geografia e afrocentricidade

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1 EM BUSCA DE NOVAS TERRITORIALIDADES E NOVAS GEO-GRAFIAS: POR UMA GEOGRAFIA AFROCÊNTRICA Jonathan Marcelino 1 [email protected] Em busca de novas territorialidades e novas geo-grafias: por uma geografia afrocêntrica O presente ensaio é uma tentativa de inserir a temática racial no debate da Geografia brasileira provocando a prática do seu ensino sobretudo a partir os impactos da Lei 10.639/2003. Como bem sabemos a geografia é a ciência que estuda o espaço, e este é o melhor instrumento de compreensão da realidade do mundo em que viemos. Neste sentido esta disciplina assume grande importância dentro da temática da pluralidade cultural no processo de ensino, principalmente no que diz respeito ás características dos territórios dos diferentes grupos étnicos culturais que convivem no espaço nacional. Nosso objetivo portanto é refletir sobre as possíveis articulações entre a Geografia e as questões raciais, nossa intenção aqui e o de lançar os fundamentos, os pilares para uma ciência geográfica afrocentrada. Palavras Chaves: Geografia, Afrocentricidade, territorialidade. En busca de nuevas geo-grafías y nueva territorialidad: una geografía Afrocentric Este ensayo es un intento de entrar en la cuestión racial en el debate brasileño de Geografía causando la práctica de la enseñanza, especialmente de los impactos de la Ley 10.639/2003. Como sabemos, la geografía es la ciencia del espacio y esta es la mejor herramienta para la comprensión de la realidad del mundo en el que nos encontramos. En este sentido, esta disciplina es de gran importancia dentro del tema de la diversidad cultural en el proceso de enseñanza especialmente en lo que respecta a las características de los territorios de los diferentes grupos culturales étnicos que viven dentro de nacionales. Por lo tanto, nuestro objetivo es reflexionar sobre las posibles conexiones entre la geografía y los problemas raciales y nuestra intención aquí es la sentar las bases, los cimientos de una ciencia geográfica Afrocentric. Palabras clave: Geografía , afrocentrismo, la territorialidad. 1 Graduado em Geografia pela Universidade Federal Fluminense. Atualmente é aluno de Mestrado do Programa de Pós Graduação em Geografia Humana da Universidade de São Paulo.

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Page 1: Geografia e Afrocentricidade

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EM BUSCA DE NOVAS TERRITORIALIDADES E NOVAS GEO-GRAFIAS: POR

UMA GEOGRAFIA AFROCÊNTRICA

Jonathan Marcelino1 [email protected]

Em busca de novas territorialidades e novas geo-grafias: por uma geografia

afrocêntrica

O presente ensaio é uma tentativa de inserir a temática racial no debate da Geografia

brasileira provocando a prática do seu ensino sobretudo a partir os impactos da Lei

10.639/2003. Como bem sabemos a geografia é a ciência que estuda o espaço, e este é o

melhor instrumento de compreensão da realidade do mundo em que viemos. Neste sentido

esta disciplina assume grande importância dentro da temática da pluralidade cultural no

processo de ensino, principalmente no que diz respeito ás características dos territórios dos

diferentes grupos étnicos culturais que convivem no espaço nacional. Nosso objetivo

portanto é refletir sobre as possíveis articulações entre a Geografia e as questões raciais,

nossa intenção aqui e o de lançar os fundamentos, os pilares para uma ciência geográfica

afrocentrada.

Palavras Chaves: Geografia, Afrocentricidade, territorialidade.

En busca de nuevas geo-grafías y nueva territorialidad: una geografía Afrocentric

Este ensayo es un intento de entrar en la cuestión racial en el debate brasileño de Geografía

causando la práctica de la enseñanza, especialmente de los impactos de la Ley 10.639/2003.

Como sabemos, la geografía es la ciencia del espacio y esta es la mejor herramienta para la

comprensión de la realidad del mundo en el que nos encontramos. En este sentido, esta

disciplina es de gran importancia dentro del tema de la diversidad cultural en el proceso de

enseñanza especialmente en lo que respecta a las características de los territorios de los

diferentes grupos culturales étnicos que viven dentro de nacionales. Por lo tanto, nuestro

objetivo es reflexionar sobre las posibles conexiones entre la geografía y los problemas

raciales y nuestra intención aquí es la sentar las bases, los cimientos de una ciencia

geográfica Afrocentric.

Palabras clave: Geografía, afrocentrismo, la territorialidad.

1Graduado em Geografia pela Universidade Federal Fluminense. Atualmente é aluno de Mestrado do

Programa de Pós Graduação em Geografia Humana da Universidade de São Paulo.

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INTRODUÇÃO

No ano de 2003, foi promulgada a Lei 10.639. Conquista de lutas históricas do

Movimento Negro Brasileiro2, as indicações contempladas pela lei já apareciam no

Congresso Nacional do Negro Brasileiro na década de 1950 que na ocasião já recomendava

“o estímulo ao estudo das reminiscências africanas no país, bem como a remoção das

dificuldades dos brasileiros de cor” posteriormente nos anos de 1980 foi apresentada como

Projeto de Lei na Constituinte de 1988 e sua aprovação reivindicada na Marcha Zumbi em

1995. Nesse contexto, nossa pretensão com este trabalho e o de provocar o ensino de

geografia sobre os impactos da Lei 10.639/2003. Visto que a importância da lei se dá não

só pelo fato de ser fruto de décadas de lutas, de anseios, e reivindicações do Movimento

Negro Brasileiro, mas também por ser uma necessidade, um instrumento de luta da

população negra diante da permanência do racismo e de seus impactos nas relações sociais.

