gÊnero e docÊncia: visualidades...
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GÊNERO E DOCÊNCIA: VISUALIDADES ENTRE/TECIDAS
Maria Emilia Sardelich1 Maria Laudiceia Almeida Lira2
Maria do Socorro Costa Limeira3 Shirley Moreira Tanure4
RESUMO
Vários estudos vêm constatando a predominância de mulheres na profissão docente. A denominada feminização do magistério tem se vinculado à desqualificação e precarização profissional. As categorias sociais gênero e docência nutrem-se da/e na ambiência social, em meio às disputas de poder para dizer o que são. Por isso carregam uma multiplicidade de sentidos. É por essa variedade de sentidos que nossa investigação debruça-se sobre os “modos de ver” a docência que circulam entre licenciand@s de Pedagogia, da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), em um momento em que a profissão conta com reduzido status social. A pesquisa situa-se no âmbito dos Estudos Culturais, na perspectiva da Cultura Visual, compreendendo o visual como lugar de interação social e enunciados de classe, gênero, identidade sexual e racial. Nosso foco não está no que pensamos sobre essas representações, mas sim nas narrativas que essas imagens fazem circular. Exploramos o modo pelo qual as narrativas favorecem determinadas visões de docência. Os resultados apontam para uma visualidade comum de “docência generificada”. Essas imagens revelam a sexualidade negada da profissional que ocupa o imaginário de licenciand@s, como também regula os corpos discente e docente. Junto a essa visualidade comum emergem imagens enigmas da paisagem midiática. Essas imagens sinalizam para uma narrativa transmídia, uma “docência provocadora”, que pode forjar-se na cultura da convergência. Uma cultura na qual a própria mitologia pessoal se organiza a partir de fragmentos de informação extraídos do fluxo midiático e constrói subjetividades entre fronteiras.
Palavras-chave: Gênero. Generificação. Visualidade. Formação de professores.
INTRODUÇÃO
1 Doutorado Educação - Universidade Federal da Paraíba (UFPB) - Grupo de Pesquisa em Ensino
das Artes Visuais (GPEAV) - [email protected] 2 Pesquisadora Grupo de Pesquisa em Ensino das Artes Visuais (GPEAV) – UFPB.
3 Pesquisadora Grupo de Pesquisa em Ensino das Artes Visuais (GPEAV) – UFPB.
4 Pesquisadora Grupo de Pesquisa em Ensino das Artes Visuais (GPEAV) – UFPB.
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O momento de secularização e de estatização do ensino, que ocorre no
continente europeu, ao final do século XVIII, trouxe novas dimensões para a
docência. Nóvoa (1991) afirma que essa etapa do processo de profissionalização
permitiu a consolidação do estatuto e da imagem docente que substituiu,
paulatinamente, um corpo de professores religiosos, ou sob o controle da Igreja, por
um corpo docente laico, sob o controle do Estado. Apesar dessa substituição de
controle, poucas foram as mudanças nas normas e valores proclamados pelo
modelo religioso. No século XIX fundam-se as primeiras instituições de formação de
professores e, em meados desse mesmo século, admite-se a presença de mulheres
no exercício do magistério.
Ao longo do século XX a denominada feminização do magistério acentua-se e
vincula-se à desqualificação e precarização profissional. Os avanços da
microeletrônica, combinada com a informática e as telecomunicações,
transformaram os modos de trabalhar e divertir, os modos de relacionamento da
humanidade com a sua própria memória e o conhecimento. Essas transformações
alteraram profundamente as necessidades de aprendizagem bem como as
possibilidades para aprender. A denominada competência digital – que se define
como o uso seguro e crítico das Tecnologias da Informação e Comunicação (TIC)
para o trabalho, o ócio e a comunicação - e a aprendizagem ao longo da vida,
tornaram-se palavras de ordem para o crescimento pessoal e a empregabilidade na
sociedade do século XXI.
