g. w. f. hegel - princípios da filosofia do direito - ano de 1997

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Princípios da Filosofia do Direito G. W. F. Hegel Martins Fontes

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Filosofia

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  • Princpios da Filosofia do Direito

    G. W. F. Hegel

    Martins Fontes

  • Princpios da Filosofia do Direito saiu em Berlim em 1918. Trata-se do desenvolvim ento de uma seo da Enciclopdia das cincias filosficas publicada no ano anterior e onde Hegel expe de maneira dogmtica esse pensamento, agora j tendo atingido sua forma definitiva. O que Hegel chama de Direito no o direito abstrato, que nos vem dos romanos, nem o direito natural. a existncia da vontade livre; a liberdade consciente de si, o direito da pessoa, por exemplo, apenas um m omento no devir desta liberdade. No sentido hegeliano, podemos ainda situar o direito na histria do esprito.

    CAPA

    Projeto grfico Katia Harumi Terasaka

  • PRINCPIOS DA FILOSOFIA DO DIREITO

  • PRINCPIOS DA FILOSOFIA DO DIREITO

    Hegel

    Traduo ORLANDO VITORINO

    Martins FontesSo Paulo 1997

  • Esta obra fo i publicada originalmente em alemo com o ttulo GRUNDLINIEN DER PHILOSOPHIE DER RECHTS Copyright Livraria Martins Fontes Editora Ltda.,

    So Paulo, 1997, para a presente edio

    1* ediojunho de 1997

    TraduoORLANDO VITORINO a partir das verses

    francesa de Andr Kaan e italiana de Giuseppe Maggiore

    Preparao da edio brasileiraMaurcio Balthazar Leal

    Reviso grfica Andra Stahel M. da Silva

    Clia Regina Camargo Produo grfica

    Geraldo Alves Paginao/Fotolitos

    Studio 3 Desenvolvimento Editorial Capa

    Katia Harumi Terasaka

    Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP) (Cmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

    Hegel, Georg Wilhelm Friedrich, 1770-1831.Princpios da filosofia do direito / G.W.F. Hegel; traduo

    Orlando Vitorino. - So Paulo : Martins Fontes, 1997. (Clssicos)

    Ttulo original: Grundlinien der Philosophie der Rechts. ISBN 85-336-0630-3

    1. Direito - Filosofia I. Ttulo. II. Srie.

    97-2041 CDU-340.12

    ndices para catlogo sistemtico:1. Filosofia do direito 340.12

    Todos os direitos para a lngua portuguesa reservados livraria Martins Fontes Editora Lida.Rua Conselheiro Ramalho, 330/340 01325-000 So Paulo SP Brasil

    Tel. (011)239-3677 Fax (OU) 605-6867 e-mail: [email protected]

    http://www.martinsfontes.com

  • ndice

    Prefcio do tradutor Ia edio ........................... XIIIPrefcio.......................................................................... XXIIIIntroduo.................................................................... 1

    [ 1-2: O mtodo especulativo]................................... 1[ 3: Filosofia e direito]................................................... 4[ 4-10: Liberdade].................................................. 12[ 11-21: Desenvolvimento da vontade livre]... 19[ 22-28: A vontade absolutamente livre]....... 27[ 29-32: O sistema do direito]........................... 31

    Plano da o b ra ................................................................... 35[ 33: Subdivises].................................................... 35

    Prim eira Parte O DIREITO ABSTRATO

    [ 34-40: A pessoa]................................................. 39

    Primeira Seo: A PROPRIEDADE................................... 44[ 41-53: Pessoas e coisas].................................... 44

    A. [ 54-58] A possesso.......................................... 53B. [ 59-64] O uso da coisa..................................... 57

  • C. [ 65-70] Alienao da propriedade................... 63[ 71] Trnsito da propriedade para o contrato... 69

    Segunda Seo: O CONTRATO....................................... 70[ 72-75: A relao contratual]............................. 70[ 76-79: Momentos do contrato]........................ 73[ 80: Tipos de contratos]....................................... 76[ 81: Trnsito para a injustia]............................. 79

    Terceira Seo: A INJUSTIA.......................................... 80[ 82-83: O conceito de injustia]....................... 80

    A. [ 84-86] O dano civil............................................ 80B. [ 87-89] A impostura............................................ 82C. A violncia e o crime............................................. 83

    [ 90-93: Violncia]................................................ 83[ 94-96: Crime]....................................................... 84[ 97-99: Supresso do crime].............................. 87[ 100-101: Justia].................................................. 89[ 102-103: Punio e vingana]......................... 92[ 104] Trnsito do direito moralidade subjetiva. 93

