gil vicente - pranto maria parda (estudo)

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 VICENTE COLECÇÃO DIRIGIDA POR OSÓRIO MATE US Quimera LISBOA 198 8 | e-boo k 2005 Margari da Vieira Mendes MARIA PARDA

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Gil Vicente - Pranto Maria Parda (Estudo)

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  • VICENTECOLECO DIRIGIDA POR OSRIO MATEUS

    Quimera LISBOA 1988 | e-book 2005

    Margarida Vieira MendesMARIA PARDA

  • 3a minhoca que puseram a secar

    Estar em discusso neste estudo aquilo a que se poder chamar a teatralidadeintrnseca da obra de Gil Vicente que anda com o nome de Pranto de MariaParda (PMP). Maria Parda lamenta-se pela falta de vinho nas tabernas deLisboa, evocando os tempos em que ele era abundante e barato. Depois,resolve pedir o vinho fiado a alguns taberneiros que lho negam. Por fim, decidemorrer e pronuncia um extenso testamento que se refere obsessivamente aovinho.Sempre esta obra foi designada como trovas, por se aproximar do gneropotico e burlesco to frequente j no Cancioneiro Geral de 1516. E nunca foichamada auto. scar de Pratt considerou-a composio de cancioneiro,publicada por Gil Vicente, e Luciana Stegagno Picchio, um monlogo dramtico,destinado leitura entre amigos ou recitao pblica. Todavia, tambm possvel supor e imaginar para ela outras funes teatrais.Pode parecer acadmica e mesmo ociosa esta discusso artificial entreliteratura e teatro, se considerarmos que qualquer texto capaz de se tornarmatria de teatro. Mas se mesmo assim a proponho porque ela se me props,ou seja, teve e tem ainda uma existncia real. E tambm porque pode importardecisivamente a quem queira estabelecer um corpus ou qualquer tipo dedicionrio do teatro quinhentista, ou a quem necessite de fixar uma cronologiada actividade teatral de Gil Vicente: dever o PMP comparecer ou no, quandooutras trovas do autor (v.g. morte de D. Manuel) so arredadas naturalmente?Por outro lado, e em forma de quaestio, esta dvida ser a coluna vertebral doraciocnio aqui empreendido. Finalmente, note-se, as razes que assim searrumaro, em controvrsia, tero um valor menos resolutivo do queinformativo, pois lem e interpretam os significados possveis desta obravicentina.

    Na CopilaamFigurando no Quinto Livro e ltimo da Copilaam de todalas obras de GilVicente (1562) que inclui, segundo informa o prprio compilador (decertoLus Vicente), as trovas, e cousas medas, o PMP encontra-se ao lado detextos mais curtos e de espcie aparentemente diferente da dos autos. Esteshaviam sido distribudos pelos quatro primeiros Livros e, em quase todos, asnotas em epgrafe, ao apresentarem o texto, assinalavam tambm a suarepresentao, com o local, a data e a ocasio. A maioria de tais rubricasrelaciona as aces teatrais com festas e efemrides ligadas vida da famliareal e do pao. Assim acontece com a Visitao, que abre o Livro Primeiro eque, com as suas doze estrofes de monlogo, cousa bem mais meda que amaioria das composies do Quinto Livro. No entanto, nunca lhe poderamos

  • 4chamar as trovas do Vaqueiro porque foi texto representado na cmara da rainha(1502), segundo a didasclia inicial.A rubrica do Pranto, que serve de ttulo na Copilaam, escreve assim:

    De Gil Vicente em nome de Maria parda fazendo pranto porque viu asruas de Lisboa com to poucos ramos nas tavernas e o vinho to caro eela no podia viver sem ele 259c

    Esta redaco, com algumas variantes impertinentes para o caso, estpresente nas folhas volantes de que adiante falarei. Assemelha-se s que vmno Cancioneiro Geral (1516) a apresentar as trovas: de fulano em nome defulano, quando se trata de uma prosopopeia ou fingimento. Se o fingimentopode ser trao de teatro, no o nem exclusiva nem suficientemente. Bastalembrar, no mesmo Cancioneiro, as Trovas morte de Dona Ins de Castro,de Garcia de Resende, com fala de D. Ins que narra a sua morte. Na primeiracopla dessa composio, Garcia de Resende escreve, em seu nome edirigindo-se s damas: sestas trovas quereis ler (V, 357). De qualquer modo,todas as prosopopeias do Cancioneiro Geral indiciam um certo grau deteatralidade.Na Comdia Aulegrafia (1619, l2), o escudeiro Cardoso usa tambm adesignao trovas: l pelo conde Partinoples, sabe de cor as trovas de MariaParda e entra por fegura no auto do Marqus de Mntua. Curiosamente, astrs obras referidas caracterizam o escudeiro como amante e executante deteatro, como actor.Das demais composies do Quinto Livro, apenas duas vm acompanhadasde notcias sobre a funo teatral: a Pregao de Abrantes (1506) e a deSantarm (1531), esta ltima resumida ou citada numa Carta do punho de GilVicente, endereada a D. Joo III. No transunto da fala ou pregao levada acabo pelo autor, ele mesmo a refere como auto. E da de Abrantes se diz quefoi sermo feito e depois pregado pelo autor __ rubrica equivalente de certosautos onde est feito e representado __ com notcia do local e data. Em ambosos casos no se trata de trovas nem de cousas medas: o sermo de Abrantestem 373 versos e o auto de Santarm surge transcrito em prosa.Deste modo, a colocao do PMP no ltimo livro no argumento paradeterminar o seu carcter de trovas escritas para leitura. O Quinto Livro umaseco sortida de restos, perdidos e achados felizes de obras que andavampublicadas em folhetos e copiadas em cancioneiros de mo.Menos significa ainda a omisso do PMP na Taboada: gralha tal como a queesquece de indicar a Visitao e o auto dos Fsicos.A palavra trovas implcita no ttulo De Gil Vicente em nome de, embora sejaum indicador, no chega por si s. Na poca manuelina eram tnues asfronteiras que separavam a inveno e execuo da poesia das do teatro. Bastalembrar o caso Anrique da Mota, cujas trovas tm sido interpretadas comoteatro, por Leite de Vasconcelos, Andre Rocha e Neil Miller. E muito haveriaa dizer sobre a teatralidade inerente produo potica que figura noCancioneiro Geral.