Nesse cenário, a instituição escolar tem sido acusada de não cumprir com
seu papel, dado seu apego a modelos pedagógicos anacrônicos, ao mesmo tempo
em que @s docentes são convocad@s a promover as aprendizagens que
respondam aos desafios da incerteza, da diversidade, da instabilidade que
caracterizam os modos de vida no século XXI. Nóvoa (2009) observa que
investigadores das ciências da educação, das didáticas, de redes institucionais
diversas, bem como políticos e legisladores, já estão de acordo em relação aos
princípios e medidas necessárias para assegurar a formação e o desenvolvimento
profissional de docentes que atendam aos desafios do século XXI. Porém, mesmo
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que esse discurso seja coerente e consensual entre investigadores e legisladores,
Nóvoa (2009) afirma que raramente temos conseguido fazer aquilo que é dito como
sendo preciso fazer para a valorização profissional docente. O autor identifica que
@s docentes não são @s autoras desse discurso e tem tido seu território
profissional e simbólico ocupado por outros grupos que estão produzindo uma
inflação retórica sobre a missão docente.
No Brasil o processo de profissionalização docente apresenta algumas
especificidades e defasagens em relação ao ocorrido no continente europeu.
Somente no início do período republicano, ao final do século XIX, que a
profissionalização docente se inicia no País e as mulheres ocupam esse espaço ao
longo do século XX (VEIGA, ARAÚJO, KAPUZINSKIM, 2005). Dados do Anuário
Brasileiro da Educação Básica de 2014 indicam que 80% do total de docentes na
Educação Básica são mulheres (TODOS PELA EDUCAÇÃO, 2014).
Vianna (2013) observa que a docência abriu um dos primeiros campos de
trabalho para as mulheres brancas estudadas das chamadas classes médias. Ao
mesmo tempo em que essas mulheres protagonizavam a luta pela participação
feminina na esfera econômica e política também representavam uma feminilidade
idealizada. A autora compreende que a feminização do magistério não abarca,
apenas, o aspecto quantitativo, mas também o modo como os denominados
significados femininos – o amor, o cuidado, a domesticidade - estão representados
nessa atividade. Vianna (2013) afirma que esses significados não são associados à
competência profissional nem ao engajamento político sindical. Por outro lado, na
mídia brasileira circulam imagens de docentes que desistem do magistério como
também imagens daquelas docentes que resistem a aceitar a precária situação
educacional brasileira como uma fatalidade, posicionando-se publicamente, em
assembleias legislativas (Figura 1), nas redes tecnológicas (Figura 2) denunciando
as péssimas condições das instituições escolares em que atuam, nas ruas
enfrentando-se à violência policial em momentos de reivindicação profissional
(Figura 3).
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Figura 1. Professora Amanda Gurgel, Assembleia Legislativa
(RN), 10/05/2011.
Figura 2. Professora Uiliene Araújo Santa Rosa, Facebook,
12/10/2012.
Figura 3. Professora Lenita Oliveira, RJ 3/10/2013. Fabio Motta / Agencia O Dia, 2013.
A docência nutre-se da/e na ambiência social, daquilo que é valor na
coordenada espaço temporal em que se constitui. A docência é uma construção
social e histórica em meio às disputas de poder para sua definição, que carrega uma
multiplicidade de sentidos. É por essa variedade de sentidos que nossa investigação
debruça-se sobre os “modos de ver” a docência que circulam entre licenciand@s da
Universidade Federal da Paraíba (UFPB), em um momento em que a profissão
conta com reduzido status social. Por isso nos perguntamos sobre a contribuição
que o conceito de gênero pode oferecer para dar visibilidade à construção social
dessa representação.
