazer com’ [as comunidades] e não ‘fazer para’”
(MONTEIRO e SACRAMENTO, 2009).
Essa movimentação das políticas culturais públicas acerca do Jongo/Caxambu
resultou em dois programas de pesquisa e extensão desenvolvidos pelo Departamento de
Ciências Sociais da UFES. O “Territórios e Territorialidades rurais e urbanas: processos
organizativos, memórias e patrimônio cultural afro-brasileiro nas comunidades jongueiras
do Espírito Santo” e “Jongos e Caxambus: culturas afro-brasileiras no Espírito Santo”, foram
executados em diferentes momentos, sendo o primeiro cumprido no ano de 2012 e, o
segundo, de caráter prolongador das atividades do primeiro, no ano de 20135.
Esses programas partiram de duas categorias analíticas do campo da Antropologia, a
saber: memória e patrimônio. Para isso, o locus das pesquisas foram nas comunidades negras
praticantes do Jongo/Caxambu no estado do Espírito Santo, do qual, a partir disso, foi
possibilitado verificar as interações entre os sujeitos étnicos políticos e intelectuais dessas
localidades e os agentes públicos externos durante os eventos propostos pelos programas.
5 Ambos foram coordenados pelo Professor Dr. Osvaldo Martins de Oliveira e contaram com a participação dos
professores Sandro José da Silva (Departamento de Ciências Sociais/UFES) e Aissa Afonso Guimarães (Departamento
de Teoria da Arte e Música/UFES). Incluiu também estudantes de graduação e pós-graduação em Ciências Sociais,
Programa de Pós-Graduação em Artes (PPGA/UFES) e do Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGE/UFES).
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Para isso, a metodologia empregada durante a pesquisa foi a abordagem etnográfica,
que coube em averiguar a situação das relações sociais em torno dessa prática, atentando-se
para aos elementos de auto-atribuição (BARTH, 2000) dos sujeitos da pesquisa.
Resumidamente, os programas realizaram cinco eventos de grande visibilidade a
respeito da prática cultural no Espírito Santo. São eles: quatro encontros regionais nomeados de
“Oficinas de Mobilização e Organização Comunitária” e o “II Encontro Estadual de Jongos e
Caxambus no Espírito Santo”. Nesse último evento, foi de grande valia a elaboração da “Carta
dos jongueiros e caxambuzeiros”, onde nela foram expostas todas as demandas exigidas pelos
grupos em prol de sua prática cultural. Ela foi entregue às instâncias políticas culturais, que
também estavam sendo representados pelos seus agentes em todo o processo de elaboração dela.
Após essas apresentações, é pertinente realizar uma análise prévia em torno das questões
das políticas de patrimonialização, já que há um projeto em torno da identidade e da memória afro-
brasileira, vista aqui, como exemplo, em torno da prática do Jongo/Caxambu.
Novas demandas por parte dos grupos subalternizados estão emergindo diante desse
período em que se encontram vários fomentos na política cultural pública, sobretudo ao de
natureza imaterial. Isso se dá pelo poder de que o estado tem de se apropriar do que é popular
e torná-lo nacional (SANSONE, 2011), ou seja, “patrimonializar a cultura afro-brasileira
subentende também definir, de alguma forma, o que é esta cultura, de quais elementos ela se
compõe” (idem, p. 34), o que, de fato, acarreta um choque entre as fronteiras estabelecidas
entre os grupos étnicos detentores da herança cultural e o Estado, o que proporciona novas
construções identitárias e simbólicas.
Nessa linha de pensamento, foi possível perceber durante os trabalhos de campo dos
programas de extensão da UFES, que o Jongo/Caxambu vem sendo realizado em três formas
distintas, levando em consideração o ponto de onde ele está situado em um dado momento
e para quem ele se dirige.
O primeiro deles é o “jongo como tradição”, visto pelos próprios sujeitos da
comunidade que o pratica. Esses são conscientes da sua herança cultural, que é perpassada
por meio de sua prática doméstica. Esses sujeitos desempenham seu self "como realmente
é” ou “como realmente somos” (GONÇALVES, 2007), ou seja, praticam a roda
informalmente sem desempenhar papéis de instância política, mas sim, de transmitir ao seu
sucessor o que lhe foi herdado: o jongo como um produto familiar (“a brincadeira”).
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O segundo é do ponto de vista da patrimonialização. Como dito em linhas anteriores,
as agências culturais públicas adotaram uma nova linguagem para designar essas práticas
culturais que, no caso aqui analisado, o Jongo/Caxambu. As políticas de salvaguarda dos
patrimônios culturais imateriais é o termo “inventado” (no sentido hobsbawniano) para
designar essa tradição. A patrimonialização é uma “invenção das tradições”, pois é por meio
dela que o poder público se re-legitima diante das transformações do cenário social.
Como é dever do Estado o apoio, o incentivo a valorização, a difusão, promoção e a
produção dos bens culturais, fomentam-se eventos e datas comemorativas, dos quais, contam
com a participação dos grupos nessas ocasiões. Diante disso, foi percebido como os grupos
de Jongo/Caxambu fazem participações em eventos como em: seminários municipais,
festejos em comemoração a aniversários das cidades e festejos religiosos. Assim, foi possível
notar que não é realizada uma “apresentação” autêntica (GONÇALVES, 2007) do Jongo,
mas sim, uma “representação” dele, ou seja, o conteúdo dos pontos são articulados de acordo
com a temática do evento. São cantando versos em agradecimento ao prefeito e outros
representantes ou uma homenagem para algum outro grupo participante e/ou para a cidade.
Quando se fala em salvaguardar o patrimônio “para não o perder”, como são
percebidas nas ações e nos discursos dos agentes das políticas de patrimonialização, suas
mobilizações giram em torno da figura dessa perda (GONÇALVES, 2003). Entretanto, essa
“proteção” vem respaldar o Estado daquilo que ele quer que seja catalogado, ou seja, há um
engessamento da prática sob os seus moldes do que declara ser o legítimo.
A partir dessa interpretação, constitui-se uma tradição inventada pelo Estado, pois a
“verdadeira” prática social, é reconstruída pelos sujeitos étnicos de acordo com as situações
cotidianas. O “Jongo do Sudeste”, o salvaguardado pelas políticas de patrimonialização, é diferente
da “brincadeira” realizada na comunidade de São Mateus, no município de Anchieta (ES), do
mestre Renélio, por exemplo. Aquele segue os moldes estabelecidos pela agência, em que
determina o que mostrar, como mostrar e para quem mostrar6. Fora desses parâmetros
estabelecidos, não seriam o patrimônio de forma “legítima”, em vistas dos interesses do Estado.
Por fim, a terceira análise a ser empreendida é como essa tradição inventada é tomada
pelos sujeitos étnicos como uma bandeira de luta política da comunidade. A organização de
um grupo de Jongo/Caxambu que se “apresenta representando”, não é apenas uma maneira
6 A partir disso pode-se analisar também como a patrimonialização se direciona para o fomento de um turismo
étnico, mas esse debate será realizado em uma próxima abordagem.
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de propagar a política de patrimonialização realizada pelo Estado7, mas sim, se apropriam
dessa forma e a reinterpretam como uma maneira de lhes conferirem visibilidade diante a
outra parcela da sociedade.
A política de patrimonialização mesmo “inventando a tradição” possibilita pensar
como o jongueiro e caxambuzeiro se posiciona no ato de “representar”. Eles são o “[...]
próprio locus de significado e realidade” (GONÇALVES, 2007, p. 119) e, por isso, temos
que nos ater ao direcionamento do nosso olhar.
No ato de “representação” do grupo, não somente temos que observar o modelo
estabelecido pela agência, mas de ampliarmos o nosso campo de visão e notar a situação em
disputa do qual se desenvolvem os conflitos tanto simbólicos, quanto materiais.
Em suma, é percebido como os sujeitos étnicos estabelecem negociações com os
agentes da patrimonialização, na qual visam fazer emergir suas memórias que foram caladas
e ocultadas durante todo o contexto histórico-nacional. Esse posicionamento vem “fortalecer
a identidade pessoal e coletiva presente” (GONÇALVES, 2007, p. 123) do grupo étnico.
Nesse sentido, a próxima sessão terá como caráter expor alguns exemplos dessas
negociações que são refletidas por meio dos discursos. As falas e as ações de ambos os
interessados se interagem e se moldam no contato.
3. “Eu vim com Deus/ E cheguei com Nossa Senhora/ Caxambu mixiriqueiro/ Está
chegando aqui agora”8: Na situação de cada dia, a reafirmação e a reconstrução das
fronteiras.
Durante os eventos articulados pelos programas de pesquisa e extensão da UFES, foi
notório a autodeclaração9 dos sujeitos étnicos como descendentes de negros escravizados e
praticantes do jongo/caxambu. A partir disso, tomam-se por debate os elementos atributivos
que esses indivíduos definem como fatores significativos fundamentais para se considerarem
pertencentes a esse grupo. Essa definição é construída diante daqueles que não pertencem a
7 Essa divulgação é realizada de várias formas, dentre elas: desde a presença dos sujeitos étnicos em um
determinado evento político até a criação de um ponto de jongo homenageando alguma figura política (o/a
prefeito/a da cidade ou o/a gerente de cultura). 8 PROGRAMA JONGOS E CAXAMBUS, 2013a. 9 A autoidentificação como descendentes de negros escravizados é afirmada pelos sujeitos durante vários
momentos das entrevistas e percebida nos processos sociais observados em campo. Refere-se isso às ações
desencadeadoras das memórias, das lembranças, dos rituais, das narrativas e das transmissões dos saberes e
fazeres nessa comunidade sobre a sua origem. Além disso, é válido afirmar que a auto identificação é um
direito garantido pela Convenção nº 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) promulgado na
Constituição Federal Brasileira sob decreto nº 5.051, de 19 de abril de 2004.
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ele. Ademais, esses elementos são atribuídos levando em consideração suas representações
coletivas (BARTH, 2000).
Diante do exposto, Barth (2000) mostra que a noção de fronteiras étnicas compreende
um instrumento metodológico-conceitual para definição de um grupo social, e não de seu
conteúdo cultural demarcado por essa fronteira. Segundo esse autor, com base nos sistemas
sociais abrangentes fundados nas interdependências étnicas, a definição de um grupo,
enquanto auto atribuição encontra seu fundamento na sua forma de organização e
pertencimento étnico interno a cada grupo. Nas palavras de Barth (2000), a identidade étnica
é demarcada pelos “[...] sinais e signos [...] diacríticas que as pessoas buscam e exibem para
mostrar sua identidade" e pelas "[...] orientações valorativas básicas, ou seja, padrões de
moralidade e excelência pelos quais as performances são julgadas” (BARTH, 2000, p. 32).
Dessa maneira, esses limites invisíveis categorizam e mantêm as diferenças de cada
grupo, esses que sustentam sua estabilidade às suas categorias culturais. Reforço neste
momento que para Barth (2000) as fronteiras étnicas não são isoladas, nem tampouco recaem
no engessamento cultural. Elas interagem, se relacionam com outros grupos étnicos e
agentes políticos externos construindo, assim, relações estáveis “a interação dentro desses
sistemas não leva à destruição pela mudança e pela aculturação: as diferenças culturais
podem persistir apesar do contato interétnico e da interdependência entre etnias” (BARTH,
2000, p. 26). Pode-se dizer que Barth (2000) procura definir cultura como base nos
significados que os próprios sujeitos étnicos dão às suas interações e, frente a isso, a
construção das fronteiras étnicas.
A memória é um elemento articulador na construção dessas fronteiras, já que é por
meio dos discursos dos indivíduos, do qual o conteúdo é de valorizar o passado e suas
recriações, e releituras do presente.
A memória é articulada em três momentos: tempo, espaço e agência, salientando
como, ao longo da (re)constituição das reminiscências coletivas tornam-se instrumental no
processo de reconstrução da identidade do grupo. Ao trabalhar em uma postura de
construção de uma identidade jongueira/caxambuzeira, a memória é reconstruída de acordo
com a posição política e os interesses sociais conflitivos vivenciados pelos grupos étnicos.
Segundo Gonçalves (2007, p. 140), “quando falamos em discursos, não estamos nos
referindo apenas a frases, mas a enunciados, sempre proferidos por alguém, em algum tempo
e espaço, e sempre dirigidos a um outro, que responderá”. Dessa forma, é correto dizer que,
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um discurso deve ser analisado a partir dos diversos interesses por quem fala, para quem fala
e de onde fala. Para isso, o antropólogo explica que, diante das políticas de patrimonialização,
culminou os “discursos do patrimônio cultural” (GONÇALVES, 2007, p. 141).
Para ele, o patrimônio cultural é um discurso, cujo “[...] partem de um autor
posicionado [...] e que se dirigem e respondem a outros discursos” (idem, p. 142), ou seja,
eles são discursivamente constituídos, pois o objeto ou prática cultural que identificamos e
preservamos “[...] não existem enquanto tal senão a partir do momento em que assim os
classificamos em nossos discursos” (idem, 2007, p. 142). Os discursos são formas de
representar o mundo. São formas de ação no sentido em que falamos, o que falamos tem
efeitos sobre as situações que vivemos (GONÇALVES, 2007).
Durante as Oficinas de Mobilização Comunitária e do II Encontro Estadual de Jongos
e Caxambu, esses discursos foram salientados várias vezes, tantos pelos agentes étnicos
quanto pelos agentes públicos. Dentre esses, destaco a fala do articulador do grupo Caxambu
da Família Rosa, da comunidade de São Pedro, localizada no município de Muqui (ES),
Roney Rosa, também conhecido por Sarney. O caxambuzeiro fez um questionamento
direcionado a uma representante do Iphan, a respeito do valor do certificado emitido pela
instituição em reconhecimento do jongo/caxambu como um patrimônio imaterial brasileiro:
“Roney: É, o IPHAN fez o reconhecimento, mas uma pergunta que eu
queria saber, sobre a questão, é, até hoje não foi passado pra gente, nós
recebemos este certificado, mas o que é que o Iphan pode está fazendo
sobre a questão material ou até também informativa ou a questão, é, de
algum projeto na nossa comunidade, né? Que possa abranger, os
adolescentes que lá se encontram e os adultos.
[...]
Representante: Então, primeiro o certificado não é do jongueiro é do Jongo.
Este é o primeiro equívoco. Porque [o que] é registrado como patrimônio
imaterial do Brasil é o jongo, a expressão cultural, o jongo e o caxambu,
né, e não o jongueiro [...].
Roney: Ó, a meu ver, como nós fazemos diversas atividades, tanto na parte
da educação como na parte regional, qualquer área, qualquer área que nós
somos chamados, eu me orgulho muito em falar em questão a isto, o
reconhecimento. Mas esta pergunta, esta dúvida eu nunca, assim...
Representante: Então, o que é fundamental para o jongo acontecer? É o
jongueiro, é o tambor, é a música – não é? –, as canções.
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Roney: É, no meu caso, eu tenho o material todinho lá em casa. Tem a
biblioteca e os livros, mas eu não tenho o espaço construído, porque o meu lá
é terreiro, mas eu tenho já o terreno pra fazer, nós ganhamos na época do Frei
Paulão que deu este terreno pra gente, porém nós não temos recursos pra
construir uma área ali, entendeu. Com materiais que nós temos eu queria botar,
eu recebo muitas pessoas na minha casa e nem só pessoas do estado, mais até
pessoas do, do estrangeiro vão. Eu tenho o material que na verdade é a minha
casa, entendeu, eu fiz da minha casa um museu, entendeu, desde do, do
‘loçado’ (de muitas louças; objetos) aos móveis antigos, todos os contextos,
entendeu, documentos de época, né. Como eu falei, pra mim é um orgulho
muito grande receber as pessoas na minha casa, mas eu queria ir além...
Representante: De repente ter uma Casa da Memória do Jongo”
(PROGRAMA JONGOS E CAXAMBUS, 2012b).
O patrimônio cultural, como pode ser visto nas falas acima, atribui a uma
representação, fundada na memória e na identidade. Ele é um instrumento “[...] de
constituição de subjetividades individuais e coletivas, um recurso à disposição de grupos
sociais e seus representantes em sua luta por reconhecimento social e político no espaço
público” (GONÇALVES, 2007, p. 155).
O reconhecimento tomado como referência pelo caxambuzeiro no diálogo acima nos
direciona para sua resiliência em cobrar junto a agente pública, o fomento de políticas que
beneficiem seu grupo e sua comunidade por meio de projetos de ações sociais e educativos
que englobem os jovens e os adultos de sua localidade. É entendido que, os sujeitos étnicos
reorientam essa política cultural para si, pois quem faz o jongo/caxambu acontecer é o
jongueiro/caxambuzeiro e, portanto, o que deve ser feito, segundo a interpretação da fala,
são políticas voltadas para o indivíduo.
Outro destaque do diálogo acima é verificar como as políticas de patrimonialização
se desviam do sentido em que o Sarney, esse que, como interpretado na fala, luta em prol de
políticas voltadas para o jongueiro/caxambuzeiro em se organizar socialmente (e não do
jongo/caxambu como “representação”). A fala do representante público sobre os objetos que
o caxambuzeiro possui, é direcionada para uma outra manobra de salvaguarda, a de articular
uma Casa de Memória do Jongo/Caxambu.
É completamente despercebido pelas agências patrimonializadoras que: 1º) os
objetos variam em seus significados de acordo com o lugar onde se encontram, ou seja, no
exemplo posto, na casa do Sarney seus livros, sua loçada, seus móveis antigos e as pessoas
que ele recebe tem um determinado sentido, diferente do que se estariam em uma Casa da
Memória do Jongo/Caxambu e em 2º) a Casa (como todos as outras formas de política de
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patrimonialização) não salvaguardaria o sentido dos objetos, tampouco a memória do
jongo/caxambu, pois o passado, a tradição, a herança se conserva pela sua reinterpretação
no presente, ou seja, de fazer algo novo hoje, já que os indivíduos não agem pela
simplicidade da reprodução da cultura, mas sim, pela recriação dela (HANDLER, 2003).
Hoje, as ações das políticas de patrimonialização se articulam por meio da produção
de editais, na qual, visam abranger e atender às necessidades da prática do patrimônio
reconhecido. Nesse sentido, os grupos se mobilizam para atender às exigências burocráticas
dos referidos editais, mas, muita das vezes, por diversas limitações, seja no acesso ou na
escrita, muitos grupos não conseguem participar ou serem pleiteados.
Nesse sentido, destaco a fala do Gilson José dos Santos, jongueiro e articulador do
grupo Tambores de São Mateus, da comunidade negra de São Mateus, localizada no
município de Anchieta. Nela, em especial, podemos perceber como o jongueiro se apropria
do vínculo institucional proposto pelas agências públicas culturais em benefícios
direcionados em prol da organização social de sua comunidade:
“Gilson: [...] Nós começamos tendo o conhecimento de editais a mais ou
menos uns seis a oito anos. Até então o grupo, os grupos não sei,
principalmente o nosso aqui da comunidade, ele vivia pedindo o patrocínio
a uma pessoa, a outra, e a gente falava "Ah, isto não, isto de ficar batendo
em porta de um, porta de outro. [...] e nem sempre você pede e o camarada
do outro lado tem disponibilidade de te servir alguma coisa. A partir das
oficinas que começou pela SECULT, depois o município de Anchieta
através da Gerência de Cultura também começou a promover também esta
oficina, chamando a SECULT para está nos apoiando através das Oficinas,
as coisas começaram andar, a fluir. E graças a Deus nós fomos
contemplados. Nós fomos contemplados no primeiro edital de cultura do ano
de 2009 do Ministério da Cultura. E depois foi contemplado também pelo
estado. E aí foi sucessivamente, se eu não me engano, né, de dez editais que
o grupo participou, acho que sete ou oito ele foi contemplado, quatro no
município, uma do jongo mirim e as três do grupo no município, e do estado
três vezes. E aí é onde a gente vê que estas oficinas, que estes encontros de
comunidades tradicionais, pra gente foi de grande valia, porque houve o
aprendizado tanto do mestre quanto das pessoas que participam destas
oficinas, destes encontros de comunidades tradicionais. [...] Tinham muitas
propostas ali (na carta elaborada durante o II Encontro Estadual de Jongos e
Caxambus no ES), e um das propostas ali, que a gente debateu lá que foi,
graças a Deus a nossa comunidade tem docentes, quatro ou cinco docentes,
sendo três da comunidade, nossa proposta era de que comunidades
afrodescendentes terem docentes da própria comunidade, não saírem
pessoas lá de Iconha ou de Cachoeiro do Itapemirim (municípios próximos
à Anchieta), que não têm conhecimento nenhum da cultura da comunidade
e vir né, pegar um vaga que é do docente aqui da comunidade, que já tem
um conhecimento” (PROGRAMA JONGOS E CAXAMBUS, 2013b).
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Em um primeiro momento, a fala se preocupa em abordar sobre o arrecadamento
financeiro para a execução de festas para a localidade. No lugar em destaque, eles realizam
rituais festivos religiosos para fomentarem a política de reconhecimento do local e de
presentear São Benedito (santo de devoção católico) todos os anos, pois os moradores aliam
ao Jongo outros elementos que consideram significativos na memória da origem da formação
da comunidade livre: a fincada do mastro.