  • 5A prpria Copilaam de Gil Vicente, tal como a de Juan del Encina, emborano no ttulo mas sim nos antetextos, chamada cancioneiro, ou seja,colectnea potica, obra para ser lida. E possvel que o fosse j ento. O queno exclui a representabilidade dos textos a coligidos.

    Stira e DataoSe na dispositio do PMP em livro no se acham provas conclusivasrespeitantes ao estatuto da obra, procuremo-las no conhecimento dascircunstncias que envolveram a sua produo.Vem a obra intratextualmente datada de 1522:

    na triste era de vintee dous desdo nascimento 261a

    Na cronologia vicentina ter sido composio de uma poca em que o autor jno fazia os autos de el-rei D. Manuel (falecido em Dezembro de 1521) eainda no fazia os de D. Joo III. Luciana Stegagno Picchio fala dum GilVicente desempregado do pao, devido ao luto, e actuando nas ruas deLisboa, mais perto do povo. Em 1521 j Gil Vicente teria composto umacomdia para o ento prncipe D. Joo, a de Rubena, e nesse mesmo ano de 22estaria talvez a compor o D. Duardos para enviar e oferecer ao mesmo D. Joo.Pouco antes __ no final de 1521 __, as trovas relativas aclamao do novo rei e,sobretudo, as coplas atribudas fantasiosamente, pela inveno do autor, acertos membros da nobreza, do clero e do municpio de Lisboa, eram com certezadestinadas ao soberano, pois vo carregadas de conselhos para a governao,do tipo dos que figuram nas artes de reinar. Nessas coplas, transcritas noQuinto Livro, a tnica posta na necessidade de o jovem monarca proteger oseu povo, o gado arrepiado, as ovelhas suspirando / sem abrigo, oslavradores, os povos menores, ou seja, esta manada a que o rei dever darpasto

    porque o povo coitadono coma po de dolor 256c

    E a ltima fala trovada atribuda prpria personagem Povo.Neste contexto, e como viu Luciana Stegagno Picchio, Maria Parda pode bemser uma representante deste povo esfomeado desde finais de 1521, que sequeixa da falta e da carestia. Frei Lus de Sousa viria a descrever com veemncia,nos seus Anais de D. Joo III (L. I, cap. XI), a esterilidade e a seca de 1521, assimcomo a fome que Lisboa viveu nos finais desse ano e ao longo do seguinte. Emcomeos de 1522 morria-se de fome nas ruas da capital, tal como Maria Parda vaimorrer de sede. O cronista refere-se igualmente ao sofrimento do jovem rei coma desgraa, e s medidas que tomou para atenuar a calamidade social em Lisboa.Houve legislao do rei bem como propostas da edilidade, relacionadas com afalta de po (Freire de Oliveira, I, 525 s.).

  • 6Em Frana, nos sculos XV e XVI, so conhecidas folhas volantes, surgidasem pocas de carestia, contendo no s queixas (o pranto faceto) masigualmente stiras, por vezes com violentos ataques aos aambarcadores, emgrande parte responsveis pelas subidas de preos. No PMP, os seistaberneiros que recusam fiar o vinho podero representar um mercadolisboeta sovina, nos antpodas da caridade e do esprito das Misericrdias emque se empenhou a rainha D. Leonor e, com ela, o prprio Gil Vicente. Porencomenda da rainha, para ajudar as suas instituies e o esprito de caridadecrist que as sustinha, realizara Gil Vicente uma aco teatral sobre o milagrede S. Martinho, em 1504, na igreja das Caldas, na procisso do Corpo de Deus.H parentescos entre o auto de S. Martinho e o PMP, e este ltimo apresentatraos que podem ser vistos como uma inverso parodstica e carnavalesca doprimeiro: tal como Maria Parda o pobre (figura do prprio Cristo) comea porlamentar ou prantear a sua falta, a sua misria, e tambm pede. Se S. Martinho, naboa aco que realiza em cena, tematiza a virtude da caridade institucionalizada(as Misericrdias), os taberneiros podero representar o vcio da forretice e noapenas a crise econmica.Um dos taberneiros um cristo-novo e todos usam sentenas economicistas,relativas poupana e aos preos. Ao colocar programaticamente doisprovrbios em cada uma das coplas correspondente a cada uma das falas dostaberneiros, Gil Vicente conjuga oportunamente, como regra na suaproduo artstica, o virtuosismo retrico do constrangimento potico, a quese obriga, com a caracterizao judaizante e materialista das personagens dosvendedores.Em obras francesas da mesma altura, so acusados de causadores da artificialsubida de preos, e da falta de po, no s os taberneiros mas tambm osastrlogos e os usurrios (o sermo Erreurs du peuple commun quiprenostiquent la famine lan mil cinq cens vingt et un). A funo satrica e ocomentrio de factos de poltica econmica (proibio da venda de vinho,inflao, ou baixa dos preos) encontram-se na raiz de monlogos e prantosdestinados leitura ou recitao na praa pblica (Le monologue dun clercde taverne, ou La complaincte des Monniers aux apprentifz des taverniers).No Cancioneiro Geral (V, 228-248) surge um dilogo com uma mula, deAnrique da Mota, que alude misria real de todo o pas (na opinio deAndre Rocha, 26). O mesmo se pode dizer do testamento do macho ruo(IV, 268-271). So prosopopeias animais da tradio medieval. No PMP,mais realista e usando de uma outra inveno ou estratagema ficcional,igualmente tradicional __ o travestissement goliardesco __, digna de nota amultiplicao das referncias a preos e medidas: to alta est a canada, decrecerem as medidas, cento e um cinquinho, a dezasseis o do, sete mil custoua pipa, etc.Esta ser uma hiptese de sentido para a obra vicentina: a stira carestia, aqueixa pela fome, o apelo caridade. Outra se lhe pode opor: em poca deescassez, Maria Parda representa o desgoverno, o gasto excessivo com vciosterrenos, ou mesmo o pecado; os taberneiros, por oposio, so figuras que

  • 7representam uma certa prudncia, baseada na sabedoria proverbial popular.A morte final de Maria Parda seria como que o castigo da sua dissipao.