Outras investigadoras já têm se debruçado sobre a representação de
docentes em textos da literatura infantil (SILVEIRA, 2004, 2002), de revistas
pedagógicas (COSTA E SILVEIRA, 1998), em imagens do cinema (DALTON, 1996)
e produzidas por discentes (COSTA, 2011; FISCHMAN, 2005; LEITE, HYPOLITO E
LOGUERCIO, 2010). Nossa pesquisa situa-se no âmbito dos Estudos Culturais, na
perspectiva da Cultura Visual, compreendendo o visual como lugar de interação
social e enunciados de classe, gênero, identidade sexual e racial. As noções de
visão - o processo fisiológico em que a luz impressiona os olhos - e visualidade - o
olhar socializado - são fundamentais nesse entendimento da Cultura Visual
(MIRZOEFF, 2003). Tourinho (2009) denomina de visualidades comuns um campo
de imagens de referência que compartilhamos, num sentido semelhante ao senso
comum, quando nos referimos a ideias, práticas, hábitos que nos aproximam. Nosso
foco não está no que pensamos sobre essas representações, mas sim nas
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narrativas que essas imagens fazem circular. Exploramos o modo pelo qual as
narrativas favorecem determinadas visões de docência.
Quando as crianças chegam à escola trazem experiências que afetam suas
construções cognitivas e que se referem aos conteúdos estudados na escola. Do
mesmo modo @s licenciand@s também trazem representações sobre a docência.
Como sinaliza Hernandez (2005), chegamos aos cursos de Licenciatura com uma
identidade, uma biografia em construção alicerçada em nossas experiências de
gênero, etnia e classe social. Pensamos, como Garcia (2009) que o processo de
formação d@s Licenciand@s deve dar atenção às representações, crenças e
preconceitos de discentes e docentes, pois estes afetam a aprendizagem da
docência, possibilitando ou dificultando as transformações. Fazer emergir e circular
as representações d@s Licenciand@s sobre a profissão pode levar ao
questionamento de suas ideias e noções sobre a prática docente e colaborar para a
reflexão e construção de outros processos de identificação profissional.
Trabalhamos neste projeto, pois avaliamos ser possível discutir os processos
de significação da docência e de nossas relações com os demais e o meio ambiente
em nossos espaços de aprendizagem. Elaborar este projeto e os textos que dele se
originam nos permite refletir sobre a narrativa que vem se configurando sobre a
docência, bem como as que fazemos circular, pois estas também fazem parte dos
dispositivos de produção de subjetividades (GUATTARI, 1990). Investigamos as
narrativas sobre a docência que circulam nessas imagens para pensar o formar/se
em um mundo que se con/forma, de/forma, in/forma, trans/forma no incontrolável
fluxo de bits que aparecem em formato de imagens e palavras, práticas discursivas
para “laminagem das subjetividades, dos bens e do meio ambiente” (GUATTARI,
1990, p. 12). Apresentamos, a seguir, os primeiros achados em nossa investigação
e as nossas considerações transitórias.
1 PRIMEIROS ACHADOS
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Participaram da primeira coleta de imagens desta pesquisa 36 licenciandas e
2 licenciandos de Pedagogia, do quarto período do curso, no segundo semestre de
2013. No componente curricular Didática trabalhamos a memória educativa d@s
licenciand@s em uma reflexão sobre a profissão, o profissionalismo e a
profissionalidade (FARIAS et al, 2011). A produção do memorial abarca a linguagem
verbal e visual. Na produção visual @ licenciand@ apresenta uma imagem que,
para ela/ele, represente a docência, o exercício profissional. A imagem pode ser de
autoria própria ou alheia, produzida a partir de qualquer técnica (desenho, pintura,
colagem, fotografia, etc.). Essas imagens são compartilhadas e interpretadas pelo
coletivo. Das 38 imagens coletadas, 30 são de autoria alheia, sendo imagens
disponíveis em revistas, sites da Internet, de conteúdo educacional. Somente uma
imagem pertence ao repertório consagrado pela História da Arte. Dentre as 8
imagens de autoria própria, 4 são fotografias; 3 desenhos, sendo dois em branco e
preto e um em cores; 1 colagem.
