graça e liberdade em pascal

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  • 8/16/2019 Graça e Liberdade Em Pascal

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    CDD: 149.7

    GRAÇA E LIVRE ARBÍTRIO EM BLAISE PASCAL* LUÍS CÉSAR GUIMARÃES OLIVA**

     

    Departamento de Filosofia/FFLCHUniversidade de São Paulo Av. Prof. Luciano Gualberto, 31505508-900 SÃO PAULO, SP

    [email protected]  

    Resumo: As relações entre graça e livre arbítrio em Pascal são melhor compreendidas através darecusa de dois modelos antagônicos: o molinismo (em que o livre arbítrio é pleno, como o de Adão,e a graça é mera conseqüência do esforço humano) e o calvinismo (em que o livre arbítrio é desdesempre aniquilado e a graça é totalmente incondicionada). Pascal assume a força da graça, à maneirados calvinistas, mas faz da condição de Adão um estado de livre arbítrio pleno, à maneira dosmolinistas; estado de onde o homem saiu em conseqüência do pecado original. Além disso, Pascalresguarda, mesmo na nossa condição atual, um espaço para o livre arbítrio: a oração.

    Palavras-chave: graça; livre arbítrio; oração; pecado original.

     Abstract:  The relations between grace and free will in Pascal’s philosophy are better understoodthrough the refuse of two opposite models: molinism (where there is total free will, as in Adam, andgrace is just a consequence of human effort) and calvinism (where free will has ever been aniquilatedand grace is totally unconditional). Pascal believes in the force of grace, like the calvinists, but makethe adamic condition a state of free will, like the molinists; a state that men left because of theoriginal sin. Besides, Pascal gives, even in our condition, a place for free will: the prayer.

    Key-words: grace; free will; prayer; original sin. 

     Toda a filosofia de Pascal dirige-se, de uma maneira ou de outra, a questõesteológicas, como indica o fr. 556 dos Pensamentos:   “(...) a religião deve de talmaneira ser o objeto e o centro para onde todas as coisas tendem, que quemconhecer os seus princípios poderá explicar a razão de toda a natureza do homem,

    * Este trabalho teve o apoio da FAPESP.** Doutorando do Departamento de Filosofia da Universidade de São Paulo.

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    em particular, e de toda a marcha do mundo, em geral.”1  A questão do livrearbítrio, em especial, é tratada por Pascal no interior de querelas teológicas esomente aí pode ser compreendida por inteiro. Deste modo, a visão de Pascalsobre a questão é retratada sobretudo nos Escritos sobre a Graça , onde se encontra ateologia pascaliana.

    Estes Escritos , compostos provavelmente entre 1656 e 1658, são esboços deum tratado ou de cartas que Pascal planejava escrever sobre a teologia da graça. Assim, bem como nos Pensamentos , somos obrigados a articular da melhor maneirapossível os textos dos quatro  Escritos   para nos aproximarmos das concepçõespascalianas.

    Os textos partem da tradição, isto é, da Bíblia e dos Santos Padres,sobretudo Agostinho, além das decisões do Concílio de Trento. Segundo ThomasHarrington, no seu livro Verité et Methode dans les Pensées de Pascal   (HAR-RINGTON, 1972, p. 33), Pascal usa nos  Escritos  basicamente dois métodos: peloprimeiro, Pascal deduz racionalmente pontos contestados a partir de pontos nãocontestados. Exemplo: “Se, segundo Agostinho, Deus, por sua permissão, providência e

    disposição, mistura entre os eleitos alguns justos que não devem perseverar, a fim de manter omedo dos que perseveram através da queda dos que falham, não haveria nada tão contrárioao desígnio de Deus quanto dar um poder suficientemente próximo àqueles quenão caem e assegurar-lhes que tal poder estará sempre presente, já que o exemplodos outros que caíram no mau uso deste poder não teria nada que devessenecessariamente assustá-los.” (PASCAL, Oeuvres Complètes , p. 1006.) Pelo segundo,Pascal analisa os vários sentidos possíveis de uma proposição e então escolhe umdeles segundo a coerência com a tradição. Exemplo: “O objeto deste discurso émostrar qual é o verdadeiro sentido dos Santos Padres e do Concílio de Trentonestas palavras: Os mandamentos não são impossíveis aos justos.  Qual destes doissentidos é o verdadeiro: 1) Que não é impossível que os justos realizem osmandamentos; 2) Que os mandamentos são sempre possíveis a todos os justos,por este pleno e último poder, ao qual nada falta da parte de Deus, para agir. Osmeios que empregaremos para reconhecer qual destes dois sentidos é o