    A haver stira, o PMP ter sido composto nos comeos de 1522 ou no fim domesmo ano, pois obra de Inverno: Maria Parda diz que despejei nestes frios(261b), referindo-se ao vinho j bebido por si, o que lembra um Invernoadiantado. Luciana Stegagno Picchio opta pelo Advento, dado o passo agoratem vez a guarda / e a raia no avento (260b); mas tal passo testemunhajustamente que o agora no o Advento, mas uma outra altura: ou o Natal de1522, a seguir ao Advento, ou um perodo anterior, em Novembro de 1522, ouem Janeiro, Fevereiro ou Maro desse mesmo ano. Se realmente o PMP seprestou actividade teatral, a determinao da poca do ano no intil, dadoque o teatro vicentino procedia quase sempre de festas e celebraes, querextemporneas e pontuais, quer cclicas __ as de natureza agrria e religiosa.Mais adiante se voltar a este assunto.Uma anterior composio, tambm carnavalesca e bquica __ o pranto de umcreligo, de Anrique da Mota __, diz: que negra entrada de Maro (Canc. Geral,V, 199), referindo-se Quaresma ou ao Entrudo. Ora, no ano de 1522, o perodode Janeiro a Maro foi aquele em que mais se morreu de fome em Lisboa,segundo Frei Lus de Sousa.Em finais de Dezembro de 1522 andava a Cmara a dialogar com o rei acercada imposio nova que at ento vigorava sobre o vinho, e que D. Joo IIIresolveu retirar (a 30 de Dezembro), mas que a Cmara props se mantivessepor troca com o imposto ou sisa sobre o po importado. Alegavam osvereadores que a imposio nova sobre o vinho, do tempo de D. Manuel, eramais fcil de suportar que a dita necessidade do po, j que na cidade deLisboa existia abastana de vinho e asy em todas as comarcas e tal imposiohavia sempre sido leve de sofrer aos vereadores (apud Freire de Oliveira, I,525-527). Ter o PMP algo a ver com este negcio? muito possvel,sobretudo porque o referente Lisboa est bem patente ao longo da obra (vintetopnimos). Mas se grassava a abundncia de vinho no final de Dezembro de1522, que sentido tinha um pranto sobre a sua falta, ainda que facecioso ealegrico? Mais parece obra de Quaresma ou de Carnaval, poca que seiniciava nas matinas do Natal (de 1521, neste caso) e percorria as festas deJaneiro at Quaresma, incluindo a quarta-feira de Cinza e a Mi-carme.Quanto localizao deste eventual auto, a prpria Maria Parda a indica,ainda que de modo impreciso: daqui da s (261b). No sabemos se aponta parao bairro da S, i.e., para uma rua ou praa dessa zona, se para o adro daCatedral, se para o seu interior, se para um claustro. Lembro, como sugesto,que uma das capelas do claustro era ento a sede da irmandade daMisericrdia (foi-o at 1534). Sob invocao de N. S. da Piedade, era essacapela chamada da Terra Solta, pois nela se praticava a devoo anual doenterro dos pobres (Jlio de Castilho, VI, 55-61). Note-se que o PMP encenaum pedido de piedade e um enterro: Maria Parda vai morrer e faz as disposiespara o seu funeral.

  • 8A datao intratextual leva a pensar (o que aceite por Braamcamp Freire,382, por Luciana Stegagno Picchio, 33-34, e por Sebastio Pestana) que omais antigo folheto conhecido dever ter circulado exactamente nesse ano de1522.E que dizer das impresses posteriores em folhas volantes? So elas de 1619(perdida), de 1643, de 1645 e de 1665. Em todas estas datas faltava o po nacidade de Lisboa e a populao sofria grande carga tributria, o que mostrabem a oportunidade do PMP em tempos de crise. Mas, ao contrrio do queaconteceu em 1522, em 1619 e ainda em 1665 houve legislao especficasobre o preo do vinho, o que ter favorecido a leitura do PMP letra, ou seja,como obra sobre o vinho e no como metfora carnavalesca. Em 23 de Maiode 1619 foi permitida a subida de preo do vinho, o que conduzia sempre carestia gananciosa; em 1643, Dezembro, um decreto sobre o preo do vinhoem Lisboa alude esterilidade geral das vinhas; a 10 de Novembro de 1665foi proibida a venda de vinho em Lisboa, at ao primeiro de Dezembro, porcausa das grandes doenas que na cidade se padecem (Freire de Oliveira, IV,529; VI, 568, 574; II, 457-459). Havia sempre interesses contraditrios nafixao do preo do vinho, feita a 10 de Novembro de cada ano, ou seja, navspera de S. Martinho: por um lado, o consumidor, por outro, o lavrador, epor outro, o taberneiro, sendo sempre este o mais interessado no aumento dopreo, e defendendo a edilidade geralmente os primeiros.Ao tematizar a falta e a carestia do vinho, o PMP continuava a fazer sentido emdeterminadas circunstncias. Ao significar, por meio do vinho, a escasseze a falta, quer do po, quer de algo essencial sobrevivncia humana, o PMPcontinua e continuar a fazer sentido.