    Segunda P a rte A MORALIDADE SUBJETIVA

    [ 105-107: Subjetividade]..................................... 97[ 108-112: Subjetividade e objetividade].......... 98[ 113-114: Ao]....................................................101

    Primeira Seo: O PROJETO E A RESPONSABILIDADE . . . 103[ 115-116: Responsabilidade]............................ 103[ 117-118: Projeto e direito de exame]...........104

    Segunda Seo: A INTENO E O BEM-ESTAR........... 106[ 119-120: O direito da inteno].....................106

  • [ 121-125: Satisfao subjetiva e bem-estar].... 108 [ 126-128: Direito e bem-estar]......................... 112

    Terceira Seo: O BEM EA CERTEZA MORAL.............114[ 129-131: O bem]................................................ 114[ 132: Direito de examinar o bem]....................115[ 133-135: Dever moral]...................................... 118[ 136-138: A verdadeira certeza moral]............ 120[ 139-140: Mal]....................................................... 123[ 141] Trnsito da moralidade subjetiva mora

    lidade objetiva..............................................138

    T erceira P a rte A MORALIDADE OBJETIVA

    [ 142-143: A moralidade objetiva como idiade liberdade]..................................... 141

    [ 144-145: Objetividade da moralidade objetiva] ......................................................141

    [ 146-147: Subjetividade da moralidade objetiva] ......................................................142

    [ 148-149: Dever moral]...................................... 143[ 150-151: Verdade].............................................. 145[ 152-155: Direito moral].................................... 147[ 156-157: Esprito moral objetivo]....................148

    Primeira Seo: A FAMLIA............................................. 149[ 158: Amor]............................................................... 149[ 159-160: Momentos da famlia]..........................149

    A. O casamento...............................................................150[ 161-163: A relao de casamento].................... 150[ 164: A cerimnia do casamento]........................153[ 165-166: Diferena de sexos].............................155

  • [ 167: Monogamia]....................................................156[ 168: A proibio do incesto]...............................156[ 169: A propriedade da famlia].......................... 157

    B. A fortuna da famlia................................................. 157[ 170-171: Propriedade coletiva]......................... 157[ 172: O grupo de parentesco]............................. 158

    C. A educao dos filhos e a dissoluo da famlia..............................................................................159[ 173: O amor dos pais]..........................................159[ 174-175: A educao dos filhos].......................159[ 176: A ruptura do casamento].............................161[ 177: A emancipao dos filhos]..........................161[ 178-180: Direito sucessrio]...............................162[ 181] Trnsito da famlia sociedade civil......166

    Segunda Seo: A SOCIEDADE CIVIL..............................167[ 182-184: Uma sociedade de pessoas]............. 167[ 185-187: O desenvolvimento da particula

    ridade] .................................................. 168[ 188: Momentos da sociedade civil]...................173

    A. O sistema das carncias...........................................173[ 189: Carncias subjetivas].................................... 173

    a. [ 190-195] As modalidades das carncias e das suas satisfaes.. 174

    b. [ 196-198] As modalidades do trabalho. 177c. [ 199-208] A riqueza...................................178

    B. A jurisdio.................................................................185[ 209-210: O reconhecimento do direito pes

    soal]........................................................185a. [ 211-214] O direito como lei.................186b. [ 215-218] A existncia da lei...................191c. O tribunal........................................................195

    [ 219-221: O julgamento pblico]....... 195

  • [ 222-228: O processo jurdico]............. 196[ 229: Da administrao corporao].. 202

    C. Administrao e corporao.................................202[ 230: O bem-estar particular como um direito].. 202

    a. A administrao...........................................203[ 231-234: A necessidade de um poder

    pblico universal]..................203[ 235-240: A necessidade de uma regu

    lamentao econmica paraa sociedade civil]....................204

    [ 241-245: A pobreza na sociedade civil] 206 [ 246-248: A tendncia da sociedade ci

    vil expanso colonial].............209[ 249: A misso da corporao].............. 211

    b. [ 250-255] A corporao.......................... 212[ 256: Da sociedade civil ao Estado]..... 215

    Terceira Seo: O ESTADO.............................................. 216[ 257-258: O Estado como idia moral objeti

    va e liberdade concreta]....................216[ 259: Momentos do Estado].................................. 225

    A. Direito poltico interno............................................ 225[ 260-262: A relao do Estado com os indi

    vduos] ...................................................225[ 263-266: A relao do Estado com as insti

    tuies] ..................................................229[ 267-270: Os aspectos subjetivos e objetivos

    do Estado: patriotismo, a Constituio, Religio]........................................ 230