    1 As citações dos Pensamentos serão feitas a partir da tradução de Sérgio Milliet para acoleção Os Pensadores.

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     verdadeiro serão estes: 1) O primeiro será examinar pelos termos da proposiçãoqual é o sentido que ela exprime e que se forma naturalmente; 2) O segundo seráexaminar pelo objeto que trataram os Padres e o Concílio ao tomar esta decisão;3) E o terceiro será examinar, pela seqüência do discurso e por outras passagensdos Padres e do Concílio que o expliquem, qual é o verdadeiro sentido.”

    (PASCAL, Oeuvres Complètes , p. 1012.)Entendendo o livre arbítrio como espontaneidade da vontade, Pascalcoloca a questão inicialmente da seguinte forma: Qual das duas vontades, ahumana ou a divina, é a dominante, a fonte, o princípio e a causa da outra? Pascalpõe as coisas assim porque entende que, quando estas vontades cooperam, umadelas (a causa primeira) inclui e determina a outra (causa segunda), podendo-semesmo dizer que só a primeira é efetiva. “Pois a vontade seguinte é tal que sepode dizer em um sentido que a ação provém dela, já que ela para isto concorre, eem um sentido que a ação não provém dela porque ela não é a origem; mas a vontade primeira é tal que se pode bem dizer que a ação provém dela, mas não sepode de modo algum dizer que a ação não provém dela.” (PASCAL, Oeuvres

    Complètes , p. 949.) Ora, é certo que Deus não pode nos salvar ou condenar semnós, no sentido de que os eleitos querem ser salvos e os condenados querempecar. Deus e homem querem, mas só uma vontade pode ser realmentedeterminante. Se considerarmos que Deus quer apenas absolutamente, sem levarem conta a vontade humana, as noções de livre arbítrio e mérito se dissolvem. Seconsiderarmos que Deus quer por previsão e leva em conta as decisões do livrearbítrio, aquelas noções se resguardam.

    Esta discussão não pode ser pensada fora das disputas teológicas da época. Tanto é assim que a própria exposição de Pascal se dá através da apresentação deduas doutrinas erradas e opostas juntamente com a doutrina de Agostinho, aúnica que seria genuinamente católica. Os extremos com quem Pascal discute sãoos que recusam o livre arbítrio, e os que o supervalorizam em prejuízo da vontadedivina, respectivamente os Calvinistas e os Molinistas. Eles são assimapresentados: “A opinião dos calvinistas é: que Deus, criando os homens, criouuns para daná-los e outros para salvá-los, por uma vontade absoluta e semprevisão de mérito. Que, para executar esta vontade absoluta, Deus fez pecar Adão e não somente permitiu mas causou sua queda.” (PASCAL, Oeuvres

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    Complètes , p. 951.) E os Molinistas: “(...) Deus tem uma vontade condicional desalvar em geral todos os homens. Que para isto Jesus Cristo se encarnou de modoa salvá-los todos sem exceção, e que suas graças sendo dadas a todos, dependeapenas da vontade deles e não da de Deus usá-las bem ou mal.” (PASCAL,Oeuvres Complètes , p. 952.)