Neste sentido queremos pensar as possíveis articulações entre a Geografia e as

questões raciais, nossa intenção aqui e o de lançar os fundamentos, os pilares para uma

2 Escrever este ensaio é uma etapa de um processo que está sendo construído por uma necessidade de

superação de uma “mudez” política que nos é imposta na sociedade a qual vivemos. Nesse sentido

buscamos com estas rasuras realizar uma luta (ainda que em escala micro) contra um mundo desigual.

Tendo em vista que a construção de um objeto de estudo envolve escolhas teóricas que perpassam pelo

posicionamento político-ideológico bem como pelo envolvimento afetivo-emocional do pesquisador,

podemos afirmar que as rasuras produzidas nesta investigação ganharam delineamento, sobretudo a partir

da nossa inserção enquanto individuo biopsicossocial num lugar determinado do espaço geográfico, e diz

respeito a nossa condição de negro (militante do movimento negro) oriundo de uma favela do subúrbio

do Rio de Janeiro, e que inserido numa sociedade numa academia que tem na maioria das vezes uma

relação difícil conosco, e com a qual nós também mantemos uma relação difícil. De maneira que tudo

que nós produzimos nessa academia de algum modo vai dialogar com essas dificuldades que nós

sentimos e que nós provocamos também nessa academia. Sendo assim, foram esses te rritórios, a favela,

o subúrbio, e a universidade que se constituíram em espaços de conformação da nossa singularidade

subjetiva. Eu vivi neles e com eles, pois tal como assinalava o professor Milton Santos o lugar a qual

nascemos é a lente pela qual nós vemos o mundo. Sendo assim o habitat com o qual nós conformamos o

nosso habitus, é o mesmo que está in-corpo-rado habitando os nossos corpos, isto é que imprimiu

marcas no nosso corpo, que carregam as mesmas histórias que nós carregamos. (Burdieu,1989). Neste

bojo não há romantismo e tão pouco ingenuidades neste trabalho uma vez que este foi escrito no ardor das

lutas sociais e com o único intuito de subsidiar uma ação militante que possibilite a construção de uma

sociedade onde as diferenças sejam não só respeitadas como um direito, mais estimuladas como uma prática

cotidiana, uma sociedade em que não haja espaço para “centrismos” ou imposição de verdades, modelos,

crenças ou normas. Uma sociedade onde não haja espaço para que uma determinada racionalidade possa

subjugar as demais em função de estas estarem distantes em relação a sua visão de mundo bem como dos seus

interesses. Uma sociedade onde os grupos subalternizados tenham o direito de invocar a sua diferença toda

vez que a igualdade lhes discriminar e reivindicar a igualdade toda vez que a diferença lhes descaracterizar.

(Boaventura de Souza Santos).

Page 3: Geografia e Afrocentricidade

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ciência geográfica afrocentrada. Segundo VAZZOLER (2006) “o estudo da Geografia pode

debater, no interior de uma instituição escolar, uma infinidade de questões, entre elas, as

raciais a partir do objeto de estudo dessa disciplina, que é a produção do espaço, construído

por diferentes povos com todos os seus conflitos e tensões” (VAZZOLER, 2006, p. 174).

Como bem sabemos a geografia é uma disciplina fundamental para a constituição

dos referenciais posicionais que orientam os comportamentos dos indivíduos e dos grupos.

Esta é a própria função da Geografia tal como destaca Santos (2007) quando aponta que o

objetivo da Geografia é o indivíduo/grupo “se posicionar no mundo”, num duplo

entendimento:

(i) conhecer sua posição no mundo, e para isto o indivíduo precisa conhecer o

mundo; (ii) tomar posição neste mundo, que significa se colocar politicamente no

processo de construção e reconstrução desse mundo. Se posicionar no mundo é,

portanto, conhecer a sua posição no mundo e tomar posição neste mundo, agir.

Saber Geografia é saber onde você está, conhecer o mundo, mas isto serve

fundamentalmente para você agir sobre esse mundo no processo de reconstrução

da sociedade: se apresentar para participar (Santos, 2007, pg. 27).

Nesta perspectiva, conhecer as configurações espaciais do mundo em que vivemos

nos serve para identificar posições espaciais que são econômicas, sociais e políticas. Neste

sentido falamos de “mundo” como uma noção que atenta para a complexidade espaço-

temporal das relações sociais do/no espaço vivido, relações que o constroem, o

influenciam, são influenciadas por ele, enfim, o constituem bem como são por ele e nele

constituídas, numa relação de imanência que torna indivíduo e mundo algo tão

indissociáveis quanto estrutura (social, econômica, espacial, etc.).

