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AMAZONAS: A MARCA DA ÁGUA E O USO DOS RIOS Gláucio Campos Gomes de Matos FAEFI/ UFAM [email protected] / [email protected] Resumo: O Amazonas conviveu com uma das maiores cheias nos últimos 56 anos. Superou, pelos registros oficiais, a enchente de 1953, muito comentada por aqueles que presenciaram ou sofreram com o fenômeno que marcou suas vidas. Em 2009 observamos os prejuízos da subida das águas sobre os humanos e não humanos. Proponho no presente texto, com base na teoria eliasiana, um olhar sobre importância da água ou do rio no modo de vida de ribeirinhos, que desenvolvem as práticas socioculturais de extrativismo da caça, pesca, produtos da floresta e o cultivo do solo. Elucidarei os inconvenientes da enchente do rio aos moradores que habitam suas margens próximas a centros mais urbanizados. Os procedimentos etnográficos, a observação participante, entrevistas, foram os instrumentos utilizados ao longo de nosso trabalho de investigação. Entendo que, em meio às dificuldades inerentes, a enchente do rio beneficia aqueles que exploram os recursos naturais em nome da subsistência. É instigante, a partir dessas reflexões, pensar-se na importância do rio no fluxo das discussões ambientais e o comportamento de indivíduos em relação à água. Palavras-chave: enchente, rio, práticas socioculturais, extrativismo, ribeirinho, configuração. Abstract: The Amazons lived with one of the biggest floods in the last 56 years. Surpassed by official records, the flood of 1953, much talked about by old who lived, some far more closely with the force of water on one point in their lives. In 2009 we observed the damage from rising waters on the human and nonhuman. I propose in the present, based on the theory eliasian, a look under the importance of water in the river or the livelihoods of coastal developing cultural practices of extraction of hunting, fishing, forest products and cultivating the soil. Elucidate the drawbacks of river flooding to the residents who live near its shores more urbanized centers. Procedures ethnographic, participant observation, interviews were the instruments used throughout our research work. I understand that in the midst of difficulties for some, the period of river flooding benefits to those who exploit natural resources on behalf of subsistence. It is an exciting, from, these reflections, to think the importance of the river in the flow of environmental discussions and behavior of individuals in relation to water. Keywords: flood, river, cultural practices, extraction, riverine, configuration. Introdução

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Page 1: Gláucio Campos Gomes de Matos FAEFI/ UFAM … · O modo de vida de homens e mulheres residindo em comunidades ribeirinhas vincula-se a água, ou melhor, ao rio como referência geográfica

AMAZONAS: A MARCA DA ÁGUA E O USO DOS RIOS

Gláucio Campos Gomes de Matos FAEFI/ UFAM

[email protected] / [email protected] Resumo: O Amazonas conviveu com uma das maiores cheias nos últimos 56 anos. Superou, pelos registros oficiais, a enchente de 1953, muito comentada por aqueles que presenciaram ou sofreram com o fenômeno que marcou suas vidas. Em 2009 observamos os prejuízos da subida das águas sobre os humanos e não humanos. Proponho no presente texto, com base na teoria eliasiana, um olhar sobre importância da água ou do rio no modo de vida de ribeirinhos, que desenvolvem as práticas socioculturais de extrativismo da caça, pesca, produtos da floresta e o cultivo do solo. Elucidarei os inconvenientes da enchente do rio aos moradores que habitam suas margens próximas a centros mais urbanizados. Os procedimentos etnográficos, a observação participante, entrevistas, foram os instrumentos utilizados ao longo de nosso trabalho de investigação. Entendo que, em meio às dificuldades inerentes, a enchente do rio beneficia aqueles que exploram os recursos naturais em nome da subsistência. É instigante, a partir dessas reflexões, pensar-se na importância do rio no fluxo das discussões ambientais e o comportamento de indivíduos em relação à água. Palavras-chave: enchente, rio, práticas socioculturais, extrativismo, ribeirinho, configuração.

Abstract: The Amazons lived with one of the biggest floods in the last 56 years. Surpassed by official records, the flood of 1953, much talked about by old who lived, some far more closely with the force of water on one point in their lives. In 2009 we observed the damage from rising waters on the human and nonhuman. I propose in the present, based on the theory eliasian, a look under the importance of water in the river or the livelihoods of coastal developing cultural practices of extraction of hunting, fishing, forest products and cultivating the soil. Elucidate the drawbacks of river flooding to the residents who live near its shores more urbanized centers. Procedures ethnographic, participant observation, interviews were the instruments used throughout our research work. I understand that in the midst of difficulties for some, the period of river flooding benefits to those who exploit natural resources on behalf of subsistence. It is an exciting, from, these reflections, to think the importance of the river in the flow of environmental discussions and behavior of individuals in relation to water. Keywords: flood, river, cultural practices, extraction, riverine, configuration.

Introdução

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O rio Amazonas tem sua origem* no lago Lauri ou Lauricocha, nos Andes do Peru. No Brasil, entre as bocas dos rios Javari e Negro, é conhecido pela denominação de Solimões. O rio Amazonas tem 5.825Km de extensão. Considerando sua origem, porém, aumenta para 6.571Km. Nesse caso, é o segundo rio mais extenso do planeta. A bacia do Amazonas é a mais vasta do mundo com 5.846.100Km2. O Amazonas recebe caudalosos afluentes: rio Tapajós, Xingu, Pará e Jari. Os rios vindos do sul (margem direita) preponderam pelo volume, desempenhando maior papel no ritmo e na altura das enchentes do Amazonas.

Falar de água e rio pode parecer redundante, mas falar em rio aos ribeirinhos ou no Amazonas expressa a procedência do indivíduo. Expressa o espaço de referência, de um lugar no universo amazônico. Quando o pescador ou caçador vai à sua prática, ele não diz que vai à água pescar e sim, ele vai a tal rio pescar, caçar. O Amazonas é entremeado por lagos, paranás (braços de rios) e igarapés de águas branca (barrenta) e preta, onde em suas margens constroem-se residências, criam-se animais e cultiva-se a terra, empurrando fauna e flora – terrestre e aquática – para mais longe do convívio sociocultural.

Conhece-se a procedência dos indivíduos não pela água, mas pelos rios, lagos, paranás ou igarapés os quais habitam: rio Madeira, Maués, Juruá, Abacaxi, Ipixuna; lago do Araçá, lago Preto; paraná do Arariá, paraná do Ramos; igarapé da Enciada, entre tantos outros espaços aquáticos que compõem o universo amazônico. Dos 62 municípios do Amazonas a maioria teve sua origem às margens dos rios e as comunidades ribeirinhas, como o próprio nome as designam, localizam-se às margens dos rios e deles muitas famílias sobrevivem e convivem com o ciclo das águas: enchente e vazante.

O modo de vida de homens e mulheres residindo em comunidades ribeirinhas vincula-se a água, ou melhor, ao rio como referência geográfica no espaço amazônico. Em retrospectiva, a história do Amazonas estabelece uma relação direta com a água. “Posteriormente” com a terra e muito depois com o ar. Dados históricos nos mostram que os civilizados, isto é, os colonizadores, chegaram ao Amazonas pelas estradas de rios e às margens dos rios encontraram os civilizados – indígenas – habitantes da região. Graças às estradas de rios, principalmente na enchente, fez-se notar a maior mobilidade humana e com ela as redes de interdependências se ampliaram notando-se maior pressão sobre os não humanos e sobre os humanos que na região viviam. Foi pela água, ou pelos rios, e em seguida por terra e menos pelo ar, que se proporcionou o maior crescimento demográfico na região e sentiram-se os efeitos antropogênicos em seu ecossistema. É pelos rios, em maior proporção, que se vem e se vai às comunidades ribeirinhas. Entretanto, hoje, mais do que antes, a abertura de estradas fez emergir no Amazonas postos de embarque e desembarque de produtos do extrativismo e o rio é a estrada a levá-los às redes invisíveis, com maior rapidez.

Aqueles que não se “contentaram” com o “pacato” modo de vida em comunidades ribeirinhas, migraram para a capital do estado e para sede de outros municípios em busca de vida melhor. Entretanto, nessa empreitada social, a inserção em novas figurações exigiu competências profissionais até então desconhecidas para homens e mulheres que passaram partes de suas vidas carpindo, cultivando o solo, pescando, derrubando a mata ou caçando. Tais práticas não são mais comuns nos centros urbanizados, cuja diferenciação social é mais evidenciada. Sem recursos para aquisição de terras ou da casa própria, os

* O leitor pode consultar http://www.transportes.gov.br/bit/hidro/detrioamazonas.htm para maiores informações da origem do

rio Amazonas. Revisão de texto: Hamilton Santos de Albuquerque.

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migrantes localizaram suas moradas margeando as cidades e muitas delas, em áreas baixas, sofrendo as conseqüências da subida do nível d´água. Em anos anteriores, tais moradores conviveram com a oscilação da enchente e vazante do rio, mas em 2009 essa população sentiu no seu dia-a-dia o efeito da subida do rio, sendo necessário o auxílio do poder público para amenizar a situação de calamidade ao qual passaram.

A pressão da água sobre indivíduos a margear cidades no Amazonas.

Em comunidades ribeirinhas o modo de vida está associado ao rio. Pesca-se,

caça-se, vai-se à roça, à casa do compadre ou à mata utilizando-se de algum tipo de transporte fluvial: canoa, casco*, motor de rabeta ou barco com motor de centro. O rio é a estrada a orientar muitas das atividades desenvolvidas pelos ribeirinhos inseridos em figurações. Entretanto a população ocupante de áreas que margeiam centros mais urbanizados e próximos aos rios e igarapés não necessariamente desenvolvem a caça, a pesca e outras atividades cuja referência é o meio aquático. Nos centros urbanizados a ocupação desse solo se justifica como espaço de fixação da morada.