    [ 271: A Constituio como organismo].................243I. Constituio interna para s i ................................244

    [ 272-274: Momentos da Constituio racional] ..............................................244

  • a. O poder do prncipe....................................... 251[ 275: Trs elementos do poder do prn

    cipe] ........................................................251[i. Universalidade]............................................. 252

    [ 276-278: 1. Unidade da soberania].. 252[ 279: 2. O prncipe como pessoa e

    sujeito individual]................... 254[ 280-281: 3. O prncipe como indi

    vduo natural].................. 259[ 282: O direito de graa].........................262

    [ii. 283-284: Particularidade: o direito dosoberano a escolher oficiais] 263

    [iii. 285-286: Individualidade: a estabilidade do poder do prncipe]........264

    b. O poder do Governo......................................266[ 287-290: A estrutura do servio civil]... 266[ 291-292: Qualidade para o servio p

    blico] ............................................. 268[ 293-297: Os deveres dos servidores civis 269

    c. O poder legislativo.......................................... 273[ 298-299: A funo de legislao].............273[ 300: O papel do monarca e do Gover

    no na legislao].................................275[ 301-304: As assemblias de ordem]........275[ 305-307: A cmara alta]............................. 281[ 308: A cmara baixa].................................. 282[ 309-310: A tarefa dos deputados].........284[ 311: A eleio dos deputados]..................286[ 312-313: O sistema bicameral].................287[ 314-315: A funo da assemblia de

    ordem]........................................287[ 316-318: Opinio pblica]........................ 288

  • [ 319: Liberdade da comunicao pblica].. 291 [ 320: Da soberania para o interior sobe

    rania para o exterior]........................... 294II. A soberania para o exterior...............................295

    [ 321-324: O Estado como indivduo]...........295[ 325-328: O Estado militar e a guerra].........298[ 329: O poder do prncipe sobre as relaes

    com o exterior]...........................................301B. O direito internacional............................................. 301

    [ 330-331: O status do direito internacional].. 301[ 332-333: Contratos entre Estados]..................302[ 334-339: As relaes entre Estados em tempo

    de guerra]............................................... 304[ 340: Do Estado histria universal].................... 306

    C. A histria universal................................................... 307[ 341-344: A histria universal como histria

    do esprito].......................................... 307[ 345: O ponto de vista da histria universal

    est acima de julgamentos morais]........309[ 346-351: Os perodos da histria universal

    como princpios nacionais]............ 309[ 352-354: Os quatro imprios da histria uni

    versal]......................................................3121- [ 355] O imprio do oriente............................... 3132. [ 356] O imprio grego....................................3143. [ 357] O imprio romano............................... 3154. [ 358-360] O imprio germnico..................... 316

    Notas do prefcio do tradutor Ia edio...............319Nota do prefcio .............................................................. 321Nota do plano da o b ra ..................................................323Notas da I a, 2a e 3a partes..............................................................325

  • Prefcio do Tradutor I a Edio

    D a filo so fia do direito hegelian a qu e se expe neste livro se p od e com ear p o r d izer que recon hecida com o a chave das perturbadas fo rm as e especulaes do p en sam ento ju rd ico contem porneo. Mas se pode, ao mesmo tempo, acrescen tar que aqu ela filo so fia que no obteve a in d a nem a interpretao, nem a exegese, nem a herm enutica qu e fa r ia m o trnsito dela p a ra a cultura, p a ra a poltica e, at, p a ra o mesmo direito que seu contedo e objeto. R eveladora das m ais sugestivas e lum inosas vias, dela se pode, finalm en te, asseverar qu e perm an ece im penetrvel no segredo d a sua totalidade. Quem, com o sim ples desejo d e in form ao ou o m ais profu n do intento d e com preender, percorrer a bibliografia cultural qu e esta obra de Hegel tem suscitado, qu er nos captulos qu e lhe dedicam as histrias e os pan oram as do pensam ento ju rd ico, qu er nos raros escritos qu e diretam ente d ela se ocupam , poder verificar o carter muito p a rc ia l e, portanto, sectrio d e tais con sideraes, a oposio e con tradio qu e uns p eran te os outros esses escritos apresentam na com preenso dos mesmos princpios e d a relao deles com as respectivas doutrinas.