Esta compreensão deve, portanto, ser norteadora da contribuição da Geografia

trabalhada dentro de sala de aula: as noções que aprendemos/ensinamos sobre a geografia

servem para saber interpretar esse mundo, conhecer a sua posição no mundo e agir neste

mundo. Isto implica conceber o espaço geográfico como sendo estrutura – e, a partir disso,

estudar sua organização, seus elementos, seus objetos, etc. -, mas também como

experiência: as posições que os indivíduos e grupos sociais ocupam, bem como as relações

que eles vivenciam, condicionam trajetórias sociais que são, também, trajetórias espaciais,

o que nos permite apontar as inscrições sócio-espaciais de indivíduos e grupos como sendo

experiências espaciais das relações sociais, econômicas e de poder.

Page 4: Geografia e Afrocentricidade

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GEOGRAFIA E RELAÇÕES RACIAIS

As relações raciais são constitutivas do social. Numa sociedade marcada pelo

racismo enquanto sistema de dominação e exploração, que organiza e estrutura relações de

poder, é na vivência e na experiência de indivíduos e grupos que as relações raciais vão se

consubstanciar. Em cada sociedade, a forma como elas se estruturam constitui diferentes

padrões de relações raciais. Enquanto dimensões do social, os padrões das relações raciais

se dão no espaço, com o espaço e a partir do espaço – ou seja, o espaço também é uma

dimensão constitutiva delas. Isto nos permite refletir sobre como indivíduos e grupos

constituem experiências das relações raciais no, com e a partir do espaço.

Segundo Santos (1996,1997) a compreensão da questão étnico-racial no Brasil,

passa pela compreensão do modelo cívico, do modelo cultural e do modelo político

brasileiro, portanto pela compreensão dos sistemas de idéias interpretativas, fundadoras e

formadoras da “civilidade” brasileira. Sendo assim para realizarmos o estudo das relações

raciais em perspectiva geográfica buscamos compreender primeiramente como a idéia de

“raça” como elemento que regula as relações sociais, de alguma forma tem suas

manifestações imbricadas na Geografia.

Para Munanga (2007) Etimologicamente, o conceito de “raça” veio do italiano

razza, que, por sua vez, veio do latim ratio, que significa sorte, categoria, espécie. Por outro

lado continua Marquer, a palavra razza vem do árabe ras, que quer dizer origem ou

descendência (DUNCAN, 1998). Sendo assim é perceptível que, de diversas maneiras, a

Geografia tem relação direta com a constituição das relações raciais. Aqui, estamos falando

de “raça” não como um conceito biológico, mas, enquanto conceito social, enquanto

construção social (Santos 2007, p.26) que é princípio ordenador de relações sociais – este,

se num contexto histórico valeu-se do conceito biológico para se afirmar, hoje já é

independente dele, de modo que a desqualificação no campo da Biologia não elimina a raça

enquanto dado regulador de comportamentos e relações sociais. (Santos, 2007).

Segundo Hintzen (2007) a idéia de “raça” está inteiramente ligada as origens

territoriais, pois quando falamos em “negros”, remetemos diretamente à idéia de uma

comunalidade, se não biológica, certamente de origem histórico-geográfica. Sendo assim o

conceito de “raça” torna-se um conceito eminentemente geográfico, uma noção que se

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assenta sobre leituras espaciais. Tal como assinala Pena (2005): “„Raça‟ pode também

denotar origem em uma região do globo, assumindo o significado de „ancestralidade

geográfica‟ – fala-se então de uma raça africana, raça oriental etc.” (p. 323).

Como podemos observar a Geografia está, portanto, de uma forma muito nítida, na

base da construção da idéia de “raça”, e das relações e dos comportamentos baseados no

princípio de classificação racial. (Op cit,. p. 31). Portanto o conceito de raça deixa de ser,

um princípio de classificação biológica para ser um princípio baseado em “identidades

geoculturais”, identidades baseadas em referenciais espaciais. Trata-se, portanto de um

constructo ideológico que não tem literalmente nada a ver com nada na estrutura biológica

da espécie humana - e tudo a ver, por outro lado, com a história das relações de poder no

capitalismo mundial, colonial/moderno, eurocentrado. (Quijano, 2007). Ou seja, são

construções artificiais que servem para produzir visões de mundo, visões do outro,

orientando e regulando comportamentos e relações tal como no padrão brasileiro de

relações raciais (Santos, 2007).

Para Quijano (2007) a idéia de “raça” foi o mais eficaz instrumento de dominação

social inventado nos últimos 500 anos. Segundo o autor, este conceito foi produzido no

início da colonização e formação da América e do capitalismo, na passagem do século XV

para o XVI e imposta como dominação colonial a toda a população do planeta. Assim

sendo, para Quijano (Idem) o “racismo” é uma das relações sociais cotidianas da

colonialidade do poder que criou códigos sociais, [verdadeiras senhas de acesso à

apropriação de determinados espaços] (Oliveira, 2009).

A “raça” é então um constructo que, ancorado em leituras do espaço, estrutura

também relações de poder com o espaço e no espaço. Leituras de espaço estão, portanto, na

base de conformação do nosso padrão de “relações raciais”: primeiro, porque leituras de

espaço orientam a própria constituição e naturalização da idéia de “raça” e as classificações

em grupos raciais; segundo, porque são leituras de espaço que estruturam e autorizam as

hierarquizações entre os grupos raciais – o que confere supremacia aos “europeus” uma

visão de mundo que aponta a Europa como superior aos outros continentes (melhor

dizendo, superior às outras regiões geoculturais do planeta).