Aparentemente, as pessoas residentes em áreas que sofrem a pressão do rio – enchente e vazante – passavam “despercebidas” pelas autoridades e população de modo geral. A enchente de 2009 revelou ao Amazonas que eram indivíduos da mesma sociedade, a morar à margem das cidades. Em abril do corrente ano, pelo menos 19 municípios estavam em situação de emergência, visto que o rio estabilizou a subida por volta de 25 de julho do mesmo ano. Em 2005, no município de Anamã, a população passou dificuldades com a grande vazante do rio. Nesse período, o governo do estado desenvolveu programa para estimular a captação de água das chuvas. Em 2009 o efeito do ciclo natural tragou a cidade, deixando casas submersas ou meio submersas. Em Manaus, “vítimas” da enchente fizeram barricadas, atearam fogo em pneus para chamar atenção da imprensa, das autoridades e população em geral. A força da natureza se mostrou aos humanos. A lição ficou registrada, assim como ficou aos nossos antepassados a enchente de 1953.

Em campo, pude acompanhar o “desespero” de famílias ao verem a água subir e tragar parte de suas casas. Primeiro o quintal, depois a água cobria o assoalho e andava-se com o pé molhado. Não sendo cômoda essa situação as pessoas faziam marombas** em seu interior. Os objetos domésticos foram suspensos e muitos se perderam. O espaço de brincar das crianças diminuiu e maior atenção se fazia necessário àquelas muito pequenas para não caírem na água poluída.

O nível do rio continuou a subir e a maromba teve que acompanhá-lo. O assoalho se aproxima da cobertura da casa que geralmente é de telha de amianto ou de alumínio. Temperatura externa permeando 380C e 390C. O calor interno de uma casa coberta com esse material é muito desconfortável, tornando-a uma “sauna”, porém sem o conforto que o banho a vapor proporciona a seus freqüentadores. O pesquisador experimenta alguns minutos no interior da residência. Ajoelhado é capaz de tocar na cobertura e sentir o calor a emanar da telha de alumínio ou de amianto. Percebe que a ventilação diminui, pois a água que * Tipo de embarcação construída a partir de um tronco de árvores escavado. ** Maromba é um estrado construído sobre bóias (madeira leve) para acondicionar animais – porcos, bois, carneiros, galinhas

– no período da enchente do rio. Essa opção é utilizada pelos pequenos criadores que não dispõem de terra alta para colocar os animais. Na maromba há necessidade de alimentá-los até que a terra apareça e propicie alimentação natural ou cultivada. No caso da maromba para atender às necessidades humanas, é a elevação do assoalho da casa quantas vezes forem necessárias, até que o rio comece a baixar o nível.

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está por baixo ou encobrindo o assoalho, a cinco metros do chão, bloqueia a circulação do ar e em poucos minutos o suor escorre pelo corpo. No início da noite, segundo os moradores, com a casa fechada, descansar é um “desafio” amenizado pelo ventilador.

A pressão da água faz elevar-se cada vez mais a maromba. As pessoas andavam agachadas, mas o calor forçava a retirada de seus habitantes para casa de parentes ou abrigos organizados pelo poder público. Muitos resistiram em sair de suas moradas, não só pela pressão da natureza, mas principalmente pela pressão social. Havia o receio de perderem tudo para os indivíduos que se aproveitavam da situação para se beneficiarem, isto é, roubar o que o outro conseguira construir ou comprar: “aqui o cara não pode deixar a casa sozinha, levam tudo. Destelham, fazem boca de fumo, prostituição. Aqui é assim.”*

A pressão da natureza aumenta. Em Manaus, ruas que desde 1953 não sentiam a água do rio ficou intrafegável. As fossas e bueiros foram tragados pela água. O sistema de esgoto sofre efeito tampão e a água, em dias quentes, borbulha exalando mau cheiro. Na área das vítimas da enchente as necessidades básicas são feitas diretamente no rio, que passa em baixo da casa, ou em saco plástico, jogando-o no rio. Os sacos de plástico com fezes e outros lixos orgânicos poluem a água e o mau cheiro associado a temperaturas elevadas traz mais desconforto e riscos de contaminação às pessoas.

As ruas e becos de áreas baixas cederam lugar para pontes. A entrada de algumas casas passou a ser pela janela. Mas nem tudo é desespero. Nas áreas onde as residências foram tragadas pela água menos poluída do rio, alguns moradores se divertiam a banharem-se em frente às suas casas. Viam-se crianças, jovens e adultos pescando da janela ou em frente à sua casa. As ruas de tráfego de veículos e passagem de pedestres tornaram-se ambiente de peixes. Onde havia vegetação, aves de hábito aquático se aproximaram de residências. Quintais arborizados foram surpreendidos e as fruteiras davam sinais de falência por não estarem adaptadas a ambientes alagados.

Por outro lado, a situação agravou-se em áreas onde a poluição da água a tornou repugnante. Cair nela tornara-se situação de emergência. As margens de igarapés ocupadas por humanos revelaram à população de Manaus, numa primeira fase, 647 (seiscentos e quarenta e sete) toneladas de lixo extraídos dos igarapés pela prefeitura do Município**. A água dos igarapés, que servia às pessoas para o banho, lavagem de roupa, cozimento de alimento e bebida, tornou-se repugnante: “quando eu cheguei aqui, quarenta anos atrás, isso aqui era limpo. Tinha poucas pessoas. Eu mandei fazer o ramal*** para chegar aqui. Minha filha era pequena e gostava de pular na água. Agora, se cair n´água tem que ir ao hospital descontaminar o corpo.” O rio e igarapés em muitas áreas ocupadas por grande quantidade de pessoas, tornaram-se depósitos de lixos e de dejetos humanos. Os manauaras, que tinham o rio como espaço para aproveitar seu tempo livre, libertos de obrigatoriedades (ELIAS e DUNNING, 1992) tiveram que se deslocar para outros ambientes: piscinas para alguns e os igarapés e rios para outros, porém mais distantes.

Com o gradativo baixar das águas, áreas poluídas tomadas pelo lixo orgânico exalam mau cheiro. O banzeiro das embarcações que trafegam nessas áreas agita a água e o odor incomoda os moradores. Os riscos de doenças provocadas por roedores,

* Entrevista (12/09/09) a F.C. de 32 anos. Morador de área alagada no birro da Glória/Manaus. Migrou do município do

Castanha/Am, para Manaus. Assim como seus parentes: Manaquiri/Am e rio Purus/Am. ** Consulte: http://portalamazonia.globo.com. Na reportagem vai se observar imagens e os gastos realizados. *** Estrada ou caminho em meio à mata. No caso citado é caminho em meio ao igapó mandado fazer pela informante.

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hepatite, larvas de mosquitos, coliformes fecais entre outros fatores de enfermidades, exigem do poder público, ações paliativas, como forma de prevenção.

O ribeirinho em relação a água ou ao rio

Comentei que o modo de vida de homens e mulheres residindo em

comunidades ribeirinhas vincula-se a água, ou melhor, ao rio. A enchente no Amazonas é um processo natural cíclico no qual os seres humanos vivenciam e constroem, dessa experiência, histórias do ciclo das águas: a grande pescaria ou caçada, a maior produção ou as perdas causadas em detrimento da enchente do rio.

Sobrevive na memória do amazônida, como referência, a enchente de 1953, por ter sido a maior até então registrada, não apenas por relatos orais, mas por fotografias e mensurado o nível das águas, cujo acompanhamento é realizado oficialmente desde 1902 no Roadway, principal Porto de Manaus. (www.cprm.gov.br) Antes, ficava sob a percepção dos ribeirinhos tal acompanhamento. Em suas experiências o ribeirinho sabe que o nível d´água começa a parar de subir ao constatar algas, na área de igapó (vegetação inundada), toldam a água de verde como sinal de estabilização e as folhas acumulam-se sobre a superfície da água.

O ribeirinho “sempre” conviveu com a evolução do nível das águas, para mais ou para menos. Essa situação nos faz indagar: qual é o nível aceitável das águas para que a população humana não tenha grandes perdas? Resposta difícil dado o processo natural. Entretanto, é pertinente afirmarmos, que enquanto a água não causa grandes prejuízos, vive-se, nesse período, extraindo da natureza o que na vazante do rio já se tornou difícil, dado a escassez de recurso natural constatado em alguns lugares do Amazonas.

Portanto, há de considerar não só a enchente, mas a vazante do rio, pois nessa relação os indivíduos que vivem às margens dos rios, se organizam. Desenvolvendo atividades no meio terrestre e aquático o amazônida busca uma vida melhor, não significando vida boa. É do rio e da terra que muitas famílias, em nome da subsistência, ainda retiram seu sustento à base do extrativismo. Com referência ao tempo cíclico e às figurações atreladas ao tempo social, desenvolvem suas atividades em área de mata, de capoeira, de lago, de igapó, de cabeceira ou de rio. Dentre elas o extrativismo animal (caça, pesca) e vegetal (entre eles a retirada da madeira), o cultivo do solo (principalmente o plantio da mandioca) e a criação de animais domésticos estão diretamente influenciadas pelo ciclo das águas.

Em nossos estudos (MATOS, 2008), ao tratarmos sobre as questões da adaptação e sobre uso do fogo no Amazonas, supomos que quem primeiramente viveu na região, nesse caso os indígenas, interagiu com o ambiente no sentido de interdependência. Com a mobilidade proporcionada pelo transporte fluvial, os rios se tornaram as estradas e as redes se ampliaram. Quem veio para colonizar o Amazonas trouxe consigo o ímpeto de dominar a natureza, isto é, a racionalização voltada para o extrativismo em benefício “unicamente” dos humanos. O rio, alicerçado cada vez mais na tecnologia, possibilitou o escoamento dos produtos naturais para servir ao maior crescimento populacional e a melhor qualidade de vida que se figurava em outros continentes.