Os sujeitos étnicos se apropriam dessa titulação feita ao Jongo/Caxambu para
pleitearem recursos (por meio dos editais) em benefícios não somente para a prática dele,
mas sim, para a forma de organização comunitária. Realizar festas e eventos pelos próprios
moradores simbolizam uma independência na forma de condução logística e de recursos.
São realizados muitas das vezes rifas, bingos, sorteios e venda de produtos artesanais e
culinários, na qual, ao produzirem a venda desses, acumulam recursos para realizarem
pequenas obras na comunidade, como: compra de cadeiras, abastecer o centro comunitário,
manter a capela de São Benedito e de realizarem seus rituais religiosos.
Outro destaque são as preocupações em torno de uma Educação Quilombola. A
valorização, nesse sentido, de implementarem nas escolas das comunidades o próprio ensino
sobre a cultura que está presente ali e do docente morador da localidade, sob a preocupação
de ser lecionado questões pertinentes à vida local. Além disso, a temática das relações
étnicas-raciais, no que condiz a lei 10.639/2003 e 11.645/2009 e as principais questões que
envolvem as políticas públicas de raça traçadas para o enfrentamento ao racismo.
Em suma, o destaque da presente comunicação foi demonstrar as interações
realizadas nas fronteiras que, de um lado, ficam os sujeitos étnicos e, do outro, as ações de
políticas de patrimonialização acerca da prática do Jongo/Caxambu. Pelas interpretações
esboçadas, é de grande relevância observar as negociações que são estabelecidas em torno
do patrimônio e se validar do panorama das relações sociais, onde estão sobrepostos grupos
e mediadores que ocupam diferentes posições e que defendem seus interesses.
Considerações Finais
Esta análise inicial dos discursos dos jongueiros e caxambuzeiros no Espírito Santo,
realizados nos eventos desenvolvidos pelos dois programas de pesquisa e extensão
apresentados, acompanhou a forma em que a memória é recriada e tomada como fonte
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legitimadora da construção do presente, esse dado pelas relações estabelecidas com as
agências fomentadoras da política de patrimonialização. Dessa forma, foi mostrado como a
memória é articulada em três momentos: tempo, espaço e agência, salientando como, ao
longo do processo de (re)invenção de lembranças torna-se instrumental no processo de
reconstrução da identidade cultural. Trabalhando em uma postura de construção de uma
identidade jongueira/caxambuzeira, os atores étnicos reinventam-se a partir de sua prática
cultural a luta pelo reconhecimento sócio-político no cenário público.
Ademais, nos revela que a prática está para além de uma manifestação folclórica. Ela
possui um caráter político, com hierarquias e posições estabelecidas, que visam reagir contra
a homogeneização imposta pelas políticas de salvaguarda. No contexto das negociações, a
auto atribuição é o elemento formador das fronteiras étnicas, vistas elas postas na figura do
“outro”. A identidade está relacionada com os interesses, e é na arena interétnica que emerge
a construção de categorias.
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O QUE HÁ DE SE DIZER SOBRE A MULHER QUE USA O MONITORAMENTO
ELETRÔNICO DE PRESOS?
Maria Luiza Lacerda Carvalhido UENF
Resumo: Ao se problematizar o uso do monitoramento eletrônico de presos e ainda assim constatar
o aumento da população carcerária, encontra-se uma rede complexa que é refletida também pelo
aumento das mulheres no crime. Assim, este trabalho, que é um recorte da dissertação de mestrado
em Sociologia Política da autora, irá considerar o tema em questão.
Palavras-chave: mulheres; estigma; monitoramento eletrônico de presos.
Abstract: When questioning the use of electronic monitoring of prisoners and still observe the
increase of prison population, we found it a complex network which that is also reflected by the
increase of women in crime. This paper is a brief of the author´s work to obtain the Masters degree
in Political Sociology and will consider this subject.
Keywords: women; stigma; electronic monitoring of prisoners.
Apresentação
Inserindo-se num conjunto de estudos que já tem problematizado a questão da prisão
e as mulheres, contudo sem ter contemplado a questão do monitoramento eletrônico de presos,
o objetivo deste trabalho é fazer um primeiro mapeamento desse tema – prisão; mulheres e
monitoramento eletrônico – problematizando e refletindo sobre o significado do estigma, a
partir da leitura de Goffman (1988), na construção da identidade social dessas mulheres.
Tradicionalmente vistas como vítimas, as mulheres tornam-se invisíveis como
agressoras, e quando surgem na cena do crime, a história se constrói em torno de imagens
estereotipadas, nomeadamente, com a passividade e a fraqueza feminina, que tornariam as
mulheres mais vulneráveis à vitimização e à influência da figura masculina.
Almeida (2001) salienta que as características de gênero atreladas à questão da
criminalidade dificultam a aceitação social da inserção da mulher no universo do crime. A
mulher, considerada anatomicamente frágil, dada ao instinto maternal e confinada ao espaço
privado da casa, não teria motivações fortes para se envolver no discurso sobre a vida pública
e muito menos em problemas como a violência, portanto, seria incapaz de matar.
Também há que se investigar a tecnologia do monitoramento eletrônico de presos e
num contexto social em que esse dispositivo se torna visível aos olhos de terceiros, é
compreensível que seja levantada a questão da estigmatização em função do porte do
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equipamento. Caiado (2012) nos diz que, como matriz penal base dos nossos tempos, a
prisão é relativamente recente – sucede às penas corporais (flagelação, trabalhos forçados),
o que constitui um avanço civilizacional. O monitoramento eletrônico, curiosamente, retoma
o corpo como eixo da ação penal, mas não visando a sua incapacitação ou imobilização, o
que representa uma nova ruptura com o atual paradigma da pena: as tecnologias de
monitoramento eletrônico em uso visam primariamente conhecer a localização do corpo1.
1. O monitoramento eletrônico de presos
No Brasil, especificamente no estado do Rio de Janeiro, o monitoramento eletrônico de
presos é realizado pela Secretária do Estado de Administração Penitenciária - SEAP e
acompanhado pela Vara de Execuções Penais - VEP, que determina quais detentos devem usar
o monitoramento eletrônico. A grande maioria dos monitorados está no regime semiaberto. Os
detentos fazem uso da tornozeleira após conseguirem benefício da Prisão Albergue Domiciliar.
O equipamento é um pouco maior que um telefone celular e é composto por dois
dispositivos: uma tornozeleira à prova d’água e antialérgica que deve ser usada pelo apenado
24 horas por dia, e uma unidade portátil de rastreamento - UPR. Essa unidade possui uma
bateria de durabilidade de até 36 meses e precisa ser recarregada a cada dois dias em uma
tomada comum. Ambas deverão ficar com o apenado e não poderão ser afastadas uma da
outra por mais de seis metros de distância. Além disso, a UPR funciona como um
comunicador apenas receptivo, se porventura alguém da central precisar falar com o usuário.
A tornozeleira pesa cerca de 150 gramas e é lacrada no corpo do apenado no início
da execução da pena e transmite um sinal criptografado para a UPR, que por sua vez
transmite as coordenadas do usuário até a Central de Monitoramento. A tornozeleira possui
três sensores: um de violação da correia, um que aciona se o apenado ficar por 21 minutos
sem se mover (nem dormindo uma pessoa fica sem se movimentar) e um sensor de massa.
O equipamento permite o rastreamento do apenado em tempo real, podendo ser visualizado
em um mapa, em fotos de satélite ou ainda em mapas híbridos. Atualmente, quando o
sentenciado com tornozeleira se afasta do perímetro delimitado por um juiz, o aparelho emite
1 Link para a reportagem: <http://oglobo.globo.com/rio/monitoramento-de-condenados-com-tornozeleira
seletronicas-sujeito-falhas-no-rio-15517444>. Acesso em: 21 de abr. 2015. 2 Link para a reportagem:
<http://extra.globo.com/casos-de-policia/empresa-que-vai-fornecer-tornozeleiraseletronicas-para-presos-do-rio-
foi-escolhida-sem-licitacao-16313131.html#ixzz3kvWTmgzi>. Acesso em ago. 2015.
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um aviso sonoro, mas esse alerta é perceptível para quem o usa. Um sinal é enviado pela
central de monitoramento para uma central da Superintendência de Inteligência do Sistema
Penitenciário - SISPEN - da SEAP, responsáveis por acionar a polícia e a VEP.
Em março de 2015, o site Globo1 publicou uma matéria assinada por Vera Araújo, Tiago
Dantas e Stella Borges, na qual são apontadas falhas no uso do monitoramento eletrônico de
presos no estado do Rio de Janeiro. O pagamento ao consórcio responsável pelo monitoramento
estava atrasado desde junho do ano passado e apenas 732 dos 1.362 aparelhos distribuídos
funcionavam plenamente. Além disso, ao contrário do que acontece em outros estados, eventuais
casos de ruptura ou de ultrapassagem dos perímetros fixados pela Justiça não são comunicados
imediatamente. No Rio de Janeiro, a polícia só é acionada 24 horas depois.
Essa possibilidade de rastreamento é chamada de retrospectiva, na qual o sistema
registrará por onde o apenado transitou ao longo do dia e enviará um relatório consolidado
diariamente à Central, com estas informações. É o modelo de menor custo operacional e que, de
acordo com a reportagem, é o que desde então vem sendo utilizado no Estado do Rio de Janeiro.
Já no mês de maio de 2015, o Jornal Extra2 publicou uma reportagem assinada por
Carolina Heringer, informando que depois de quase seis meses de interrupção no serviço por
falta de verbas, o fornecimento de novas tornozeleiras eletrônicas para monitorar presos do
estado do Rio de Janeiro será normalizado em um mês. O contrato de 12 meses com a
Spacecom Monitoramento S/A, já foi assinado pela SEAP. A escolha da empresa, no entanto,
foi feita sem licitação. Ainda de acordo com a reportagem, atualmente 429 presos são
monitorados por tornozeleiras eletrônicas no estado. Desde dezembro, novas tornozeleiras não
eram colocadas, e as que tinham algum defeito também não eram substituídas.
Não se pode negar que há um direcionamento do debate para uma perspectiva de
limitação do encarceramento, do desafogamento do sistema carcerário e da redução de custos.
E com relação à difundida ideia de que o monitoramento eletrônico de presos se apresenta como
uma opção mais barata se comparada à pena de prisão, vale dizer que, se de um lado não se
conhecem os reais valores despendidos pelo poder público na manutenção do aparato prisional,
de outro não são sabidas as quantias necessárias ao funcionamento do sistema de execução do
monitoramento eletrônico. Não há, no momento atual, levantamento confiável cuja intenção seja
aferir quais são as despesas envolvidas em cada uma das modalidades de sanção penal. Embora
aparentemente o monitoramento eletrônico de presos se mostre como menos onerosa, não é
possível fazer essa afirmação sem que haja dados confirmando essa impressão.
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2. Prisão e as mulheres
Foucault (2013) afirma que o encarceramento é fruto de uma lógica burguesa, e esse
tipo de punição faz parte de um aprimoramento da engrenagem do castigo como
consequência de um Estado Liberal. Assim, o castigo se configura como um exercício do
poder e como uma necessidade social de controlar, administrar e preservar o sistema. Em
seu livro Vigiar e Punir, o autor faz uma análise das formas históricas do poder, a partir da
Idade Média, século XVI a XVIII, no sentido de mostrar como se constituiu o poder
disciplinar a partir das práticas de poder estabelecidas nas relações sociais.
Foucault ainda trata do poder soberano de fazer morrer. Poder legitimado por meio dos
suplícios em praça pública. Na primeira parte de Vigiar e Punir, narra, em detalhes, como
aconteceu o suplício de um rapaz chamado Damiens, em 1757, na França. Essa prática penal
oficializada pelo direito do soberano de fazer morrer e deixar viver perdurou até o século XVIII
quando surgiu outra forma prática de poder, cujo objetivo era corrigir comportamentos desviantes.
A pena de prisão, vista então, como forma essencial do castigo, desde quando colonizou a
penalidade, foi marcada visivelmente pelo despotismo, pelo arbítrio e pelos ilegalismos.
A necessidade de um castigo sem suplício é formulada primeira como um grito do
coração ou da natureza indignada: no pior dos assassinos, uma coisa, pelo menos, deve ser
respeitada quando se puni: sua humanidade. Foucault ainda nos mostra que nestes
movimentos inerentes ao registro do controle existe uma nova configuração de uma mesma
vigilância penal mais atenta ao corpo social, para não dizer, uma nova economia do poder
castigar – “punir melhor” – nada inédito senão por aqueles que esqueceram como se deu de
forma semelhante o processo de reforma penal levada à cabo do suplício (vingança do
soberano) à punição generalizada (defesa da sociedade) no século XVIII. Na interpretação
de Foucault, a punição legal não se restringe às tentativas de “fazer justiça”, de reparação de
danos ou reintegração do indivíduo à sociedade; funcionam ainda como táticas políticas.
A partir de Goffman (2001), a discussão a respeito da prisão pode ser situada no
âmbito mais amplo das instituições totais. As instituições totais são reconhecidas por
promoverem sistematicamente a mortificação do eu. Nestas instituições, todas as atividades
que dizem respeito à vida de uma pessoa são realizadas em conjunto, sob uma única
autoridade. Assim, mesmo os menores segmentos das atividades do indivíduo estão sujeitos
a regulamentos e julgamentos por parte daqueles que administram a instituição.
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Barcinski e Cúnico (2014) informam que a retirada dos bens pessoais na entrada, a
separação do interno das relações que mantinha no mundo externo, a obrigatoriedade de
realização de uma rotina diária que não leva em conta as suas vontades (mas sim a
organização institucional), bem como a perda de espaços e de momentos de intimidade e
privacidade são alguns dos aspectos que compõem a mutilação e degradação do eu em tais
instituições, uma vez que promovem a uniformização dos indivíduos. Assim, a prisão se
constitui como um espaço de múltiplas segregações.
O indivíduo que se encontra na prisão apresenta ruptura dos vínculos sociais em
várias dimensões, e o sistema prisional aprofunda essa realidade: o isolamento, suas ações
contraditórias como “punir e recuperar”, a invasão da privacidade e a dominação total sobre
o sujeito segregado. As vulnerabilidades aparecem também através da superlotação, da
disseminação de doenças, do uso de drogas, da violência entre os internos e daquela usada
em nome da manutenção da ordem (CARVALHO, et al, 2006).
O fato de a prisão em si ser masculina e masculinizante em grande parte de suas práticas
torna as mulheres presas ainda mais invisíveis. Isso se deve ao fato do improviso institucional
que marca a situação da mulher no cárcere, a qual é tratada a partir de tentativas de adaptações
do sistema já existente, adaptações que perpassam a arquitetura e a estrutura física.
A assertiva de que a prisão se constitui em um espaço prioritariamente masculino, porém,
deve ser compreendida para além dos dados que demonstram que o número de mulheres presas
é muito inferior quando comparado aos homens. As mulheres encarceradas tem algumas formas
de expressão de sua feminilidade vedadas, e isso deixa claro que é através e no corpo que se
estabelece o controle institucional que pressupõe uma lógica considerada apropriada para o
gênero feminino, que inclui elementos de recato e pudor. No entanto, Lemgruber (apud Chies
2004) apresenta e discute orientações teóricas que buscam explicar tanto a etiologia da mulher
criminosa, como a diferença nas taxas de criminalidade entre homens e mulheres, e nos conduz
à conclusão de que “à medida que as disparidades socioeconômicas entre sexos diminuem, há
um aumento recíproco da criminalidade feminina”. A mulher presa é duplamente estigmatizada
como transgressora – da ordem social e de seu papel materno e familiar.
Estudos mostram que a descrição do perfil das mulheres presas se caracteriza por:
serem chefes de família, possuírem baixa escolaridade, serem jovens, negras, ocuparem
lugares subalternos no mundo do trabalho, terem cometido alguma infração juvenil, serem
usuárias de drogas, terem uma imersão em histórias de violência e apresentarem carência
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afetiva – Carvalho et al.(2006), Bahia (2012), Oliveira (2012), Lancellotti (2012), Almeida
(2001), Pereira; Ávila (2013), Soares e Ilgenfritz (2002), Assis; Constantino (2000).
Lancellotti (2012), baseado nos dados do Infopen, publicados em junho de 2012,
afirma que a população carcerária feminina no Brasil era de 31.552 mulheres. É uma
população que está em ascensão, e mesmo diante desse crescimento, as mulheres
representam 8% da população carcerária brasileira. Nesse sentido, as prisioneiras estão
submetidas à uma perversa condição de invisibilidade que ao mesmo tempo intensifica as
desigualdades de gênero que as mulheres enfrentam na sociedade nacional.
De acordo com o site Geledés4, a cada levantamento há um número mais alarmante que
outro. No mês de junho de 2015 foi divulgado pela Secretaria-Geral da Presidência da República
o estudo “Mapa do Encarceramento: os Jovens do Brasil”, que abrange o período de 2005 a 2012.
Nesse estudo ficou constatado que a população carcerária feminina cresceu 146%. O crescimento
geral foi de 74% nesses sete anos, impulsionado pela prisão de negros, mulheres e jovens. Sendo
que 18,7% dos 515.482 não precisariam estar presos, não foram condenados, “pois estão no perfil
para o qual o Código de Processo Penal prevê cumprimento de penas alternativas”, conforme diz
o texto do relatório. No total, o tráfico de drogas corresponde a 70% das prisões no País, o
percentual entre as mulheres é praticamente este, em torno de 60% a 70%2.
O perfil dos crimes cometidos e o aumento de mulheres presas, de acordo com Soares
e Ilgenfritz (2002), tem se transformado desde a década de 80, quando o número de mulheres
encarceradas no Brasil cresceu, enquanto os crimes passaram de menor poder ofensivo para
crimes relacionados ao tráfico de drogas. Segundo Soares (2002) apud Bahia (2012),
certamente o novo cenário desenhado pelo alastramento do tráfico de drogas ampliou o leque
e as chances, tanto para homens, quanto para mulheres de praticar infrações. A autora mostra
que, quando questionadas sobre o lugar que ocupavam no tráfico, 78,4% das presas
condenadas por esse delito referiam-se a funções subsidiárias ou a situações equivocadas
que, por infortúnio, as teriam levado à prisão.
O crescimento das mulheres no tráfico de drogas apresenta motivadores sociais e
econômicos, tais quais: o desemprego, os baixos salários quando comparados aos homens, e o
aumento de mulheres que chefiam famílias. Outro fator merece destaque: em geral, as mulheres
ocupam funções subsidiárias ou periféricas na estrutura do tráfico o que faz com que elas tenham
2 Link para a reportagem: <http://www.geledes.org.br/a-mulher-presa-no-brasil-e-jovem-negra-e-com-
baixaescolaridade/> Acesso em 05 de jun. de 2015.
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poucos recursos para negociar sua liberdade quando capturadas pela polícia. Assis; Constantino
(2000) encontraram duas principais formas da inserção feminina no tráfico. Uma acontece por
ser “mulher de bandido”, a qual se sujeita aos mandos masculinos e assim é iniciada pelo
parceiro. Muitas vezes, na tentativa de entrar com drogas nos presídios masculinos alocadas
dentro da vagina, escondidas nas roupas ou até mesmo em sacos dentro do estômago. A segunda
é a entrada independente do parceiro, mas muitas vezes facilitada por parentes e amigos. A
influência masculina se faz perceptível, mas não se torna um fator determinante.
Na questão referente à maternidade durante o cumprimento de pena, segundo Pereira e
Ávila (2013), a situação apresenta uma série de fragilidades ignoradas pelo ordenamento penal.
Quando a gestação se dá no ambiente prisional, a situação se agrava ainda mais. As enfermarias,
responsáveis pelos atendimentos médicos das penitenciárias, não suportam os cuidados especiais
que uma gestante necessita, restringindo o atendimento pré-natal a meras consultas
ambulatoriais. Em virtude do aprisionamento, as mulheres que são mães passam a ser
consideradas pela sociedade de modo geral e por elas próprias como maternalmente não-
ortodoxas, uma vez que são vistas como violadoras tanto da lei, quanto do comportamento
prescrito ao gênero feminino. Culturalmente, a maternidade é entendida como central na
identidade da mulher, não sendo diferente para as mães cumprindo pena de privação de
liberdade. Diante disto, a instituição tende a reforçar a domesticidade, o desejo de ser uma boa
mãe e a culpa pela não manutenção do contato com os filhos, por entender que aquelas que
buscam manter este contato têm maiores chances de reabilitação (Shamai; Kochal, 2008; Brown;
Bloom, 2009 apud Barcinski; Cúnico, 2014). Ainda sobre a maternidade e cumprimento de pena,
podemos analisar uma das fragilidades da maternidade de mulheres encarceradas com um caso
amplamente divulgado na mídia3, de uma ex-detenta que ganhou processo, contra o Estado de
São Paulo, por ter sido obrigada a parir algemada pelos pés e pelas mãos em setembro de 20113.