    Pascal tem de dar conta dos dois extremos, superando-os. Fazê-lo recairem um dos opostos seria fechar os olhos para a batalha teológica jansenista que sedava na época, e também seria ignorar o enorme esforço intelectual de Pascal pararesolver a crise. Para isso, o autor apela para Santo Agostinho, ou pelo menos parauma leitura possível de Agostinho: “Eles (os discípulos de Agostinho) pretendemque, para o estado de inocência, Deus teve uma vontade geral e condicional desalvar todos os homens, desde que eles o quisessem pelo livre arbítrio amparadopelas graças suficientes que Deus lhes dava para sua salvação, mas que não osdeterminavam infalivelmente a perseverar no bem. Mas que Adão, tendo pelolivre arbítrio usado mal esta graça e tendo se revoltado contra Deus por ummovimento de sua vontade e sem nenhuma impulsão de Deus, corrompeu e

    infectou toda a massa dos homens, de modo que ela foi o justo objeto da cólera eda indignação de Deus. Eles entendem que Deus separou esta massa igualmenteculpável e digna de danação, que Ele quis salvar uma parte por uma vontadeabsoluta fundada sobre sua misericórdia toda pura e gratuita, e que, deixando oresto na danação onde estava e onde podia com justiça deixar a massa inteira, Elepreviu ou os pecados particulares que cada um cometeria ou ao menos o pecadooriginal de que são todos culpados, e em decorrência desta previsão quis condená-los.” (PASCAL, Oeuvres Complètes , p. 952.)

    O estudo de Pascal nos conduz sempre para o ponto nevrálgico de suafilosofia, o pecado original. Este mistério incompreensível é a única explicaçãopara todos os dilemas humanos, sejam filosóficos ou teológicos. Como nãopoderia deixar de ser, também esclarece a questão do livre arbítrio. A diferençados dois estados mostra a perfeição do livre arbítrio adâmico, igualmente flexívelao bem e ao mal, onde a razão podia ver o melhor caminho e o homem tinhaacesso ao infinito. Porém a grandeza de Adão foi proporcional a sua queda,mancha tão poderosa que danificou toda a humanidade. Tão grande foi a nóduado pecado que somente a morte de um Deus, na pessoa de Jesus Cristo, pôde

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    restaurar a possibilidade de salvação. Mas agora o homem tem um livre arbítriomais fraco que o de Adão. A força da concupiscência o obriga a seguir as paixõesmais rasteiras, de modo que a graça habitual de Adão não mais basta para romperos obstáculos carnais. É assim que apenas uma graça eficaz, muito mais poderosa,pode reconduzir o homem para Deus, contudo ela o faz infalivelmente, de modo

    que o livre arbítrio continua escravo. O coração, órgão que dá os princípios darazão, bem como da vontade, está corrompido pela cupidez. A graça reordena-oinserindo nele os princípios que fazem a vontade se movimentar para Deus.

     A previsão do pecado, ainda que apenas o original, justifica a condenaçãodos pecadores. A salvação incondicional dos eleitos portanto ressalta amisericórdia divina. Assim, não há dúvida de que Deus não tem culpa do mal aoqual alguns se destinam. Mas em que sentido o livre arbítrio se preserva? Pascaldestaca que os Molinistas expandiram indevidamente a vontade divina do paraísopara nossa condição presente, colocando tudo em nossas mãos como se tivés-semos o poder de Adão para nos salvar. Os Calvinistas por sua vez expandiram a vontade divina da corrupção para a criação, fazendo que Deus tivesse vontade

    absoluta de condenar ou danar antes do pecado, já que Ele injustamente obrigou Adão a pecar. Nesta visão, todas as ações humanas são pecados e por isso sequercooperamos na salvação. Haverá uma outra alternativa real?

    Quanto à visão pascaliana, se nos centrarmos apenas na natureza humanacorrupta, não veremos grande diferença em relação ao Calvinismo, a não ser pelofato de que a condenação divina é justificada pelo pecado de Adão. Só a graçapode corrigir e elevar o homem pascaliano. Por mais que o homem controle suatendência a pecar, nenhuma boa ação humana tem proporção com a infinitude dopecado original. O corte entre as duas condições é insuprimível sem a intervençãotranscendental. E mesmo o homem que sequer tem pecados veniais pode ser

    condenado com justiça devido ao pecado original. Em resumo, as boas ações dosjustos se devem a movimentos da graça e a salvação vem exclusivamente da vontade divina. O homem será sempre escravo, seja da graça, seja daconcupiscência.