O fato dos amazônidas viverem em prol do rio subentende uma organização social e uma estrutura física diferentemente dos que residem em terra firme, às margens das estradas. Os habitantes das áreas de várzea convivem com as oscilações da água: enchente e vazante dos rios. As terras de várzea baixa, na enchente do rio, ficam submersas, o que não acontece em terra firme. Com atenção ao ciclo das águas a população ribeirinha sabe que pode ter momentos de fartura ou escassez de elementos ou produtos naturais a influenciarem na

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qualidade de suas vidas. O comportamento de indivíduos ainda está orientado para o extrativismo animal e vegetal, o plantio da roça, a criação de boi e como não poderia deixar de compor esse modo de vida, a prática do futebol, cujos espaços para jogo, no período da enchente, ficam submersos. Onde se joga bola, na subida das águas, fica reduto de espécies aquáticas.

Ao se constatar o escasseamento de determinadas espécies de árvores pelas proximidades de muitas comunidades ribeirinhas, observamos que as grandes enchentes permitem aos humanos embrenharem-se cada vez mais nas matas alagadas fazendo chegar suas canoas, rabetas e pequenos barcos no porto onde as árvores serão transformadas em peças de madeira. O avançar da água permite ao madeireiro extrair madeira bem mais no centro da mata.

Tábuas de itaubeiras (Mezilaurus ita-uba (Meissn.) Taubert ex Mez) para construção de embarcações são encomendadas na vazante, mas é na enchente o melhor período para sua extração. O escasseamento do assacuzeiro (Hura crepitam L.) – principal espécie de árvore a servir de bóia para sustentar a estrutura da casa flutuante – às margens dos grandes rios, são explorados e derrubados, para na subida das águas, serem rebocados e entregues aos proprietários.

O nível do rio sobe gradativamente e muitas áreas de terra, que no período de vazante são contínuas, vão tornando-se ilhas e redutos de animais silvestres. Ilhados, os animais se tornam caça. Os caçadores, homens experientes, exploram cada ilha. Não há loca de tatu, oco de tronco de árvore que não seja vasculhado.

Fica na memória dos caçadores, alguns jovens iniciantes e adultos experientes, as histórias da anta (Tapirus terrestris) que fugiu baleada e foi encontrada em outro dia já em estado de decomposição. Assim o veado (Mazama amaricano), a paca (Agouti paca), o porco caititu (Pecari tajacu). Muitos morreram baleados e reciclados pela natureza, mas a maior parte foi abatida e servida à mesa dos ribeirinhos e dos citadinos: “essa semana passou por aqui o fulano com uma caixa de isopor cheio de carne de caça, eu até briguei com ele. Por que ele não mata só pra comer? Hoje só querem é vender, por isso os bichos estão acabando”, é a fala do morador do município de Manacapuru*, que se mostra-se indignado com a caçada predatória. Mas não é apenas quem está em campo a constatar o fato. Reportagens em jornais**, quando a fiscalização consegue apreender, nos proporcionam informações da matança de animais silvestres acontecendo no Amazonas no período da subida do rio.

Em campo, pude constatar o efeito “desastroso” do ciclo natural. Ilhas visitadas em outros momentos, encontravam submersas. Os pequenos trechos de terra que não foram tragados pela água davam sinais de muitos vestígios humanos. As pegadas de animais cediam aos rastros que calçavam numeração 38, 40. Nessas ilhas, os animais que não conseguiram alcançar terra grande, morreram em detrimento da pressão natural, mas em maior volume, pela sociocultural. Na área de pesquisa de minha tese de doutorado*, encontrei caixas de isopor armazenando carne de caça à espera de ser levada para a sede do município onde seria comercializada.

O nível da água continua a orientar as práticas do dia-a-dia e no baixar do rio

* Município do Amazonas, a 80km de Manaus e localizado à margem do rio Solimões. ** Jornal A crítica. Manaus, segunda-feira, 22 de junho de 2009. Caderno Cidades, p.A12; Jornal Amazonas em

Tempo.Manaus, quinta-feira, 9 de julho de 2009. Caderno Dia a dia, p.B2; Se não há falha de percepção na análise da fotografia, é possível identificar 13 pacas, 9 quartos de veado; 8 quartos de porco e 1 anta.

* Pesquisa de Campo realizada em três comunidades ribeirinhas do município de Boa Vista do Ramos/AM.

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a caçada de canoa – julho/agosto – é assunto do dia. À noite, por entre as árvores no igapó, o caçador desliza sua embarcação e da proa de seu casco, no foco da lanterna, a três ou quatro metros de distância, detona um balaço na cabeça da paca, tatu ou veado que vêm se alimentar à margem do rio. Quanto mais sobe o nível, mais árvores ficam dentro d´água e as frutas que caem no igapó vêm para as margens e os animais descem do centro da mata para comê-las no descer da água.

Paca, tatu, veado são mortos à noite quando descem para se alimentar Estando abastecidos de carne, o caçador e sua família podem se ocupar com outras atividades durante o dia. Mas nem sempre a carne de caça serve de alimento ao caçador. Seguidores da religião adventista não consomem a maior parte da carne de animais da região, juntam-se a esses, os indivíduos que caçam para comercializar a carne. Com o avançar da descida da água, as canoas (cascos) têm dificuldade de transitar no igapó e as árvores ficam expostas em terra. Em consequência, deixa-se essa modalidade de caçada.

O nível do rio permite à canoa ancorar no porto da roça e sem muita dificuldade a família traz a mandioca para ser transformada em farinha. Situação não verificada na época da seca. Com a perspectiva de maiores lucros, a criação de gado empurrou a roça para mais longe da casa. Os espaços para roça de mandioca cederam à formação de pastagem para gado, distanciando-se das residências.

Numa perspectiva ecológica, à semelhança do fogo**, entendo que a água foi incorporada por moradores das comunidades ribeirinhas como uma força natural em prol de “dominar” ou “controlar” a natureza. As margens dos rios, conforme a subida da água, são roçadas e a mata de igapó é derrubada. O desflorestamento às margens dos rios é auxiliado pela força da água. A vegetação cortada fica submersa. As “feridas” abertas por terçados, machados ou motosserras são suficientes para fazer apodrecer os caules cortados, não dando chances de sobrevivência à vegetação tragada pela água. No baixar do rio a área surge limpa para ser queimada e em seguida cultivada. As áreas de igapó, reduto de reprodução e alimentação de peixes, vão aos poucos desaparecendo do cenário geográfico, mas não da memória do pescador que usufruía dele.

A criação de gado, impulsionadora do desflorestamento nas áreas de várzea e de terra firme, fica comprometida nas grandes enchentes. A várzea é conhecida pelos criadores ao fornecer-lhes o pasto natural, entretanto o excesso de água proporciona prejuízos. As grandes enchentes antecipam aos criadores que façam o deslocamento do gado para terra firme. O prolongamento da enchente retarda a volta do gado para várzea. O pasto de terra firme dá sinais de sobre consumo. O campo “fica só terra”, é como se expressa o ribeirinho.

O rio dá sinais de parar de subir e começa a secar, com ele vem o período de estiagem no Amazonas e as cigarras, indicadores naturais, chichiam “chamando” verão. O pasto fica esturricado e as terras de várzea ainda não mostram sinais. O criador é obrigado a continuar a cortar capim que fica à superfície da água e fornecer ao gado que perde peso e enfraquece. Mas o problema continua. Na várzea o capim cultivado e o natural são arrancados ou soterrados com a terra trazida pela força da correnteza. O criador terá de plantar novamente e somente trinta a quarenta dias a área estará preparada para receber a boiada.

Entretanto as terras que vão emergindo em áreas de várzea de água branca, ainda de baixa consistência, é um risco ao gado que chega da terra firme. Enfraquecidos pela falta de pastagem, ficar atolado longe do olhar do criador é morte certa. Enquanto o capim da várzea não surge, a estiagem maltrata o capim de terra firme e a precariedade de pasto faz

** Goudsblom, J. em The civiling process and the domestication of fire, faz excelente reflexão sobre o domínio do fogo.

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morrer animais. Informações recebidas, em agosto/setembro de 2009, de pequenos criadores residentes na área onde coletamos dados para pesquisa de doutorado e de outros municípios do Amazonas confirmam as baixas nos rebanhos: morte por falta de pasto. Em campo presencie, fotografei carcaças de boi morto em consequência de morte por inanição. Urubus, indicadores naturais, identificavam onde o boi já estava sendo banqueteado ou na espera da morte. Sem forças para reagir ao processo natural de reciclagem, pude ver boi agonizando de dor. Olhos furados, anus e vulva dilacerados pelos bicos reforçados de urubus acelerando a morte do animal.

Na várzea, em grandes enchentes como a de 2009, muitas das residências ficam desabitadas devido a elevação do nível da água. O tráfego fluvial, que aumentou em quantidade, tamanho e força, colaborou para incomodar o ribeirinho arrancando tábuas de sua morada com o banzeiro advindo de seu deslocamento pelo rio. Plantios de culturas de ciclo curto são tragados. Enquanto a enchente leva “tudo”, o momento do recomeço é anunciado com a descida da água. É de conhecimento do amazônida que a descida da água deixa o solo de várzea fertilizado e propício ao cultivo. O gado que foi levado para terra firme, volta para os ricos campos de várzea onde se reproduzem e produzem leite e carne.