Sendo assim para se discutir uma geografia descolonizada ou pós-colonial, faz-se

necessário compreender a geografia, bem como as demais ciências sociais como elas são

Page 6: Geografia e Afrocentricidade

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atualmente, ou seja, ciências de uma matriz de racionalidade de origem ocidental e

eurocêntrica que se tornou hegemônica mundialmente a partir da dominação e colonização

de outros povos e seus territórios. Como bem sabemos o pensamento europeu coloca-se a si

próprio como um saber superior no mesmo movimento que qualifica todos os outros

saberes como locais ou regionais ou provincianos. Tal lógica é base para a constituição de

uma narrativa (pretensamente) universal da história, mas cuja referência é o

eurocentramento espaço-temporal do mundo. De maneira que tudo que não se assemelha a

esta referência é alçado à condição de primitivo, de tradicional, de pré-moderno, o simples,

o obsoleto, o subdesenvolvido. (Souza Santos, 2002).

Assim, culturas, povos, regiões geoculturais são hierarquizadas, através da adoção

de uma visão de mundo, de história e geografia universais, que é uma visão de espaço-

tempo que transforma simultaneidades em sucessividades. Com isto, a narrativa universal

do mundo o interpreta a partir de dicotomias hierarquizantes. E a dominação aparece como

algo “natural” e uma “obrigação” daqueles que, segundo esta visão de mundo, aparecem

como “superiores” tal como assinala Souza Santos.

A relação de dominação é a conseqüência e não a causa dessa hierarquia e pode ser

mesmo considerada como uma obrigação de quem é classificado como superior

(por exemplo, o „fardo do homem branco‟em sua missão civilizadora).”

(Boaventura de Souza Santos, 2004, pg. 788)3

Isto se coaduna com a imagem de espaço decorrente da monocultura do tempo

linear permitindo a construção de uma narrativa de história universal que é apenas a história

de uma parte do mundo ou, a história contada a partir de uma parte do mundo. Nesta, os

referenciais temporais (as periodizações, as transformações, os processos, as

temporalidades) são todos construídos a partir desta parte que se torna o centro do mundo, e

as outras partes “aparecem e desaparecem” na medida em que se relacionam com grau de

importância com o (ou, para o) centro do mundo/centro da narrativa.

3 Analisando a inserção da África nesta estrutura narrativa eurocentrada, Meneses é taxativa ao afirmar que

“Aqueles que subscrevem a perspectiva hegeliana sobre o mundo aceitam naturalmente que a história se move

de forma unilinear em direção a um fim definido e concreto, em direção ao progresso. A crença na

inevitabilidade do tempo - enquanto processo unidirecional e linear- impossibilita uma análise critica do

progresso, o que, em situações extremas, justifica situações como o fascismo europeu ou a colonização em

África. Múltiplos momentos têm sido, em nome do progresso, tratados como normas históricas, quando, de

facto são aberrações históricas, como o foi a situação colonial, repleta de situações de violência física e

epistêmica.” (Meneses, 2008, pg. 8)

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Sabemos que esse movimento de colonização do conhecimento pelo pensamento

europeu se construiu a partir de uma geografia imaginária onde as diferentes qualidades dos

diferentes povos e culturas foram dispostas num continuum linear que vai da natureza à

cultura, ou melhor, da África, onde segundo a perspectiva eurocêntrica estariam os povos

primitivos mais próximos da natureza, à Europa, onde supostamente estaria à cultura, a

civilização. Neste contexto dominar a natureza, sabemos, é o fundamento da civilização

moderna construída pelos europeus à sua imagem e semelhança e, para isso, os povos a

serem dominados foram assimilados à natureza começando por considerá-los selvagens que

significa, rigorosamente, os que são da selva, logo, aqueles que devem ser dominados pela

cultura, pelo homem (europeu, burguês, branco e masculino). Vê-se, logo, que a invenção

do europeu civilizado é, ao mesmo tempo, a invenção do selvagem e, assim, a invenção da

modernidade é inseparável da invenção da colonialidade. (PORTO-GONÇALVES, 2002).

Este conflito é constituinte do paradigma de des-envolvimento capitalista, baseado

na acumulação diferencial [ou desigual?] de riquezas entre grupos sociais, que são

classificados numa ordem hierárquica de poder. É, acima de tudo, um conflito de cunho

epistêmico, de olhares acerca do mundo e da existência, tão diferenciados entre os povos

colonizadores europeus e os povos colonizados da África. Tais olhares fundamentam-se em

matrizes de racionalidade distintas, que se expressam nas formas de relação que estes povos

estabelecem com a natureza e entre si.

A relação colonial criava uma construção imagética de África como sendo espaços

habitados por povos “primitivos” e de “tempos passados”, enquanto a Europa nascia como

vetor da “civilização” e modernidade. Os diversos povos do mundo passaram a ser

classificados, então, dentro de uma escala que ia dos “primitivos ou selvagens” aos

“civilizados”, onde o desenvolvimento capitalista dos estados europeus era projetado como

o caminho único e determinado para que toda a humanidade atingisse o nível da

“civilização”. No mesmo sentido, elegia-se como única a história do expansionismo

europeu sobre os demais povos, que foram classificados como “sem história”. Uma

pretensa “história mundial” e “moderna” se inaugurava, ignorando e invisibilizando

diversas histórias milenares tal como assinala Mazama (2008).