    Em sentido pleno portanto, só Adão era livre, só ele se encontrava naindiferença essencial que permite a livre escolha. Quanto ao homem corrupto, sua vontade é sempre arrastada pelo vencedor da batalha entre graça e cupidez.

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    Mesmo que estas hipoteticamente sejam iguais e se anulem, o homem nãorecuperará a liberdade de Adão, mas apenas cairá na inação. Portanto, resta aolivre arbítrio um espaço bem tênue e somente quando o concebemos do ponto de vista do poder ( o qual obedece nosso querer) e não do ponto de vista destemesmo querer ( que é determinado). Sobre isso, Pascal cita Agostinho: “Porque,

    como uma coisa é dita em nosso poder quando a fazemos quando queremos,nada está tanto em nosso poder quanto a vontade; mas a vontade é preparadapelo Senhor, portanto é assim que Ele dá o poder.” (PASCAL, Oeuvres Complètes ,p. 1032.) Voltando para as considerações iniciais dos  Escritos sobre a Graça ,seríamos obrigados a reconhecer a vontade divina como única, já que pode-sedizer que a vontade humana é causa de salvação em um sentido, mas não é emoutro, enquanto a vontade divina em nenhum sentido deixa de ser causa. “fr553:(...) Jesus, enquanto os seus discípulos dormiam, operou a salvação deles. Deu-aaos justos enquanto dormiam: no nada, antes de nascerem, e nos pecados, depoisdo seu nascimento.”

    No entanto é preciso afastar as acusações de Calvinismo, garantindo um

    lugar real para o livre arbítrio mesmo após a corrupção. Do contrário, Pascalestaria negando Santo Agostinho: “E Santo Agostinho, para mostrar que não negaa liberdade quando sustenta a graça:  É uma impertinência insuportável de nossos inimigosdizer que, por esta graça que defendemos, não resta nada para a liberdade da vontade. E emoutro lugar: Pois o livre arbítrio não é retirado ao ser socorrido; ao contrário, ele é socorrido porque não é retirado. E no livro Do Espírito e da Letra , cap. XXIX: Arruinamos o livrearbítrio pela graça? Ao contrário, nós o estabelecemos por ela. Pois o livre arbítrio não éaniquilado, mas estabelecido pela graça, assim como a Lei o é pela fé.”  (PASCAL, OeuvresComplètes , p. 1020.) Deste modo, Pascal, que já havia livrado Deus de qualquerculpabilidade, precisava ainda de algum movimento legitimamente espontâneo da vontade para consolidar o livre arbítrio.

     A resposta para isto pode ser encontrada na conversão do pecador:“fr470:A conversão verdadeira consiste em aniquilar-se diante desse ser universalque tantas vezes tem sido irritado e que pode perder-vos legitimamente a todomomento; em reconhecer que não se pode nada sem ele, e que nada se mereceudele, senão a perda de sua graça.” É por meio deste momento de purificação dohomem corrompido que Pascal achará um movimento realmente espontâneo da

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    alma. Na conversão o homem odiará em seu eu tudo que é carnal e orgulhoso,amando somente o infinito ausente. Deste modo, no movimento de repulsa a simesmo, o homem reencontra o caminho para Deus. Mas será ele o verdadeiroresponsável por esta correção ? Vejamos no fr. 282: “(...) Eis porque aqueles aquem Deus deu a religião pelo sentimento do coração são bem felizes e se

    encontram legitimamente persuadidos. Mas aos que não a têm, só lha podemosdar pelo raciocínio, à espera que Deus lha dê pelo sentimento do coração, sem oque a fé é apenas humana e inútil para a salvação.” A verdadeira conversão éapenas a dada por Deus, não a meramente humana. Logo, à primeira vista, aconversão não resolve o problema do livre arbítrio. Este fragmento não mostranada além do que os  Escritos   já diziam: o homem é sempre escravo, seja daconcupiscência ou da fé. Ele é o terreno de uma batalha e ao mesmo tempo oprêmio para o vencedor.