Nas enchentes, algumas mais outras menos, a água se aproxima da residência e com a continuidade da cheia a água traga a terra, por isso as palafitas. A cheia do rio repercute na organização das famílias, nas ações corporais das crianças e desperta atenção para outra situação. Conforme a água avança, em áreas baixas, principalmente aquelas mais próximas do centro da mata ou das cabeceiras, o teso da terra vai diminuindo, aproximando outros seres vivos dos humanos. Galinhas, porcos, carneiros e cães são pressionados pela natureza a buscarem abrigo cada vez mais próximo da casa onde a terra geralmente é mais alta. A busca pela manutenção da vida não se restringe aos animais domésticos. Assim, conforme a altura da área onde a casa está instalada, é possível constatar a aproximação de ofídios, aracnídeos, lacraias, formigas etc. Entre esses, os mais temíveis são: surucucu (Lachesis muta), surucucurana (Bothrops atrox), aranha caranguejeira, sucuriju (Eunectes murinus) e as formigas-de-fogo (por ex. Solenopses saevissima) que não deixam de incomodar os adultos e principalmente as crianças, que aproveitam o espaço a cada dia menor.

A formiga-de-fogo se espalha pelos arbustos, gramíneas e chão. Quando a água cobre seu reino é visto à deriva, sendo levadas pelo vento, as colônias de formiga em forma de círculo ou sem forma definida. Onde encontram apoio – tronco ou galho de árvore flutuando, capim – ptocuram sair da água. A tensão superficial proporcionada pela água não deixa a colônia submergir. Na passagem de uma base a outra, a tensão superficial proporciona às formigas fazerem pontes vivas. O entrançado delas, uma apoiando na outra, permite formar a estrutura da ponte, enquanto outras transitam por cima, entre as bases. No porto onde vai atracar a canoa, a pessoa sabe que se não amarrá-la afastada da margem, ao voltar terá o trabalho para eliminar as formigas. Crianças pequenas que brincam no pequeno espaço de terra são presas fáceis de suas mordidas, que aos prantos acusam estar sendo atacadas. No dia seguinte, impetigos se mostram espalhados nos corpos dos infantos.

As famílias não ficam passivas diante da situação, combatendo as agressoras com o tucupi (suco da mandioca Manihot esculenta Crantz que contém o ácido cianídrico), ou inflamável (diesel). Mas é o controle biológico a nos chamar a atenção. A formiga, conhecida vulgarmente na região como formiga-carão ou formiga-doida (Paratrechina sp.), denominação recebida devido à sua característica de incansável bisbilhoteira, trava uma batalha de vida ou morte pelo domínio do território contra a formiga de fogo. Com atenção voltada para a “oculta” batalha que se desenrola aos pés dos humanos, é

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possível observar a estratégia da formiga-carão, qual seja, atacar suas adversárias por meio de uma ação coletiva, que aos poucos tombam frente à desigualdade contribuindo na eliminação das formigas-de-fogo.

A enchente proporciona muita água para os peixes “escaparem” dos humanos ao penetrarem na vastidão dos igapós para reprodução e alimentação. Na vazante, são obrigados a acompanhar a descida da água e se revelarem. A diversidade ictiológica fica sob a mira dos pescadores, principalmente as espécies que não arribam, isto é, aquelas que não têm em sua estrutura genética o comportamento de fuga, acompanhando a descida do nível rio. Em pouco tempo, no pico da estiagem, a água de lagos, rios e igarapés reduzem sensivelmente, a ponto de navegarmos à noite em águas rasas, e sermos surpreendidos com peixes que saltam para dentro da canoa. Mas, enquanto a água baixa gradativamente, as espécies de peixes que se apropriaram dos igapós para reprodução e alimentação começam a arribar e são alvos, quando descobertos por onde passa o cardume, de pescadores e seus artefatos de pesca.

Hoje, com a aquisição de pequenos motores (rabeta), os moradores de comunidades ribeirinhas têm contato diário com a sede do município. Em épocas passadas esse contato se fazia de quinze a trinta dias. Hoje, através das estradas de rios, o motor de rabeta entra e sai de comunidades ribeirinhas com caixas de isopor abastecidas de peixes.

Na seca do rio o resultado da pressão sobre o ambiente se faz notar. A roça ficou mais longe e a madeira se encontra mais próxima do centro da mata. A vazante traz abundância de peixe, rema-se menos para capturá-los. Por outro lado, pouca água aumenta a distância para área de trabalho, ir ao município, sair e voltar para casa. Ameniza-se, por intermédios dos rios, a prática da retirada de madeira, até a próxima enchente.

A descida da água inicia e quem pretende retirar madeira deve se apressar, pois a configuração mudará o cenário das matas alagadas. As canoas cedem ao andar dos humanos, pois tudo será terra contínua e as distâncias aumentadas.

No início da descida das águas, vêem-se as marrecas (Dendrocygna autumnalis) sobrevoando em busca de terra para babujar (alimentar-se). É momento adequado de abatê-las. O retardo da vazante faz o bando de aves se concentrarem em trechos de terra que vão submergindo. “Distraídas” ao babujar, o caçador, na tocaia, dispara sua arma. As aves se espantam, mais ficam duas, três ou quatro batendo suas asas em sinal de terem sidas atingidas. Entretanto as relações mudam. Onde se cria boi, a marreca pode babujar mais despreocupadas. O criador sabe que o disparo da arma pode acertar o boi que está à margem do rio, nesse caso, a ave pode se alimentar pois não é perseguida.

A seca do rio é o período de fartura. Com pouca água, os peixes se mostram aos olhares dos humanos. É momento de extrair do rio, o que a natureza, na sua grande extensão de água, “escondeu”. É momento de vermos, em algumas comunidades ribeirinhas, que a maior opção de sua população ainda é beneficiar-se dos ciclos naturais, à base do extrativismo, mas em nome da subsistência.

Discussão dos dados

O Amazonas é apenas mais um ambiente em que se pode viver, porém como todos os ecossistemas, há necessidade de conhecê-lo para intervir “sem” que o desequilíbrio – homem e meio – ocorra. Não se pode afirmar, caso a população indígena não tivesse sido reduzida, se essa relação teria se mantido “tão” harmônica. É possível, caso a figuração não mudasse sua estrutura. Porém a história nos mostra que a ocupação da Amazônia, ou melhor,

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do Amazonas se deu num ritmo de exploração dos recursos naturais sem se pensar na reciprocidade ou no desequilíbrio. Em retrospectiva, conseguimos ver e analisar as intervenções humanas no bioma amazônico. O rio se tornou a estrada que trouxe os exploradores e os levou, junto com outros indivíduos, a embrenharem-se na floresta e habitarem as suas margens. A estrada de rio ainda mantém uma das principais vias de escoamento dos recursos naturais explorados e em exploração. Foi, em maior proporção, pelas estradas de rio, que o ápice da exploração do látex da Hevea brasiliense (seringueira) trouxe indivíduos procedentes de outros Estados para o interior do Amazonas. Foi, da mesma forma, o rio que possibilitou a migração desses extrativistas e de muitos de seus descendentes de volta à capital do estado em busca de vida melhor, dado a decadência da produção da borracha no Amazonas, em detrimento da produção asiática.

No Amazonas, região de clima quente e úmido, período de chuva e de sol, subida e descida da água, ferroadas de insetos, plantas tóxicas entre outras peculiaridades, exige de seus habitantes processos adaptativos. Moran (1994) agrupa os níveis de adaptação humana em aclimatação, ajustes de desenvolvimento e estratégias culturais. São os dois últimos a proporcionar ao amazônida viver melhor.

Nesse sentido, nascer e crescer na região é “vantagem” sobre os indivíduos procedentes de outras áreas, que nos faz compreender as “dificuldades” passadas pelos recém-chegados ao Amazonas. Assim, há de se entender que o ajuste de desenvolvimento, segundo Moran (1994, p.27) é o “. . . período que o organismo humano é capaz de se moldar às condições ambientais predominantes”, o que ele chama de plasticidade genética.

As estratégias culturais de vestuário, abrigo e comportamento, segundo Moran (1994, p.27), estão entre os mecanismos reguladores mais comuns. Eles aumentam as possibilidades humanas de sobreviver e viver com relativo bem-estar em ambientes variados. Essa última acompanha os posicionamentos de McElroy e Townsend (1979).

Os citadinos sob a pressão do rio

Ao olhar para as “vítimas” da enchente no Amazonas pode alguém afirmar

“que esse pessoal está acostumado com a enchente. Todos os anos o rio sobe e desce.” De fato, mas penso ser necessário fazer distinções. Foi observado no texto acima, indivíduos residindo à margem dos centros urbanizados, localizando suas moradas na extensão de rios que banham a cidade e dos igarapés que a cruzam. Outros residem nas extensões dos rios, paranás, lagos e igarapés cujo modo de vida está atrelado ao rio. Ao analisar a questão pelo aspecto da adaptação, aqueles procedentes da área rural do Amazonas e que instalaram sua morada próximo às margens das cidades estão mais adaptados: culturalmente e por meio dos ajustes desenvolvimento.

Porém nem todos são do Amazonas. Migraram em busca de emprego e melhor condição de vida sem o conhecimento da região: “Eu,* fala F. P. S., 55 anos, tenho trinta e três anos morando à margem do rio. Dois anos minha casa foi pro fundo. Mas a gente vai observando, vai analisando a água, a vazante e então levantei minha casa. Esse ano – 2009 – que a cheia foi maior que a de 1953, ela não foi pro fundo. Os vizinhos falam que eu estou numa boa, mas eles (os novatos que tiveram suas casas invadidas pela água, chegando a altura da janela, outras mais próximas do teto) não sabem o quanto eu já passei com minha casa dentro d´água. Dois anos não são dois dias.” * Atingido pela enchente. Morador do bairro da Glória em Manaus/AM.

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O depoimento sugere que os ajustes culturais advém de um processo de aprendizagem, experimentado ou por um processo longo, passado de geração a geração. E quanto mais envolvido o indivíduo estiver com a situação “menos” possibilidade de resolver o problema ele terá. Nesse sentido, o conceito de distanciamento (ELIAS, 1998), nos ajuda a entender que os ajustes culturais, propostos por Moran, são resultados dessa aprendizagem distanciada, isto é, ver o problema e procurar resolvê-lo ou conviver com ele, nesse caso a oscilação do nível do rio.