Figura 4. Representações da Docência, Pedagogia 2013.
Na figura 4 estão circuladas as duas imagens que foram apresentadas por
mais de uma licencianda. Das 38 imagens apresentadas, 34 aludem a figura
humana e somente 4 são figurativas sem referência direta à figura humana.
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Figura 5. Representações Figurativas Docência, Pedagogia 2013.
O cenário privilegiado é a sala de aula, representada em 21 imagens.
Figura 6. Cenário Representações Docência, Pedagogia 2013.
A figura masculina, acompanhada ou não de crianças/jovens, aparece em 8
imagens.
Figura 7. Representações Masculinas Docência, Pedagogia 2013.
A figura feminina, acompanhada ou não de crianças, predomina na
representação da docência em 18 imagens.
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Figura 8. Representações Femininas Docência, Pedagogia 2013.
2 VISUALIDADE COMUM: DOCÊNCIA GENERIFICADA
Nossos resultados se aproximam aos do estudo de Fischman (2005), e de
Leite, Hypolito e Loguercio (2010), pois predomina a representação de uma mulher
vestida sobriamente, frente a um quadro ou escrivaninha (Figura 9), muito próxima
da imagem da Professora Marocas, personagem das Histórias em Quadrinhos de
Maurício de Sousa (Figura 10).
Figura 9. Visualidade Comum
sobre a Docência.
Figura 10. Professora Marocas,
Turma do Chico Bento. Sousa, 2007
Consideramos essas imagens como visualidades comuns que emergem no
cruzamento das redes de significados compartilhados pelas licenciandas. Louro
(2002) afirma que no entrecruzamento dessas representações algumas ganham a
autoridade do óbvio, do senso comum, da autoevidência, que se chega a esquecer
de seu “status de representação” socialmente construída. Essas imagens apontam
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para uma representação naturalizada da docência, como atividade feminina,
exercida por mulheres sem atrativos físicos, munidas de signos como réguas, livros,
globo terrestre, batuta, que revelam a regulação dos corpos, tanto de discentes
quanto das próprias docentes. Essas imagens apontam indicam uma concepção de
docência generificada, que não subverte o discurso da “natureza feminina” como
sendo a inclinação para a maternidade, o cuidado, a entrega, a doação.
São imagens que se entre/tecem no sentido de ditar um modo de exercer a
docência e quem a exerce. Louro (1999) observa que por meio de múltiplos recursos
se reforça uma estreita ligação entre professoras e crianças que chega a infantilizar
o processo de formação e o exercício da profissão. As imagens com as quais as
licenciandas de Pedagogia do século XXI identificam a profissão docente pouco
rompem com os lugares comuns dos estereótipos destinados às professoras. Essas
licenciandas são subjetivadas por imagens que reforçam uma determinada
“pedagogia visual do feminino” (LOPONTE, 2008).
Louro (1999) adverte para não incorrermos no erro de homogeneizar todos os
discursos e práticas de sujeitos que exerceram e exercem a docência no Brasil,
porém recorda que, apesar das múltiplas práticas e discursos sobre a docência, nem
todos são considerados socialmente do mesmo modo. Alguns se fixam como os
verdadeiros ou verdadeiras práticas docentes. Apesar desses discursos
impregnarem as visualidades comuns encontradas em nossa investigação, também
circularam imagens que consideramos enigmas e apresentamos uma a seguir.
3 IMAGENS ENIGMAS: DOCÊNCIA PROVOCADORA
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Figura 11. Bui Brothers, Brainiac, 2013.