    Pranto / Dilogo / TestamentoO PMP uma extensa composio, homognea do ponto de vista daversificao: 369 versos de redondilha maior distribudos por 4l estncias oucoplas de 9 versos ou ps, por sua vez divididas sempre em dois gruposrimticos: 4+5. Esta regularidade, prpria dos monlogos dramticos,aproxima-o das trovas e da poesia lrica e distancia-os dos autos, onde aversificao no rigorosamente igual do comeo ao final. O nmero em si,369, harmnico (tal como o era o 373 da totalidade dos versos da Pregaode Abrantes).A esta regularidade vm adicionar-se outras __ de estrutura __ demonstrativasdo virtuosismo do autor, qualidade que era ento muito apreciada no trovador.O PMP foi alis composto numa fase da arte vicentina em que o dramaturgoensaiou o apuro literrio, esmerando-se na experimentao da alta retrica eescolhido estilo, como ele prprio disse ao oferecer o D. Duardos ao jovemrei. a poca dos romances, do dilogo-monlogo em eco da comdiaRubena (3. cena), dos solilquios lricos, ou rias, de D. Duardos.Embora seja conhecida como o Pranto de Maria Parda, a obra compsitapois integra trs gneros ou tipos enunciativos imediatamente reconhecveis:

  • 9o pranto, nomeado na rubrica, o dilogo com provrbios e o testamento,tambm nomeado em rubrica interlinear. So catorze estrofes de pranto __uma delas inserida no meio do dilogo __, doze de dilogo, no gneropalaciano da pergunta (pedido) / resposta, e quinze estrofes de testamento,este, tal como o pranto, na voz exclusiva de Maria Parda. Dois monlogosligados por um dilogo. Os autos vicentinos apresentam-se frequentementecomo verdadeiros mosaicos de gneros, numa abundncia manuelina semprecedentes e sem sucesso na literatura portuguesa.O pranto ou lamentao aqui carnavalizado, pois exerce-se sobre a morte dovinho, e no sobre a do rei, de um nobre, ou do ser amado (lamentaoamorosa). Do pranto ou complaincte goliardesca, frequente noutras literaturaseuropeias, encontramos um espcime feito por Anrique da Mota a um clrigo,com uma estrutura tripartida semelhante vicentina. Figura ele noCancioneiro Geral que contm tambm prantos srios morte do prncipeD. Afonso e do rei D. Joo II. Gil Vicente abriu com uma lamentao amorosaa comdia Rubena, de 1521, e esboou dois curtos prantos fnebres nointerior do seu Romance morte de D. Manuel, tambm de 1521, nas vozes daInfanta e da Rainha estrangeira. Mas o assunto bquico do PMP nico naobra vicentina __ uma experincia do autor. H que no esquecer que o velhopranto, ou planh ou planctus, um dos gneros poticos mais prximos doteatro, no s pela actuao ilocutria a ele inerente, mas tambm pela suainsero ritual nos cortejos fnebres que se seguiam morte de prncipes e dereis.Quanto ao outro monlogo dramtico, o testamento, ele amostra isolada naproduo de Gil Vicente __ outra experincia do autor. Mas larga e chegaaos nossos dias a sua tradio europeia, em contrafaco pardica. GilVicente cumpre as regras e frmulas deste gnero notarial (datao, items,encomenda da alma, nomeao dos testamenteiros, disposies para ofuneral, etc.). Tambm no Cancioneiro Geral existem dois testamentos, masno de vinho: um de amores (II, 161) __ como o de Juan del Encina __ e outrodo macho ruo (IV, 268), muito mais incipiente do que o de Maria Parda, estesim, um dos mais extraordinrios da literatura europeia da poca. UmTestament como o de Villon obra lrica e no dramtica; outros somonlogos dramticos assaz montonos (Le grand Testament de Taste-Vin,Roy des pions, de 1488) e outros encontram-se no interior de autos e de farsas(v.g. o de Pathelin), j que a situao do agonizante se tornou frequente noteatro.O dilogo, de doze coplas, onde alternam as vozes de Maria Parda e dos seistaberneiros, lembra e no lembra os dilogos contidos nos autos. Como neles,surgem personagens tipificadas; mas no me recordo de encontrar maisnenhum dilogo vicentino sujeito regra numrica de uma copla por fala. Denotar ainda outras regularidades que contribuem para a estilizao dessa partemediana do PMP, tornando-a, tal como as duas restantes que a emolduram,textos autnomos, que poderiam figurar numa antologia potica. Uma dessasregularidades consiste na presena obrigatria de dois aforismos em cada