Com 85 anos, o Sr. Expedito, em 27 de julho de 2009, na comunidade onde originou minha tese de doutorado, mostra-me em um âmago de árvore, a marca, a golpe de facão, do nível da água da enchente de 1953, comparando com a que presenciou recentemente. Hoje, a tecnologia associa-se à experiência do ribeirinho e orienta para o devir. Enquanto o ribeirinho utiliza-se de seu conhecimento – por exemplo, limo esverdeando a água – pode-se dizer que dificilmente alguém chega numa área de terra baixa desprovido de conhecimento. Pode chegar um indivíduo “teimoso”, cujas relações de poder subestimem a força da natureza. Se alguém vai a uma área de várzea ou área baixa, não vai, como segundo Elias (1998), uma tabula rasa, isto é, não vai por si só construir um conhecimento. No Amazonas, o Serviço Geológico do Brasil (CPRM-AM) proporciona aos ribeirinhos, desde 1989 (www.cprm.gov.br) o que se designou tecnicamente como “alerta de cheia”. O serviço possibilita às pessoas se programarem para o devir, principalmente, em área cuja a explosão demográfica ocorreu às margens dos rios e igarapés.

A experiência proporciona aos criadores de gado se prepararem para deslocar os animais ao pasto de terra firme ou construírem marombas. Mas o alerta de cheia vai orientando a população com base em previsões empíricas. Pontos de mensuração da subida do nível da água ao longo dos principais rios do Amazonas indicam o nível da água à população e possibilita-lhes se organizarem antes que a mesma cubra a terra e sua casa. Hoje, os dados científicos colaboram para organização de construções observando o espaço e o nível topográfico em que vai ser erguida. A experiência do ribeirinho lhe ensina que a casa deve ser construída em área de terra baixa, não menos de um metro de altura do chão. Mas se a marca da água está explicitamente se mostrando no tronco de árvores, então dois ou cinco metros do chão pode ser uma altura que a água não lhe cause prejuízos: “meu filho, (argumenta o ribeirinho a orientação de seu pai) quando você casar construa sua casa acima da enchente de 53. Você vê (ao me dirigir a palavra), a água ficou a uns setenta centímetros do assoalho.*” olhando para a marca da água impresso nos esteios de sua casa),.

O Roadway, principal porto flutuante de Manaus, onde se marca, desde 1902 o nível de subida e descida da água, se tornou ponto turístico. Muitos queriam ver se a enchente de 2009 superava a de 1953. Nossa geração ou alguém dela, “comemorou” quando o fato se concretizou: “A enchente de 1953 era uma lenda. Eu não posso falar dela, não foi de minha época. Agora, essa sim, barrou todas elas.” Vivemos mais de 100 anos para presenciarmos, de perto, impacto do ciclo das águas sob a vida de muitos. Esse foi um tempo “longo”, que nos fez esquecer da força da natureza e subjugá-la. O aumento populacional culminou com a necessidade de construir moradias e as margens dos rios foi grande atrativo para ocupar um espaço “vazio”. Manaus presenciou a migração de muitos indivíduos e o povoamento de áreas às margens do rio e de seus igarapés. Estimulados pela oferta de

* Entrevista realizada em 23/08/09, com morador da comunidade de Terra Nova/Am

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emprego na Zona Franca** e Pólo Industrial de Manaus, aqueles que levavam uma vida “pacata” na zona rural, migraram para sede da capital do Estado. Enquanto o interior do Estado esvaziava, a capital inchava.

A explosão demográfica impulsionou, às margens de rios e na área de igapós dos igarapés de Manaus, o desflorestamento para dar lugar a residências. Sem sistema de esgoto apropriado, capitação de lixo orgânico e inorgânico a água foi poluída e repugnada: “aqui nesse igarapé a gente tomava banho, pescava. Eu cheguei aqui em 1974 e só tinha três casas. Eu peguei tracajá aqui. Prá cá (aponta para o lado oposto) tinha buritizal, era igapó aqui. Hoje o igarapé serve de depósito de lixo.”*** E você trabalhou no Pólo Industrial? Sim, confirma o informante e relaciona três empresas onde foi funcionário.

Quem pôde ampliar sua morada, o fez em direção a água ou ao rio, pois a rua – tráfego de pedestre, veículos etc – em algumas áreas é ou era a fronteira de ocupação do solo indicado por órgãos públicos fiscalizadores, ficando o espaço “vazio” (público, “devoluto”, porém dos rios, das aves ou melhor da natureza) em direção ao rio a ser apropriado a fim de atender aos anseios da família que cresce ou crescia ou para receber mais parentes procedentes do interior.

Para compreendermos esses fatos, faço uso dos critérios, derivados da história econômica, de crescimento intensivo e extensivo utilizado por Goudsblom (2002).

Segundo Goudsblom (2002, p. 25),

Analiticamente os conceitos de crescimento extensivo e intensivo têm significados distintos. Empiricamente, entretanto, tais conceitos não necessitam excluir um ao outro. Eles às vezes podem se contrapor e outras se apoiarem. A real interação dos conceitos é uma questão para uma investigação empírica. Na história econômica, o crescimento extensivo se refere ao aumento da população ou demográfico, portanto, refere-se também ao sentido geográfico. O crescimento intensivo refere-se ao aumento do padrão de vida: aumento da renda per capita.

Crescimento intensivo é também, segundo Goudsblom, incorporação de mais conhecimento. Nesse sentido, a observação em campo das condições de moradia, sistema de esgoto, destino do lixo e dejetos humanos, permitem-nos entender que o aumento populacional (crescimento extensivo) e melhoria da qualidade de vida (crescimento intensivo) não se apoiaram. O aumento populacional às margens dos rios e igarapés trouxe desmatamento, poluição e condições de moradia precárias: “Aqui era bom. Aqui era uma jauarizal e o pessoal pegava tambaqui. Antigamente era igapó cheio de árvore. A gente tomava banho, pulava das árvores no rio. Agora, quando o rio seca a gente encontra geladeira, fogão. Tudo jogam na água. Aqui se a pessoa cair na água morre na hora.*”

Essa não era, mas agora passou a ser a realidade às margens dos igarapés e rios de Manaus. Na semana do meio ambiente, a prefeitura do município “comemorava” as toneladas de lixo retiradas dos igarapés. Em campo, pude ver e registrar a quantidade de material inutilizado acumulado sobre a água, por entre e por baixo de muitas casas.

Em início de agosto a limpeza dos igarapés continua com as dragas recolhendo toneladas de lixo. Recolhidos, são transportados por balsas e caminhões. O

** Congresso Nacional estendeu até 2023 a vigência dos incentivos fiscais estabelecidos no Decreto-lei nº 288, de 28 de

fevereiro de 1967, e na legislação complementar. (http://www.camara.gov.br/sileg/integras/520937.pdf)

*** Entrevista a J. Passos de 48 anos. Morador do igarapé do Segundo (Bairro de Petrópolis em Manaus) há trinta e cinco anos. Migrou do município de Itacoatiara/Am.

* Entrevista (01/08/09) ao Sr. F. P. S., 53 anos. Mora à margem do rio a 33 anos.

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governo atrela à mídia campanha educativa. O trabalho de conscientização e possivelmente o distanciamento, é fator decisivo para amenizar o efeito danoso no trato com a água e o ambiente de forma geral. As conseqüências ao meio ambiente são nefastas e pagamos ou eles** pagam por isso. O conhecimento – crescimento intensivo – deve apoiar e não se contrapor ao crescimento extensivo como vem se mostrando ao longo do texto. Mas entendemos através da teoria eliasiana que no entrecruzar de metas e objetivos de cada um, desencadeia o processo cego. Ninguém ao ocupar as margens de rios e igarapés, esteve intencionalmente voltado para causar danos ambientais. Cada indivíduo, em sua figuração, deslocou-se para a sede do município em busca de vida melhor. Na descida das águas (em setembro/2009), ao andar por baixo de palafitas a seis metros do chão e o mau cheiro que exalava do ambiente, registrei, talvez para meus netos, o descuido com o ambiente ao ver a quantidade de lixo acumulado entre as casas pernaltas. O lixo pode ser conduzido a cem, duzentos metros até o ponto onde os carros de lixo possam captar, o que poucos se submetem a fazer tal esforço. Porém, como essa população vai construir uma fossa em área baixa sem que seja tragada pela água?

Em consequência da enchente de 2009, cogitou-se transferir as sedes dos municípios de Anamã, Canutama e Barreinha no Amazonas para áreas de terra firme. Nos municípios onde a enchente perturbou a vida de muita gente, o poder público disponibilizou abrigos, entretanto poucos queriam deixar suas residências, pois “o pobre já não tem nada e se a gente deixar a nossa casa vem outros e levam tudo o que a gente tem.”

Na capital do Estado, o Programa Social e Ambiental dos Igarapés de Manaus (PROSAMIM)***, anuncia a retirada de famílias residindo às margens dos igarapés e rios que tiveram suas casas alagadas. Vigiar a ocupação do solo é um fator, no processo social, que pode evitar o retorno do crescimento desenfreado às margens dos igarapés e rios. A estrutura física desencadeada pelo PROSAMIM é um forte elemento para manter distanciado indivíduos que queiram ocupar novamente as margens igarapés que cortam a cidade de Manaus.

Na “área” dos alagados observa-se margem de rio, onde antes se ancorava barcos, que foi tomada por construção de casas. E, de canoa, no mês de agosto, após a água ter baixado um metro, ao retorna a área, podia-se ouvir o toc, toc do martelo, anunciando o repregar de tábuas danificadas pela água. Em setembro, embora o mau cheiro ainda permanecesse, os moradores continuavam a reparar os danos causados pela enchente do rio.