Até a edição e publicação do Decreto nº 57.783/2012 era comum e normal o uso de
algemas nas custodiadas do estado de São Paulo durante o trabalho de parto. Hoje, em 2015,
entende-se que as sensações negativas de humilhação, aflição e desconforto, entre outras, a
que eram submetidas às custodias, diante de cruel, desumana e degradante manutenção das
algemas durante o trabalho de parto, enseja danos morais indenizáveis e guardam nexo com
a ação estatal, de modo que avulta o dever de ressarcimento.
3 Link para a reportagem: <http://apublica.org/2014/08/ex-detenta-que-ganhou-processo-por-parto-
comalgemas-fala-pela-primeira-vez> Acesso em 10 mar. 2015.
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Oliveira (2003, apud Pereira) e Ávila (2013) apresentam outro ponto relevante em
relação à maternidade e cumprimento de pena, quando estas mães adentram nas
penitenciárias, possuindo filhos de menor idade, acabam afastadas destes, muitas vezes pelo
preconceito de suas famílias, que hesitam em levá-los para visitação, e não raras vezes por
falta de condições para recebê-los, por parte dos estabelecimentos prisionais.
Carvalho et al (2006), compreende que ser mulher mostrou-se associado a ter visitado
alguém na prisão antes de ser presa, enquanto os homens presos apresentaram três vezes
mais chance de receber visita íntima do que as mulheres presas.
Bahia (2012) comparou as visitas familiares entre o universo masculino e feminino, e
observou que os homens recebem mais visitas que as mulheres. Em geral, as mães são as que mais
visitam os filhos, pois os homens não costumam se adequar ao ônus das revistas para as visitas e
também ao fato de serem identificados como parentes de infratores, mesmo que eles mesmos o
sejam. As prisões de hoje, citando Wacquant, são projetadas como “fábricas de exclusão”.
3. O estigma e o monitoramento eletrônico de presos
Goffman (1988), em Estigma – notas sobre a manipulação da identidade deteriorada não
se baseia nos atributos que estigmatizam, mas sim nas relações. Um atributo pode confirmar a
normalidade de alguém ou não, portanto, ele não é em si mesmo nem honroso e nem desonroso.
A questão do estigma só surge onde há expectativas, de todos os lados, de que aqueles que se
encontram numa certa categoria não deveriam apenas apoiar uma norma, mas também cumpri-la.
Baseando-se nessas relações, os ditos normais criam estereótipos que tendem a ter
um efeito de descrédito muito grande. Ainda sobre esses estereótipos que são criados, tem-
se as preconcepções que são exigências e expectativas normativas que estabelecem os meios
de categorizar a sociedade. E dentro dessa perspectiva, os monitorados são estereotipados,
uma vez que carregam e exteriorizam a sua pena. As tornozeleiras de monitoramento
eletrônico não deixam de ser uma marca, um símbolo de onde o cidadão vem.
As pessoas que só têm uma pequena diferença acham que entendem a estrutura da
situação em que se encontram os completamente estigmatizados. As pessoas, completa e
visivelmente, estigmatizadas, por sua vez, devem sofrer do insulto especial de saber que
demonstram abertamente a sua situação, que quase todo mundo pode ver o cerne de seus
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problemas. A ideia de que a tornozeleira de monitoramento eletrônico é pequena e pode ser
facilmente encoberta, principalmente por roupas, é falsa.
O estigmatizado pode também ver as suas privações como benção, principalmente
devido à crença de que o sofrimento pode ensinar sobre a vida e sobre a pessoa. Sob a ótica
do apenado que usa a tornozeleira de monitoramento eletrônico de presos, esse sentimento
é uma realidade. E diante de todas essas situações, ele pode vir a afirmar a normalidade dos
outros indivíduos, quando se encontram nos contatos mistos, ou seja, situações em que os
normais estão na mesma situação social dos estigmatizados. Isso acontece quando o apenado
está em prisão domiciliar e sua socialização acontece com seus familiares.
O indivíduo sem o retorno saudável da convivência social cotidiana tende a se isolar,
se tornar mais desconfiado, deprimido, hostil, confuso e ansioso. E quando ocorre o encontro
entre os indivíduos normais e estigmatizados que tentam manter uma conversação, ambos
os lados enfrentarão, diretamente, as causas e efeitos do estigma.
Assim, o autor apresenta o conceito de identidade social real e identidade social virtual.
Identidade social real é o que somos de verdade; são os verdadeiros atributos que temos e a
identidade social virtual é o que pensamos que o outro é, seja num primeiro momento ou não.
São as características que imputamos a ele e a partir daí o incluímos ou excluímos de algum
grupo social. Essa inclusão ou exclusão pode afastar o indivíduo da categoria que ele poderia
pertencer e, por vezes, ele acaba sendo diminuído, depreciado e considerado uma pessoa
estragada, perigosa ou fraca. Numa ressalva, o autor menciona que nem todos os atributos
indesejáveis estão em questão, mas somente aqueles incongruentes com o estereótipo criado.
Diante dessas relações, o termo estigma apresenta uma dupla perspectiva. Ao assumir
a postura de que todos conhecem o seu estigma ou ele é facilmente reconhecido, o indivíduo
se torna uma pessoa desacreditada. E quando assume a postura de que não conhecem seu
estigma e ele também não é facilmente reconhecido, o indivíduo se torna uma pessoa
desacreditável. Por vezes o autor afirma que a maioria dos indivíduos já passaram por ambas
as situações e que, em alguns momentos, não conseguem separar uma da outra.
Numa tentativa de estabelecer uma diferença entre identidade social e identidade
pessoal, Goffman (1988) afirma que ambos os tipos de identidade podem ser mais facilmente
compreendidas em conjunto e de serem contrastadas se forem chamadas de identidade do “eu”,
ou identidade experimentada. Como já pontuado, o indivíduo estigmatizado constrói a imagem
que tem de si próprio a partir do mesmo material que as pessoas normais construíram sua
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identidade, logo, as identidades social e pessoal são parte, antes de mais nada, dos interesses e
definições de outras pessoas em relação ao indivíduo cuja identidade está em questão.
O destoante é aquele membro que não adere às normas sociais referentes à conduta
e a atributos pessoais. O desvio é a peculiaridade deste indivíduo que se recusa a aceitar o
lugar social que lhe é destinado e age de maneira irregular, às vezes, rebelde, no que se refere
a nossas instituições básicas. O comportamento desviante é caracterizado pela negação da
ordem social, eles são percebidos como incapazes de usar as oportunidades disponíveis para
o progresso nos vários caminhos aprovados pela sociedade e mostram assim, um desrespeito
pelos superiores; falta-lhes moralidade e, dessa forma, representam defeitos.
Os desviantes sociais, os membros de minorias, as classes mais baixas, provavelmente
colocam-se como estigmatizados e inseguros em relação à recepção dos demais indivíduos.
Essa realidade é a dos apenados que usam a tornozeleira de monitoramento eletrônico de
presos. Os apenados monitorados, geralmente, possuem sua identidade social marcada pelo
desvio. Além dos atributos pessoais que caracterizam sua origem social e que são usualmente
associados a uma série de estereótipos que marginalizam, existe a dificuldade de realização de
todo o processo de tentativa de ressocialização.
Considerações Finais
As reflexões aqui apresentadas problematizam o uso do monitoramento eletrônico de
presos e o encarceramento. Os dispositivos de monitoramento eletrônico de presos são
demasiado evidentes e seu uso é estigmatizante ao sublinhar a diferença da pessoa vigiada
em face de outros cidadãos.
Este trabalho corrobora com os estudos que afirmam que a punição para as mulheres
se amplia na medida em que o aparelho prisional, incluindo o uso da tornozeleira de
monitoramento eletrônico de presos utiliza seus corpos como dispositivos de controle
ocasionando mais insegurança, solidão e sofrimento.
A reformulação das identidades das mulheres apenadas que usam a tornozeleira de
monitoramento eletrônico de presos não são suficientes ou equivalentes para que elas
assumam uma identidade de encarceradas, mesmo estando submetidas à reclusão, privadas
de liberdade e de tantos outros elementos da vida de outrora. A construção da identidade
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dessas mulheres perpassa as questões do estigma ora apresentadas neste trabalho e as
experiências vividas fora e dentro da prisão.
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OS REFLEXOS DO PROCESSO DE COLONIZAÇÃO NA SAÚDE INDÍGENA
BRASILEIRA SOB O OLHAR DE ANÍBAL QUIJANO E BARTOLOMÉ DE LAS
CASAS
Mariana de Medeiros Thompson Mestranda do PPGSD da UFF. E-mail: [email protected].
Moema Guimarães Motta Doutoranda do PPGSD da UFF. E-mail: moemaguimaraes @gmail.com.
Resumo: O Centro Regional das Nações Unidas anunciou, em janeiro de 2010, que os povos
indígenas comportam um terço das populações mais pobres do mundo, revelando estatísticas
desumanas e excludentes relacionadas à saúde. Com fito principal de indagar se o processo de
colonização no Brasil foi capaz de provocar a precariedade do acesso à saúde indígena é que, como
suporte teórico, elegem-se os autores Aníbal Quijano e Bartolomé de Las Casas. Apresentar-se-á,
também, acervo normativo referente à matéria sob a forma das leis especiais do Sistema Único de
Saúde e os princípios constitucionais aplicáveis. A metodologia aplicada será a revisão bibliográfica.
Esclarece-se que este trabalho não privilegiará um único paradigma sobre o atual retrato da Saúde
Indígena, mas conferirá uma perspectiva geral sobre o tema.
Palavras-chave: saúde indígena; legislação; descolonialidade.
Abstract: The United Nations Regional Centre announced in January 2010 that indigenous peoples
comprise a third of the poorest populations in the world, revealing inhuman and excluding statistics
related to health. With the main purpose of inquiring whether the colonization process in Brazil was
capable of causing the precariousness of access to indigenous health, as theoretical support we elect
the authors Aníbal Quijano and Bartolomé de Las Casas. Will expose also the normative patrimony
concerning the subject in the form of special laws of the Brazilian Unified Health System and the
applicable constitutional principles. The methodology used here is the review of literature. It is
explain that this work will not use a single paradigm on the current scenario of Indigenous Health,
but will give an overview about the topic.
Keywords: indigenous health; legislation; decoloniality.
Introdução
A origem das normas de conduta em sociedade perde-se no tempo. No início,
associada a concepções religiosas e/ou morais sobre o bem e o justo, estabelecidas conforme
costumes e práticas locais. Com as mudanças históricas e movimentos sociais ocorridos no
ocidente, principalmente a partir da modernidade – marcada pela redução do poder da igreja
e o domínio do liberalismo – surgiu a preocupação em estabelecer um corpo de regras e
procedimentos que se propunha independente de pressões externas, administrado pelo
Estado, capaz de garantir a ordem e sua autoridade.
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Resultado do processo histórico europeu, o liberalismo estabelece o direito atrelado
ao conceito de Estado-nação. Inspirado no modelo mecanicista em crescimento à época,
busca estabelecer normas de conduta a partir de uma lógica científica, um saber exato – “o
direito”. Necessário para garantir que, em um mesmo território, vigorasse uma única cultura,
um único idioma, um povo único. Um direito positivado pelo Estado. Através do direito, os
conflitos poderiam ser avaliados através de um viés comunicativo específico – o viés jurídico
– reduzindo os efeitos violentos e destruidores da convivência, através da limitação dos
excessos individuais, e garantindo o funcionamento do mercado, da propriedade privada e,
por conseguinte, da ordem e da paz social.
Apesar do dinamismo constante experimentado pela sociedade e também pelas
diversas influências sofridas pelos diversos grupos e de seus novos rearranjos, não se pode
negar a permanência de desiguais condições de vida entre as diversas regiões do planeta. O
Centro Regional das Nações Unidas anunciou por meio do seu Departamento de Informação
Pública de janeiro de 2010, que os povos indígenas comportam um terço dos mais pobres do
mundo e sofrem com condições alarmantes em todos os países. A primeira publicação da
ONU sobre a situação dos povos indígenas do mundo revela estatísticas alarmantes sobre
pobreza, saúde, trabalho, direitos humanos, meio ambiente, entre muitas outras.
Com outros autores latino-americanos, Quijano (2005), divide a ideia de que esta
realidade é consequência do processo de colonização adotado pelos europeus. Um processo
único na história que permitiu a distinção dos povos entre humano-europeus e não humanos
– outros povos. Desse modo, excluídos do acesso aos mesmos direitos.
Com isso, Quijano (2005) propõe a descolonialidade, ou seja, a necessidade de
romper com o eurocentrismo e a colonialidade do saber, a fim de construir uma identidade
cultural latino-americana. Neste processo, recoloca o papel social dos povos originários e
dos descendentes das populações africanas desterritorializadas e escravizados nas colônias.
Las Casas chegou à América em 1502 lutando, inicialmente, contra os índios e
testemunhando bárbaros massacres de índios, inclusive a morte do cacique Hatuey, chefe
dos Caonao. Neste momento, ponderou sobre a perversidade da conduta perpetrada na
conquista espanhola e, por isso, regressou à Europa e empreendeu esforços pela reforma das
Leis das Índias e pela proteção dos povos das Américas (SOUZA FILHO, 2012, p. 46).
Em razão disso, edificou teoria também demonstrada por meio de ações que
contemplavam uma ideia pacifista e de valorização da diversidade cultural frente às recentes
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terras encontradas, confiando na harmonia relacional entre indígenas e espanhóis. A partir
disso, foi considerado o precursor do pensamento indigenista ou criticista, arrebatando com
seus ideais outros pensadores contemporâneos a ele. Las Casas documenta, ademais, a
dificuldade do europeu em compreender os povos nativos encontrados no novo continente.
No mesmo diapasão, Segundo Quijano (2005), o conceito de diferentes raças humanas,
adotado durante muitos anos no ocidente, foi causa de diversos conflitos sociais. O autor
demonstra como o colonizador ibérico impôs a cosmovisão europeia sobre os demais povos
presentes no continente americano, de forma a conseguir o domínio político, financeiro e cultural
dos povos colonizados. Este processo contribuiu para a desqualificação de quaisquer outras
racionalidades diversas da europeia e é identificado pelo autor como colonialidade do poder.
Apesar da interpretação dada pelo movimento conhecido por lusotropicalismo, que
tem em Gilberto Freyre uma figura basilar, afirmar a distinção entre a colonização espanhola
e portuguesa, é possível identificar reflexos da Colonialidade do poder e do eurocentrismo
defendido por Quijano e seus pares no Brasil, tal como identificamos ao nos debruçarmos
sobre a história da política nacional de atenção aos povos indígenas, ou seja, uma realidade
contrária à teoria Freyriana de uma “integração das três raças”.
Pinto (2009), ao recordar o apoio do governo Salazarista (1933-1974) às teorias de
Gilberto Freyre, aponta-nos as bases políticos-conceituais presentes no lusotropicalismo.
Para Gilberto Freyre, no Brasil, tanto o negro africano, como o índio, foram
elementos que civilizaram o branco português e este na sua “intrínseca”
aclimatabilidade, no amalgamento interracial, logo deixou de ser português
para tornar-se lusobrasileiro. O português para Freyre já era um mestiço
em Portugal, dessa maneira, por essas condições inatas, jamais poderia se
desenvolver historicamente um Brasil branco e europeu. Esse será um dos
termos centrais do lusotropicalismo. Dessa confluência interracial,
inaugurou-se no Brasil um novo processo civilizatório que, conforme o
autor haveria por se estender a todos os espaços de colonização portuguesa.
E para melhor justificar o sentido da instrumentalização do modelo
explicativo freyriano pelo Estado salazarista, Casa grande & senzala
sugere o português como herói colonizador, portador de um conjunto
específico de práticas de colonização que o tornam único na experiência
histórica das colonizações (PINTO, 2009, p. 151-152).
Neste trabalho, buscamos demonstrar que o diferente resultado apresentado na atenção
à saúde dos povos indígenas, quando comparado aos iguais indicadores do restante da
sociedade nacional, tem como causa concorrente o processo de colonização sofrido no Brasil.
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1. Política nacional de atenção à saúde dos povos indígenas - Um processo em construção
A publicação da Política Nacional de Atenção à Saúde dos Povos Indígenas
(PNASPI) instituída em 2002 e a leitura das diversas disposições normativas sobre o tema
ao longo de nossa história republicana, parecem confirmar a dificuldade de convivência entre
a diversidade cultural dos povos originários e o restante da sociedade nacional brasileira. Em
grande parte, atrelado ao interesse inicial do colonizador de garantir a integridade territorial
e a construção de um ideal de Estado-Nação, típico do liberalismo europeu.
Com o fim do Império, a preocupação do governo republicano em garantir a
integridade territorial e as fronteiras do país, estabelece-se uma política governamental
voltada aos povos indígenas com a criação do Serviço de Proteção ao Índio e a Localização
de Trabalhadores Nacionais (SPILTN), através do Decreto nº 8072, de 20 de junho de 1910.
Inspirado pela figura do Marechal Rondon, o novo órgão tinha tanto o objetivo de proteger
os índios, quanto treiná-los para atuar como trabalhadores rurais, através da fundação de
centros agrícolas. Oito anos depois, o SPI foi separado da Localização de Trabalhadores
Nacionais pelo Artigo 118 do Decreto-Lei nº 3454, de 6 de janeiro de 1918. Também nesse
período foi estabelecida a relativa incapacidade jurídica dos indígenas e o poder de tutela do
SPI através do Código Civil de 1916 e da Lei nº 5484 de 27 de junho de 1928, que regulava
a situação dos índios nascidos no território nacional (Martins, 2012), portanto, mantinha-se
o conceito da diferença da natureza entre os povos nativos e o restante da sociedade nacional.
Na plataforma de governo de Vargas, o trabalhador formal urbano foi contemplado
com um modelo médico assistencial, no que Wanderley Guilherme chamou de cidadania
regulada. Para tanto, reproduzia o modelo trazido pelos imigrantes italianos, era criada,
assim, a caixa de assistência e pensão (CAP), posteriormente, o Instituto de Aposentadoria
e Pensão (IAP), que cobria eventuais períodos de doença ao trabalhador assalariado e
garantia um salário ao aposentado, a partir de sua inserção no mercado formal (por exemplo,
ferroviário, comerciário, entre outros). Entretanto, o governo não estendia a política de saúde
aos trabalhadores informais e áreas rurais (ESCOREL, 2008).
Como o Brasil se tornou signatário da Convenção 107 da Organização Internacional do
Trabalho (OIT) na década de sessenta do século passado, e no mesmo período ocorreu a
promulgação do Estatuto do índio (Lei 6001/73), ganhou força o ideal de integrar o indígena ao
restante da sociedade nacional adequando-se ao ideal desenvolvimentista do período militar.
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Foi criado o Conselho Nacional de Proteção aos Índios (CNPI), através do Decreto-Lei nº
1.794, de 22 de novembro de 1939. O novo conselho, formado por antropólogos e pessoas ligadas
à causa indígena, deveria assessorar o Serviço de Proteção ao Índio (SPI) no seu processo de
integração. Segundo a orientação presente na anteriormente citada Convenção 107 OIT.
Apesar de propor o respeito às terras e à cultura indígena, era costumeiro o SPI
transferir os indígenas e liberar territórios para a colonização sem considerar que a mudança
resultasse em dificuldades de adaptação dos indígenas e, consequentemente, situações de
doenças, fome e redução da população (FREIRE, 2015).
Entretanto, é apenas no Estatuto do índio que a saúde é mencionada como um direito
dos indígenas. Em seu artigo 54 estabelece “os índios têm direito aos meios de proteção à
saúde facultados à comunhão nacional” e, em seu parágrafo único, compromete o poder
público como segue: “Na infância, na maternidade, na doença e na velhice, deve ser
assegurada ao silvícola, especial assistência dos poderes públicos, em estabelecimentos a
esse fim destinados, ” embora o acesso ao direito exija a aceitação pelos indígenas do modelo
assistencial adotado pelo restante da sociedade nacional.
Entretanto, movimentos sociais de resistência aconteciam em várias partes. Guerras
pela independência das diversas colônias europeias na África e Ásia, aliado aos regimes
ditatoriais dos países latino-americanos e a Conferência de Medellín (Colômbia, 1968),
quando a orientação assumida pela Igreja Católica em favor dos pobres, oferece um canal
capaz de dar visibilidade às questões indígenas e a luta dos direitos das minorias. Também o
movimento a favor dos direitos das mulheres, em conjunto, pressionou por mudanças políticas.
A década de setenta registra o crescimento da insatisfação com o regime político
vigente e o crescimento da pressão por assistência à saúde associados à crítica ao modelo
preventivista de atenção à saúde proposto pelo governo norte-americano e considerado
inadequado para a realidade brasileira. Este debate dá origem ao chamado movimento
sanitário brasileiro que adotou como conceitos básicos a determinação social da doença, a
historicidade do conceito de saúde-doença, o processo de trabalho, o poder médico e a
medicalização (ESCOREL, 2008).