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    fala-estrofe dos seis taberneiros; outra, na referncia morte em cada fala--estrofe de Maria Parda. O virtuosismo de rthoriqueur fazia parte dos hbitosda produo potica cortes; a mestria, a dificuldade ldica e a ostentaoversificatria eram muito apreciadas e louvadas num trovador. E Gil Vicentesoube mostrar-se trovador exmio em muitos dos trechos que inseriu nos seusautos. Este dilogo com provrbios pertence ao gnero perguntas e respostasdas tenes poticas dos seres palacianos, assim como ao sistema das ajudase demais jogos florais escritos ou improvisados nesses seres.O artificialismo literrio do dilogo denuncia uma inteno cortes, e pedeum pblico letrado, mais do que a arraia mida, um pblico leitor, mais doque espectador de teatro. O tipo de humor no to imediato, excessivo eprimrio como o de outras obras vicentinas destinadas representao cnica.Neste sentido, e paradoxalmente, o dilogo aproximar-se-ia do estatutopotico das trovas de cancioneiro, enquanto o pranto e o testamento dele seafastariam.Os monlogos dramticos encontram-se distribudos pelo teatro vicentino dediferentes modos: gozando de alguma autonomia (o do Vaqueiro, por ex.);com uma funo prologal (a pregao na Mofina, o sonho no Templo deApolo, o Pater Noster trobado no Velho da Horta, os prognsticos naExortao); incorporados no interior dos autos (a ladanha no Velho, o sermode amor nas Fadas, as pragas em Quem tem Farelos?). Todas essas falasmonologais so, no entanto, mais breves que as de Maria Parda. O factormemria teria o seu peso. Para os monlogos dramticos recomendavam oscontemporneos uma extenso que no excedesse as cem linhas ou versos(Aubailly, 97). No o caso do PMP pois, quer no pranto quer no testamento,ultrapassa esse nmero. No tambm o que se passa na Pregao deAbrantes, com os seus quase quatrocentos versos de arte maior: sabemos, pelarubrica, que foram recitados de memria pelo autor.Convir no duvidar das memrias de ento, quer as de autor quer as de actor,e Gil Vicente exerceu ambos os papis. Tambm o escudeiro referido naAulegrafia de J. Ferreira de Vasconcelos sabia de cor as trovas de MariaParda. Se Gil Vicente disse o sermo em Abrantes, afigura-se-me verosmilque possa ter pronunciado com a sua voz a fala de Maria Parda, com ou sem oseu corpo de actor (um manequim ou bonifrate no de excluir, neste caso).Os mecanismos ou as tcnicas oratrias de memorizao esto patentes emambos os textos: a rigorosa diviso macrotextual, o uso dos lugares, e aanfora sistemtica, no incio do verso e no da estrofe, quer literal quersemntica, quer referencial quer discursiva (apstrofes s ruas de Lisboa,nomeao dos taberneiros, enumerao das vontades fnebres e das zonas devinho, em parada monumental). Mas o PMP exige talvez um maior grau defingimento que o sermo sobre a peste: neste havia apenas uma fala moral,enquanto naquele Maria Parda existe como personagem em situao, no senunciativa mas tambm diegtica.

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    Unidades dramticasl. PersonagensMaria Parda personagem feminina, o que raro no gnero monlogodramtico de ento __ em Frana, por ex., conhece-se apenas um caso(Aubailly, 111). Ela faz parte das comadres vicentinas velhas, todaspersonagens de teatro. A linguagem e a sua posio enunciativa __ um estadoelementar de necessidade, uma atitude pulsional __ assemelham-se s da mede Isabel em Quem tem Farelos? e s velhas do auto da Festa e do Triunfo doInverno. Maria Parda sofre ainda a caracterizao de beberrona, o que noacontece com as suas congneres, sendo suporte de uma srie de traosgolirdicos (a solidariedade das tabernas, os seus queridos manos e manas).Se juntarmos tudo o que vai caracterizando Maria Parda obteremos umconjunto extraordinariamente variado: alm do traje (a nudez e o manto), e dadescrio realista do corpo velho e doente, existe a linguagem figurativa(repeties, trocadilhos, exageros, ironia), a mistura de nveis ou registos (daretrica cortes mais verncula obscenidade), a forma arcaizante da segundapessoa do plural (socorrede-me), as insistncias num campo semntico muitoprimrio (comida, doenas, preos, roupa), e uma riqussima variedadeilocutria (lamento, pragas, apstrofes animizadoras, exclamaes, processosde seduo, pedido, grito, promessa). Note-se que no se trata de umapersonagem de negra, quando muito uma Maria Mulata, como sugeriuP. Teyssier, pois que no existe qualquer frmula especfica da lngua depreto, j ento codificada. Mas o que fica sem resposta segura o seguinte:ter havido um corpo de actor (Gil Vicente?) a representar este corpo?Se olharmos de perto cada um dos seis taberneiros, com falas de apenas noveversos, dos quais trs ou quatro so obrigatoriamente ocupados comprovrbios, deparamos com uma caracterizao bem concreta de algunsdeles: a Falula mostra-se grosseira, Joo Cavaleiro cristo-novo, BrancaLeda s fala de comida. Estes taberneiros lisboetas funcionam ainda, note-se,como uma espcie de coro que comenta as splicas de Maria Parda.

    2. AcesO PMP no apenas uma fala assente numa situao ficcional. A fala vemacompanhada de aces a delinearem um breve plot, se bem que simplicssimo,e essas aces so predominantemente verbais:l. a queixa pelo mal presente, com evocao do bem passado;2. a deciso de pedir fiado;3. o acto de pedir;4. a recusa dos taberneiros (repetio em alternncia destas duas aces, porseis vezes);5. a deciso de morrer;6. a ordenao do testamento.Todas as aces ocorrem in praesentia, tal como o discurso directo das

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    personagens, e implicam um desfecho no futuro: Maria Parda ir morrer.Prevalece a mimese e o showing sobre o telling, ao contrrio do que aconteceem muitos dos monlogos dramticos europeus, que so falas narrativas.Assistimos deambulao e cortejo de Maria Parda pelas ruas dos bairrosorientais de Lisboa, ou, ao invs, ao desfile dessas ruas, magicamenteconvocadas pela aflitiva apstrofe de Maria Parda ao nome-las: Rua deS. Gio, Travessa de Mata-Porcos, Carnecerias, Rua da Ferraria, Biscainha,etc. Usando mquinas, poder-se-ia fazer rodar diante dos olhos do espectadorcada uma das ruas e tabernas interpeladas em cada estrofe. Seriam as praas evielas a passar por Maria Parda e no esta a atravess-las. Mas tambm ela semove, segundo informam algumas didasclias, na sequncia da deciso queromir s taverneiras (260b): Vai-se a Branca leda, Vai-se a Joo do Lumiar,indo pera casa de Martim alho.Ocorre aqui o argumento de natureza extratextual a favor da teatralidadeintrnseca desta pea vicentina. A similaridade existente entre esta estruturade deslocao cnica e a cerimnia dos prantos fnebres na capital, emDezembro de 1521, quando morreu D. Manuel: o cortejo desfilava por certasruas de Lisboa e parava em pelo menos trs lugares definidos, onde sequebravam os escudos (equivalentes srios, no carnavalescos, das tabernasque Maria Parda visita); os trajes eram mantos negros (Maria Parda vaiemburilhada numa manta); e grandes eram as manifestaes de dor (nomenores que as de Maria Parda). Vem ao pensamento a comparao entre oPMP e o pranto de D. Manuel, do qual aquele seria ento uma espcie dereverso parodstico, irreverente, cmico e satrico.