Penso que o momento é oportuno para frisar outro motivo, por parte do governo, no empenho para deslocar os moradores das áreas de rios e igarapés, como vem acontecendo. Trata-se de Manaus ter sido escolhida subsede da copa de 2009. A estruturação física é uma exigência para receber os turistas que vêm em busca do grande espetáculo esportivo. O aglomerado de palafitas demonstra o descaso com o ambiente e desorganização do sistema habitacional por parte do poder público. Quem vem assistir ao grande espetáculo

** Os pronomes pessoais como modelos figuracionais (ELIAS, 1980), ajuda-nos a compreender nossa posição na discussão do

problema. *** Veja no site (http://www.prosamim.am.gov.br) a proposta do programa que vem sendo desenvolvido desde 2006 pelo Governo do Estado do Amazonas: o saneamento, o desassoreamento e a utilização racional do uso do solo às margens dos igarapés de Manaus. O programa possui três opções para a desocupação da moradia a margem do igarapé: Indenização, Bônus Moradia e Transferência para os conjuntos Nova Cidade e João Paulo II, em Manaus. Ninguém deve residir às margens de igarapés. Hoje se vê áreas de lazer, conjunto habitacional no lugar das antigas palafitas. Não é possível observar se há estrutura de tratamento de água utilizada por esses moradores.

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mimético, usufruindo do seu tempo livre e liberto de obrigatoriedade (ELIAS e DUNNING, 1992), não deseja encontrar condições de vida precária. Há de se observar em Manaus mudanças na estrutura física e social para atender ao turista que vem em busca de lazer. As observações nos instigam à nova pesquisa de campo, na perspectiva de mudança de comportamento no trato com o meio e a chegada – migração – de indivíduos procedentes do interior do Estado e de Estados vinhos em busca de trabalho e de vida melhor. Não sabemos ainda, a direção a ser tomada por essas pessoas em busca de moradia. Uma coisa é certa, não pode ser em direção ao rio ou aos igarapés.

Os fatos expostos nos instigam a analisá-los com base na tríade dos controles básicos proposto por Elias (1980, p. 171). A tríade sugere identificar o estágio de evolução social a longo prazo. São eles: as possibilidades de controle dos acontecimentos naturais; as possibilidades de controlar as relações interpessoais e pela possibilidade de autocontrole. Enquanto não controlarmos as enchentes, temos que conviver com o processo natural sem nos provocar tragédias. Enquanto a estrutura social estiver em níveis diferenciados, não conseguiremos relações sociais harmônicas, gerando tensões e conflitos. Enquanto não nos conscientizarmos de nossas ações, para o maior distanciamento, há necessidade de temos ou eles terem de ser vigiados por uma força de coerção externa e interna.

Para finalizar esse trecho da discussão, observo que o suporte justificativo do crescimento extensivo – explosão demográfica – na capital ou às margens de rios e igarapés, teve respaldo na busca de emprego e na procura de melhor qualidade de vida. Zona Franca e posteriormente o Pólo Industrial de Manaus (PIM), foram atrativos que o interior do estado não oferecia.

Em campo, na área de pesquisa, encontram-se famílias cujo número de filhos é de seis ou mais. Família grande e organizada é vantajoso no modo de vida onde as práticas socioculturais é de cultivar a terra e ter produção de farinha; criar gado, ou o extrativismo da flora ou da fauna. Família grande, organizada supera em produção outras em número menor. Maior roça e produção de farinha, maior campo e maior quantidade de boi, por exemplo, são parâmetros sociais que indicam relações de poder. Dessa forma há de ser questionado qual é interesse, por parte de órgãos públicos e privados, a estimular a população ribeirinha a evitar, por métodos de anticoncepção, um maior número de filhos entre casais novos.

Não devemos observar os moradores de comunidades ribeirinhas em situação estática. As pessoas têm anseios, aspirações que a zona rural não conseguiu fornecer. O processo de integração, televisão, telefone celular entre outros meios presentes na vida do ribeirinho, vem estimulando, não só na área que pesquiso como em outras comunidades, o deslocamento de filhos ou de famílias para capital do estado ou para as sedes dos municípios do Amazonas em busca de vida melhor. Não é confortável para jovens e adultos, estar sob o sol a uma temperatura de 390C, 400C, escavando a terra para plantar mandioca e posteriormente fazer farinha. Se o ribeirinho tiver condições ele compra a farinha do seu compadre. O crescimento intensivo de alguns que migraram para as cidades se faz sentir em seu lugar de origem ao observar a ampliação do pasto, aquisição de mais bois, advindo de seu maior poder de compra: “somos oito irmãos. Quatro trabalham em Manaus, dois em Roraima e dois ficaram no interior com meus pais.” E vocês ajudam seus pais. “Sim. Compro boi para deixar para minha mãe, caso haja problema pode vender. Mando dinheiro para fazer campo. Inclusive quando eu sai agora de lá, minha mãe ia fazer campo, porque ela estava com

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dificuldade de capim para os bois. Eles falaram que tinha que fazer mais campo.” * E alguém de vocês trabalhou no distrito? “Minha irmã, meu irmão e o outro meu irmão trabalha até hoje.”

Em 2008 a imprensa divulgou e encontra-se em sites** a manchete: “Pólo Industrial de Manaus reduziu desmatamento no AM em 70%, diz estudo resultado de uma pesquisa”, concentrado no período 2000 a 2006. É responsabilidade da investigação científica revelar dados, e o desmatamento no Amazonas é assunto a permear as discussões ambientais da região. Entretanto, não devemos nos deixar ofuscar pela manutenção da floresta em pé, sem levarmos em consideração outros fatores inerentes no processo social apresentados acima.

Entende-se que o processo social não é estático e não segue em uma única direção. Se a floresta foi menos derrubada em consequência das ofertas de emprego no PIM, não se pode dizer o mesmo ao observar as margens dos rios e igarapés de Manaus. O desflorestamento e a poluição de suas águas é parte do processo migratório e o comportamento de indivíduos em relação ao ambiente. O fato nos induz a deduzir que as políticas públicas de fixação do homem em seu lugar de origem não foram ou ainda não são satisfatórias para atender as aspirações individuais e coletivas de ribeirinhos. Não se pode deixar de considerar, da mesma forma, que a oferta de emprego, o anseio de vida melhor atraiu para o Amazonas indivíduos de outros estados.

Há, também, de levarmos em consideração que a queda de faturamento***, demissões na Zona Franca (ZFM) e Pólo Industrial de Manaus (PIM), repercute na rede ao qual o indivíduo está inserido. Dessa forma, nas configurações da ZFM e do PIM, há indivíduos em desvantagem. Quem mora sobre a água poluída, mau cheiro, temperatura elevada, esgoto sanitário inadequado não está lá porque gosta. Está por falta de condições financeiras. Nesse sentido, levar em consideração a redução do desmatamento no Amazonas, não é o selo a ser defendido como uma proposta ecológica, sugerindo, conforme a reportagem, que o Pólo Industrial de Manaus, passe a ser denominado de Ecopim. Essa concepção seria um atrativo de comercialização de seus produtos no mercado nacional e internacional, tendo como bandeira os “bons” tratos com a floresta amazônica. Há de ser lembrado que o PIM não foi erguido sobre nuvens. Toda edificação do PIM, sua expansão continuada e a estrutura surgida – social e física – em seu em torno, não foram sobre árvores. A floresta tombou e a estrutura de concreto se fez notar.

O processo de migração e ocupação dos rios e igarapés às margens das sedes dos municípios acarretou, em muitas comunidades ribeirinhas, o desfazer de terras. Famílias venderam suas terras com o objetivo de morar próximo a centros mais urbanizados. As terras comercializadas foram adquiridas por alguém. Há de indagarmos, nesse processo migratório, se a concentração de grandes extensões de terras não se limitou àqueles, cujo padrão de vida – crescimento intensivo – possibilitou. Na área de pesquisa, há exemplos de indivíduos, grandes proprietários de terras – “latifundiários” – em consequência da aquisição do deslocamento de famílias para a sede do município. A análise configuracional (ELIAS, 1980) ajuda-nos

* Entrevista realizada em 07/09/09 com a S.D., de 36 anos. Descendente do Distrito de Pedras, subordinado ao Município de

Barrerinha/AM. **http://www.globoamazonia.com/Amazonia/0,MUL758962-16052,00 POLO INDUSTRIAL DE MANAUS REDUZIU

DESMATAMENTO NO AM EM 70 DIZ ESTUDO; http://www.votebrasil.com/noticia/politica/polo-industrial-de-manaus-reduziu-desmatamento-no-am-em-70-diz-estudo

***“ Emprego e vendas no PIM são os mais baixos em cinco anos.” É o que informa, através de gráficos a reportagem no Jornal Diário do Amazonas. Terça-feira, 11 de agosto de 2009. Caderno Amazonas, p. 5.

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compreender o processo em sua complexidade.

Os ribeirinhos e o rio Na sequência do texto vimos que o ciclo das águas orienta a vida do

amazônida inserido em figurações. O tempo cíclico é marcado por referenciais naturais e proporciona uma gama de símbolos apreendidos no calendário. Coleta-se, planta-se, cria-se, pesca-se, caça-se, extrai-se madeira na subida e descida da água. A água facilita ou dificulta as práticas socioculturais, mas nem por isso se deixou de habitar o Amazonas. Com as novas aspirações, as práticas extrativistas, em nome da subsistência, se intensificaram e o rio é a estrada que orienta as práticas graças as redes invisíveis ampliadas, atrelada ao processo de integração. Há de compreendermos que ninguém, até o momento, foi autuado, multado ou preso por distúrbio de comportamento ao ser surpreendido por conduzir produtos resultantes da prática extrativista, por derrubar mais árvores e vendê-la em forma de madeira, matar mais animais silvestres e comercializá-los. Se reduzirmos nosso olhar às pequenas comunidades ribeirinhas, “não” teria lógica ou não se justificaria a escassez de espécies – da fauna e da flora – em muitas delas. A análise configuracional nos mostrar que nas redes de interdependências ampliadas, há em algum lugar, indivíduo ou indivíduos dispostos a pagar por símbolos provindo da “generosidade” da natureza, por exemplo: a melhor madeira, o maior peixe ou a carne de caça. Nesse sentido, sustento que há uma rede invisível* a alimentar práticas extrativistas e predatórias. Entretanto percebemos parte dessas redes à medida em que membros envolvidos deixam de ser contemplados com seus benefícios ou quando há falha no “entrelaçar” dessas redes.