Da mesma forma, a Conferência Internacional sobre Cuidados Primários de Saúde
(1978) denuncia no item II da Declaração de Alma-Ata:
A chocante desigualdade existente no estado de saúde dos povos,
particularmente entre os países desenvolvidos e em desenvolvimento,
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assim como dentro dos países, é política, social e economicamente
inaceitável e constitui, por isso, objeto da preocupação comum de todos os
países (Declaração de Alma-Ata, 1978).
A década de 80 significou um marco importante na área da saúde brasileira,
resultado das transformações ocorridas com o fim do Regime Militar. A promulgação da
Constituição Federal de 1988, além de definir a saúde como dever do Estado e direito
universal ao cidadão brasileiro, estabelece um Sistema único de Saúde (SUS). A CRFB1 -
Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 também reconhece os índios como
sujeitos de direitos nos seus artigos 231 e 232 a respeito dos Direitos Indígenas em geral, os
quais são transcritos parcialmente abaixo, senão vejamos:
Art. 231. São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes,
línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que
tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e
fazer respeitar todos os seus bens. [...]
Art. 232. Os índios, suas comunidades e organizações são partes legítimas
para ingressar em juízo em defesa de seus direitos e interesses, intervindo
o Ministério Público em todos os atos do processo”.
Para a regulamentação do SUS, foi sancionada a Lei Orgânica da Saúde (LOS - Leis
nº 8.080, de 19 de setembro de 1990), que atribuiu o comando único das políticas sanitárias
ao Ministério da Saúde. A interpretação prática da legislação relativa à atenção aos povos
indígenas, entretanto, mantém a lógica do Estatuto do Índio e privilegia o modelo científico
da chamada biomedicina.
Em 1989, a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que
trata especificamente sobre os direitos dos povos indígenas e tribais reconhece o direito à
autonomia, o controle de suas instituições, a posse da terra, entre outros. Pressionado pelas
mobilizações dos indígenas e organizações de apoio à causa, somente em 2002, o Brasil se
torna um signatário, ano da publicação da Política Nacional de Atenção à Saúde dos Povos
Indígenas (PNASPI). Embora em 1999, uma legislação infraconstitucional – a Lei nº
9.836/1999, conhecida como Lei Arouca – reconheceu as especificidades da população
indígena brasileira e forneceu as bases legais para a criação do Subsistema de Atenção à
Saúde Indígena ligado ao modelo do Sistema Único de Saúde (SUS).
1 BRASIL, Constituição (1988). Constituição da república federativa do Brasil. Diário Oficial [da]
República Federativa do Brasil, Brasília, DF, 05 out. 1988.
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Entretanto, a execução da proposta esbarra em várias dificuldades. Dentre elas podemos
citar os diferentes conceitos de saúde, doença e processo de cura adotados pelos profissionais de
saúde, treinados no modelo Biomédico e as diferentes populações indígenas assistidas.
Quijano (2005) auxilia-nos a compreender esta posição etnocêntrica e a necessidade
de romper com a postura integracionista presente no Estatuto do Índio, oriunda da influência
dos paradigmas lançados pela Convenção 107, da OIT outrora denunciada, e avançarmos
para os direitos estabelecidos na Convenção 169 assegurando o respeito à diversidade étnica
e cultural dos povos indígenas e o respeito à autonomia dos indígenas em todos os assuntos
relacionados à sua maneira de viver.
Apesar disso, não é tão fácil traduzir em atos os termos da lei. A dificuldade de atuar
em contextos pluriétnicos e multiculturais próprios da realidade dos serviços de atenção à
saúde exigem adequação do modelo institucional e capacitação de recursos humanos, a fim
de atender às diversidades culturais, sem deixar de garantir acesso aos serviços
especializados, como proposto na Lei Sérgio Arouca.
Um processo em andamento e que ainda deverá ser muitas vezes revisitado.
Considerações Finais
Longe de reduzir a complexidade envolvida na garantia do acesso ao direito de
atenção à saúde dos povos indígenas, pretendemos nos aproximar dos conceitos
desenvolvidos por Quijano e Las Casas, a fim de confirmar a relação entre o processo de
colonização sofrido no Brasil e as condições desumanas e excludentes identificadas em
denúncias recebidas pelo Ministério Público Federal na matéria de Saúde Indígena.
A história recente do país, no entanto, apresenta um processo lento de mudanças
presentes na Constituição Federal de 1988, na Convenção 169 da OIT e na definição de uma
Política Nacional de Atenção à Saúde dos Povos Indígenas. Resultados obtidos a partir do
movimento dos próprios indígenas e simpatizantes ao movimento.
A desejada mudança no sentido de respeitar a diversidade cultural presente no país
certamente é um processo lento, como toda mudança cultural. Não obstante tudo isso, a
aposta da construção de uma nova identidade nacional marcada por uma convivência plural
e a oferta de novos conhecimentos nos anima a manter a vigilância e apoiar as medidas
necessárias para que os indígenas tenham seu direito à saúde respeitado.
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Referências
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correspondentes e dá outras providências. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/
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recuperação da saúde, a organização e o funcionamento dos serviços correspondentes e dá
outras providências", instituindo o Subsistema de Atenção à Saúde Indígena. Disponível
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LOS DILEMAS DE UN ESTADO MULTICULTURAL. COLOMBIA Y LOS
DERECHOS ÉTNICOS-CULTURALES
Mauricio Alejandro Diaz Uribe Antropólogo - Universidad Nacional de Colombia. Magister en Estudios Latinoamericanos -
UNSAM. Doutorante em História e Políticas Sociais - UFES. E-mail: [email protected].
Resumen: En Colombia tras la declaración de la constitución de 1991, la cuestión étnica toma una
importancia crucial en la conformación de un nuevo Estado social de derecho. El desafío socio
político y jurídico de pensar un país desde diversas etnias, cosmovisiones, territorios y culturas,
instaló el pluralismo étnico y cultural como sustento de la reconfiguración del orden constitucional
de la nación colombiana en la década de los 90. Sin embargo a pesar de este gran avance en materia
de derechos colectivos culturales y étnicos, la violación de los derechos humanos sobre las
comunidades étnicas se agudiza a principios del siglo XXI. Ese es el dilema de un país que intenta
construir y pensarse en la diferencia, pero que continúa en un conflicto social y político,
principalmente en los territorios donde habitan las comunidades étnicas. El artículo intentara hacer
una reseña histórica sobre el proceso de reconocimiento de los derechos étnicos y culturales que se
reconocen en Colombia desde la década de los 90, y presentar las principales dificultades y dilemas
en el ejercicio del cumplimiento y reconocimiento de derechos colectivos en un Estado multicultural.
Palabras clave: Colombia; derechos étnicos y culturales; multiculturalismo.
Resumo: Na Colômbia, após a declaração da Constituição de 1991, a questão étnica assume uma
importância crucial no processo de formação de um novo estado social de direito. O desafio no
contexto sócio-político e pensamento jurídico um país de várias etnias, visões de mundo, territórios
e culturas, instalou o pluralismo étnico e cultural como a fundação para a reconfiguração da ordem
constitucional da nação colombiana, a década de 90. No entanto, apesar de este grande avanço no
campo dos direitos coletivos culturais e étnicos, a violação dos direitos humanos em comunidades
étnicas é particularmente agudo no início do século XXI. Esse é o dilema de um país que tenta criar
e pensar a diferença, mas que continua a conflitos sociais e políticos, principalmente nos territórios
que habitam as comunidades étnicas. O artigo vai tentar dar uma visão histórica do processo de
reconhecimento dos direitos étnicos e culturais que são reconhecidos na Colômbia desde a década
de 90, e apresentar as principais dificuldades e dilemas no exercício da aplicação e reconhecimento
de direitos coletivos em um estado multicultural.
Palavras-chave: Colômbia; étnica e direitos culturais; multiculturalismo.
Summary: In Colombia after the declaration of the Constitution of 1991, the ethnic question takes
a crucial importance in the formation of a new social state of law. Challenge the socio-political and
legal thinking a country from various ethnicities, worldviews, territories and cultures, installed the
ethnic and cultural pluralism as the foundation for the reconfiguration of the constitutional order of
the Colombian nation in the decade of the 90. However in spite of this major breakthrough in the
field of collective rights cultural and ethnic, the violation of human rights on the ethnic communities
is particularly acute in the early twenty-first century. This is the dilemma of a country that tries to
build and think of the difference, but that continues in a social and political conflict, mainly in the
territories they inhabit the ethnic communities The article will attempt to make a historical overview
of the process of recognition of the ethnic and cultural rights that are recognized in Colombia since
the decade of the 90, and submit the main difficulties and dilemmas in the exercise of the enforcement
and recognition of collective rights in a multicultural State.
Keywords: Colombia; ethnic and cultural rights; multiculturalism.
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En América latina, durante la década de los 90, los movimientos indígenas se inscriben
y visibilizan en el contexto del fortalecimiento de la movilización de minorías y grupos
marginados. El surgimiento de los discursos que dan cabida a las reivindicaciones de estos
sectores se da en consonancia con las transformaciones que en materia social y política se dan
en el continente con los nuevos movimientos sociales, el tránsito de las dictaduras hacia los
gobiernos democráticos y la implementación de modelos económicos neoliberales. El
potencial político de las organizaciones indígenas surge en el contacto de las mismas con el
discurso en torno a la movilización social y esto se relaciona con la superación del aislamiento
geográfico y lingüístico de las comunidades étnicas que las conforman. Se da también desde
una reacción a la marginación y la explotación a la que se ven sometidas las comunidades
indígenas. La construcción de una identidad étnica positiva, si bien va a tropezar con
dificultades, diferencias y divergencias, va a posibilitar la preponderancia del actor indígena
en el escenario nacional de los diferentes países latinoamericanos. El movimiento indígena va
a oscilar entre la demandas por igualdad y por diferenciación. Tales demandas se van
materializar en el escenario internacional de organizaciones por los derechos humanos y el
reconocimiento de estados multiculturales en el contexto de las naciones unidas y por otro lado
en el escenario nacional a través de la participación política en las asambleas constituyentes1.
El movimiento indígena colombiano se ha fundado en los años 70; principalmente
en la defensa y lucha por la tierra, teniendo como epicentro la región del Cauca, al sur oriente
del país, en los Andes colombianos. En este departamento se iniciaron las primeras protestas
y levantamientos de sus habitantes ancestrales contra un poder local que amenazaba su
territorio. Así en la primera década del siglo XX, gracias a las luchas lideradas por el
indígena Nasa y Páez Manuel Quintín Lame, contra las formas de servidumbre instaladas
por una elite regional, se iniciaron las primeras protestas y levantamientos indígenas,
expandiéndose por los departamentos del Cauca y el Tolima. En la década de 1970, los
movimientos indígenas en el Cauca se consolidaron, y alcanzaron niveles de relativo éxito
en la recuperación de sus tierras y el mejoramiento de sus condiciones de vida2.
1 Quijano: Aníbal (2006). “Estado-nación y movimientos indígenas en la región andina: Cuestiones abiertas”.
En Observatorio Social de América Latina. Año Vil n. 19. Enero-abril de Consejo Latinoamericano de
Ciencias Sociales. Argentina, pp. 15-24. 2 JARAMILLO J, Efraín. (2011) “Territorio indígena e identidad étnica. Estado y autonomía”. In Los
indígenas colombianos y el Estado. Desafíos ideológicos y políticos de la multiculturalidad. Editorial
IWGIA. Colombia. p. 102.
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En la década de los 1980 y 1990, los motivos de las movilizaciones indígenas fueron
desplazándose hacia otros ejes como la participación y representación política a nivel regional
y nacional. Sin embargo, se mantuvo centrado en la idea de ejercer la autonomía en sus propios
territorios, la capacidad de organizar su vida económica y socialmente de acuerdo a sus
necesidades y patrones culturales, en relación con los procesos de integración a la nación
Colombiana. Así se logra la participación política en la asamblea constituyente de 1990 de tres
representantes: Lorenzo Muelas (Misak-Misak) Francisco Birry (Embera) Alfonso Peña
Chepe (Desmovilizado movimiento Quintín Lame) y Abadio Green (dirigente y presidente de
la Organización Nacional Indigena de Colombia en los 90 (Cuna). En la Constitución de 1991
se registraron cinco cambios significativos: 1. El cambio a un Estado social de derecho 2. El
reconocimiento de los pueblos indígenas como sujetos colectivos de derechos. 3. El
reconocimiento constitucional de un Estado multicultural y pluriétnico, lo que implica valorar
la existencia de otras culturas y de referentes distintos sobre la propiedad, la familia, la salud,
la religión, el derecho y la naturaleza. 4. la obligación estatal de ofrecerles a los indígenas un
trato distinto, que potencia su diferencia, etnicidad y cultura. 5. La acción de tutela como
herramienta jurídica que protege los derechos fundamentales de los indígenas tanto en su
calidad de individuos como pueblos, dado su carácter de sujetos colectivos de derechos.
En esta nueva Constitución han quedado reconocidos una serie de derechos de las
comunidades indígenas: 1. El Estado reconoce y protege la diversidad étnica y cultural de la
Nación Colombiana (artículo 7) y es obligación del Estado proteger las riquezas culturales
(artículo 8). Las lenguas y dialectos de los grupos étnicos son también oficiales en sus
territorios, y en las comunidades con tradición lingüística propia la educación será bilingüe
(Artículo 10). Su formación deberá respetar y desarrollar su identidad cultural (artículo 68).
Las tierras comunales de grupos étnicos y las tierras de resguardo son inalienables,
imprescriptibles e inembargables (artículo 63). Se reconoce que los grupos étnicos asentados
en territorios de riqueza arqueológica tienen derechos especiales sobre esos patrimonios
culturales, que deben ser reglamentados por ley (artículo 72). Reconoce como nacionales
colombianos a los indígenas que comparten territorios fronterizos, a condición de
reciprocidad (artículo 96). Crea cargos de senadores y un número a reglamentarse de hasta
cinco representantes a elegirse en circunscripción nacional especial por comunidades
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indígenas (artículo 176)3. Establece que las autoridades de los pueblos indígenas podrán
ejercer funciones jurisdiccionales dentro de su ámbito territorial, de conformidad con sus
propias normas y procedimientos, siempre que no sean contrarios a la Constitución y leyes
(artículo 246). El conjunto de la política del Estado para las comunidades indígenas no sólo
está basado en las normas de la Nueva Constitución Nacional sino en aquellas de la Ley 21
de 1991, que ratifica y hace Ley Colombiana al Convenio 169 de la OIT “Sobre Pueblos
Indígenas y Tribales en países independientes”.
La Constitución de 1991 introdujo una reconfiguración del Estado-nación colombiano
al ser definido como pluriétnico y multicultural. Esta transformación obedece, entre otras
causas, a la participación de actores sociales étnicos que reivindicaron su identidad y la usaron
como herramienta de lucha para el logro de sus derechos como minorías en un contexto de
violencia política y social que puso en cuestión la continuidad de Colombia como sociedad y
como Estado. Un contexto internacional caracterizado por el ascenso de la etnicidad y el
surgimiento de marcos teóricos que defienden el derecho a la diferencia generaron un
escenario político favorable a las demandas de indígenas y negros en Colombia. El surgimiento
en Colombia de nuevas identidades de base étnica está relacionado con la revitalización
cultural, el dialogo interétnico e intercultural, la reinvención de la historia y la identificación
con el territorio como el lugar de origen y reproducción de la identidad indígena.
Después de la Asamblea constituyente de 1991 donde se avanza en el reconocimiento
de los derechos de los pueblos indígenas en Colombia, y de un periodo de organización y
liderazgo exitoso entre los años de 1980 y 1990, las comunidades indígenas han sufrido la
invasión de sus territorios y desplazamiento de miles de personas o viviendo en condiciones
de confinamiento en medio del conflicto armado que se agudiza en la primera década del
siglo XXI. Este logro constitucional del movimiento indígena colombiano, en un contexto
de crisis política y económica del gobierno colombiano en la década de los 90, refleja el alto
progreso sobre jurisprudencia en relación a derechos étnicos en el contexto latinoamericano,
Sin embargo paradójicamente, a pesar de estas leyes, Colombia sigue siendo el país que más
presenta violaciones de derechos humanos a comunidades étnicas en la región. ¿A qué
obedece este dilema de un Estado pluriétnico y pluricultural?
3 Constitución Política de Colombia 1991. Disponible en <http://www.cidh.org/countryrep/Colombia93sp/
cap.11.htm>. Consultado el 12 Julio de 2015.
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1. Tierra versus Territorio
Esta diferenciación entre la lucha por la tierra y lucha cultural por el Territorio, es
una de las grandes transformaciones del movimiento indígena en Colombia, esta
diferenciación va a concretarse en las conflictivas e ideologizadas relaciones entre los
indígenas y los campesinos de la Asociación Nacional de Usuarios Campesinos de Colombia
ANUC, de donde proceden sus primeras experiencias organizativas. Una de las principales
acciones que el movimiento indígena va a emprender para su lucha por la territorialidad es
la recuperación de los territorios en los que estuvieron tanto los resguardos como los antiguos
cacicazgos. Son territorios que reclaman como propios. La recuperación de tierras va a
implicar una concepción de Territorialidad; la tierra va a ser amarrada al reconocimiento de
la autoridad tradicional, la reestructuración y apropiación de los cabildos y a la apropiación
de la figura de propiedad comunal como el Resguardo.
Los resguardos indígenas eran tierras con carácter colectivo en su propiedad y fueron
entregadas por la corona española durante el periodo colonial; después de la independencia se
reconocieron legalmente con la figura de resguardos estableciéndose que no podían ser objeto
de transacción comercial ni ser embargadas. Sin embargo, en los inicios del siglo XIX
terratenientes empezaron apoderarse de ellas presentando escrituras públicas para legitimar su
ocupación4. El Resguardo, era una institución legal de origen colonial que incluía el territorio
reconocido a una comunidad aborigen con el correspondiente título de propiedad colectiva o
comunitaria. Los aborígenes americanos trabajaban dichas tierras y luego debían rendirles
cuentas a los conquistadores españoles. En este sentido, tendríamos que hablar, por tanto, de lo
que se ha dado en llamar resguardo indígena. Durante el periodo colonial de América apareció
como una institución de tipo sociopolítico que se encontraba conformada por un territorio de
ascendencia o ancestralidad donde regían sus tradiciones, sus normas y la cultura propias.
El origen de la figura del resguardo colonial no fue otro que el interés que existía
desde España de evitar que los conquistadores pudieran apropiarse de todas las tierras y
explotaran a todos los autóctonos. ¿Por qué? Porque se hacía necesario que los indígenas
siguieran ofreciendo mano de obra en cualquier situación y además encargándose de la
agricultura, para así poder proveer de alimentos a todos.
4 VASCO URIBE, Luis. (2008) “Quintín Lame: Resistencia y liberación” En Revista Tabula Rasa. Bogotá -
Colombia, N. 9: julio-diciembre. P. 371-383.
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Respecto a este tipo de instituciones habría que destacar algunas de sus señas de
identidad más importantes: Eran unidades territoriales y económicas. Se dividían en dos
zonas claramente delimitadas: las obligaciones, que eran las tierras que se dedicaban al
cultivo en pro de toda la colectividad, y las propias de las familias. La autoridad principal de
cada uno de esos resguardos indígenas era un gobernador, que era el que se encargaba de
establecer y garantizar el orden dentro de aquellos espacios. Dichas tierras se convirtieron
en el principal objeto de lucha de los indígenas. Así, durante mucho tiempo, como pudo
verse en el siglo XX a través de los diversos movimientos indígenas, abogaron por conservar
aquellas tierras para poder sobrevivir y mantener sus valores culturales.
Los resguardos co-existían simultáneamente con otros regímenes como las encomiendas
y las mitas, con los aborígenes como mano de obra utilizada en beneficio de los europeos. El
resguardo se volvió el territorio por la lucha a sus derechos como sujetos colectivos.
El territorio es construido social y políticamente; muy a pesar de ello, se manifiesta
antes que todo como una realidad material, resultante justamente de las relaciones sociales
y de las relaciones sociedad y naturaleza. Para las organizaciones indígenas por ejemplo en
la sierra nevada de Santa Marta y su Organización Gonawindua Tayrona: "El indígena sin
territorio es frágil y liviano como una hoja: en el territorio está la fortaleza, porque ahí es
donde están todos los secretos de la vida; el territorio es la unidad sociocultural sobre la cual
se realizan todas las prácticas cosmogónicas; es el medio a través de la cual se entrelazan el
pasado, el presente y el futuro, es la razón de ser de la historia; es el espacio que recorren los
espíritus para fertilizar la memoria de los ancianos, es el punto de encuentro de todos los
seres que pueblan los mundos superpuestos”.