Com efeito, a Europa forjou grande parte da sua identidade moderna á custa dos

africanos, particularmente por meio da construção da imagem do europeu como

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civilizado e do africano como espelho negativo, isto é, como primitivo,

supersticioso, incivilizado, aistórico e assim por diante. (Mazama, 2008 p, 112).

Estas novas identidades invisibilizavam os povos colonizados em suas

singularidades históricas e diversidade de saberes. Na América, a diversidade de povos

como astecas, maias, aimarás, incas e chibchas, dentre outros, ficou reduzida à limitante

identidade de “índios”; enquanto os povos ashantes, iorubás, zulus, congos e bacongos,

dentre outros trazidos forçadamente da África como escravos, foram reduzidos à

classificação de “negros” (QUIJANO, 2005). Para justificar a dominação colonial européia,

estes povos originários foram retirados de seu lugar de produção cultural da humanidade e

considerados “inferiores”, aqueles que necessitavam da sabedoria e da “civilização” branca

e cristã do Ocidente: sua alteridade era criada enquanto um “espaço vazio” (MENESES,

2008). Desconsiderava-se assim todo um universo de saberes ancestrais, formas de ser,

fazer e conceber elaboradas por estes povos e que orientavam suas relações entre si e com a

natureza. Desta maneira, a colonização impunha-se na esfera cognitiva, elegendo a

perspectiva do conhecimento europeu como a única racional e, portanto, superior. (Colonial

idade do saber e do poder).

O colonialismo europeu inaugurado nos séculos XV e XVI configurava, portanto,

novas relações de poder a nível mundial, que explicitavam divergências entre as matrizes

de racionalidade eurocêntrica e dos demais povos colonizados. Em seu movimento de

expansão contínua e trajetória pretensamente linear, o desenvolvimento rompia com a

circularidade do espaço-tempo tão característica da organização dos povos Africanos, onde

a reprodução da existência dava-se pelo envolvimento cotidiano das famílias, grupos, clãs,

tribos e comunidades. O novo padrão mundial de poder determinava as novas identidades

sociais e geoculturais dos povos através desta classificação social, que passou a associar a

relação de dominação colonial eurocêntrica a uma hierarquia racial. A “racialização” das

relações de poder passaria a identificar no corpo dos povos colonizados a marca de sua

inferioridade, grafada e legitimada pelas características fenotípicas. Desta maneira, a

situação de dominado e “inferior” atribuída aos povos não-europeus, não-brancos, não-

cristãos, não-civilizados e não-des-envolvidos ficava grafada no corpo não-branco, e desta

maneira se perpetuaria para além do colonialismo. Isto consubstancia o que Hernandez

(2005) nos aponta ao dizer que:

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A partir do momento em que foram utilizadas as noções de “brancos” e “negros”

para nomear, de forma genérica, os europeus colonizadores e os africanos

colonizados, os segundos têm de enfrentar uma “dupla servidão”: como ser

humano e no mundo do trabalho. O negro, marcado pela pigmentação da pele,

transformado em mercadoria e destinado a diversas formas compulsórias de

trabalho, também é símbolo de uma essência racial imaginária, ilusoriamente

inferior. (Hernandez 2005, pg. 23).

Tal classificação resultou introjetada no imaginário colonial e permanece numa

relação sedimentada de colonialidade:

La colonialidad es uno de los elementos constitutivos y específicos del patrón

mundial de poder capitalista. Se funda en la imposición de una clasificación racial/

étnica de la población del mundo como piedra angular de dicho patrón de poder y

opera en cada uno de los planos, ambitos y dimensiones, materiales y subjetivas,

de la existencia social cotidiana y a escala societal. (QUIJANO, 2000, pg342).

A colonialidade também batizada de colonialidade do poder, do saber, e do ser.

(Aníbal Quijano, Walter Mignolo, Santiago Castro-Gómez, entre outros) constituiu-se

enquanto relação de poder que cristalizou a superioridade dos povos de origem européia,

brancos, capitalistas e cristãos, sobre os povos de origens diversas, não-brancos e que

orientam a reprodução da própria existência material, simbólica e afetiva a partir de outros

referenciais cosmológicos. Segundo o geógrafo Carlos Walter Porto-Gonçalves (2002) a

modernidade se estabeleceu como padrão universal juntamente com sua contra-face, a

colonialidade – que, diferente de colonização, a qual implica a existência de uma

administração colonial. A colonialidade é um padrão de poder que articula diversas

dimensões da existência social. Trabalho, subjetividade, autoridade, sexualidade, cultura,

identidade, entre outras, são todas dimensões constituintes das experiências sociais de

indivíduos e grupos, e são constitutivas de um pacote de múltiplas relações de poder que,

imbricadas, servem à “colonialidade”. Esta se vale, portanto, de hierarquias sexuais,

políticas, epistêmicas, econômicas, espirituais, lingüísticas e raciais de dominação,

operando em diversas escalas, desde a global até as interações entre dois indivíduos.

(Emerson Santos, 2009, p. 33).

Nós afro-brasileiros carregamos o experienciar de uma dupla colonialidade:

enquanto povos oriundos de uma África negra colonizada e saqueada, e enquanto escravos

trazidos para a América e posteriormente transformados numa grande maioria dentre

aqueles que compõem os índices de exclusão e pobreza. Iniciada com a escravidão, a

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violência estrutural, simbólica e epistêmica imposta aos povos negros da África e seus

descendentes na América encontra-se institucionalizada nas estruturas, representações,

práticas e atitudes que continuam invisibilizando o negro, ignorando seus saberes e direitos.