A imagem da Figura 11 causou um grande alvoroço durante a discussão
coletiva com as licenciandas. A primeira frase que emergiu rapidamente na
apresentação da imagem foi: “Ela tá se achando! Não é a imagem de uma
professora.” O grupo agitou-se com a imagem levando todas as licenciandas a falar
ao mesmo tempo, desrespeitando as regras previamente ajustadas de solicitar a
palavra. Chamou nossa atenção a expressão “Ela tá se achando”, que em geral
utiliza-se para a pessoa que deseja ser o centro das atenções; uma pessoa que,
supostamente, sente-se poderosa, “se acha” e é classificada como arrogante. No
tumulto repentino emergiram argumentos como: “é uma mulher muito sexy”, “ela não
pode entrar assim numa sala do terceiro ano”, “ela está com os braços de fora”, “o
vestido é muito sensual”, entre outros que giraram em torno da elegante e refinada
aparência da figura feminina. Esta imagem foi selecionada por uma licencianda, de
19 anos que, durante a discussão coletiva, não quis se identificar, nem apresentou
nenhum argumento em defesa ou em contra dessa representação. Ao conseguirmos
reorganizar a discussão, recordamos ao grupo que solicitamos uma imagem que
representasse a docência, ou seja, a profissão e não a profissional, a professora.
Apesar de ratificarmos que estávamos discutindo sobre a representação da
profissão, o argumento que, quantitativamente sobressaiu foi o de que “uma
professora não deve vestir-se desse modo”. Ao questionarmos tal argumento o
grupo justificou o posicionamento afirmando que uma professora “está para cumprir
o ofício”. Indagamos os motivos pelos quais a vestimenta estaria inadequada para o
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ofício e a justificativa foi a de que “a professora deve ter os braços cobertos”.
Questionamos as razões para os braços cobertos, pois se essa mulher tem os
braços descobertos, por sua vez está de meias cobrindo as pernas. O grupo
justificou a necessidade dos braços cobertos pelo fato de que uma professora acaba
tendo contato físico com crianças, pode pegar no colo, abraçar, daí a necessidade
dos braços cobertos. As licenciandas também observaram que as meias escolhidas
pela mulher da imagem não são para cobrir as pernas, pois são “meias
provocantes”.
Os argumentos apresentados pelas licenciandas apontam para a constatação
de Silveira (2004) em relação às exigências de uma postura educacional assexuada
na docência. Louro (1999) destaca a imbricação entre gênero – a condição social
pela qual somos identificados como mulher ou homem- e a sexualidade - a forma
cultural pela qual vivemos nossos desejos e prazeres corporais - na docência.
Observa que a sexualidade da docente vem sendo negada em função das restrições
em relação ao contato físico entre professoras e alun@s, pois abraços e beijos
foram considerados práticas inadequadas durante muito tempo.
Apenas duas licenciandas, dentre 36 mulheres, levantaram argumentos em
favor dessa representação para a docência. Os argumentos foram: “essa mulher é
uma intelectual, pois tem muitos livros, se as professoras assumissem o lado
intelectual da docência e não o maternal, a profissão seria mais respeitada”; “se as
professoras se vestissem bem, como essa mulher, seriam mais valorizadas”. Em
relação ao argumento da docência como atividade intelectual, Giroux (1997) afirma
que compreender o trabalho docente como intelectual implica tornar o pedagógico
mais político e o político mais pedagógico, o que significa inserir a escolarização
diretamente na esfera política e fazer ecoar a voz ativa dos estudantes em suas
experiências de aprendizagem.
A imagem que causou tanta discordância entre as licenciandas de Pedagogia
representa uma mulher jovem, diante de uma grande estante de livros que necessita
de uma escada para poder alcançar todas as prateleiras. A estante contém muitos
livros, ordenados, porém não simetricamente e ocupam todos os lugares
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disponíveis. Causa a impressão de que falta espaço para mais livros e juntam-se a
pequenos objetos que, aparentemente, parecem pertencer a diversas culturas.