Esta diferenciación entre tierra y territorio se instala sobre la comprensión y modo de
uso del concepto político de territorio indígena, que nace desde las comunidades indígenas,
primero en la necesidad de establecer relaciones con el Estado-Nación que se va conformando
desde el siglo XIX, y que remite a una idea de soberanía sobre un lugar. Para los indígenas es
el lugar donde se reproduce la vida misma y por ende su cultura; para ellos no se concibe su
existencia sin su propio territorio, y sin los medios naturales que el mismo le ofrece. Ese
territorio no es una cosa que se pueda negociar con otros, sea el Estado o campesinos o
empresas extranjeras. Así el concepto Territorio surge para los indígenas como afirmación
política y autonomía basada en el gobierno propio y la reapropiación de los cabildos frente a
la necesidad de protegerse de ganaderos, palmicultores, campesinos, funcionarios del Estado,
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actores armados, narcotraficantes, empresas petroleras y mineros. Esta tensión entre tierra y
territorio es muy marcada en Colombia, y me animaría a decir que es la diferencia insuperable
que ha marcado la violencia económica, política y social que han resistido los movimientos
indígenas desde siempre. Y por otro lado, es el punto de contradicción con un Estado que
otorga el desafío constitucional del pluralismo étnico y cultural. La conformación de un Estado
con diferentes formas sociales diferenciadas, con diferentes modos de economía y modos de
concebir y apropiarse de la naturaleza y de pensar el desarrollo.
Gracias a los movimientos indígenas colombianos tuvieron el desafío de afirmar la
identidad indígena propia y al mismo tiempo integrarse en la estructura institucional y el aparataje
burocrático de las políticas públicas y las entidades estatales Conllevando a posiciones
esencialistas y dicotomías por ejemplo entre lo ajeno y lo propio, lo tradicional y lo nuevo, o lo de
afuera versus lo de adentro. Pero esta segunda tensión también ha hecho que se transforme el
Estado al menos en sus discursos institucionales y la construcción de una política pública con
diferenciación étnica y cultural; que en la práctica parece traer más problemáticas que en realidad
solucionar cuestiones apremiantes para que las comunidades indígenas al menos sobrevivan.
El movimiento indígena se ha destacado por su alta capacidad de interlocución con
otros actores en lo nacional y lo internacional. El conflicto armado si bien ha debilitado en
tanto ha golpeado a las organizaciones sociales, ha propiciado acciones contundentes de
resistencia civil y ha puesto en primera plana la exigencia de una solución negociada al
conflicto social y armado. El movimiento indígena retoma la historia de lucha de los pueblos
y comunidades indígenas desde sus reivindicaciones fundamentales en torno a la identidad,
el territorio, la autonomía y la cultura. Este se fortalece también a partir de una serie de
oportunidades y circunstancias que se van generando desde la década del 60 como los
procesos de despertar de la conciencia indígena e indigenista en América Latina.
Para algunos académicos los movimientos indígenas y negros han cambiado, en respuesta
a la apertura del Estado, pero en otro sentido ese cambio, aparece con el surgimiento de economías
neoliberales en Latinoamérica, relacionadas con procesos históricos y geopolíticos a nivel global.
Allí en este contexto los discursos y peticiones, liderazgos y formas de organización de los
movimientos indígenas configuraron tensiones, desafíos y transformaciones en la conformación
de un nuevo discurso y dialogo intercultural con el Estado neoliberal.
Entonces aparecen diversos dilemas, contradicciones y conceptos como etnoeducación,
medicina tradicional, lengua y cultura propia que ponen en relación diferenciada pero reconocida
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y legitimada por el gobierno estatal, frente a los servicios en salud, educación para las
comunidades indígenas que tiene el Estado Moderno y sus modelos de desarrollo. Se
circunscribe el dilema entre la necesidad de afirmar la identidad indígena propia y al mismo
tiempo integrarse en la estructura institucional y el aparataje burocrático de las políticas públicas
y las entidades estatales para tratar el tema étnico, es otra de las dinámicas que enfrentan las
organizaciones indígenas en el presente. Conllevando a posiciones esencialistas y dicotomías
por ejemplo entre lo ajeno y lo propio, lo tradicional y lo nuevo, o lo de afuera versus lo de
adentro. Pero estos dilemas han hecho que se transforme el Estado al menos en sus discursos
institucionales y la construcción de una política pública con diferenciación étnica y cultural; que
en la práctica parece traer más problemáticas que en realidad solucionar cuestiones apremiantes
para que las comunidades al menos puedan sobrevivir.
Así en los últimos años surgen nuevos conceptos y lenguajes, se forjan alianzas y nacen
otras relaciones que precisan otros conocimientos y problemáticas más complejas para las
organizaciones indígenas. Aparecen términos y palabras como Estado-nación, pueblo
indígena, bilingüismo, interculturalidad, seguridad alimentaria, etnodesarrollo, biodiversidad,
multinacionales, extractivismo, etc.
Este vocabulario y lenguaje ha conllevado a que se transformen los liderazgos al interior
de las comunidades indígenas y lleve hacia una cierta politización de sus organizaciones.
Entonces aparece un líder indígena dirigente o representante de las comunidades ante la sociedad
colombiana, en los escenarios político- legislativos conformados y controlados por el Estado.
Estos nuevos líderes, han logrado converger en espacios nacionales e internacionales,
estableciendo nuevas alianzas y documentándose de otras experiencias indígenas en el
continente; sin embargo estas nuevas formas de liderazgo, han desarrollado otros peligros, que
va en contra de las mismas luchas indígenas, por ejemplo, una mala comprensión del poder de
la representación, repitiendo prácticas clientelistas entre los líderes, partidos políticos y el
Estado; poca legitimidad de las comunidades locales que dicen representar, y divisiones,
corrupción y debilitamiento de las organizaciones indígenas. Así el líder indígena que para su
comunidad, en algunos casos también era el médico tradicional, o el capitán del gobierno propio,
termina convertido en el funcionario cooptado por el Estado.
Otra situación importante en los últimos años para las organizaciones indígenas en
Colombia es la apertura hacia la transformación de la mirada racista y peyorativa de la
sociedad colombiana sobre la identidad indígena. La emergencia del diálogo intercultural
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sobre la diversidad y otros modos de desarrollo, de economías, de organización política, y
principalmente de visiones de mundo, ha cambiado en cierto sentido la mirada de la llamada
sociedad que en su mayoría hace parte de la Colombia urbana, frente al ser indígena.
Así los movimientos indígenas y las organizaciones configuraron en los últimos años
una manera de percibir y representar la cultura indígena en espacios configurados para la
sociedad “mayor” colombiana. Es la otra cara de la moneda que ha marcado el tránsito de
las comunidades y organizaciones en el mundo de la democracia participativa en el Estado
social de derecho neoliberal. Aquí es importante mencionar que las reivindicaciones del ser
indígena son logros de las propias organizaciones y comunidades en un mundo donde la
identidad y la etnicidad, tomaron relevancia. Sin embargo, esta reivindicación del ser
indígena también presenta tensiones y contradicciones entre el esencialismo y una verdadera
participación política. Por ejemplo los discursos alrededor del medio ambiente sobre el
indígena como cuidador de la naturaleza, y estandarte de la biodiversidad, cuando en la
práctica sus territorios están siendo concesionados por el Estado y las multinacionales5.
Los territorios de las comunidades indígenas, tienen que convivir con la guerra entre
los actores armados legales e ilegales y la presencia amenazante de empresas multinacionales
interesadas en bienes ambientales y recursos mineros. El asesinato de líderes y voceros
indígenas es una constante en la lucha por la defensa de su territorio. Frente a esta situación,
el Estado colombiano ha generado una serie de medidas jurídicas y políticas públicas para
mitigar los efectos del conflicto en las comunidades. Sin embargo, estas acciones no han sido
suficientes y permanece la crisis humanitaria para las comunidades indígenas.
El movimiento indígena a colombiano, al ser heterogéneo históricamente de alguna
forma sostiene sus formas de organización adoptando o más bien adaptándose a la propuesta
del modelo de la multiculturalidad, e invita a pensar el multiculturalismo como la posibilidad
de pensar un mundo donde quepan muchos mundos, entender no solamente el tipo de
estrategias que plantea el movimiento social indígena en el marco del derecho al territorio
colectivo, la autonomía política y cultural, y a su vez las lógicas de dominación y relaciones
de poder, en el marco de un Estado colombiano bipolar que orgullosamente se nombra
multiétnico y pluricultural a partir de la Constitución de 1991.
5 ULLOA, Astrid. (2004) El Nativo Ecológico: Movimientos indígenas y medio ambiente en Colombia.
Instituto Colombiano de Antropología e Historia (ICANH); Colciencias.
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DEMARCAÇÃO DE TERRAS QUILOMBOLAS: FUNDAMENTAÇÃO DAS
DECISÕES DOS JUÍZES DO ESPÍRITO SANTO
Natane Franciella de Oliveira UFES
Resumo: O trabalho que ora se apresenta visa analisar a sentença proferida no processo judicial que
busca a Anulação de Processo Administrativo promovido pelo INCRA, em que foi reconhecida a
titulação da propriedade à remanescentes de quilombos da comunidade de São Domingos. Busca-se
fazer uma breve análise da legislação concernente ao tema e da ADI 3.239/04 que tramita no STF há
11 anos e que não possui previsão para julgamento. Os elementos da decisão proferida pelo juiz de
instância foram analisados sobre o enfoque de Pierre Bourdieu, para o qual, o Direito constrói o
mundo social e também é por ele construído.
Palavras-chave: quilombolas; decisão judicial; campo jurídico.
Abstract: The work presented here aims to analyze the veridict announced in the judicial process that
look for the cancellation of the Administrative Procedure promoted by INCRA, which recognized the
property entitling to the quilombo holdovers of São Domingos community. Seeks to do a brief
legislation analysis concerning the theme and the ADI 3239/04 pending in the Brazilian Supreme Court
for 11 years that hasn´t prediction to trial. The elements from ruling by the trial judge were analyzed
using Pierre Bourdieu's approach, where the law constructs the social world and is also built for it.
Keywords: the quilombolas; judicial decision; legal field.
Introdução
A Constituição Federal de 1988 estabeleceu em seu art. 68 dos Atos das Disposições
Constitucionais transitórias que aos remanescentes das comunidades quilombolas, que
estejam ocupando suas terras, é reconhecido o Direito da propriedade definitiva, devendo o
Estado emitir-lhes os respectivos títulos. Com o advento da Constituição, ficou reconhecido
às comunidades tradicionais a propriedade coletiva de suas terras, surgindo um novo modelo
de propriedade com características próprias.
Como forma de regulamentar o artigo 68 da Constituição Federal, o Decreto
4.887/2003 trouxe os procedimentos para identificação, reconhecimento, delimitação,
demarcação e titulação das terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos
quilombos, tratando-os como sujeitos coletivos de Direito e desprendendo-se da ideia do
senso comum de que o quilombo era somente esconderijo dos escravos fugitivos. O referido
Decreto traz importantes considerações sobre o Direito ao reconhecimento da propriedade
dessas comunidades, caracteriza os remanescentes de quilombos, os procedimentos para a
demarcação das terras e a propriedade que lhes é assegurada.
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No entanto, apesar do inegável avanço no tratamento às comunidades negras rurais, o
Decreto 4.887/2003 é objeto da Ação Direta de Inconstitucionalidade 3.239/2004, proposta pelo
antigo PFL e atual DEM, em que se questiona a forma escolhida para o conteúdo
(inconstitucionalidade formal), bem como a desapropriação prevista no art. 13 e o critério de
autoatribuição (inconstitucionalidade material). O julgamento se iniciou em 2012 com voto do
Ministro Cesar Peluso pela procedência da Ação, ocasião em que foi suspenso, e só retomado em
2015 com voto pela improcedência e constitucionalidade do Decreto pela Ministra Rosa Weber.
A ADI se prorroga no tempo e, passados mais de 10 anos da sua propositura, ainda
não houve decisão do Supremo Tribunal Federal sobre a sua inconstitucionalidade. Teria
essa demora ao decidir significado e consequências no campo jurídico?
Enquanto aguarda julgamento da ADI, são propostas Ações na justiça ordinária que
visam o reconhecimento do direito à propriedade dos remanescentes das comunidades
quilombolas, proferindo o julgador uma decisão em que se leva em consideração a luta
simbólica entre as partes, resguardando ou não a possibilidade dessas comunidades de terem
o seu Direito reconhecido.
Busco aqui, em específico, além da análise dos aspectos ditos acima, a análise da
sentença proferida no processo de n. 2010.50.03.000484-7, em que os autores, intitulados
proprietários das terras que serão desapropriadas por pertencerem à comunidade quilombola
na região de São Domingos, buscam a Anulação do Processo Administrativo
54340.000581/2005-71 promovido pela INCRA, em que figuram também como pertences à
referida comunidade quilombola. Houve sentença de procedência da Ação, em que o
magistrado da primeira instância, fundamenta a racionalidade da sua decisão na
inconstitucionalidade do Decreto 4.887/2003.
A análise da construção da sentença no processo em questão é ponto de relevo no
presente trabalho, pois se observará quais os argumentos utilizados na decisão, além da
forma como a sentença é produzida num determinado campo de atuação.
1. As características singulares da propriedade quilombola
Inicialmente, quando falamos de quilombo, a primeira ideia que vem à mente é a de
escravos fugidos que se escondiam nesses lugares em razão da dominação e exploração a
que eram submetidos. Esse pensamento remete à história do Brasil à época em que ainda
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havia escravidão, e que os negros, como forma de se manifestar contra o sistema vigente e
preservar a sua identidade étnica e sociocultural, organizavam-se em quilombos.
Em 1988, ano em que foi promulgada a Constituição Federal, houve um extenso debate
de movimentos sociais sobre assuntos que ficaram adormecidos durante o período autoritário.
O movimento negro foi um dos que mais se destacou promovendo um diálogo sobre o papel
do negro na construção histórica da sociedade brasileira, revisitou-se a época da escravidão e
o seu período pós-abolição, em que foram marginalizados e excluídos da nova sociedade
republicana que se formava. Esse movimento que abordava um conflito referente a questões
raciais e sociais do povo negro, participou do processo constituinte que resultou no art. 68 dos
Atos das Disposições Constitucionais Transitórias. Tal artigo prevê que
Art. 68 Aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam
ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o
Estado emitir-lhes os respectivos títulos (Brasil, 1988, p. 123).
A Constituição Federal expôs um novo termo, qual seja “remanescente de quilombos”,
levantando a discussão acerca da sua significação. Para orientar na aplicação do dispositivo, a
Associação Brasileira de Antropologia divulgou, em 1994, por meio do Grupo de Trabalho sobre
Comunidades Negras Rurais, um documento referência sobre a conceituação do termo.
O termo “quilombo” tem assumido novos significados na literatura
especializada e também para indivíduos, grupos e organizações. Ainda que
tenha um conteúdo histórico, o mesmo vem sendo ressemantizado para
designar a situação presente dos segmentos negros em diferentes regiões e
contextos no Brasil. Definições têm sido elaboradas por organizações não
governamentais, entidades confessionais e organizações autônomas de
trabalhadores, bem como pelo próprio movimento negro [...].
Contemporaneamente, portanto, o termo não se refere a resíduos ou
resquícios arqueológicos de ocupação temporal ou de comprovação
biológica. Também não se trata de grupos isolados ou de uma população
estritamente homogênea. Da mesma forma nem sempre foram constituídos
a partir de movimentos insurrecionais ou rebelados, mas, sobretudo,
consistem em grupos que desenvolveram práticas de resistência na
manutenção e reprodução de seus modos de vidas característicos num
determinado lugar (Associação Brasileira de Antropologia, 1994, p. 81).
Em junho de 2002, o Brasil ratifica a Convenção 169 da OIT sobre povos indígenas
e tribais, que por meio do Decreto 5.051/04, garantiu ações coordenadas e sistemáticas para
assegurar os direitos desses povos. Ela estabelece que a consciência da identidade indígena
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ou tribal será determinante para se aplicar a referida convenção1. Estabelece, também, que a
esses povos que devem possuir auto-determinação étnica, é assegurado o direito de
propriedade e de posse sobre as terras que ocupam tradicionalmente2.
Os critérios e direitos assegurados na Convenção 169 da OIT, foram tratados na
legislação nacional com maior abrangência e detalhamento no Decreto 4.887/2003 que
regulamenta o art. 68 do ADCT. O Decreto em comento trata dos procedimentos administrativos
para identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação da propriedade
definitiva das terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos. Em seu artigo
2º especifica que se “consideram remanescentes das comunidades de quilombos os grupos
étnico-raciais, segundo critérios de autoatribuição, com trajetória histórica própria, dotados de
relações territoriais específicas, com presunção de ancestralidade negra relacionada com a
resistência à opressão histórica sofrida” (BRASIL, 2003, p. 1). Reforça-se, aqui, o critério de
autoatribuição já anteriormente previsto na Convenção 169 da OIT.
O Decreto 4.887/2003 traz características da propriedade quilombola que a diferem
de qualquer outra, isto porque os princípios que a regem são: a coletividade, inalienabilidade
e titularidade do território. A terra não pertence apenas a uma pessoa, mas sim a toda
comunidade que pode dela usufruir. Todos são sujeitos que buscam, coletivamente,
assegurar que suas características étnicos-culturais sejam mantidas e passadas para as
próximas gerações. Por ser um direito coletivo que busca a continuidade da comunidade, a
propriedade quilombola não possui fim comercial e não pode, dessa forma, ser alienada, ela
jamais pertencerá a alguém que não faça parte daquela comunidade. É necessário esclarecer
que o art. 173 do Decreto 4.887/03 informa que a titulação deverá ser registrada mediante
outorga de título coletivo e pró-indiviso às comunidades, com inserção das cláusulas de
inalienabilidade, imprescritibilidade e de impenhorabilidade.
Quanto à titulação, no parágrafo único desse artigo fica estabelecido que “as
comunidades serão representadas por suas associações legalmente constituídas” (BRASIL,
2003, p. 3). Assim, o título será registrado em nome da pessoa jurídica constituída denominada
Associação que irá representar coletivamente todos os membros da comunidade.
1 Art. 2º A consciência de sua identidade indígena ou tribal deverá ser tida como critério fundamental para
determinar os grupos aos quais se aplicam as disposições desta convenção (OIT, 1989, p. 2). 2 Art. 14 Dever-se-á, com isso, reconhecer aos povos interessados os direitos de propriedade e de posse sobre
as terras que tradicionalmente ocupam (OIT, 1989, p. 4). 3 A titulação prevista neste Decreto será reconhecida e registrada mediante outorga de título coletivo e pró-
indiviso às comunidades a que se refere o art. 2º, caput, com obrigatória inserção de cláusula de
inalienabilidade, imprescritibilidade e de impenhorabilidade (BRASIL, 2003, p. 3).
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Esse Decreto trouxe efetivos avanços na concretização do direito constitucionalmente
previsto de demarcação e titulação de terras quilombolas, tendo o INCRA (órgão responsável
pelo processo de titulação) até a presente data, emitido 154 títulos, regularizando
1.007.827,8730 hectares em benefício de 127 territórios, 217 comunidades e 13.145 famílias
quilombola4. Ocorre que, apesar dos avanços trazidos e dos processos de titulação, o decreto
4.887/03 tem discutida a sua constitucionalidade por meio da ADI 3.239/2004 em razão de
supostos vícios formais e materiais presentes. A ADI foi proposta há mais de uma década e de
lá para cá apenas dois Ministros proferiram os seus votos.
2. Ação Direta de Inconstitucionalidade 3.239/2004 e sua perpetuação no tempo
Em 25 de agosto de 2004 foi proposto pelo Partido da Frente Liberal – atual DEM –
Ação Direta de Inconstitucionalidade face ao Decreto 4.887/03. É alegado a
inconstitucionalidade formal do Decreto que por lei secundária necessitaria de uma lei prévia
que lhe conferisse validade. Além disso, questiona-se a desapropriação citada por não estar
no rol trazido na constituição Federal, e o critério de autoatribuição utilizado para considerar
determinada comunidade como remanescentes de quilombo.
Passados oito anos da propositura da ADI, em 18 de abril de 2012 o relator Cesar
Peluso, em julgamento iniciado votou pela procedência da Ação, alegando padecer de
diversas inconstitucionalidades. Para o relator, possuía inconstitucionalidade formal, uma
vez que somente por lei poderia regulamentar o art. 68 da ADCT. Além disso, aduz ser
materialmente inconstitucional ao permitir que os próprios remanescentes de quilombos
indiquem a extensão de suas terras, bem como o estabelecimento de uma nova forma de
desapropriação, que a seu ver se faz desnecessária, já que, a propriedade é concedida pela
própria Constituição. Informa também que a titulação coletiva é inconstitucional por ser a
previsão na Carta Magna de somente propriedade individual.
Verifica-se no voto do Ministro uma visão estritamente legalista, sem fazer
intercâmbio com outras áreas do conhecimento, que há muito se dedicam ao estudo do
assunto, como a sociologia, a antropologia e a ciência política. No seu voto é possível
perceber uma barreira à compreensão de que outras formas de propriedade e organização
social são possíveis, além daquela estabelecida pelo senso comum.
4 Informação retirada do site <http://www.incra.gov.br/quilombola>.
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O julgamento foi suspenso a pedido da Ministra Rosa Weber e retomado somente em
25 de março de 2015. Seu voto foi contrário ao relator, pela improcedência da ADI e
constitucionalidade do Decreto 4.887/03. Em seu voto, além de abordar juridicamente o
assunto, a Ministra Rosa Weber fez uma análise histórica e antropológica sobre a importância
das comunidades tradicionais na construção da nossa identidade, destacando que a titulação
das terras das comunidades remanescentes de quilombo é um Direito Fundamental
autoaplicável. Destaca também a validade do critério de autoatribuição informando que
“ignorar o autorreconhecimento significaria descumprir o princípio da Dignidade Humana”.