POR UMA GEOGRAFIA DESCOLONIZADA: UMA GEOGRAFIA DE

PARADIGMA AFROCÊNTRICO.

Para descolonizar a geografia e combater o primado da visão eurocêntrica que

monopoliza este que é um veículo central na constituição de visões de mundo, de formas de

ler o mundo que estrutura mentalidades individuais e coletivas. Buscamos construir uma

geografia de cunho afrocêntrico, ou seja, uma teoria geográfica inspirado nos princípios

metodológicos da afrocentricidade.

Compreendemos aqui afrocentricidade como sendo uma orientação metodológica

que advoga a analise da história, e das geo-grafias, e culturas africanas (isto é do continente

e da diáspora) e, de maneira geral, da história e das geo-grafias, e culturas mundiais por

meio de uma perspectiva afrocêntrica. (Rabaka 2008, pg.129). A afrocentricidade tem suas

raízes profundas no radicalismo negro dos anos de 1960, inspirando-se em teóricos ativistas

sociais e políticos dos Direitos Civis e do Poder Negro, assim como em teóricos pan

africanistas e africanos pós-coloniais. Nogueira Junior (2010 apud, de Asante 1987)

oportunamente destaca que:

Deve-se enfatizar que afrocentricidade não é uma versão negra do eurocentrismo

(Asante, 1987). eurocentrismo está assentado sobre noções de supremacia branca

que forma propostas para proteção, privilégios e vantagens da população branca na

educação, na política e assim por diante. De modo distinto do eurocentrismo a

afrocentricidade condena a valorização etnocêntrica ás custas da degradação das

perspectivas de outros grupos. Além disso, o eurocentrismo apresenta a história

particular e a realidade dos europeus como conjunto de toda experiência humana.

(Asante 1987). O eurocentrismo impõe suas realidades como sendo “universal”,

isto é, visto como um grupo específico, por conseguinte, como não-humano. O que

explica porque alguns acadêmicos e artistas afro-descendentes se apressam por

negar e recusar sua negritude; elas e eles acreditam que existir como uma pessoa

negra significa não existir como um ser humano universal. Conforme Woodson,

elas e eles se identificam e preferem a cultura, arte e linguagem européia no lugar

da cultura, arte e linguagem africana; elas e eles acreditam que tudo que se origina

da Europa é invariavelmente do que tudo que é produzido ou assuntos de interesse

de seu próprio povo. (Nogueira Junior 2010, pg. 3).

Page 11: Geografia e Afrocentricidade

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Embora o conceito de afrocentricidade só tenha surgido enquanto paradigma

cienífico apenas na década de 1980 com a publicação do livro Afrocentricidade, de Molefi

K. Asante (1980), seguido por A idéia afrocêntrica (1987) e Kemet, afrocentricidade e

conhecimento (1990). Reconhecemos que a teoria afrocêntrica recebeu uma ampla

contribuição de teorias e teóricos das diversas comunidades discursivas do continente

africano até o Caribe, dentre estas múltiplas contribuições destacamos as dos teóricos

afrocentrados como W. E. B. Du Bois, Anna Julia Cooper, Cheik Anta Diope, Frantz Fanon

ao lado de Kwame Nkrumah, Malcolm X, Amilcar Cabral, Walter Rodney, Ella Backer e

Maulana Karenga entre muitos outros. Sendo assim podemos afirmar que afrocentricidade

surgiu como um novo paradigma para desafiar o eurocêntrico, responsável por desprezar os

africanos, destituí-los de soberania e torná-los invisíveis – até mesmo aos próprios olhos,

em muitos casos.

No âmago da idéia afrocêntrica está a convicção de que os africanos devem operar

como agentes autoconscientes, não mais satisfeitos em ser definidos e manipulados de fora.

Cada vez mais controlando seu próprio destino por meio de uma auto-definição positiva e

assertiva (MAZAMA, 2008). Sendo assim a afrocentricidade constitui uma orientação

epistemológica e metodológica que atravessa e constitui todas as produções acadêmicas que

tem como ponto de partida um lugar africano. Em outras palavras, afrocentricidade é um

paradigma que advoga que todos os fenômenos devem ser analisados e investigados dentro

de uma perspectiva que localize as africanas e os africanos como protagonistas. A demanda

dos povos africanos, ressaltando que “africanas” e “africanos” não diz respeito, somente, às

pessoas nascidas no continente africano; mas, recobre todas pessoas afro-diaspóricas. “A

idéia afrocêntrica refere-se essencialmente à proposta epistemológica do lugar” (Asante,

2009, p.93). Nas palavras de FINCH III podemos definir afrocentricidade como sendo

“uma escola de pensamento que coloca a África no centro de todos os estudos que se

relacionam com este continente e com os povos de descendência africana‟4.

Uma escola de

pensamento nascida na resistência, ou melhor, nascida na r-existência5,

pois não somente

lutam para resistir contra o pensamento hegemônico, mas também por uma outra forma de

4 (Finch III 2008. p.167).

5Termo cunhado por Porto-Gonçalves (2002) para demonstrar que a lutas desses grupos sociais tem um

significado social e cultural, mas profundo do que uma simples reação.