Assemelha-se a estante de um colecionador, um estudioso em determinado
assunto. A jovem mulher, de cabelos curtos e avermelhados, usa óculos, agarra-se
à escada com a mão direita e sustenta-se sobre um degrau com o pé direito. Segura
um livro aberto com a mão esquerda, porém não olha para o livro, mas sim para o
espectador em uma atitude séria, de lábios vermelhos e fechados, com uma
expressão que sugere uma indagação, como se aguardasse a resposta a um
enigma. Dentre os vários significados atribuídos pela simbologia ao livro temos
sabedoria, revelação, manifestação da mensagem divina, o próprio Universo. Um
livro aberto significa matéria fecundada e seu conteúdo possuído por quem o lê
(Chevalier e Gheerbrant, 1998).
A seriedade da expressão facial da mulher representada contrasta com a
leveza da pose que se sustenta apenas sobre o pé direito, em um degrau da
escada, com a perna esquerda dobrada para trás, em uma atitude juvenil e graciosa.
A vivacidade da pose contrasta com a sobriedade do vestido preto de alças muito
finas, que deixa a descoberto o colo e braços finos, tendo as pernas encobertas por
meias “arrastão”, de um desenho similar a uma rede, que sugere um ar “retrô” à
mulher, apesar da elegante modernidade.
A figura feminina que posa nesta imagem é a atriz estadunidense Felicia Day
(1979). A imagem está disponível no site da atriz5 e tem por título Brainiac. A autoria
da imagem é da dupla de fotógrafos estadunidense Bui Brothers, e recebe duas
etiquetas de identificação na web: Bui Brothers e Felicia Day. Sobre o título Brainiac,
o dicionário da língua inglesa Oxford, indica como substantivo, originário da
linguagem informal norte americana, que significa uma pessoa de inteligência
excepcional. O dicionário aponta que a expressão resulta da junção das palavras
brain (cérebro) e maniac (maníaco), etimologia datada na década de 1950, no
âmbito das Histórias em Quadrinho, por ter sido o nome dado ao vilão humanoide
inimigo do super-herói Super Homem. 5 Disponível em http://feliciaday.com
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Sobre a figura feminina que posa para esta imagem - a atriz, cantora,
roteirista, produtora e jogadora de videogame (gamer) - Felicia Day, é conhecida
entre o público jovem que consome webseries. Apesar dos suportes tradicionais
para a produção audiovisual ainda serem o cinema e a TeVê, essa produção transita
para as várias telas disponíveis atualmente, como as da web e celulares. Nesses
trânsitos, além da “remediação” - quando um meio herda características de meios
anteriores, mas também as reatualiza - e do cruzamento das mídias - com os
conteúdos distribuídos pelas várias mídias ao mesmo tempo - também encontramos
o fenômeno da “transmidiação” (Machado, 2007). A “transmidiação” de conteúdos
ocorre quando as produções envolvidas não são só derivadas de outros meios e
estão circulando em vários deles, mas em seu conjunto compõem uma narrativa, ou
diversas narrativas, que se constroem em torno a um tema comum.
Jenkins (2009) indica a transmidiação como um fenômeno da cultura da
convergência. Esta não se refere apenas ao processo tecnológico que une múltiplas
funções em um mesmo dispositivo, como podem ser os “telefones inteligentes”, mas
sim como uma transformação cultural, na medida em que consumidores,
espectadores, pesquisadores, “caçam”, coletam informações e são capazes de
estabelecer novas conexões em meio a conteúdos midiáticos dispersos. A cultura da
convergência propõe uma estética que exige a participação ativa do espectador em
comunidades de conhecimento, pois os espectadores necessitam assumir o papel
de coletores, caçadores, para perseguir os pedaços da história em diferentes canais.