Abaixo, transcrevo trechos do voto proferida pela Ministra Rosa Weber:
Em qualquer hipótese, é obrigação do Estado agir positivamente para
alcançar o resultado pretendido pela Constituição, ora por medidas
legislativas, ora por políticas e programas implementados pelo Executivo,
desde que apropriados e bem direcionados.
[...] Disponíveis à atuação integradora tão-somente os aspectos do art. 68 do
ADCT que dizem com a regulação do comportamento do Estado na
implementação do comando constitucional, não identifico invasão de esfera
reservada à lei nem concluo, por conseguinte, pela violação, pelo Poder
Executivo, do art. 84 da Carta Política ao editar o Decreto 4.887/2003.
[...] Ao assegurar aos remanescentes das comunidades quilombolas a posse
das terras por eles ocupadas desde tempos coloniais ou imperiais, a
Constituição brasileira reconhece-os como unidades dotadas de identidade
étnico-cultural distintiva.
[...] Nesse contexto, a eleição do critério da autoatribuição não é arbitrário,
tampouco desfundamentado ou viciado. Além de consistir em método
autorizado pela antropologia contemporânea, estampa uma opção de
política pública legitimada pela Carta da República, na medida em que visa
à interrupção do processo de negação sistemática da própria identidade aos
grupos marginalizados, este uma injustiça em si mesmo.
[...] Recusar a autoidentificação implica converter a comunidade remanescente
do quilombo em gueto, substituindo-se a lógica do reconhecimento pela lógica
da segregação (Brasil, 2015, pg. 19, 20, 32, 33 e 36).
Verifica-se que a decisão da Ministra trabalha com outros ramos do saber. Além do
jurídico, ela faz uma contextualização histórica, demonstra a dívida que o Estado tem com a
população negra rural, não apenas pelos anos de escravidão, mas também pelo período pós-
abolição em que não foram sujeitos de nenhuma política social de integração, o que contribui
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ainda hoje para o contexto de desigualdade. A autoatribição aparece em seu discurso,
associado ao sentimento de pertença e à identidade coletiva.
O voto da Ministra Rosa Weber foi o último proferido no processo que aguarda hoje
a manifestação do ministro Dias Toffoli após pedido de vista.
O processo em referência engloba uma questão complexa e possui diversas entidades
ingressantes como amicus curiae, que manifestaram-se pela improcedência da ADI, já que
a inconstitucionalidade do Decreto seria um regresso na busca pela igualdade e amparo
dessas comunidades tradicionais, colocando-os mais uma vez em condição de invisibilidade
perante a ordem jurídica e social.
É certo que um processo de tamanha importância e complexidade proporcione debates na
sociedade, sendo os mesmos necessários para a construção da decisão que irá afetar uma parcela
específica da população. Ocorre que a ADI 3.239 já tramita no Supremo Tribunal Federal há mais
de onze anos, e não há previsão para o seu julgamento. Essa demora para finalizar o julgamento
de uma questão com tamanha importância possui diversos significados. Primeiramente é
necessário falar que a demora para julgamento pode se dar pela quantidade de trabalho no âmbito
do Supremo Tribunal Federal, no entanto, essa justificativa não parece razoável, já que tramita há
mais de uma década e possui manifestação apenas de dois ministros.
Pode-se falar também no significado que esta demora traz. A prorrogação desse
processo no tempo apenas demonstra que o assunto em questão não carece de decisão rápida
por tocar em um assunto tão caro como o Direito de propriedade. Bourdieu acredita que o
tempo possui um papel decisivo e que o ato inicial que estabelece uma comunicação carrega
em si questionamentos
O ato inaugural que institui a comunicação (ao dirigir a palavra, ao oferecer
um dom, ao fazer um convite ou lançar um desafio etc.) tem sempre algo
de intrusão ou até de questionamento [...]; além disso, ele sempre contém,
queiramos ou não, a potencialidade de um constrangimento, de uma
obrigação (Bourdieu, 1996, p. 5).
Ele acrescenta ainda que após instaurado o ato inicial, pode-se optar por não
responder à interpelação, ao convite ou desafio, ou por não responder de imediato, por adiar,
por deixar na expectativa. No caso da ADI o ato inicial é a propositura da ação que questiona
a constitucionalidade do Decreto 4.887/03 que ainda não se tem a resposta, o seu julgamento
é adiado por pedidos de vistas, criando uma expectativa em relação ao seu resultado final.
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Por outro lado, para Bourdieu (1996, p. 4), uma resposta imediata seria praticamente
uma ingratidão, uma vontade de livrar-se daqueles questionamentos. O STF, ao dar uma
resposta imediata, poderia deixar de analisar questões e debates das audiências públicas e
manifestações dos diversos amicus curiae no processo, demonstrando que o que importa
unicamente é desobrigar-se. A resposta imediata, dado de pronto, poderia não ser suficiente
para abordar todo a complexidade da questão.
No entanto, o tempo exacerbado para a sua resposta vai além da construção de uma
decisão participada, carrega em si também uma resposta
Ocorre que a não-resposta é ainda uma resposta e que ninguém se livra
com facilidade do questionamento inicial, que age como uma espécie de
fatum, de destino: sem dúvida, o sentido da resposta positiva, réplica,
contradom, objeção, é inequívoco como afirmação de reconhecimento da
igualdade em honra (isotimia), que pode ser considerada como o ponto de
partida de uma longa série de trocas; ao contrário, a ausência de resposta é
essencialmente ambígua e pode sempre ser interpretada, por quem tomou
a iniciativa da troca ou por terceiros, como uma recusa a responder e uma
espécie de gesto de desprezo, ou como uma evasiva provocada pela
impotência ou covardia, que lança na desonra (Bourdieu, 1996, p. 4).
O STF, ao longo dos onze anos em que tramita a ADI, construiu debates sólidos
suficientes para uma tomada de decisão. A sua não-resposta apenas demonstra o excesso de
cuidado ao tratar do tema, pois coloca-se em discussão o Direito de propriedade de
remanescentes de comunidades quilombolas, a propriedade coletiva, baseada no
componente étnico-cultural e ao sentimento de pertencimento ao grupo, e por outro, o Direito
de propriedade de grandes empresas e ruralistas. Parte das terras que pertencem às
comunidades quilombolas são hoje de propriedade de fazendeiros ou mesmo de empresas
que exploram o agronegócio na região.
A ausência de decisão pela Corte é significativa não apenas aos estritamente interessados,
mas também para terceiros. Quando a resposta for proferida, caso tenha reconhecida a
inconstitucionalidade do Decreto, obrigará todos os tribunais do país nos processos em andamento
a segui-la, além de impossibilitar a propositura de novos Processos Administrativos para
demarcação e titulação de terras da população negra rural. Entretanto, enquanto o STF não se
pronuncia sobre a questão, os juízes de primeira instância que atuam nos processos de demarcação
decidem segundo a sua própria racionalidade. Não há, assim, unanimidade sobre o assunto.
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A falta de resposta carrega, em si, o temor do Supremo Tribunal Federal em decidir sobre
assunto tão controverso e que poderá afetar camadas de poder tão distintas da sociedade.
3. A construção da sentença na Ação Anulatória de Processo Administrativo para
titulação das terras da comunidade remanescente quilombola de São Domingos -
Processo nº 2010.50.03.000484-7
Em 03 de agosto de 2010 foi proposta Ação de anulação de processo administrativo
na Justiça Federal da Comarca de São Mateus, tendo como partes camponeses pequenos
proprietários de terras e o INCRA, no pólo ativo e passivo, respectivamente. A ação visava
a anulação do processo administrativo 54340.000581/2005-71 promovido pelo INCRA, em
que os autores figuravam como pertencentes aos remanescentes quilombolas da Comunidade
de São Domingos, bem como figuravam, também, na lista de proprietários de terras a serem
desapropriados em favor da Associação.
A parte autora, por meio da advogada constituída alega que o processo deve ser
anulado, tendo em vista o cerceamento no direito de defesa, já que, nas suas palavras, são
pessoas com “pouca cultura e conhecimento”, e não souberam responder ao que lhe era
perguntado na época em que se desenvolvia o procedimento administrativo, e nem mesmo
possuíam conhecimento do conteúdo da notificação da sua inclusão como remanescentes
quilombolas. Questiona, ainda, o critério de autoatribuição e a constitucionalidade do
Decreto 4.887/03, citando inclusive, a pendência da ADI 3239/04. Já o INCRA atesta pela
legalidade do procedimento administrativo, informa e comprova por meio de documentos
que todos os requisitos foram seguidos.
Em 20 de agosto de 2014 foi publicada a sentença em que o magistrado declarou a
inconstitucionalidade do Decreto 4.887/2003, com a procedência do pedido formulado na inicial
para anular o Processo Administrativo 5430.000581/2005-71. Na sentença, inicialmente, o juiz
faz um breve relato do que foi alegado pelas partes, fundamenta o seu ato decisório, e encerra
com o dispositivo, como preceitua o art. 5485 do Código de Processo Civil.
Na fundamentação ele faz uma breve análise das legislações do direito à propriedade
pelos remanescentes de quilombos. Cita, para fundamentar o seu ato, a decisão proferida
5 Art. 458. São requisitos essenciais da sentença:
I - o relatório, que conterá os nomes das partes, a suma do pedido e da resposta do réu, bem como o registro
das principais ocorrências havidas no andamento do processo;
II - os fundamentos, em que o juiz analisará as questões de fato e de direito;
III - o dispositivo, em que o juiz resolverá as questões, que as partes lhe submeterem.
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pelo Ministro Cesar Peluso na ADIN 3239/04 em que votou pela inconstitucionalidade do
Decreto, e também a decisão proferida pelo próprio Tribunal Regional da 2ª Região, em que
menciona a decisão do Ministro como indicativa de inconstitucionalidade da referida norma.
Após contextualizado o processo acima, necessário se faz analisar os componentes
presentes na decisão. Para tanto, é preciso esclarecer que, conforme ensina Bourdieu (1989,
p. 209) em o Poder Simbólico, o Direito não é um sistema fechado e autônomo capaz de
fundamentar a si mesmo, ao contrário, é impossível separá-lo da realidade social.
O campo jurídico é um espaço social constituído por peculiaridades próprias, em que há uma
hierarquia pela qual os vários agentes disputam internamente ao próprio campo. Para Bourdieu
Campo jurídico é o monopólio do direito de dizer o direito, quer dizer, a
boa distribuição ou a boa ordem, na qual se defrontam agentes investidos
de competência ao mesmo tempo social e técnica que consiste
essencialmente na capacidade reconhecida de interpretar (de maneira mais
ou menos livre ou autorizada) um corpus de textos que consagram a visão
legítima, justa, do mundo social (BOURDIEU, 1989, p. 212).
O autor ressalta, ainda, que os operadores do direito estão inseridos num corpo
hierarquizado de instâncias que são aptos de resolver os conflitos entre os intérpretes e as
interpretações. No processo judicial, verifica-se a existência de forças conflitantes, o autor e
Réu, no caso, pequenos proprietários que buscam a Anulação do Procedimento
Administrativo, e o INCRA que busca afirmar a sua validade.
O magistrado de primeira instância não pode desconsiderar as duas forças antagônicas
inseridas numa realidade social e que disputam pela decisão que irá atender o seu interesse.
Ao decidir, ele deve levar em consideração um corpo hierarquizado de instâncias, qual seja, o
Tribunal de 2ª Instância, que por meio dos desembargadores, podem reformar a sua decisão e
criar sua própria jurisprudência. Acima dos Tribunais de Segunda Instância, há os tribunais
especiais: STJ e STF. O STJ e STF guardam os assuntos mais caros do ordenamento jurídico,
trabalhando com a legalidade e constitucionalidade de determinado ato normativo.
Para a presente discussão da demarcação e titulação de terras quilombolas, o STF
possui papel de relevo, pois a sua decisão irá nortear todas as outras decisões de órgãos
hierarquicamente inferiores. Hoje, apesar de ainda não se ter uma decisão sobre a questão,
os votos proferidos pelos ministros Cesar Peluso e Rosa Weber podem orientar os julgadores
ao decidir as causas sobre o assunto. Foi o que ocorreu no caso, o juiz, ao construir sua
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decisão cita como forma de embasar o seu posicionamento, o voto do ministro Cesar Peluso,
utilizando dos mesmos argumentos para decidir pela anulação do processo administrativo.
O referido Decreto 4887/2003 é objeto da Ação Direta de
Inconstitucionalidade nº 3239/DF, pendente de julgamento no Supremo
Tribunal Federal, cujo relator era o então Ministro César Peluso, que antes
de se aposentar proferiu seu voto naqueles autos pela inconstitucionalidade
[...]. Nesse sentido, em seu voto proferido em abril/2012, o então Ministro
Relator Cesar Peluso pontua que o dispositivo de transição (art. 68 -
ADCT) guarda hipótese afeita à usucapião, não havendo que se cogitar
inovadora modalidade de desapropriação. [...] Embora ainda não tenha sido
definitivamente julgada a ADI 3239 pelo Supremo Tribunal Federal, o voto
acima mencionado apresenta-se como referencial válido para orientar
julgamentos a respeito da matéria quilombola, conforme, inclusive,
assentou o Tribunal Regional Federal da 2ª Região. Pelo exposto, declaro
a inconstitucionalidade do Decreto 4887/2003 e julgo procedente o pedido
formulado na inicial para anular o processo administrativo
54340.000581/2005-71 (São Mateus, 2014, p. 7, 10, 13).
Bourdieu (1989, p. 220) traz considerações sobre a decisão dos juízes de instância.
Para ele, os juízes ordinários e outros práticos, mais atentos às aplicações que dele podem ser
feitas, orientam-se para uma espécie de casuística das situações concretas e opõem, aos
tratados teóricos do direito puro, instrumentos de trabalho adaptados às exigências e à urgência
da prática, repertórios de jurisprudência, formulários de atos e dicionários de direito.
Ele também afirma que o Direito é um importante instrumento para manutenção da
ordem social e econômica e que os textos jurídicos são muitas vezes elásticos e
indeterminados, possibilitando que o intérprete possa atribuir diversas significações. Os
juízes seguem parte do que está previsto no sistema jurídico, mas também acabam por
inventar sua racionalidade decisória, “ficando sempre uma parte de arbítrio, imputável às
variáveis organizacionais como a composição do grupo de decisão ou os atributos dos que
estão sujeitos a uma jurisdição, nas decisões judiciais” (Bourdieu, 1989, p 223).
Nesse sentido, a decisão judicial é o resultado de uma luta simbólica, uma vez que
cabem aos profissionais do direito utilizar dos mecanismos necessários para que ao final
obtenham êxito na sua demanda. A advogada da parte autora utilizou de diversos recursos
jurídicos, como a linguagem, destacando sempre que eles eram “pessoas humildes”, “sem
cultura” e de “pouco conhecimento”, e não sabiam o conteúdo do Processo Administrativo.
Por outro lado, a parte Ré tentou demonstrar por meio de documentos e relatórios que o
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Procedimento Administrativo se pautou na legalidade, conferindo à comunidade de São
Domingos a Titularidade de suas terras.
A sentença proferida é vista, levando em conta essa luta simbólica, como resultado
de uma relação de forças, ela resolve os conflitos publicando a solução encontrada, pertence
de tal forma à classe de atos de nomeação ou de instituição, ou seja, “atos mágicos que são
bem sucedidos porque estão a altura de se fazerem reconhecer universalmente, portanto, de
conseguir que ninguém possa recusar ou ignorar o ponto de vista, a visão, que eles impõem”
(BOURDIEU, 1989, p. 237).
A sentença como ato de nomeação visa encerrar o processo, vincula as partes e
terceiros àquela decisão e cria uma nova verdade sobre a questão. É a palavra autorizada
pelo Estado que o tem monopólio de dizer o direito. Bourdieu (1989, p. 237) acrescenta que
os veredictos visam por um termo à luta, ou pelo menos um limite acerca de todo o trabalho
prático de worldmaking. A sentença, caso a parte Ré não apresentasse recurso, encerraria a
discussão sobre a questão nesse processo e os seus efeitos recairiam sobre as partes e também
sobre os remanescentes de comunidades quilombolas da comunidade de São Domingos, que
não mais teriam o seu direito à titulação da propriedade reconhecido, já que o processo
Administrativo foi declarado nulo.
Ademais, Bourdieu (1989, p. 209) ainda ressalta que a decisão judicial não se
fundamenta apenas no direito, como acreditava Hans Kelsen, com a finalidade de disciplinar
todos os fatos sociais que tenham relevância para manutenção de um sistema político-
jurídico. Ao contrário, é impossível dissociá-lo da realidade e das pressões sociais, bem
como das convicções pessoais, ao habitus6 de classe, ou seja, o contexto social no qual o
julgador cresceu e se encontra inserido.
Ao proferir o seu veredicto, o julgador leva em consideração todos esses
condicionantes: as normas jurídicas, pressões e seu contexto social. Por meio da linguagem
da universalidade e neutralidade aliado à formalidade do processo, o julgador visa ocultar os
6 Andrés García INDA (in BOURDIEU, 2001, p. 25) comenta sobre a definição de Habitus: “Bourdieu define
los habitus del seguiente modo: “las estructuras que son constitutivas de un tipo particular de entorno (v.g. las
condiciones materiales de existencia de un tipo particular de condición de clase) y que pueden ser asidas
empíricamente bajo la forma de regularidades asociadas a un entorno socialmente estructurado, producen
habitus, sistemas de disposiciones duraderas, estructuras estructuradas predispuestas a funcionar como
estructuras estructurantes, es decir, en tanto que principio de generación y de estructuración de prácticas y
representaciones que pueden ser objetivamente ‘reguladas’ y ‘regulares’ sin ser em nada el producto de
obediencia a reglas, objetivamente adaptadas a su finalidad sin suponer la mirada consciente de los fines e la
maestría expresa de las operaciones necesarias para alcanzar-las y, siendo todo eso, colectivamente orquestadas
sin ser el producto de la acción organizadora de um jefe de orquesta”.
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seus pré-conceitos e sua visão de mundo, tenta demonstrar que sua decisão se deu de forma
imparcial, pautada unicamente na legalidade.
Assim, é verdadeiro afirmar que “O direito é uma forma por excelência do discurso
atuante, capaz, por sua própria força, de produzir efeitos. Não é demais dizer que ele faz o mundo
social, mas com a condição de se não esquecer que ele é feito por este” (BOUDIEU, 1989, p. 237).
Conclusão
Nesse trabalho procurei analisar a decisão proferida no processo judicial, em que a
questão principal gira em torno da anulação de Processo Administrativo que reconheceu o direito
à titulação da propriedade dos remanescentes de quilombos da comunidade de São Domingos.
Para isso, analisei brevemente as legislações que tratam sobre o tema, ganhando destaque
o art. 68 do Atos das Disposições Constitucionais Transitórias e o Decreto 4.887/03 que o
regulamenta. O referido Decreto é objeto da Ação Direta de Inconstitucionalidade 3.232/04, que
questiona a sua legalidade formal e material. A ADI tramita há mais de onze anos no Supremo
Tribunal Federal e apenas dois ministros se manifestaram sobre a questão: Cesar Peludo, voto
favorável à inconstitucionalidade do Decreto e Rosa Weber, que votou de forma contrária.
Conforme analisado acima, a demora para uma decisão final da ADI também é
significativa, uma vez que a decisão irá afetar camadas de poder distintas da sociedade, de
um lado os proprietários e empresas que trabalham com o agronegócio, e do outro,
remanescentes de comunidade quilombolas. Sempre há um cuidado especial ao tratar do
direito de propriedade. A não resposta, como afirma Bourdieu, acaba por significar uma
resposta perante as partes e terceiros.
Enquanto o STF não se pronuncia sobre a questão, os juízes de instância têm
liberdade para proferir a sua própria decisão. No processo analisado de n.
2010.50.03.000484-7 que tramita na Comarca de São Mateus, a parte autora buscava
anulação de Processo Administrativo promovido pelo INCRA.
O juiz, ao proferir sua decisão pelo Inconstitucionalidade do Decreto, trabalha com
o monopólio do Direito pertencente ao Estado, observa camadas de hierarquia e fundamenta
a sua racionalidade no voto proferido pelo Ministro César Peluso. À época da decisão, a
Ministra Rosa Weber ainda não havia proferido seu voto pela constitucionalidade do
Decreto. Será que, de alguma forma, ele poderia ter contribuído para um veredicto diverso?
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Certo é que o magistrado ao decidir não fundamenta apenas no ordenamento jurídico, apesar
de assim tentar demonstrar, por meio da linguagem universal e impessoal. Ele se baseia
também em pressões sociais e no contexto em qual foi criado, como família, escola,
faculdade, e o contexto ao qual atualmente está inserido.