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existência, ou seja, a afrocentricidade é o solo dos conceitos; não queremos afirmar que o

solo seja o próprio continente africano ou que, apenas, as pessoas africanas e afro-

diaspóricas transitem nesse terreno. Mas, indica que o horizonte de todo acontecimento

brota da afrocentricidade, isto é, todos os conceitos emergem de um lugar que não descreve

a Europa como “O” velho mundo, não compartilha com a noção de que a modernidade e a

ciência sejam fontes necessárias de progresso, não define conhecimento como

representação. Em outras palavras, definir a afrocentricidade como paradigma é

desconstruir a Europa como centro e descartar a colocação da África como periferia; ou

ainda, indo mais longe abandonar as idéias de centro e periferia. Portanto, afrocentricidade

é a possibilidade de construção de uma história das ações a partir do lugar; O lugar porque

a partida nunca é de uma periferia ou de um centro hegemônico; mas, sempre do ponto em

que os “deslocados em termos culturais, psicológicos, econômicos e históricos” (Asante,

2009, p.93) partem.

Nosso objetivo neste trabalho está longe de querer estabelecer heróis e vilões,

porque a afrocentricidade enquanto paradigma não opera com simplificações maniqueístas.

Mas, sublinha que a busca de consolidação da liberdade humana é o horizonte.

Portanto, a afrocentricidade é rival do racialismo, do racismo, da hierarquização

humana pelas raças, da política de produção da brancura e da pureza como símbolos da

verdade, baluartes da representação. A afrocentricidade questiona e coloca em xeque essas

teorias de representação que surgiram partir do branqueamento, e que remetem à idéia de

que existem um tipo humano superior aos outros. Um conceito que está no campo de

produção de pensamento do iluminismo, porque à medida que se encara a razão como fonte

de conhecimento para o progresso, algumas verticalizações desenham um território mais

próximo da verdade e outros que merecem correção. O que cerceia a liberdade e a

expressão dos povos negros, interditando aos africanos e afro-diaspóricos um espaço

legítimo de protagonismo na produção de conhecimento. Neste sentido, não é excessivo

repetir que assumir a afrocentricidade, se colocar como uma intelectual afrocentrista não

faz da pessoa uma idealista no sentido metafísico e transcendente do termo. O que é ser

africana ou africano? “Não se trata de um termo essencialista, ou seja, não é algo que se

baseie simplesmente no „sangue‟ ou nos „genes‟” (Asante, 2009, p. 102). Para Asante, uma

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pessoa que se afirma africana e afrocentrista está em favor das resistências ao projeto

hegemônico europeu de pasteurização do mundo e das múltiplas formas existência.

Aparato conceitual do paradigma Afrocêntrico e suas conotações

geográficas.

Segundo Ama Mazama (2008) os conceitos chave em que se baseiam os paradigmas

afrocêntricos são os seguintes: centro, localização, lugar, deslocamento e recolocação (re-

territorialização), ou seja, a busca de referenciais simbólicos e territoriais em África o que

permite que os africanos e afrodiaspóricos deslocados – removidos ou desenraizados de seu

território cultural e afastados de teoria e das tradições africanas se (re)localizem, se

(re)territorializem ou seja, retomem a humanidade, a história e a herança que lhes foram

furtadas, reapropriando-se delas. (Rabaka, 2008. 135). Para Mazama o conceito de centro

(também localização, lugar) ocupa, como, se poderia esperar, uma posição essencial no

aparato conceitual afrocêntrico, baseia-se basicamente na convicção de que a história, a

cultura e ancestralidade determinam nossa identidade. Esta, por sua vez, determina nossa

localização, nosso centro, nosso lugar na vida, tanto material quanto espiritual. (Mazama,

2008). Trata-se de um sentimento de pertencimento que faz com que se considere se a idéia

de “regressar ao lugar” ou a defesa do lugar como projeto (ESCOBAR, 2005). Sendo assim

na perspectiva afrocêntrica conceber-se de maneira compatível com sua história cultural,

territorial e ancestral é estar centrado, ou proceder a partir de seu centro, é parar de olhar e

reproduzir os europeus e seus costumes. É oferecer alternativas éticas e igualitárias á ordem

estabelecida, fazendo perguntas a África e procurando respostas em sua história cultura e

filosofia ás principais questões da era moderna (Rabaka, 2008).

Segundo Porto Gonçalves o paradigma de ciência moderna ocidental eurocêntrico

está em crise, e como bem sabemos os paradigmas não caem do céu. Os paradigmas são

instituídos por sujeitos social, histórica e geograficamente situados e, deste modo, a crise

desse paradigma é, também, a crise da sociedade e dos sujeitos que o instituíram (Porto -

Gonçalves, 2002). De acordo com a tese do autor aqui subjacente, neste novo século

veremos emergir novos paradigmas e junto com eles novos sujeitos que reivindicam um

lugar no mundo. Ou, dito de outra forma, esses sujeitos que muitos chamam novos, embora

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não o sejam tanto, põem em debate outras questões, outras relações, ele(a)s que tiveram que

se forjar em situações assimétricas de poder mas que nem por isso se anularam e, mais do

que resistir, R-Existiram, se reinventaram na sua diferença, assim como o europeu é,

também, uma invenção na diferença embora na condição de pólo dominante no “sistema-

mundo”. Afinal, desde que se deu esse extraordinário encontro moderno-colonial (1492),

Segundo Porto-Gonçalves (2001) mal-encontro, emergiram culturas e povos diferentes

mostrando-nos um mundo muito mais diverso do que faz crer o olhar colonial eurocêntrico

ou que vê mais a lógica do capital do que as lógicas dos que a ele resistem (PORTO-

GONÇALVES, 2002).