     A graça, que nos garante um lugar entre os eleitos depende apenas deDeus. Ela sequer é um dom que recebemos e usamos quando e como queremos. A graça eficaz, única que pode corrigir a corrupção, não é um presente que está

    sempre conosco como era a graça habitual de Adão. Diz Pascal na carta a MmePerier de 5 de novembro de 1648: “Assim a continuação da justiça dos fiéis não éoutra coisa senão a continuação da infusão da graça, e não uma só graça quesubsiste sempre; e é o que nos ensina perfeitamente a dependência perpétua emque estamos da misericórdia de Deus, já que, se Ele interrompe o fluxo, a perdadecorre necessariamente.” (PASCAL, Oeuvres Complètes , p. 488.) Nossa fé podecessar a qualquer instante se o fluxo da graça cessar. Apenas o instante presentenos garante entre os fiéis, mas, infelizes que somos, o tempo é inexorável esempre caminha para o futuro, de modo que temamos a cada instante acondenação. Neste sentido, é difícil imaginar como a graça pode socorrer o librearbítrio sem destruí-lo.

    Contudo, sem abalar a infalibilidade da graça divina, Pascal garante umespaço para a liberdade. Para isso, o autor se utiliza da noção de oração. A oração,como procura sincera e angustiada de Deus é causa da fé. Há uma dupla acolhida,bem como um duplo abandono da parte de Deus. Ele nos dá a oração, com elalhe rogamos que nos acolha e devido a este pedido Ele nos dá a fé. No abandono,hipótese essencial para manter o temor e a humildade humana, ocorre o mesmo:

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    Deus corta o dom da oração, nós o abandonamos com nossos pedidos e Ele nosabandona cortando o dom da fé. Mesmo sem negar a onipotência de Deus, Pascaldá ao homem um lugar na séria causal que leva à salvação. Pascal cita: “(...) São Tomás, falando da predestinação gratuita, sobre a qual não tendes dificuldade,dizque se pode considerá-la ou em comum ou em seus efeitos particulares e falar

    assim de duas maneiras contrárias; considerando-a em seus efeitos, pode-se alegarcausas destes; os primeiros sendo causas meritórias dos segundos e os segundos acausa final dos primeiros; mas considerando-os todos em comum, eles não têmnenhuma causa senão a vontade divina; isto é, como ele explica, a graça é dadapara merecer a glória e a glória é dada porque foi merecida pela graça; mas o domda glória e da graça em conjunto não tem nenhuma causa senão a vontadedivina.” (PASCAL, Oeuvres Complètes , p. 979.) O mesmo raciocínio podemosaplicar para a oração com relação à fé: ambas são dadas por Deus, mas uma podeser dita causa da outra.

    Este desdobramento porém torna-se dificilmente compreensível quando vemos que oração e fé estão irremediavelmente unidas. Comentando o canon 22

    do Concílio de Trento, o qual afirma que os justos não têm o poder de manter suajustiça no instante seguinte ( quando talvez tenha cessado o fluxo da graça), Pascaldiz: “Esta definição do canon 22 acarreta também necessariamente que os justosnão têm sempre o poder próximo de perseverar na oração. Afinal, já que aspromessas do Evangelho e da Escritura nos asseguram a obtenção infalível dajustiça necessária para a salvação se nós a pedimos pelo espírito da graça e damaneira correta, não é indubitável que não há diferença entre perseverar na precee perseverar na impetração da justiça ?” Trata-se de uma ligação tão estreita quepropicia a célebre frase: “Não me procurarias se já não me tivesses encontrado.”

    Não há distinção cronológica entre o dom da oração e o dom da fé. Emum instante o homem é descrente, infiel e nenhuma de suas ações pode corrigir oabismo criado pelo pecado original. No instante imediatamente seguinte, ohomem é um dos eleitos, ora, teme e tem fé. Não há um momento de transiçãoentre os dois estágios. A ruptura da conversão é tão radical quanto a ruptura dopecado original.