Enquanto não se estabelece um preço para manter a árvore em pé, como forma de captação de gás carbônico, mais vale um assacuzeiro ser comercializado em forma de bóia do que povoando a floresta de várzea. Mais vale a itaubeira, o jatobazeiro, a maracatiara em peça de madeira, para atender às necessidades imediatas e as aspirações dos ribeirinhos, do que embelezando a floresta. “Sem” sabermos a procedência, chega em nossas casas, em forma de portas, janelas, armários, mesas, cadeiras, estacas para cerca, esteio de casa, mourão para curral etc, a madeira de árvores que “queremos” ver em meio a diversidade florestal. O resultado do extrativismo atende indivíduos “sem” que se dêem conta do impacto ambiental, não só circunscrito ao perímetro das comunidades.

A pesquisa de campo nos revela comunidades ribeirinhas, a exemplo de nossa área de investigação, que nas relações de poder, o apego afetivo (ELIAS, 1994) marcado nos laços de compadrio, familiares e amizade, permitem aos seus moradores se beneficiarem dos recursos naturais sem que o conflito se instale. Há tensões, mas acaba-se por aceitar o comportamento do outro. Entretanto o mesmo não se aplica àqueles que são de fora. Sem permissão, o conflito pode se instalar se o indivíduo ou indivíduos chegarem numa comunidade e em excesso retirarem madeira, peixe, caça. Dessa forma, conhecendo os moradores e boas ofertas de parceria, o rio leva o indivíduo de fora e o traz com seu barco abarrotado de produtos naturais.

* Notícias em jornais nos permitem observar o efeito das redes invisíveis sobre a exploração da madeira na floresta amazônica

e o rio é estrada que a conduz. Na reportagem, observa-se que a apreensão é no pico da enchente. Período de melhor navegabilidade: “Cinco barcos foram presos pelo Ibama, em Manacapuru, com 116m3 de madeira ilegal.” Fonte: Jornal Amazonas em Tempo – Manaus, Quarta-feira, 3 de junho de 2009. Caderno Dia a Dia, p. C2.

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A incorporação de mais energia (GOUDSBLOM, 2002) à população ribeirinha, sua inserção em figurações nos faz notar o efeito sobre o ecossistema. O conhecimento da região, força motriz, associado à motosserra impulsionou a derrubada seletiva de árvores para a comercialização. Conduzidas pelos rios, atende ao crescimento extensivo e intensivo em espaços urbanizados.

A potencialização da energia da motosserra e do uso do fogo proporcionou maior desflorestamento, tanto em área de terra firme como em igapó. Na primeira, a mata derrubada cedeu espaço para criação de gado, empurrando a floresta e os animais silvestres para mais longe do convívio social, como uma forma de dominar a natureza. No segundo, o desflorestamento da área de procriação e alimentação de peixes e outras formas de vida aquática e de quem vive desse ambiente, cedendo lugar para pastagem de gado. Pois o boi “é para manter nossas necessidades. Comprar rabeta, roupa, rancho. Outra coisa se você for fazer não tem dinheiro na hora. Mas o boi é só você combinar e o cara paga na hora.*”

No Amazonas os criadores sabem que têm de ter pasto em terra firme e em terra de várzea. O ciclo das águas é um indicador natural, marcado no tempo social. Possivelmente, no Amazonas, haverá interesse de pequenos e grandes criadores em derrubar mais área de mata primária para formação de pastagem, preparando-se para o devir. A aprendizagem dolorosa advindo da morte de muito gado por falta de alimento, faz da enchente de 2009 uma referência à observação distanciada. Torna-se indicador natural para se repensar práticas, no Amazonas, que se orientam pelos ciclos naturais

A carne de caça que servia ao consumo da população local, hoje se vê acondicionado em caixa de isopor com gelo para ser comercializada na sede dos municípios. O interesse em iguarias e a memória palatina de quem mudou para centros urbanizados ainda é uma forma de se manter o consumo da carne de animais silvestres através da prática extrativista. A subida das águas e a formação de pequenas ilhas é o momento propício para tal atividade. É momento que a rede invisível de consumidores, cujo hábito alimentar está arraigado na memória palatina, faz sumir do porão da canoa, do barco ou da mesa do feirante, a carne do animal silvestre que se tornou um comércio rentável.

A rede invisível de consumidores mantém a sobrepesca na descida das águas. Diariamente moradores de comunidades, à semelhança de nossa área de investigação, se dirigem para a sede do município com suas caixas de isopor abastecidas de peixe, para atender ao crescimento extensivo que se figura nos centros urbanizados. Técnicas como a batição, por mais que seja proibida, é muito comum. Após impedir, com redes ou malhadeiras, a passagem dos peixes, bate-se n´água e eles vão de encontro ao artefato. Peixes de todos os tamanhos, conforme as dimensões da malhadeira, são capturados.

Práticas como essa, ao longo das décadas, vêm se mostrando danosas ao ambiente aquático, repercutindo em outras espécies que vivem dele. Os resultados negativos serão sentidos pelos humanos. Com base nos resultados, foi criado o defeso* para proteger a diversidade ictiológica. Esse conhecimento, gera, na concepção de Elias (1998) o distanciamento. Mas a pesquisa de campo nos possibilita afirmar que não é tão simples assim. A sociedade não vive em harmonia e na calada da noite, onde a perna ou o olho da lei não alcança, lá estão os indivíduos “transgredindo” regras, pois sabem que a rede invisível sustenta tal prática.

* Entrevista (05/09/09) ao sr. M. A, 35 anos. Morador da Comunidade Rural Cristo Reis/ Boa Vista do Ramos/AM. * O defeso surgiu no Nordeste em 1991 para proteger algumas espécies com o fim de procriação. Não podendo ser pescadas e

nem comercializadas. Em 1998, o defeso convergiu para águas do interior – rios, lagos, igarapés.

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Entretanto, dado o nível de diferenciação social nos centros urbanizados, as espécies comercializadas nem sempre são acessíveis a todos. Na zona rural, em comunidades ribeirinhas, a figuração de pescadores e caçadores possibilita o seu consumo advinda da captura. Na sede do município quem não tiver condições financeiras não consome o que quer. Ficam para os mais poderosos os peixes nobres e de maior tamanho: tambaqui**, pirarucu, tucunaré-açu, quelônios (tracajá, tartaruga), entre outros. Há um preço para quem busca vida melhor nos centros urbanizados, principalmente quando imerge em uma figuração onde as relações de poder o deixam no lado baixo da balança.

A pesquisa de campo nos permite considerar que o crescimento extensivo (aumento demográfico) e crescimento intensivo (melhor condição de vida) “não” deram ou pouco deram atenção ao sentido de reciprocidade entre o homem e meio, como é possível se notar entre os seus primeiros moradores: os indígenas.

A subida ou descida do nível do rio atrela-se, hoje, mais do que antes, não apenas a “prejuízos” proporcionados aos humanos. Nos apropriando dos pronomes pessoais como modelos figuracionais (ELIAS, 1980) conseguiremos entender o nós ou eles ou eu – seres humanos – a se beneficiar desse ciclo. A rede invisível de interdependência ampliada continua a estimular a exploração da natureza e o rio é uma referência – na subida ou descida das águas – para tais práticas. Não se deve apenas reduzir a análise ao fato observado a um comportamento desajustado de indivíduo (os), sem levar em consideração as redes que se ampliaram com o processo de integração. A análise figuracional nos possibilita entender que a discussão ambiental, levando em consideração o comportamento humano ou a organização social tendo como base o rio ou a água, é complexa. Considerações finais

A vida estressante de grandes centros urbanizados tem impulsionado indivíduos com poder aquisitivo maior – crescimento intensivo – a comprar ou construir sua morada em frente ao rio, beneficiando-se de sua beleza e dos momentos bucólicos no esvair do sol, afagado por aroma de flores e cantoria de pássaros. Mas a pesquisa de campo nos mostra outra realidade. A ocupação de um espaço “vazio” – margens de rios e igarapés – no Amazonas, foi em detrimento, dado a figuração, de muitos indivíduos não terem outra escolha. A explosão demográfica – crescimento extensivo – fez do ambiente – ar, água, vegetação – antes aprazível de ver, ouvir, sentir, inspirando qualidade de vida, tornar-se repugnante e habitado por indivíduos “sem” outra opção.

Cabe verificar se o comportamento diante da apropriação do rio e o uso da água e a sensibilidade frente ao ambiente é uma reprodução da relação homem e meio, verificada no local de origem daqueles que migraram para capital do estado e sedes de outros municípios amazônicos, ocupando as margens de seus rios e igarapés. Caso a suposição seja constatada, há um longo caminho nas discussões ambientais na intenção de mudar o comportamento frente ao ambiente. Isto implicar dizer que não basta, da mesma forma, deslocar o indivíduo para outra moradia, sem levar em consideração seu comportamento.

Observa-se hoje, mas do que antes, que a pressão para habitar as áreas de igarapés e rios é maior. Nesse sentido se vê Manaus crescer ou expandir as edificações vertical

** Em agosto de 2009 verifiquei em feiras de Manaus, para orientar o leitor, o preço do tambaqui. Peixe de 6 e 8 quilos

variando de R$ 120,00 e R$ 150,00. Em outro momento, pude anotar em minha caderneta, na certeza de poder usar, o preço do tambaqui de 20 quilos, no valor de R$ 350,00.