    3. DcticosPara l dos virtuais movimentos cnicos, derivados da intriga, que implicamquer um espao visvel, quer uma durao, sobressai nos enunciados apresena material do corpo de Maria Parda, para cujas partes ela mesmachama repetitivamente a ateno e os olhos do espectador: a falta de dentes,as gengivas, os braos, os beios, as orelhas, as queixadas.Acresce que esses fragmentos do organismo so animizados, pois tornam-seeventuais interlocutores, dramaticamente apostrofados. O mesmo acontececom as ruas de Lisboa, as pipas de vinho ou as manas bebedoras (ausentes):todos so compelidos a gritar e a carpir-se. Tambm na sua lamentao opobre do auto de S. Martinho se endereava s partes doentes do seu corpo.Maria Parda estimula esse corpo a exprimir-se:

    gengibas e arnelasdeitai babas de secura.Carpi-vos beios coitados 259c

    Acompanha toda esta agitao dramtica, prpria do cdigo genolgico dopranto, o efeito de presena criado pelos dcticos estas, esta, estes e aqui,assim como as referncias indumentria e a alguns adereos cnicos: estas

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    queixadas, esta era verde pereira / em que vos eu via estar, Amara aqui heidestalar / nesta manta emburilhada, que despejei nestes frios, daqui da s,no beio de baixo aqui.

    4. Tempo e ausnciaEsta to acentuada presena contrasta significativamente com o tema da faltae da ausncia. Ausentes os tempos passados e as tabernas da Lisboa antiga,cheia de vinho; ausentes os tempos futuros de ofcios fnebres, no ps-morte,tambm eles cheios de vinho.O que est presente em cena a ausncia, o vazio, e a sede __ seja no corpo deMaria Parda, ressequido, sem roupa, sem dentes e to leve e areo, seja notempo e no espao: as pipas ocas, e o momento de necessidade. O que estausente o de que Maria Parda constantemente fala, recordando o passado eincitando a um futuro de plenitude. Ao nomear a ausncia, convoca-amagicamente a uma presena absorvente, excessiva e sobrerreal: o vinho, ostempos utpicos de abundncia, o espao lisboeta das tabernas e demaisterritrios vincolas de Portugal. Esta presena fantasmagrica do vinhoagiganta-se no pranto, e sobretudo no testamento, verdadeiro triunfo dovinho.No pranto, por trs formas:l. por nomeao e interpelao directa e afectiva: vinho mano meu vinho, bicos de minha mama;2. pela metonmia realista, pois todos os objectos chamados presena sorecipientes ou lugares de vinho, mas sem ele, desde as medidas, s pipasvazias e aos tornos quebrados, desde os taberneiros que no vendem, s partesdo corpo onde devia passar o vinho (goelas, gorgomilho);3. pelo desenvolvimento do topos da passada idade de ouro e de abundncia(florebat olim), um tempo vivido em gloriosa solidariedade: o frenesim daevocao bquica equivale ao estado lancinante de sede e de secura, a cadapasso reiterado dum modo naturalista, como se vai ver.Quanto ao testamento, nele se visiona um futuro de fartura, pois s o presente de crise e de falta, personificadas na prpria Maria Parda. Da aquantificao hiperblica, a acumulao cada vez mais excessiva de tudo oque diz respeito ao vinho, no gnero copioso do banquete fnebre, de origempag, a contrastar com o grotesco e a escassez dos legados de Maria Parda __trapos e uma borracha. A estrutura do testamento enumerativa eacumulativa; predominam os plurais, assim como o sempre, o amede; e oexagero numrico vai em crescendo (trinta e seis odres, quatro ou cinco oudez trintairos, cento e vinte e sete vigrios). Tambm a dessacralizaogolirdica atinge, no um ou dois objectos, mas grande quantidade: osturbulos, as tochas, o atade, a gua benta e o prprio Deus convertem-se emborrachas, cepas, pipas, malvasia e No. Maria Parda pinta um universodesmesurado, a transbordar de vinho: sacerdotes todos bbedos, escudeiros ebarqueiros recozidos, rfs de pais alcolicos, etc.

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    S numa cena futura o mundo poder apresentar-se frtil e pujante de vinho.E, mais importante, s aps a morte de Maria Parda, cujo corpo ter deperecer. Trata-se ento de uma morte sacrificial, em toda esta pardia detragdia: a minhoca que puseram a secar no comeo deste auto ir, no final,para as estrelas altas e longnquas __ da terra para o cu __ mas com grandesede, como diz o ltimo verso.