Referências
Associação Brasileira de Antropologia. Documento do Grupo de Trabalho sobre
Comunidade Negras Rurais. 1994, p. 81. Disponível em <http://www.abant.org.br/
conteudo/005COMISSOESGTS/quilombos/DocQuilombosABA_1a.pdf>. Acesso em 2 de
setembro de 2015
BOURDIEU, Pierre. Marginalia. Algumas notas adicionais sobre o dom. v. 2, n. 2 Rio de
Janeiro, 1996.
BOURDIEU, Pierre. O Poder simbólico. Rio de Janeiro, 1989.
BRASIL. Congresso Nacional. Constituição da República Federativa do Brasil de
1988. Brasília. Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/
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OIT. Convenção n. 169. Convenção no 169 da OIT sobre povos indígenas e tribais.
Genebra, 1989. Disponível em: <http://www.cpisp.org.br/htm/leis/instrum01.htm> Acesso
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INCRA. Quilombolas. 2015. Disponível em <http://www.incra.gov.br/quilombola>
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INDA, Andrés García. Introducción: la razón del derecho: entre habitus y campo. In:
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SÃO MATEUS. Justiça Federal, Seção Judiciária do Espírito Santo, Subseção de São
Mateus. Processo n. 2010.50.03.000484-7. Diário Oficial da União, 20 de agosto de 2014.
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TRADIÇÃO, MODERNIDADE E CAPITALISMO NO NORTE DE MINAS
GERAIS: UMA REFLEXÃO SOBRE A COMUNIDADE SERTANEJA
Otaviano de Oliveira Filho Doutorando em Ciências Sociais na PUC/SP. Professor de Antropologia e Sociologia na FAVAG.
Resumo: O presente trabalho problematiza o processo de modernização na região Norte de Minas
Gerais, enfatizando algumas ações da Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste
(SUDENE) e conclui que as ações para a integração da região à dinâmica capitalista de produção
não levou em conta as culturas locais – o conjunto de práticas que constituem a “cultura popular
tradicional” daquele território. Assim, a modernidade, operada pela Sudene a partir da ideologia do
progresso, acabou por contribuir para que o capital, com sua lógica globalizante, alterasse as relações
sociais de produção que marcaram a história da região.
Palavras-chave: tradição; modernidade; capitalismo; cultura popular tradicional; Sudene.
Abstract: This paper discusses the process of modernization in the North of Minas Gerais,
emphasizing some Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste (SUDENE) shares. Its
conclusion is that the actions for the integration of the region to the dynamic capitalist production
did not take into account the local cultures – the set of practices that constitute the “traditional folk
culture” of that territory. Thus, modernity operated by SUDENE from the ideology of progress
altered the social relations of production that marked the history of that region.
Ketwords: tradition; modernity; capitalismo; traditional folk culture; Sudene.
1. Teorias da modernidade
A fim de aguçarmos a problemática da modernidade, reportamo-nos, inicialmente,
ao autor que a colocou de modo contundente nos anos 1980 e se tornou referência básica
sobre o assunto, Marshall Berman (1986):
Ser moderno é encontrar-se em um ambiente que promete aventura, poder,
alegria, crescimento, autotransformação e transformação das coisas em redor
– mas ao mesmo tempo ameaça destruir tudo o que temos, tudo o que
sabemos, tudo o que somos. A experiência ambiental da modernidade anula
todas as fronteiras geográficas e raciais, de classe e nacionalidade, de religião
e ideologia: nesse sentido, pode-se dizer que a modernidade une a espécie
humana. Porém, é uma unidade paradoxal, uma unidade de desunidade: ela
nos despeja a todos num turbilhão de permanente desintegração e de
mudança, de luta e contradição, de ambiguidade e angústia. Ser moderno
é fazer parte de um universo no qual, como diz Marx, “tudo que é sólido
desmancha no ar”[...]. No século XX, os processos sociais que dão vida a
esse turbilhão, mantendo-o num perpétuo estado de vir-a-ser, vêm chamar-
se “modernização” (Berman, 1986, p. 15, grifo nosso).
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Inspirado em Marx e Engels, com o Manifesto Comunista de 1848 e seu estridente
pressuposto de que as estruturas do mundo feudal estavam se desmanchando em razão da
dinâmica capitalista de produção, Berman dialetiza o conceito de modernidade e estabelece
diferenciação entre modernidade, modernismo e modernização, rompendo com uma suposta
semelhança entre esses três conceitos. A modernidade diz respeito a um novo modo de
organização da vida social, política e econômica no Ocidente, ao passo que o modernismo
corresponde a movimentos inovadores na esfera artística de fins do século XIX e das
primeiras duas décadas do século XX. A modernização, por sua vez, diz respeito a processos
desenvolvimentistas que permeiam o mundo moderno. Tal perspectiva nos remete à análise
de Sérgio Paulo Rouanet, que tem como ponto de partida Max Weber, segundo o qual os
conceitos de racionalização, modernização e modernidade são afins.
Para Weber, coube à secularização, através da aceleração de processos de
racionalização, a destruição das bases da sociedade tradicional. A modernidade, ressalta
Rouanet (1993, p. 120) em sua interpretação do sociólogo alemão, “é produto desses
processos globais de racionalização que se deram na esfera econômica, política e cultural”.
Esses processos globais de racionalização, ao provocarem a dissolução das formas de
produção feudais, estimularam a emergência de uma mentalidade empresarial moderna
baseada na previsão, no cálculo e em técnicas de organização contábil das relações
econômicas. Disso resultou, em termos políticos, a substituição da autoridade
descentralizada pré-moderna pelo Estado absolutista e, posteriormente, pelo Estado
verdadeiramente moderno, dotado de um sistema tributário centralizado, de um poder militar
permanente e do monopólio da violência.
Em termos culturais, isso significou a “dessacralização” das visões tradicionais do
mundo e a diferenciação entre a ciência, a moral e a arte, esferas tradicionalmente marcadas
pela religiosidade, culminando, finalmente, no que Weber percebeu como um
“desencantamento do mundo”. A modernização, a partir dessa perspectiva weberiana, está
diretamente vinculada ao desejo de eficácia nas relações sociais:
Modernizar é melhorar a eficácia da administração pública, das
instituições, dos partidos. É um conceito funcional de modernização, no
sentido literal: numa sociedade moderna as instituições funcionam melhor
que em sociedades tradicionais (ROUANET, 1993, p. 122).
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2. Desenvolvimento e desestruturação
A ideia de desenvolvimento deriva da lógica de mercado fundamentada em valores
como progresso, racionalidade, objetividade e impessoalidade. Está diretamente vinculada
ao processo de expansão do capitalismo, à monetarização do mundo, ao liberalismo e ao
Estado de direito e suas leis positivas. De acordo com Otávio Ianni,
A descoberta de que a terra se tornou mundo, de que o globo não é apenas
uma figura astronômica, e sim um território no qual todos encontram-se
relacionados e atrelados, diferenciados e antagônicos, essa descoberta
surpreende, encanta e atemoriza. Trata-se de uma ruptura drástica, nos
modos de pensar, ser, agir e fabular. Um evento heurístico de amplas
proporções, abalando não só as convicções, mas também as visões de
mundo (IANNI, 1998. Grifo nosso).
Assim, o desenvolvimento imposto por grandes centros europeus e pelos EUA às
diversas regiões do mundo revela-se como um fator de desestruturação, em um primeiro
momento, e, posteriormente, de reestruturação de modos de organização social locais,
relegando ao esquecimento saberes e técnicas tradicionais, que passaram a ser associadas ao
atraso e consideradas anacrônicas. As novas técnicas, legitimadas como símbolos de
desenvolvimento, tiveram e continuam a ter, no vasto interior do Brasil, um sentido de
reestruturação justa da vida social, de melhoria de vida “para todos”.
A partir de um viés antropológico, pode-se dizer que a ideia hegemônica de
desenvolvimento como progresso no mundo ocidental ignora os saberes autóctones das
populações tradicionais sertanejas e toda a “cultura popular tradicional”1. Mesmo o
modernismo de fins do século XIX e início do século XX, com todo o seu projeto de ruptura
com valores hermenêuticos logocêntricos, não chega a reconhecer costumes radicalmente
locais, como os do mundo rural, como constituintes de uma rica diversidade cultural. O
modernismo em geral tem por referência o mundo urbano, o que se passa nas cidades, não o
mundo rural habitado por populações tradicionais, como quilombolas e indígenas.
Longe de buscar soluções para os grandes antagonismos inerentes ao projeto iluminista
de modernização, o Brasil, através de suas elites coloniais e republicanas, acaba por ampliar
esses antagonismos, naturalizando disparidades socioeconômicas produzidas pelo
desenvolvimento pautado pela ideia de progresso, em termos teóricos, e pela inovação técnica,
1 Para maior embasamento sobre a defesa desse conceito, ver Mira (2014).
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em termos práticos. O crescimento econômico, assim, é concebido como mecanismo capaz
de, por si só, melhorar as condições de vida da população e diminuir as disparidades sociais
em geral, com oferta de energia, saneamento, equipamentos urbanos, saúde e escolaridade.
Mas, passado um longo tempo, percebe-se que o desenvolvimento não proporcionou a
diminuição das desigualdades sociais, apenas beneficiou pequenos grupos empresariais.
Tivemos e continuamos a ter no País um projeto desenvolvimentista atrelado aos
interesses externos e internos de expansão do capital, do mercado, do lucro e de acumulação
de riquezas materiais, deixando como lastimoso saldo a exclusão social de milhões de
pessoas. Com o mercado e o dinheiro sendo impostos como as bases sobre as quais devem
se configurar as relações sociais, políticas, econômicas e culturais, desestruturam-se e
reestruturam-se, também, saberes e técnicas constituintes das lógicas de organização social
das populações tradicionais. No limite desse processo está a separação radical, que há muito
a Antropologia nos permite colocar sob suspeita, entre civilização e barbárie. Sobre essa
ação desestruturante, referindo-se ao processo que tornou as lógicas mercadológicas
predominantes na Europa do século XIX, Polanyi (2000, p. 56) nos diz:
a economia de mercado é uma estrutura institucional, e sempre nos
esquecemos disto, que nunca esteve presente a não ser em nosso
tempo [...]. Se o efeito imediato de uma mudança é deletério, então,
até prova em contrário, o efeito final também é deletério.
3. A questão da cultura popular tradicional
De forma muito simples, pode-se definir cultura popular tradicional como todas as
práticas e representações culturais vivenciadas no cotidiano de atores sociais, distanciados
do racionalismo científico, que permitem a recriação de seu universo: crenças, hábitos,
costumes, conhecimentos. A cultura sertaneja, em todas as suas manifestações pelo interior
do Brasil, está impregnada de práticas que permeiam o universo dos sujeitos sociais que a
têm como referencial de vida, memória e tradição: não foi emoldurada como discurso oficial,
não se tornou, ainda, “mercadoria”, conforme elucidado por Maria Celeste Mira2. Por isso
mesmo, possui lógica interna própria, ritmo e modo peculiar de existência, revela uma noção
2 Mira (2014) defende a tese de que as festas populares tornaram-se eventos de massa por serem lucrativas, ou
seja, é um “novo nicho de mercado”. A autora questiona: “Por que a ‘cultura popular’ teria se tornado um bom
negócio? A festa se mostra um dos eventos mais lucrativos da contemporaneidade”.
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de tempo natural, tendo como condição de sobrevivência o enraizamento na tradição, numa
maneira própria de conceber o mundo, o entorno em que se vive.
A abrangência atual do termo cultura, referindo-se a tudo que pode identificar uma
sociedade ao diferenciá-la de outras, tem sido uma das preocupações da história da cultura, cujos
pesquisadores, por perceberem a diversidade entre as sociedades e as mudanças que se processam
nas mesmas, de século a século, justificam a necessidade de entender a cultura como algo
construído socialmente e que requer explicação e interpretação em termos sociais e históricos.
A cultura popular apresenta-se como espaço em que resistências e táticas podem fluir
como forma de recusa à ordem estabelecida. Nesse sentido, pensa-se a realização de práticas
culturais de cunho lúdico, de festas a textos satíricos, como momentos em que, quebrando-
se o ritmo cotidiano de trabalho, impõe-se a lógica da alegria. Segundo Marilena Chauí,
[...] fala-se de cultura popular enquanto cultura dominada, invadida,
aniquilada pela cultura de massa e pela indústria cultural, envolvida pelos
valores dominantes, pauperizada intelectualmente pelas restrições
impostas pela elite, manipulada pela folclorização nacionalista,
demagógica e explorada, em suma, impotente face à dominação e arrasada
pela potência destrutiva da alienação (CHAUÍ, 1986, p. 63).
Alguns intelectuais compreendem muitas das representações culturais das classes
populares como caos e despolitização. Outros autores as têm interpretado como forma de recusas
e resistências criadas em espaços de trabalho, lazer e moradia. A alienação não é a característica
dos menos favorecidos economicamente: ela germina na sociedade como um todo e está
expressa no discurso ideológico capitalista, tendo como indicador a valorização da cultura
popular apenas sob o signo do nacionalismo demagógico, que a congela como tradição. Cultura
popular e cultura erudita são “rótulos” que qualificam as formas de expressões artísticas sem
explicitá-las ou compreendê-las. São diferentes apenas no que se refere ao conteúdo e à forma
de representação de uma dada realidade social, sem estarem totalmente desvinculadas, pois
ambas se alimentam reciprocamente de uma circularidade que caracteriza sua dinâmica.
A interpenetração e o entrecruzamento de práticas culturais são, em grande medida,
viabilizados pelos meios de comunicação de massa, cabendo-nos compreender as múltiplas
recriações e/ou introjeções que as classes populares fazem do que lhes é imposto das mais
diversas maneiras pela mídia. Deve-se tratar a cultura popular como uma das formas possíveis
de representação, que pessoas ou classes sociais utilizam para expressar suas experiências e
vivências. A cultura popular, conforme afirma Roger Chartier (1995), não deve ser
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considerada apenas como “ideias” de terceiro nível ou ser tratada somente pela perspectiva
ideológica de manifestação da consciência/inconsciência de determinados segmentos sociais.
Cultura é expressão de vida, é vida e não apenas simbologia de um tempo e espaço.
As formas de expressão da cultura popular estão impregnadas por experiências, lutas,
sobrevivências e misticismo, refletindo situações concretas, práticas de um mundo real,
construídas e entremeadas no cotidiano dos seres humanos. É necessário entender que as
festas, os cantos, as rezas e as danças, podem ter suas datas comemorativas específicas
criadas por conveniências, por uma cronologia cultural estabelecida em função de uma
tradição. Mas não se pode esquecer que, antes desse calendário ser oficializado, tais práticas
culturais foram vivenciadas e experimentadas na rotina das pessoas, como parte integrante
de suas vidas, para só depois serem cultuadas.
Antes de serem representações discursivas de uma época, as práticas culturais são parte
de um mundo no qual, ao se produzirem relações econômicas e sociais, também se produz e
se reproduz cultura. A cultura, então, não pode deixar de ser pensada como parte das relações
sociais de produção, de convívio e de formas de solidariedade, prazer, lazer e crenças místicas.
A cultura popular, quando entendida como folclore, como tradição, tende a congelar as práticas
culturais no tempo, expediente através do qual essas práticas se apresentam sem a pulsação de
vida que lhes é característica e, consequentemente, sem o significado simbólico para os
sujeitos sociais que a vivem, tornando-se uma representação artificial.
O que usualmente se observa na “folclorização da cultura”, com o intuito de
preservação ou mera comercialização, é a apresentação de eventos artísticos “higienizados”,
esteticamente disciplinados, desprovidos de seus aspectos de pobreza ou rudeza que são
referência de sua historicidade, o que tornaria a cultura popular mais palatável para as elites
locais dominantes, caso das chamadas “Festas de Agosto”, na cidade de Montes Claros, polo
regional do Norte de Minas Gerais3.
Corre-se o risco de ficar como herdeira de uma tradição romântica se for mantida a
noção de que, para se conhecer ou valorizar a cultura popular, deve-se considerar apenas o
exclusivo estabelecimento de sua origem, desconhecendo-se que em suas práticas e rituais a
3 A problematização do folclore é pertinente porque as “Festas de Agosto”, em Montes Claros, são vistas como
patrimônio do “folclore” da cidade, sendo vistas pelas elites locais em uma perspectiva mercadológica, apesar de
que os grupos se reafirmam como categoria social local. Para maior aprofundamento sobre “Os catopés de Montes
Claros”, ver o trabalho de João Batista de Almeida Costa, texto produzido por ocasião da 27ª Festa de Agosto de
2005, a pedido da Prefeitura Municipal de Montes Claros.
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cultura trapaceia, remexe a realidade, produz valores e concepções, mantendo um diálogo
contínuo entre categorias do passado e do presente.
A cultura, por se configurar como processo dinâmico, tem nas transformações e nas
deteriorações aspectos positivos, não negativos. Antes de ser representação de uma época, a cultura
é parte de um mundo real, produzida em meio a relações políticas, econômicas e sociais em sentido
amplo. No cotidiano dos indivíduos, conforme afirma Michel de Certeau (1982), é que a cultura
se pluraliza, revelando-se como representação viva e dinâmica das classes populares, fundindo
elementos antigos – festas, cultos, ritos – com elementos novos – os meios de comunicação de
massa, técnicas e tecnologias diversas –, fazendo-se e refazendo-se continuamente.
4. O desenvolvimentismo no norte de Minas Gerais
As mudanças ocorridas na cultura popular do interior sertanejo de Minas Gerais
podem ser observadas de modo mais efetivo a partir da execução de projetos e planos
governamentais no período da ditadura militar, especialmente na década de 1970, ações
como o chamado Projeto Jaíba,4 que visaram a acionar a produtividade econômica de uma
região historicamente caracterizada pela pobreza material. Grandes plantações de frutas,
feijão, milho, eucalipto e, especialmente, o desmatamento de matas virgens para a produção
de carvão vegetal devastaram paisagens e pequenas propriedades, com a alardeada finalidade
de promover o alinhamento dos mercados regional com o nacional e o internacional.
Tais mudanças lograram soterrar grande parte do mundo rural, com suas características
próprias, construído com o trabalho manual de escravos, indígenas, paulistas, pernambucanos,
baianos, mestiços e sertanejos ao longo da dramática história do Brasil profundo, sempre
marcada pelo signo da resistência identitária (OLIVEIRA FILHO, 2006). A integridade e a
sustentabilidade desse mundo rural só foi possível em função de uma economia de subsistência,
na qual se sobressaíam a solidariedade vicinal, a fé e a religiosidade, bem como os valores éticos,
morais e culturais. Os traços fundamentais desse mundo rural são:
4 O projeto Jaíba, que abrange os municípios de Jaíba e Matias Cardoso no extremo Norte de Minas Gerais, surgiu no
contexto de expansão da fronteira agrícola empreendida pelo governo brasileiro a partir da segunda metade do século
XX, se tornando atualmente o maior perímetro irrigado da América Latina. A Sudene, criada através da Lei Nacional
nº 3.692, de 15 de dezembro de 1959, representou um esforço do governo federal de agir no sentido de promover o
desenvolvimento do Nordeste através de um duplo objetivo: coordenar as ações do governo e administrar os recursos
transferidos para a região. O Norte de Minas foi incorporado à Sudene por fazer parte do chamado “polígono das secas”,
determinado em 1936, sendo a referida região incluída em 1948, pelo Decreto 9.857. Para maior compreensão sobre o
projeto Jaíba, ver RODRIGUES (1998).
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As festas populares, as folias de reis, as promessas para chover ao pé do
cruzeiro no alto da serra, os terços cantados, os desafios de se “subir no
pau de sebo”, as encomendações das almas na sexta-feira da Paixão, as
parteiras, as lavadeiras dos rios com suas cantigas, a comensalidade dos
tropeiros (paçoca de carne de sol batida no pilão, arroz com pequi, bolo de
puba, “brividades”, biscoito de queijo), os potes e as gotijas d’água, os
monjolos e as rodas d’água, a feitura do sabão feito em tachos de cobre, as
casas de farinha e a “ralação” da mandioca, as quitandas feitas nos fornos
de barro e/ou de tijolo assado dispostos nos fundos dos quintais das casas
do mundo rural, às figuras do carro de boi e do boiadeiro e tantas outras
imagens presentes no cotidiano rural de então, perduram, na maioria das
vezes, apenas na memória daqueles que as vivenciaram como experiências
concretas de vida (OLIVEIRA FILHO, 2006, 2011).
Em pleno século XXI, as mudanças no sertão mineiro são visíveis sobretudo em termos
agrários, como as grandes plantações de eucalipto; e urbanísticos, como a grande parte do
espaço asfaltado e as rodovias movimentadas que se sobrepõem às antigas estradas de terra.
Todo um artificialismo impõe-se, desde os anos 1970, sobre o território natural no sertão
mineiro, suscitando-nos a sensação de que a modernidade desenvolvimentista soterrou ali todo
um modo de vida social considerado ultrapassado, incompatível com o tempo presente.