    Pascal faz uma classificação dos homens nos  Escritos : “E portanto há trêstipos de homens: uns que não chegam jamais à fé; outros que chegam mas não

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    perseveram e morrem em pecado mortal; e os últimos que vêm à fé e perseveramna caridade até a morte.” (PASCAL, Oeuvres Complètes , p. 953.) Não há uma quartacategoria intermediária de homens que apenas oram e não chegam à fé, o quecorrobora a tese da simultaneidade entre fé e oração. É verdade que, nosPensamentos , Pascal empreende outra classificação: “fr. 257: Há apenas três espécies

    de pessoas: umas servem a Deus, tendo-o encontrado; outras aplicam-se embuscá-lo, não o tendo achado; outras, enfim, vivem sem o procurar e sem o terencontrado. As primeiras são sensatas e felizes, as últimas, loucas e desgraçadas, asdo meio infelizes e sensatas.” Entretanto, esta última divisão não fala da procurailuminada pelo dom da oração, mas de uma procura humana racional. Logo, vê oshomens do ponto de vista da razoabilidade de suas vidas. Ora, a razão nada tem a ver com a inspiração divina. São ordens totalmente separadas como diz o fr. 793:“A distância infinita dos corpos aos espíritos figura a distância infinitamente maisinfinita dos espíritos à caridade, pois ela é sobrenatural.” De tudo isto, pode-seconcluir que, na perspectiva da graça, não há aqueles que procuram sem ter a fé.

    Parece então que para nós, seres temporais, a distinção entre o dom da

    oração e o dom da fé é apenas uma distinção lógica. A oração exerce a função decausa meritória em relação à fé, mas ambas, causa e efeito, são dadassimultaneamente. Aparentemente estamos falando apenas de uma construçãoteórica que resguarda o livre arbítrio como possibilidade, não como real. Oesforço intelectual de Pascal seria louvável da perspectiva da razão, mas daperspectiva prática seria dispensável para nossa salvação.

     Veremos que não é assim. No fr. 513, Pascal diz: “Por que Deusestabeleceu a prece: 1) para comunicar a suas criaturas a dignidade da causalidade;2) para ensinar-nos de quem recebemos a virtude; 3) para fazer-nos merecer asoutras virtudes pelo trabalho. Mas, a fim de conservar para si a preeminência, dá aprece a quem lhe agrada. (...)” O segundo ponto destaca que a oração, comoprocura angustiada, nos faz humildes e conscientes da dependência em queestamos do criador para realizar boas obras. O terceiro ponto destaca que aoração é o que nos dá o mérito e, sem ela, temos apenas a condenação. Oprimeiro ponto, finalmente, destaca que a oração é o dom através do qual Deusnos dá um lugar na cadeia causal da predestinação. Sem a oração, somostotalmente indignos e alheios ao processo de salvação.

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     A vontade absoluta de Deus quanto a nossa salvação continua intocada visto que o dom da oração é incondicional e nada do que façamos poderá fazer-nos merecedores dele. Ao contrário, só de posse do dom da oração é quepodemos pensar em algum tipo de mérito. Todavia, esta causa meritória só semanifesta temporalmente quando seu efeito já está dado. A procura que

    reiteramos a cada instante e a angústia que sentimos são coisas que só vêm para ofiel. Sendo assim, não é uma atividade temporal que pode atuar como causameritória da fé pois, como já dissemos, não há um só instante intermediário entredescrença e crença. Para vê-la agir como causa meritória, precisamos pensar aoração operando entre   dois instantes imediatamente contíguos. Ou seja, a açãocausal da oração, embora seja uma ação do homem, um ser temporal, deve se darfora da temporalidade. Só deste modo ela pode ser causa de um efeito (a fé) quese dá no tempo simultaneamente a ela. O livre arbítrio só pode ser realmentecorrigido e reaproximado do livre arbítrio puro de Adão por meio deste milagreassombroso. A grandeza infinita do pecado de Adão é assim compensada poruma verdadeira sobrenaturalização da vontade humana.