    Naturalismo e simbolismol. O corpo grotesco e pardo da terraNo PMP sobressai a figurao da velhice. personagem convencional doclrigo beberro preferiu Gil Vicente a da velha, menos apta para a stira emais naturalista. Personagem da tradio popular (em Itlia, por ex., noscantos de vinho; em Portugal, na festa de Santa Bebiana), no aqui apenasum tipo cmico, ou de farsa, semelhante a outras comadres velhas, mas essencialmente um corpo seco, pronto para morrer. Dele emana uma fala quefunciona como o seu prolongamento, a sua expresso fisiolgica e natural.Este corpo velho encontramo-lo num outro auto vicentino, o Triunfo doInverno, onde se evoca um rito de passagem. A velha que atravessa descalaa serra nevada, para casar com um mancebo to bem feito / que aconsolao, personifica o Inverno a que se seguir a Primavera. descritacomo corcovada e enrugada, com as gengibas inchadas. Dela se diz: No sentisque sois ya tierra? E ela prpria acaba exclamando, tal como a Maria Parda aoir vazia para as estrelas: que vou cada vez mais leve (178b).O corpo de Maria Parda mostra-se grotesco; envelhecido (triste desdentadaescura, arnelas, orelhas engelhadas), doente (mazelas, olhos fora, postemano beio, a dor da enxaqueca) e, acima de tudo, oco e seco (deitai babas desecura, ventosidade, hei de estalar, to seco trago o embigo, morrer desequia, assi vazia, sem gota de sangue nas veas, no tens j que mijar).Predomina o motivo da sede e da secura, que se estende a todas as coisas eseres: os tonis secos, a loua e as pipas vazias, a Ribeira areeira.Impossvel no estabelecer o paralelo entre as palavras de Frei Lus de Sousaao evocar tanto a fome de 1522, quanto a seca e a esterilidade de 1521 que aprovocaram: As terras delgadas se desfaziam em cinza; as grossas seapertavam e abriam em fendas at o centro (Anais, L. I, cap. XI).Assemelham-se as imagens do corpo gretado da terra e do de Maria Parda,at na cor cinza. Ao evidenciar o corpo da velha, Gil Vicente naturaliza-oe identifica-o simbolicamente com a prpria terra que se encontra velha,doente, seca e parda, a necessitar de ser renovada com o lquido regenerador:a gua.Repare-se que as partes e as funes orgnicas nomeadas so sempre ascorrespondentes a necessidades primrias e naturais: as escatolgicas(ventosidade, traques, mijar) e as alimentares (beio, gorgomilo, engolir,fartar a tripa).

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    Sistemticas so tambm as referncias vegetais rvore vital, associada presena do vinho nas tabernas, com a nomeao dos seus ramos, da suaverdura e at das suas espcies (pereira, pinho, maias). Essa rvore aparecegravada nas vinhetas de quase todos os folhetos impressos. Ela e o corpo deMaria Parda, bem como os seus ditos, assinalam o ciclo da vida, donascimento morte, passando pela doena: que m hora me paristes, bicos deminha mama, a madre cada, os tramos da peste. Nos trs versos que seseguem, patenteia-se o contraste e a proximidade entre a vida e a morte:

    com esta sede to vivaque j no acho cativagota de sangue nas veas. 260c

    Tambm a terra no acha o humor, o suco subterrneo que far germinar o seugro, ou seja, a chuva que ter que cair do cu.O ciclo da vida humana, aqui rematado com a morte de sequia, apareceintimamente ligado com o da vegetao e o das estaes do ano, prprios danatureza agrcola e designados segundo o ciclo litrgico: avento, nacimento,coresma, paixo, vero, eiras.

    2. A morte da seca e o vinho da vidaA tematizao da morte, em todos os nveis de elaborao do PMP, afasta estaobra de outras composies de teor meramente golirdico ou de stira social,e aproxima-a das manifestaes simblicas de origem folclrica e ritual. EmGil Vicente casam-se certos comportamentos naturalistas, prprios da festa edo teatro, onde se manifesta a herana ancestral de ritos que comearam porser sagrados e agrrios, com a mais apurada retrica cortes (o virtuosismo dotrovador-poeta) e ainda com as necessidades de circunstncia, muitas vezesde interveno satrica (caso da crtica carestia ou ento ao esbanjamentofinanceiro e aos excessos da carne).Encontramos o tema da morte, em primeiro lugar, no plano enunciativo: opranto, o dilogo __ derradeiro debate ou agon __ e o testamento. Emsegundo lugar, no plano narrativo: a doena da falta s acabar com a morte,no ps-morte. Em terceiro lugar, no plano semntico e vocabular: MariaParda alude repetidas vezes morte, pela referncia candeia de azeite (ritode morte mas tambm metfora do vinho), e, no testamento, abunda o lxicofnebre. sabido que o teatro deu continuidade ao simbolismo dos ritos agrrios e sua imitao ldica, como a deu aos grandes temas da luta e sucesso entre amorte e a vida, entre as calamidades e a expulso do mal pela morte,entendida como sacrifcio propiciatrio resoluo de uma grande desgraacolectiva. Neste caso seria a seca da terra e a fome dos moradores de Lisboa edos que chegavam capital em busca de po, morrendo nas suas ruas. SeMaria Parda pode figurar um dos esfomeados que Lisboa tem o dever dealimentar ou, pelo menos, de enterrar, tambm pode figurar o heri pecador

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    da tragdia, aqui carnavalizado num pathos sacrificial parodstico. Osmanequins de Carnaval funcionavam muitas vezes como simulacro do bodeexpiatrio dos pecados de uma comunidade.Do cruzamento de todas estas linhas de significao pode concluir-se que oPMP realiza a personificao alegrica e a dramatizao do prprio ciclo davida e da morte, incluindo as catstrofes naturais, sociais e econmicas: estasltimas como que se naturalizam. Igual procedimento simblico encontra-sena raiz da Mofina Mendes, personificao teatral no s da m sorte naturalmas tambm do desgoverno e esvaziamento dos cofres reais (a burra, o gadoperdido), tudo a necessitar de remdio __ neste caso ele vir da intervenodivina do Redentor, pois o auto de Mofina de Natal e representa o mistrio.Para que a chuva aparea, a terra frutifique, a vida renasa, Maria Parda terque perecer, pois encarna tanto a fome colectiva como a terra velha eexangue, o ano seco e estril, a prpria morte. Neste sentido, a morte de MariaParda, no inverno de 1522, adquire o valor catrtico de afastar o mal da secae de atrair o bem da chuva. Ento poder brotar a abundncia, pintada emdimenso gigante no apotetico testamento de vinho. O vinho estar pelaprpria vida __ o sangue nas veas que falta Maria Parda __ e no s pelo ponecessrio vida.O registo golirdico, factor de carnavalizao proveniente da tradio jpopularizada dos cnticos bquicos, possui um valor alegrico e no s literal.O tema bquico, que to bem se ajusta a umas trovas e que lhes conferegrande coeso teatral e literria, revela afinal as suas origens teatrais. No eraDionsio ao mesmo tempo o pai do teatro e o pai da vinha? E no era o vinhoo sangue da terra?