Em face dessa dura realidade, encaminhamo-nos no sentido de refletir sobre a importância
de valores socioeconômicos locais, resultantes de uma determinada cultura, para o
desenvolvimento regional sustentável, capaz de suprir as necessidades reais de grande parcela dos
sujeitos sociais. Entendemos que, mediante a operacionalização de suas próprias técnicas, as
populações locais desempenham o papel de sujeitos do desenvolvimento, não apenas de objetos,
o que lhes possibilita resguardar as diferenças culturais que, no fundo, correspondem a um modo
diferente, sertanejo, de viver, que deve ser respeitado num Estado de Direito Democrático.
Afirmando-se como sujeito de sua história, as populações tradicionais do Norte de
Minas Gerais, com seus saberes autóctones, podem deixar de ser vistas como símbolos de
“atraso”, de “arcaico”, deixando de ser percebidas em comparação com sociedades
consideradas exemplares do ponto de vista capitalista e mercadológico. Podem resistir com
mais eficácia às políticas de adequação do espaço sertanejo, perpetradas por grandes grupos
econômicos com o amparo do Estado paraliberal brasileiro, à forçada adequação do espaço
social aos interesses do capital, todo um processo de “relayoutização” que subordina a
geografia humana a uma economicidade funcional: grandes avenidas, terminais de ônibus,
anéis rodoviários, edifícios, outdoors, vitrines, shoppings centers, vidros e ferros, concreto e
mais concreto que intenta fazer do sertão mais um frio espaço capitalista.
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Figura 1 - Objetos da fé e devoção das
populações tradicionais do Norte de Minas.
Figura 2 - Casas de farinha das
comunidades rurais do Norte de Minas.
Considerações Finais
Procuramos neste artigo, em consonância com a nossa pesquisa para o doutorado,
intitulado preliminarmente de: “Um lugar chamado sertão, nesses sertões: antinomias narradas”,
desenvolver uma breve reflexão sobre a relação entre modernidade e tradição, tomando como
parâmetro o que se passa na região Norte de Minas Gerais, sem qualquer pretensão,
naturalmente, de ir às últimas consequências na abordagem de uma problemática que ainda
estamos explorando de modo sistemático. Percebemos, como parte deste processo reflexivo, que
a resistência das populações tradicionais do Norte de Minas Gerais ao processo de modernização
que lhes é imposto “de cima pra baixo”, de forma sempre autoritária, deve-se em grande parte,
no presente, ao cultivo da memória coletiva, fonte de sua identidade cultural.
Esse cultivo transparece em objetos e situações cotidianas, marcadas pelo signo do
sagrado, em imagens de santo, em oratórios, em ditos e provérbios, nos causos populares, nas
diversas festas, rezas, comidas e bebidas. São “constructos” simbólicos em que se preservam
valores locais, experiências de um modo diferente de vida, tão digno como os praticados em
metrópoles e megalópoles onde os preceitos discursivos da modernidade são verdades absolutas.
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Referências
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REVITALIZAÇÃO DO CENTRO HISTÓRICO DE SÃO LUÍS: PASSOS PARA
CONSTRUÇÃO DE UMA IDENTIDADE
Sarany Rodrigues da Costa PGCULT - FAPEMA/CAPES
Welyza Carla da Anunciação Silva PGCULT - FAPEMA/CAPES
Resumo: Tendo em vista as políticas aplicadas para o processo de preservação e revitalização do
Centro Histórico de São Luís no Maranhão por meio da implantação do Programa de Preservação e
Revitalização do Centro Histórico de São Luís na década de 80, é que a pesquisa vem promover uma
reflexão teórica das interfaces estabelecidas entre a preservação do Patrimônio Cultural e Identidade
a partir desse processo no qual uma nova identidade é adotada pela cidade ao receber o Título de
Cidade Patrimônio Cultural da Humanidade, buscando compreender como essa relação é expressa
na contemporaneidade, trazendo consigo novas perspectivas e características que estão entrelaçadas
na construção da sua identidade, ultrapassando o sentido tradicional e reducionista da relação entre
Patrimônio e Identidade de um povo. Para isso se recorreu a uma pesquisa bibliográfica para assim
nortear um estudo descritivo, tomados por base para analisar o surgimento desta nova identidade.
Palavras-chave: Patrimônio Cultural; Centro Histórico; identidade.
Abstract: In view of the policies applied to the process of preservation and revitalization of the São
Luis Historical Center in Maranhão through Preservation Program implementation and revitalization
of the São Luis Historical Center in the 80s, it is that research has promote a theoretical reflection of
the interfaces established between the preservation of Cultural Identity and Heritage from that
process in which a new identity is adopted by the city to receive the Cultural Heritage City Title of
humanity, seeking to understand how this relationship is expressed in contemporary bringing new
perspectives and characteristics that are entwined in the construction of their identity, surpassing the
traditional and reductionist sense of the relationship between heritage and identity of a people. For it
used a bibliographical research to guide so a descriptive study, taken as a basis for analyzing the
emergence of this new identity.
Keywords: Cultural Heritage; Historic Center; identity.
Introdução
Ao levantar reflexões acerca de identidade e patrimônio em São Luís, somos também
levados a liga-los ao turismo que é praticado na sociedade contemporânea, sobretudo o
turismo cultural, o qual encontra-se intimamente relacionado às questões identitárias e de
patrimônio. Podemos evidenciar o crescimento expressivo dessa atividade em muitas regiões
do mundo. Isso se dá por intermédio dos fatores históricos, sociais, culturais, econômicos e
políticos dentro de um nicho turístico, em um cenário globalizado que corresponde ao
desenvolvimento do segmento e também da totalidade do setor turístico.
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Sendo o Turismo uma atividade promissora para o setor econômico do Estado e
sabendo que os Centros Históricos das cidades concentram uma grande parte do turismo a
frente da promoção e marketing do turismo em cada localidade, é que há a necessidade de
investimento por parte das esferas governamentais e inclusão da comunidade do entorno
agregando valor e contribuindo para promoção do turismo na cidade. Nessa perspectiva, o
governo do estado do Maranhão tem voltado seus olhares para o Centro Histórico de São
Luís, no sentido de preservar seu patrimônio para que, assim, tanto os moradores, quanto os
visitantes possam reconhecê-lo como um espaço de representação da cultura de um povo.
O turismo vem, assim, sendo um mecanismo promotor de um gigantesco intercâmbio
cultural, a fim de fazer conhecida a parte pelo todo, ou seja, uma localidade e seus atrativos
culturais (re)conhecidos por todo o mundo e vice-versa, construídos em torno de seus
recursos patrimoniais, que constituem a identidade do local correspondente aos seus
referenciais históricos e culturais ao longo dos tempos, sendo materializados em seus
patrimônios culturais que dão a identidade singular do local.
Dentro deste cenário tem-se o Centro Histórico de São Luís do Maranhão, que devido sua
riqueza histórica, cultural, artística e arquitetônica, a partir de 1974 foi tombado como patrimônio
arquitetônico e paisagístico pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN).
Assim, houve a necessidade de buscar formas de preservação deste patrimônio,
almejando despertar o sentimento de pertencimento dos moradores, envolvendo-os no seu
processo de revitalização e preservação na construção de novas identidades que a cidade
passa a buscar e a forma como essas (re)significações se entrelaçam com os visitantes,
levando à novas representações de identidades da localidade.
A partir de então, a identidade da cidade começa a ser reestruturada, tendo por base
novas perspectivas e representações ao ser Cidade Patrimônio Cultural da Humanidade, o
que agrega novos significados e um novo discurso a identidade local.
Com isso, há uma inquietação em descrever este processo de preservação e
revitalização do Centro Histórico de São Luís do Maranhão com ênfase no bairro da Praia
Grande, por ser o bairro que engloba o maior número de estruturas arquitetônicas e, dentro
deste contexto, identificar qual a identidade está sendo (re)construída pela cidade.
Dessa forma a pesquisa tem o objetivo de descrever o processo de preservação e
revitalização do Centro Histórico de São Luís do Maranhão, e de identificar que identidade
emerge sobre a cidade de São Luís a partir da revitalização do seu Centro Histórico.
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Para tanto, desenvolveu-se um estudo descritivo realizado por meio de uma pesquisa
bibliográfica que, segundo Leite (2008, p. 47), “é a pesquisa cujos dados e informações são
coletados em obras já existentes e servem de base para a análise e interpretação dos mesmos,
formando um novo trabalho científico”.
Os resultados da pesquisa apontam para as novas representações que a cidade adota
a partir do título de Cidade Patrimônio da Humanidade, gerando novas construções de
identidades advindas do novo discurso que o atributo do título proporciona, tendo por base
a implantação dos processos de revitalização e preservação do Patrimônio.
1. O Centro Histórico de São Luís e seu processo de revitalização
O Maranhão, seguindo uma tendência nacional, tem desempenhado esforços no
sentido de promover seu desenvolvimento por meio da elaboração e implantação de políticas
públicas em diversos setores. Incluindo, de forma mais recente, as questões que envolvem o
espaço e sua organização estrutural e social e também seu uso doméstico e turístico, tendo a
capital São Luís como grande foco dessas políticas, e mais especificamente o Centro
Histórico que, até a implantação das políticas, se encontrava abandonado não só pelo
governo, mas também pela população que não encontrava motivações para frequentá-lo.
Assim, a necessidade de preservar e revitalizar surge no momento em que a população
e os visitantes passam a se afastar do Centro Histórico de São Luís. Esse afastamento, em sua
maior parte, foi ocasionado por problemas relacionados às estruturas física e social daquele
espaço, os quais vieram a ser corrigidos por meio dos processos de preservação e revitalização
que ali foram implantados por intermédio de ações do Governo do Estado.
As ações começaram a ser pensadas a partir de 1974, quando o Centro Histórico de
São Luís foi tombado como patrimônio arquitetônico e paisagístico pelo Instituto do
Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN). A partir de então, o Governo passa a
pensar, de forma mais acentuada, em políticas públicas voltadas à preservação e estruturação
do espaço urbano (SILVA, s/d), tendo em mente que o Centro Histórico de São Luís se
enquadra no recente conceito de patrimônio ambiental urbano, constituindo-se em um
significativo conjunto arquitetônico e paisagístico do país.
Nesse período, tanto o governo estadual, quanto o municipal criam instrumentos para
promoção do patrimônio histórico. Em 1975 é inserido um item sobre assunto no Plano Diretor
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de São Luís, e em 1978 o estado sanciona a lei nº. 3.999/78 que trata sobre a preservação do
Patrimônio Histórico, Artístico e Paisagístico no Maranhão (GONÇALVES, 2006).
De acordo com Daniela Gonçalves (2006), o Centro Histórico de São Luís possui,
até o ano de encerramento da sua pesquisa, cerca de 3.500 imóveis tombados (entre estaduais
federais). A autora assim os classifica:
O conjunto delimitado estritamente pelos perímetros dos Tombamentos
Federal (cerca de 1.000 edificações) e Estadual (cerca de 2.500
edificações) possui um total aproximado de 3.500 imóveis de valor
histórico e arquitetônico, a maioria civil, com construções do período
colonial e imperial, com características peculiares nas soluções
arquitetônicas de tipologia, revestimento de fachadas e distribuição interna
(GONÇALVES, 2006, p. 36).
No âmbito estadual, as ações voltadas à preservação do Centro Histórico de São Luís
foram concentradas na região da Praia Grande. Isso ocorreu por conta da falta de recursos para
abranger toda área do Centro Histórico. A Praia Grande foi, então, escolhida por apresentar as
mais significativas obras arquitetônicas de todo o conjunto tombado (SILVA, s/d).
As políticas ali empreendidas fazem parte do Programa de Preservação e Revitalização
do Centro Histórico de São Luís (PPRCHSL), que começou a ser desenvolvido a partir da
proposta do engenheiro americano Jonh Ulrich Gisiger, elaborada entre 1977 e 1979 (SILVA,
s/d). O PPRCHSL se constituiu no principal programa de preservação para aquela região,
tendo suas ações desenvolvidas, incluindo elaboração, no período de 1979 a 2006.
Os desdobramentos do PPRCHSL, além de promover a preservação e revitalização
do Centro Histórico de São Luís, contribuíram de forma significativa para inscrição da
cidade na lista de patrimônio da humanidade pela UNESCO, o que proporcionou uma maior
valorização daquele espaço e consequente elevação nos números do turismo na região.
2. Patrimônio e identidade
Perpassando pensamentos de outrora que restringiam a ideia e conceito de patrimônio
apenas a estrutura física, obras arquitetônicas, com um olhar apenas material, percebe-se que
o patrimônio traz consigo memórias repletas de experiências construídas pelas gerações
passadas com informações relevantes da história daquela sociedade, contribuindo na
formação da identidade de determinado povo.
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A preservação do patrimônio assim é de extrema importância para o
desenvolvimento cultural de um povo, pois reflete na sua formação sociocultural, permitindo
que uma determinada localidade possa (re)conhecer sua própria história e de outros povos
através dos seus patrimônios material, imaterial, arquitetônico ou edificado, arqueológico,
artístico, religioso e da humanidade. Pois através da materialidade, o indivíduo consegue se
realizar e afirmar sua identidade cultural, podendo também, reconstruir seu passado histórico
(OLIVEIRA; LOURES OLIVEIRA, 2008).
Com isso, o patrimônio em suas diferentes esferas se (re)configura ao longo dos tempos,
em detrimento dos sistemas sociais vigentes de cada época, bem como dos aspectos políticos,
econômicos, culturais e históricos que promovem os discursos pelos quais uma sociedade se
representa e se identifica culturalmente e historicamente a partir do ambiente e do espaço no qual
seus patrimônios, assim se constituem como marco referencial, porém, inacabado na dinâmica
(re)construção cultural ao longo dos tempos promovendo novas identidades em seu percurso.
São notórias as inúmeras relações que o patrimônio estabelece com a identidade de
um povo, sendo a própria materialização da identidade de uma sociedade ou grupo, Choay
(1992) afirma que, “o património expressa a identidade histórica e as vivências de um povo.
O Património contribui para manter e preservar a identidade de uma nação daí o conceito de
identidade nacional, de um grupo étnico, comunidade religiosa, tribo, clã, família”.
A identidade é um processo de identificações historicamente apropriadas que
conferem sentido ao grupo (Cruz 1993), levando o mesmo ao sentimento de pertencimento
e reconhecimento da sua história e cultura, o que, por sua vez, o leva a adotar/construir uma
identidade. Essa construção/adoção na maioria das vezes é despertada por meio das
vivências experimentadas pelos indivíduos, mas pode também ser estimulada/influenciada
por terceiros, como, por exemplo, as ações da mídia.
A identidade não se caracteriza como um processo estável, pois seu caráter é mutável e
(re)inventado a cada período sociocultural, já que hodiernamente se está no auge dos avanços
tecnológicos advindos da globalização, por exemplo, que dão uma nova identidade a sociedade
em geral, que se caracteriza como transitória, evidenciando a dinâmica contemporânea que dita
a cada dia novos discursos que convergem ainda para uma subjetividade na construção da
identidade que se (re)configura, se transforma em um âmbito de contextualização.
Dentro deste contexto, novas identidades se configuram relacionadas ao patrimônio
que as representa ao longo da história, pois com o passar dos tempos cada acervo patrimonial
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foi agregando novos valores, características, tradições e hábitos em resposta às mudanças
sociais em suas mais diversas esferas, como no caso os processos de revitalização dos centros
históricos que passam a inserir um novo olhar e uma nova postura redimensionando seus
discursos sobre si mesma.
Os novos discursos gerados por essas intervenções de revitalização e preservação dos
patrimônios, em especial direcionados aos centros históricos, principalmente aqueles que
possuem reconhecimento nacional e internacional por seus acervos patrimoniais muitos com
o título de Cidade Patrimônio da Humanidade, dentre outros, é que há transições na forma
como a comunidade local se relaciona com esses novos olhares e assim busca se representar
construindo uma nova identidade que se entrelaça com essa nova estrutura sociocultural.
Sendo assim a identidade é recriada/transformada a todo instante (e nunca perdida),
tanto na perspectiva do indivíduo, quanto do local ou global, refletindo o sentimento de
pertencimento cultural desenvolvido por uma comunidade a partir das transformações
sociais que as cercam, no caso dos patrimônios e os processos de revitalização dos centros
históricos, os quais podem conduzem o grupo/sociedade por cada período de sua história.
3. São Luís, cidade Patrimônio da Humanidade
Na atualidade, a produção de identidades guarda uma relação muito íntima com a
globalização. E, nesse processo, os indivíduos não só sentem a “necessidade” de se
identificar com algo que seja local, regional, nacional, mas também com algo que seja global.
Nesse sentido, vemos que, como consequência das ações desenvolvidas pelo Programa de
Preservação e Revitalização do Centro Histórico de São Luís, a cidade recebeu, em
dezembro de 1997, o título de Cidade Patrimônio Cultural da Humanidade, concedido pela
Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO).
A professora Klauténys Cutrim (2011), em sua tese de doutorado, cita, além das
ações de preservação em nível estadual, as ações de preservação em nível federal como fator
que contribuiu para que a cidade recebesse o título. As ações federais de preservação do
patrimônio em São Luís concentram-se nos tombamentos realizados pelo IPHAN, o qual
inscreveu no livro de tombos o conjunto arquitetônico do Centro Histórico da cidade antes
mesmo das ações estaduais iniciarem. Esses desdobramentos foram de suma importância e
tiveram grande peso no processo de candidatura e titulação de São Luís como Patrimônio da
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Humanidade. A partir do recebimento desse título, a cidade passa, com um forte auxilio da
mídia, a adotar a identidade de Cidade Patrimônio da Humanidade.
Nesse processo de pertencimento e identificação com o título por parte da sociedade,
a mídia local teve uma grande parcela de contribuição, pois, segundo Cutrim (2011), a
população ludovicense não teve participação ativa no processo de candidatura da cidade ao
título de Patrimônio Cultural da Humanidade junto à UNESCO. Essa ausência da população
no referido processo dificultou a identificação da mesma com o título recebido, fator este
que pôde ser amenizado com a intervenção da mídia local que, por sua vez, desenvolveu um
forte trabalho no sentido de despertar na população os sentimentos de pertencimento e
identificação com o título de Patrimônio da Humanidade.
Para Cutrim (2011), com base no pensamento de Bauman (2005), a globalização
levou a um acentuado fluxo dos contatos intersubjetivos, o que fez o homem se perguntar
continuamente sobre sua identidade. Assim, “surge desse processo a necessidade de
demarcação de fronteiras, de estabelecimento de territórios que identifiquem não apenas os
indivíduos, mas os locais como lugares de pertencimento” (CUTRIM, 2011, p. 147).
Nessa perspectiva, a população ludovicense passou, a partir do título recebido da
UNESCO, e com a forte influência da mídia, a adotar a identidade de moradora da Cidade
Patrimônio da Humanidade. Esse nova identidade, que se uniu a outras que São Luís já
possuía, tais como: Atenas Maranhense, Jamaica Brasileira e Cidade dos Azulejos, remetem
a aspectos da cultura local que foram herdados de outras culturas, ou seja, dos povos que
formaram a população local (brancos, negros e índios) evidenciando, assim, a influência da
globalização e da miscigenação na construção de identidades.
Outro fator de destaque nesse processo de identificação foi o patrimônio, o legado
construído ao longo de séculos e que hoje é apreciado e apropriado pela sociedade
contemporânea. Esse patrimônio restaurado e revitalizado representa um retorno passado,
que, por sua vez, é rememorado por meio das lembranças e da identificação da população
ludovicense com os significados que aquele patrimônio remete.
Considerações Finais
Pensar as questões de identidade traz várias implicações, uma delas é a de que as
identidades não são estáticas, pelo contrário, elas podem sofrer várias mudanças ao longo do tempo
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e do espaço, variando de acordo com a época, período e também com o contexto que a envolve.
Na contemporaneidade, fortemente marcada pela globalização, a construção da identidade pode,
ainda, ser influenciada por outros fatores, dos quais o mais influente deles é a mídia.
A cidade de São Luís, composta por grande diversidade cultural, já adotou várias
identidades, onde cada parte da população assume aquela com a qual mais se identifica.
Nesse processo de identificação, o patrimônio preservado tem sido de grande relevância, ao
qual é atribuído um valor simbólico capaz de promover a localidade e de despertar o interesse
e respeito de moradores e visitantes.
O Programa de Preservação e Revitalização do Centro Histórico de São Luís trouxe
para cidade novas perspectivas de valorização, não somente do patrimônio, mas também da
identidade que emerge desse patrimônio. Após as ações do Programa, a cidade recebeu o
importante título que gerou, com a ajuda da mídia, uma nova identidade para São Luís, a de
Cidade Patrimônio da Humanidade que veio somar com outras que a cidade já possuía como
consequência de sua diversidade cultural.
O trabalho ora apresentado não esgota (nem teve a pretensão) as discussões sobre o tema
das identidades que emergem sobre a cidade de São Luís a partir das ações do PPRCH, mas buscou
apenas clarificar o entendimento de como e por que essas identidades emergem. Consideramos
que outros estudos são pertinentes a respeito do tema, dos quais podemos citar uma investigação
acerca dos discursos que permeiam a formação de identidades na cidade de São Luís, com ênfase
para aquelas que emergem de ações do governo e também da intervenção da mídia.
Referências
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