Este desafio de descolonização é, portanto, um processo de abertura a outras

“perspectivas”, pontos de fuga que definem ângulos diferenciados de visão de mundo. Isto

começa, portanto, da aceitação da existência de múltiplas possibilidades de construção de

visões de mundo, a partir das experiências e vivências de espaço de indivíduos e grupos.

(Santos, 2007). É, portanto, a proposição de pedagogias centradas a partir de outros

“lugares” – outros “topoi”, no dizer de Carlos Walter Porto-Gonçalves.

Sendo assim, como a crítica ao eurocentrismo envolve (i) a crítica à visão

eurocêntrica do mundo, e (ii) a crítica aos impactos desta visão no mundo - racismo,

concentração da riqueza e pobreza, exploração, destruição ambiental enquanto malefício de

uma forma de relação sociedade-natureza possível a partir da divisão entre elas, etc.

(Santos, 2007). Estes problemas têm que ser mostrados como dimensões constitutivas da

modernidade e do capitalismo, como coisas que estão presentes onde quer que capitalismo

e modernidade e a racionalidade eurocêntrica se instale. Para tanto iremos apontar algumas

possibilidades um interessante exercício para dar início à crítica à visão eurocêntrica do

mundo é propor outras representações cartográficas e buscar fazer outras regionalizações

do mundo. Fazer o confronto entre os mapas mundi de Mercator – o mais utilizado, e que

coloca a Europa no centro e no alto do mapa – e a projeção de Arno Peters, chamada de

“projeção terceiro-mundista” já constitui um bom ponto de partida para a discussão do

eurocentrismo. Pois tal como assinala Santos (2007).

A projeção de Peters reduz a distorção cartográfica das áreas de latitude mais alta,

como faz a de Mercator que, por isso, amplia consideravelmente a Europa – nela,

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por exemplo, a Groenlândia aparece como sendo duas vezes maior do que a

América do Sul, quando na verdade a América do Sul é oito vezes maior do que a

Groenlândia. (Santos 2007, p. 38).

Figura 1. O Mundo na Projeção de Arno Peters, subvertendo a direção norte

tradicional

Fonte:Santos, 2007

Figura 2. O Mundo na Projeção de Mercator

Fonte: Santos, 2007

Outra possibilidade para iniciar a desmistificação do eurocentramento do

mundo é utilizar o mapa mundi com o pólo norte na parte de baixo na tentativa de ressaltar

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o continente africano e diminuir a importância da Europa. O que não significa uma

discriminação contra toda a tradição européia; mas, o questionamento de sua

universalidade. (Nogueira Jr 2009, pg. 11). Como já nos diz Eduardo Galeano, em

passagem que aparece num mapa anexado ao volume organizado por Edgardo Lander, “A

colonialidade do saber: Eurocentrismo e ciências sociais – perspectivas latino-americanas”:

“Até o mapa do mundo mente. Aprendemos a geografia do mundo num mapa que

não mostra o mundo tal qual ele é, mas tal como seus donos mandam que seja. (...)

O mapa, que nos diminui, simboliza tudo mais. Geografia roubada, economia

saqueada, história falsificada, usurpação cotidiana da realidade: o chamado

Terceiro Mundo, habitado por gentes de terceira, abarca menos, come menos,

recorda menos, vive menos, diz menos.”

Mapa Mundi de Arthur Robinson

A projeção de Arhur Robinson, de 1961, tenta reduzir a distorção das áreas de

latitudes mais altas. Aqui, a colocamos com o norte virado para baixo – é uma decisão

política colocá-lo sempre na parte de cima do mapa. (Santos, 2007).

Considerações Finais

A partir dos fatos mencionados podemos concluir que os princípios teóricos

metodológicos da afrocentricidade constituem-se em uma forma de re-acostumar o olhar,

educar o entendimento para uma forma distinta de entrevistar a realidade. È uma forma de

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propor a partir de intensidades afrocentradas, deslocamentos e novos descentramentos. É a

possibilidade de colocar o sul como orientação. Propor o feminino como plural do gênero

humano. Afinal, por que não usar mulher como sinônimo de humanidade? Tal como nos

instiga Nogueira Jr (2009). De maneira que o debate cartográfico constitui-se em uma

excelente chave para as críticas políticas sobre visões de mundo em especial as de padrão

eurocêntrico.

Por fim podemos perceber que a crítica e desconstrução destas leituras

hegemônicas é uma estratégia possível. Santos (2007) nos recorda que a Geografia não é o

instrumento único de construção de uma visão eurocêntrica – tarefa que é compartilhada

com outros campos científicos. De maneira que trabalhos que busquem outra perspectiva,

outra leitura e interpretação do mundo provavelmente vão entrar em choque com trabalhos

de outras ciências. Sendo assim, construir e solidificar os pilares já consolidados é fazer sua

crítica e desconstrução

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