    As festas e a pardiaRitos e invenes jocosas como a luta entre as estaes, ou entre o ano velhoe o novo, ou entre o Carnaval e a Quaresma, vm sugeridas de formasubliminar neste auto. Em Antnio Prestes, Maria Parda surge contrapostaao ano bom: num [portal] pintar-lhe o ano bom / noutro maria parda(1587, 9c).A busca dum futuro de felicidade pela representao duma sociedade emcrise, ruptura ou luta __ aqui o drama de Maria Parda, gastadora e necessitada,e a sua discusso com os taberneiros, sovinas e prudentes __ intenoprpria dum teatro cujo fundo ritualstico. No testamento, os legados e asvontades fnebres podem exprimir aspiraes colectivas. Assim acontece nostestamentos facetos e burlescos, lidos em voz alta, que acompanham, emPortugal, o enterro do Joo e do Entrudo, ou a serrao da Velha (Veiga deOliveira, 1984). Apresentam o mesmo carcter excessivo e exuberante, amesma tcnica acumulativa, a mesma estrutura de desfile, o mesmo registo delicenciosidade e de transgresso carnavalesca. So ditos em festas quecorrespondem a ritos de passagem: do Inverno para a Primavera, do Entrudo__ tempo de dissipao, satisfao e desmedida __ para a Quaresma __ poca

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    em que a semente dever germinar. Segundo a lgica do pensamento mgico,a germinao favorecida pelo fim do desregramento, do tempo dos prazerese excessos da carne, e pela absteno alimentar, pela guarda, s quaispodemos associar Maria Parda e a sua abstinncia forada.Os demais componentes de carcter ritual, cujo fundo pago e mgico semistura com elementos cristos, vo desde as aces enunciativas __ splicas,lamentaes, maldies, exortaes __ at s personificaes ou s apoteosese triunfos __ aqui os do vinho e da abundncia __ e ao sacrifcio __ a morte deMaria Parda.Ao contrrio do que acontece, por ex., com Anrique da Mota, Gil Vicentetrabalha neste, tal como noutros autos, sobre elementos originrios dasmanifestaes teatrais de carcter festivo e colectivo.O modo processional patente em toda a obra, a todos os seus nveis, assimcomo as manifestaes de pranto e, depois, de ltimas vontades so tambmtpicos dessas festividades. Lembro algumas:a) o S. Martinho (11/Nov.), festa que inaugurava o Inverno na antiga liturgiamorabe, anterior a Gil Vicente: aparece o vinho novo, festejado por vezescom cortejos de bbedos; na vspera era decidido pela Cmara de Lisboa opreo da venda do vinho nas tabernas (pelo menos nos sc. XVI e XVII);b) a Santa Bebiana (2/Dez.), advogada das mulheres bbedas: realizam-se,em certas aldeias, desfiles que afixam as confrarias dos irmos do vinho;c) o Natal e a sua oitava, ou os Reis, ocasio em que se bebia bastante e perodode liberdade licenciosa, propcio a pardias;d) a passagem do ano, quando se deixa o velho e se fazem votos para o novo,o ano bom (o que estaria de acordo com o passo atrs citado de AntnioPrestes);e) tambm nas Janeiras se efectuam cortejos e se fazem pedidos;f) S. Vicente, patrono de Lisboa, com festa em 22 de Janeiro;g) no Carnaval, a celebrao ritual do enterro do Entrudo ou do Joo, porvezes j na Quarta-Feira de Cinzas;h) a serrao da Velha, celebrada a meio da Quaresma, um intervalo festivoem que a vtima uma velha; modernamente inclui a leitura dum testamentoem verso.Alm de conter unidades comuns s invenes que preenchem todas estasfestas, o PMP serve ainda em todas as pocas de aflio, de misria, de faltade vveres, de aumento dos preos, ou ainda nas de puro divertimento. Apardia por rebaixamento do sublime, do trgico, do srio e do sagrado, ingrediente obrigatrio dessas manifestaes colectivas, e no falta no casodo PMP:__ o luto que se pranteia no se refere a uma pessoa rgia ou nobre, mas aovinho, exprimindo uma necessidade carnal, fisiolgica e primria;__ as frmulas literrias prprias das lamentaes amorosas e dos prantosrgios vm misturadas com grosserias, pragas e aluses escatolgicas: todolostraques que dou / so suspiros de saudade;

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    __ as referncias religiosas ao Natal e Paixo de Cristo trazem a lembranado vinho (a paixo dos tornos);__ no testamento, a dessacralizao pela pardia litrgica total: datradicional divinizao de No at s romarias de vinho, borracha porturbulo, aos vigrios bbedos, gua benta nas vinhas.A haver representao destas trovas, ou seja, a haver acto ou auto, eleocorreria certamente num perodo de permissividade e de festa.

    Tudo isto nos fala de teatro. No significa que o PMP tenha constitudo umaaco teatral vicentina, ainda que fosse texto praticado ento, ou pelo menossabido de cor por escudeiros amantes de teatro. Mas significa que tinha, etem, todas as condies para ser teatro, pois, como aqui tentei mostrar, exibea presena dum corpo, que tanto pode representar um triunfo bquico, comoa falta de vinho, tanto a fome, como a stira carestia e ganncia, tanto aabstinncia quaresmal, como o castigo dos excessos perdulrios da carne,tanto a caridade, como a necessidade de conteno econmica, e ainda a terraexangue, a seca, a velhice, a morte, a doena, o ano velho, a cidade de Lisboa,ou um sacrifcio fnebre ritual, carnavalizado. Alm disso eminentementeadaptvel s festas e funes colectivas, quer cclicas quer crticas. Nelas, anatureza primria, a organizao social e as prticas culturais e simblicasintervm conjugadamente, mostrando o ser humano em toda a plenitude dasua crise e da sua necessidade. Tal como Maria Parda __ a minhoca que puserama secar.

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    Referncias

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