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e horizontalmente. Verticalmente surgem, bloqueando o nascente e o poente do sol, condomínios em áreas nobres da cidade. Em maior proporção expande a área urbana de Manaus no sentido horizontal, não em direção ao rio, mas em sentido da floresta. Áreas que antes se definia como rural estão dentro do perímetro urbano. Dessas áreas algumas foram ocupadas pelo que se define tecnicamente de invasão de terras e outras pela especulação imobiliária na edificações de condomínios fechados a atender o crescimento intensivo que busca vida melhor, fugindo da cidade para ficar mais próximo à natureza. Esse fato se faz notar no ambiente o processo de deteriorização de novos igarapés e áreas verdes para atender ao crescimento extensivo. Nota-se, assim como ocorrido em outras áreas da cidade, os igarapés que antes serviam a espaço de lazer dos manauaras, se encontram poluídos, impulsionando a população a buscar, cada vez mais distantes, outros de águas límpidas.

Com referência a enchente de 2009, há de ser investigado se é apenas parte do processo natural ou está atrelado às influências do processo social. O fato é que a enchente – processo natural – toma seu rumo, não pede licença e tem vida própria. Vale lembrar que na enchente de 1953 os recursos naturais não estavam tão explorados como hoje e a população no Amazonas era inferior à dos dias atuais. Entretanto a realidade, em outras partes do planeta, sugere que a relação homem e meio vem ocasionando desequilíbrio. A luta pelo poder fez o homem detonar e experimentar mais bombas atômicas e seu efeito mecânico e químico foram sentidos pelo ambiente. Em estratégias de guerra, atearam fogo em poços de petróleo e o seu calor, fumaça e efeito químico, trouxeram danos ao ambiente. Pelo mundo afora, mais florestas foram dizimadas para atender ao crescimento extensivo. Queima-se mais combustível para potencializar a energia em nome do progresso e de nosso lazer. São esses, e muito outros elementos imbricados no processo social, a serem investigados como influenciadores ou não da subida do nível do rio no Amazonas. Se os efeitos sobre os humanos e não humanos foram constatados na enchente de 2009, deve-se aprofundar as discussões ou esperar, na continuidade do ciclo, uma em proporção maior a superar a que presenciamos.

Aprendemos com a cheia de 2009. Não que não tivéssemos conhecimento, pois em retrospectiva, há 56 anos, a enchente de 1953 nos proporcionou experiência. Com o baixar do nível d´água presenciamos outros problemas: a necessidade de reconstrução da estrutura física do espaço urbanizado e cuidar da saúde da população. A água nos mostra o lixo despejado pelos humanos às margens dos rios e igarapés que circundam áreas mais urbanizadas dos municípios. O acúmulo do lixo atrai roedores e outras fontes causadoras de doenças, sendo necessária a monitorização pelos órgãos públicos. Muitas fossas ficam submersas nas enchentes. Tragadas pela água, despejaram no rio coliformes fecais. Resíduos químicos, metais pesados, óleo diesel se misturam com a água, poluindo-a e dificultando sua utilização.

Enquanto a natureza segue seu rumo sem pedir licença, a natureza humana segue seu rumo, mas não em linha reta, pois espera-se que o ato de pensar, analisar e refletir permitam distanciar-se e ver o desequilíbrio em curso. O aumento populacional e a “necessidade” de ribeirinhos convergirem para as sedes dos municípios em busca de vida melhor são situações que influenciaram a ocupação de terras baixas, muitas das quais por invasões. Cabe ao poder público direcionar políticas – planejamento urbano – para evitar situações desagradáveis aos indivíduos que margeiam os municípios, construindo suas residências às margens de igarapés e rios. Estabelecer uma cota topográfica, com base na enchente de 2009 são medidas preventivas e que indicam organização social. Vigiar o espaço e urbanizá-lo pode vir a colaborar para distanciar indivíduos na intenção de ocupar as margens dos igarapés e rios que banham Manaus e em outros municípios do Amazonas.

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A enchente perturba a vida de muitos ribeirinhos, mas outros estão em suas configurações, nas redes invisíveis, beneficiando-se do avanço das águas. No avanço das águas, da mesma forma, se apropriando do conceito de distanciamento, deve-se estimular a reposição de espécies em áreas onde se detecta a escassez. Pode-se orientar o madeireiro, no período da enchente, ao ir extrair madeira, levar em sua embarcação, mudas de espécies e plantar cada vez mais no centro da mata. Tal ação pode colaborar para o repovoamento da floresta, a valorização e a perspectiva dos descendentes usufruírem das árvores plantadas.

A medida “ideal” do ciclo das águas permite aos humanos se beneficiarem. Todos os anos planta-se e colhe-se, entretanto o modo de vida em relação aos ciclos naturais pode ser um risco. Perder tudo em consequência de ciclos naturais não é vantajoso no jogo social, principalmente para aqueles cujo poder aquisitivo dificulta recuperar o perdido. Dessa forma, conhecimento – ciência e tecnologia – de acesso pelos ribeirinhos, torna-se essencial para o repensar de determinadas práticas socioculturais, que se tornam, algumas delas, predatórias.

Na história do Amazonas a marca da água e o uso do rio é um fato. Nos instiga a observar, na atual discussão ambiental, no que se refere ao trato com a água, se que quem vive na abundância da água – famílias ribeirinhas por exemplo – tem o mesmo nível de percepção e sensibilidade de quem vive na escassez de água ou na escassez de água potável.

No texto, procurei apresentar consequências “positivas” e “negativas” da oscilação do nível do rio. Obviamente determinados assuntos devem ter espaço para uma maior discussão. Mas foi possível evidenciar que por intermédio desse ciclo a mata está sendo empurrada para mais longe e se faz sentir maior pressão sobre determinadas espécies de árvores, assim como sobre alguns animais silvestres e peixes, em consequência do crescimento extensivo. A marca da água e o uso do rio, no Amazonas, é um fato na exploração dos recursos naturais, possibilidades de ascensão social e domínio da natureza.

As discussões e ações em prol do ambiente mostram-se como resultado de uma análise distanciada e em retrospectiva. Vimos o que “não” conseguimos ver quando do processo em curso. O que fizemos, em nome do progresso, dominando a natureza “sem” pensar em seu efeito bumerangue faz parte de um processo cego. Hoje, a sensibilidade frente ao ambiente busca se aproximar, pelo menos no discurso, do sentido de reciprocidade. Com base na teoria eliasiana, esse revirar de percepção sobre o ambiente é um componente de um processo civilizacional em curso.

A enchente do rio vai se despedindo, deixando para trás um rastro de prejuízos a humanos e não humanos. No ciclo natural, após a “grande” enchente a estiagem se faz sentir no Amazonas. Principalmente nos meses de setembro e outubro, estaremos com atenção voltada para os dias mais quentes, escassez de água e a necessidade de captá-la e armazená-la. Gastaremos mais energia, combustíveis e água. Assim como a subida do rio, o período de estiagem é propício a muitas práticas, entre elas a derrubada da mata, queimadas, caçadas, pescarias que são atividades típicas do modo de vida do ribeirinho. É momento de atenção, pois a estiagem é propícia para se queimar a floresta.

Por fim penso ser uma alternativa analisarmos o Amazonas pelo viés configuracional. Esse modelo predispõe entendermos indivíduos inseridos em redes de interdependências. Indivíduos com valências abertas a configurar-se em outros níveis dado o processo de integração em curso. Entende-se que a caça, a pesca, a extração da madeira e outros produtos naturais são práticas socioculturais de subsistência no modo de vida dos ribeirinhos para atender suas necessidades nesse contexto figuracional. Entretanto, quando tais práticas se tornam predatórias, sugere que as figurações, as redes de interdependências

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ampliaram. Em mais de vinte e cinco anos andando por comunidades ribeirinhas não vi

um indivíduo malfeitor por si só abater dez pacas ou mais animais silvestres e sair jogando-os pelos rios e satisfazer seu ego. Se o indivíduo caça além do que precisa é porque sabe que em suas configurações há alguém com valências abertas lhe esperando ou esperando outro alguém – atravessador, intermediador – com a carne de caça.

É impossível entender o processo social no Amazonas sem levar em consideração as figurações. Embora, dado a complexidade de algumas, não se consiga perceber onde o ou os indivíduos esteja inseridos. A extração do pau-rosa (Aniba roseadora), que não foi citado ao longo do texto, é um exemplo de uma configuração desse nível. Enquanto os ribeirinhos, conhecedores da floresta extraiam o pau-rosa, na Europa e parte do Brasil, outros indivíduos se beneficiavam dos seus benefícios como fixador de perfumes. Hoje a figuração muda essa prática que era especificamente extrativista para ser uma prática de manejo, de cultivo da árvore. A configuração mudou dado um processo de conhecimento. A configuração mudou para salvar o pau-rosa da extinção, assim como o peixe-boi e outras espécies da fauna e flora.

Há de entendermos que o poder permeia as relações nas figurações. Nesse sentido, qualquer intervenção no Amazonas que venha coibir práticas de cunho predatória, não deve ser relegado a uma última instâncias propostas compensadoras. Não se deve proibir, por exemplo, a captura de quelônios, a prática da extração da madeira ou a derrubada da mata para criação de gado, sem que propostas viáveis sejam fornecidas às pessoas, que estão inseridas em configurações, algumas micro outras macro.

O modelo configuracional nos coloca numa posição de entender a organização dos ribeirinhos em prol do rio e às redes de interdependências atrelado às demais práticas socioculturais. O modelo nos induz, da mesma forma, entender o processo de migração de indivíduos do interior do Amazonas e outras regiões para a capital do Estado em busca de vida melhor. O modelo configuracional nos faz compreender a problemática na discussão ambiental.

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