As séries são comercialmente exploradas desde os folhetins, no início do século
XIX, porém atualmente constroem narrativas transmídias, como os livros que dão
lugar a Histórias em Quadrinhos, Filmes, Jogos, e vice-versa. As webseries não são
somente uma produção seriada veiculadas na web, mas fazem parte dessa nova
estética transmídia. Na série Supernatural, que recebeu a denominação de
Sobrenatural ao ser veiculada na televisão aberta brasileira, a figura feminina que
posa para a imagem em análise, Felicia Day, interpreta a personagem Charlene
Bradbury, uma especialista em Tecnologia da Informação, que faz uma série de
referências à cultura dos games e séries de TV. Felicia Day também é autora e
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produtora de uma webserie denominada The Guild6, (A guilda). O argumento central
da série reúne um conjunto de pessoas, que se conhecem apenas no mundo on line,
cujo interesse comum é o de jogar um jogo sem nome, um MMORPG, um jogo misto
de interpretação de personagens (RPG) e videogame online de múltiplos jogadores.
Essa webserie estreou no Youtube em julho de 2007. Cada episódio começa com a
personagem principal, Codex7, uma fitoterapeuta interpretada por Felicia Day,
recapitulando os eventos do episódio anterior. Além de recapitular os fatos
ocorridos, também compartilha seus próprios sentimentos sobre o ocorrido. A atriz
que posa para esta imagem, não só pelos papéis que interpreta, mas também por
sua própria inserção nas múltiplas funções que envolvem a produção transmídia, é
uma espécie de musa nerd.
Bicca et al (2013) observam que embora o bom desempenho escolar seja
uma característica recorrente dos integrantes do grupo cultural nerd, esse grupo
dedica-se ao estudo aprofundado, sistemático. Um/a nerd não tem por objetivo obter
sucesso na escola, mas apropriar-se de conhecimentos diversos pelo prazer que o
ato de aprender um determinado tema proporciona quando essa aprendizagem
representa um desafio mental. Matos (2013) observa o caráter curatorial na prática
cotidiana de catalogar, selecionar, classificar, atribuir valor e inserir esses objetos em
um mapa de importância entre @s nerds. Para esse grupo não basta, apenas,
consumir e colecionar determinados filmes, histórias em quadrinhos, séries de TV ou
livros, mas sim a escolha, a seleção, a disputa pelo prestígio, pela distinção que a
identificação com determinados signos lhes permite.
CONSIDERAÇÕES ALCANÇADAS
Apesar das múltiplas práticas e discursos sobre a docência, nem todos são
considerados socialmente do mesmo modo. Imagens de docentes que se
posicionam a favor da competência profissional e o engajamento político sindical
6 Disponível em: http://www.watchtheguild.com
7 Em latim placa de madeira usada para registro, livro, código.
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(Figuras 1, 2 e 3) ainda não contaminam discursos mais resistentes, como o da
docência generificada. A partir das imagens coletadas podemos identificar que,
quantitativamente, o discurso da docência generificada, com a regulação do
comportamento feminino no exercício da profissão, persevera na subjetivação das
licenciandas. Compreendemos a identificação com a profissão docente como um
processo contínuo que se constrói na trajetória formativa. Inicia-se muito antes da
formação nos cursos de Licenciatura e pode adotar modelos docentes que
marcaram a escolarização da licencianda. A identificação profissional implica uma
rede de interações pessoais e sócio culturais que se institui e se constitui nas
identificações das subjetividades consigo, com os outros e com o contexto espaço-
temporal.
Mesmo que ainda em número pouco expressivo, algumas representações,
coletadas entre as licenciandas em Pedagogia, sinalizam outra visualidade, outro
modo de representar e compreender a docência que denominamos de provocadora.
Uma docência provocadora, para a qual o desafio do aprender se aproxima do
prazer. Uma docência que se abre para a sexualidade, que não nega nossos
desejos e prazeres corporais e intelectuais, que rompe com a anacrônica concepção
maternal e do sacrifício vocacional. Uma docência que pode forjar-se na cultura da
convergência, na qual a própria mitologia pessoal e os processos de identificação se
organizam a partir de fragmentos de informação extraídos do fluxo midiático e
constrói subjetividades entre fronteiras.
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