     A fé é um dom que recebemos passivamente, por determinação de Deus. Ao recebê-lo, nosso coração é imediatamente atraído para a caridade e nestemesmo instante somos justos. Não há portanto espaço para a livre escolha. Já aoração, embora igualmente um dom, é de outra natureza. Nós a recebemosativamente porque ela é em si uma ação do homem em direção a Deus. Ela é o voltar-se voluntariamente para Deus, coisa que só ocorre fora do tempo, pois natemporalidade somos sempre escravos, seja da graça, seja da concupiscência. Nóssó temos consciência desta procura no tempo quando ela já não está mais atuandocomo causa. A oração é o contínuo “converter-se” que nunca se concluidefinitivamente porque jamais sabemos se Deus cortará seu fluxo no instanteseguinte. Mais do que um novo princípio que é derramado no coração paradirecionar a vontade, a oração é uma reforma do próprio movimento da vontade.

     Tamanho milagre só é pensável porque a oração humana tem duplocaráter, é ativa e passiva, é ação do homem e dom de Deus. Nela, a vontadehumana não é simplesmente determinada pela vontade divina, mas se une à vontade divina. Associadas, elas constituem um movimento único na existênciahumana, movimento de real liberdade que reencaminha o homem e leva-o à fé. A

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    atemporalidade de Deus, por sua vez, permite que esta ação se dê fora do tempohumano e que portanto, para nossa consciência de seres temporais, a causa e oefeito sejam simultâneos.

    Pelos critérios do primeiro  Escrito, vemos que apenas nesta estranhamistura a vontade humana se resguarda. Na fé e nas boas obras, as vontades

    humana e divina são causa, mas em um certo sentido a vontade humana não o é(por ser determinada), enquanto a vontade divina em nenhum sentido deixa de sercausa. Já na oração, as vontades humana e divina são causa; em nenhum sentidose pode dizer que a vontade divina não é causa, mas também em nenhum sentidopode-se dizê-lo da vontade humana. Logo, para Pascal, a vontade humanareencontra sua plena força justamente no instante em que se diminui e se humilhapara melhor entregar-se ao criador.

     Vimos então que o que aparentava ser apenas uma distinção lógica entre odom da oração e o dom da fé é na verdade o sinal da intervenção divina na vontade humana, sobrenaturalizando-a e tornando-a causa da salvação. Estaassociação milagrosa, ainda que incompreensível, dá um espaço real para as

    noções livre arbítrio e mérito. E quanto à incompreensibilidade deste fato,remeto-me novamente a Pascal no fr. 430: “(...) Incompreensível ? – Nem tudoque é incompreensível deixa de existir. O número infinito. Um espaço infinitoigual ao finito.” e mais à frente, no fr. 434, falando do mistério do pecado original:“Por certo, nada nos choca mais rudemente do que tal doutrina; no entanto, semesse mistério, o mais incompreensível de todos, somos incompreensíveis a nósmesmos. (...) De sorte que o homem é mais inconcebível sem esse mistério doque esse mistério é inconcebível ao homem.” Vemos portanto que a incom-preensibilidade de algum fato, quando este é necessário para que nossa existênciatenha sentido, não é critério de exclusão. Assim é a milagrosa associação das

     vontades divina e humana na conversão, o que garante o livre arbítrio do homem.

    REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

    HARRINGTON, T. Vérité et Méthode dans les Pensées de Pascal . Paris: Vrin, 1972.

    PASCAL. B. Oeuvres Complètes . Texto estabelecido por Jacques Chevalier. Paris:Gallimard, 1954.

    Cad. Hist. Fil. Ci., Campinas, Série 3, v. 12, n. 1-2, p. 327-338, jan.-dez. 2002. 

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     ————. Pensamentos . Tradução de Sérgio Milliet. São Paulo: Abril Cultural,1979. (Coleção Os Pensadores.)

    SELLIER, Ph. Pascal et S. Augustin . Paris: Vrin.

    Cad. Hist. Fil. Ci., Campinas, Série 3, v. 12, n. 1-2, p. 327-338, jan.-dez. 2002.