    XIII

  • Quase s em nossos dias este livro d e Hegel fo i sria e conseqentem ente reconhecido com o obra decisiva na evoluo d a filoso fia do direito, apesar do profundo sulco que aparentem ente ter deixado em todo o sculo XIX. Livro de mltiplas leituras, com eou p o r ser visto pelo liberalism o novecentista apenas no que dele p ode revelar a leitura mais superficial: um a filoso fia do direito especialmente elaborada p ara a m onarquia prussiana, o que decerto no deixava de se ju stificar pelo carter m onar- quista que Hegel atribui ao Estado, p ela determ inao do ltimo elem ento da histria universal do imprio germ nico, p ela crtica, alis sem pre compreensiva, que contm queles pensadores que se encontram na ordem do liberalismo poltico e estadual, com o Kant, Rousseau e Montes- quieu. Tal apreciao, ao lado da preponderncia do positivismo nos dom nios m ais estritamente jurdicos, explica que o livro de Hegel tenha sido prim eiro repudiado, depois esquecido ep o r fim ignorado.

    Mas sim ultaneam ente a esta apreciao liberalista, a filia o que o marxism o proclam ava no hegelianism o m ais deixou suspeitar do que considerar e desenvolver a im portncia que estes Princpios da filosofia do direito teriam p ara um pensam ento poltico que, desde m eados do sculo passado, no tem feito seno expandir-se.

    A filia o do marxism o em Hegel , declaradam ente, um a relao quanto ao mtodo dialtico ou, p ara evitar m al-entendidos, quanto ao carter dialtico da rea lidade e do p en sam en td . Tambm na filoso fia do direito se encontra, sem dvida, a mesma estrutura dialtica que, no entanto, noutras obras que est m ais diretam ente exposta e, at, m ais adequadam ente ligada a um a relao (n o s fo rm al m as substancial) com o marxismo, com o

    ----------------------------Princpios da Filosofia do Direito___________________

    XIV

  • Prefcio do Tradutor 1 Edio

    acontece, p o r exemplo, n a im pressionante especulao sobre a d ialtica do senhor e do servo. A filoso fia do direito ter contribudo, p a ra este pensam ento sobrem aneira pragm tico, m ais atravs da refutao do intelectualis- mo abstrato dom inante nas instituies e no pensam ento liberal ou burgus, do que, nem sequer parcialm ente, atravs da sua estrutura e fin a lid ad es prprias. Para aqu ele grupo berlinense de jovens hegelianos, no era decerto na filoso fia do direito que residia o m ais importante pensam ento de Hegel. Se nem em Marx, nem em Feuerbach est presente este livro, tam bm do anarquismo (ou, com o se queira, do existencialismo) deM ax Stirner estes Princpios esto ausentes: a angstia d e Stirner afi- gura-se-nos ter o ponto de partida hegeliano naquilo que d a Fenomenologia do esprito e da Enciclopdia os Princpios da filosofia do direito recebem com o j tratado: o conceito ou a idia do Esprito em sua realidade u n iversal.

    Na reao que, durante o ltimo perodo do sculo, se m anifestou contra o positivism o jurdico, n ada representou a filoso fia de Hegel. Os pensadores que, com o Stammler ou Cohen, se recusaram ao positivism o fu n d a m entaram -se em Kant, n o em Hegel. Regressando a Kant, j se observou que os novos pensadores tambm teriam regressado a Hegel. A verdade, porm , que s tardiam ente isso aconteceu. Podendo datar-se o neokan- tismo de 1860, a in da em 1920, quando p ela prim eira vez aparece na A lem anha um pen sador com o Kohler, que se declara hegeliano2, dele fo i possvel afirm ar o seguinte: Na poca em que apareceu a Filosofia do D ireito de Kohler, a filoso fia d e Hegel era quase desconhecida at dos prprios filsofos alem es.0 O mesmo

    xv

  • Princpios da Filosofia do Direito

    neokantism o com eou p o r s atender Crtica da razo pura, assim cindindo a obra e o pensam ento d e Kant. Mais estranho isso se afigura quando aplicado filoso fia do direito que pertence aos dom nios kantianos d a R azo Prtica. Sem considerar o que h d e contraditrio nesta separao (em bora logo Stammler tenha distinguido a autonom ia da cincia ju rd ica e a autonom ia das cin cias naturais, a am bos sujeitas a o mesmo genrico con hecim ento categorial), tentou-se elaborar a Filosofia do Direito sobre os mesmos processos d e conhecim ento que na Crtica da razo pura se lim itam natureza: com o no sujeito de conhecim ento residem, antes da apreenso do objeto, as form as, intuies, categorias e snteses a priori que o ho de tornar cognosctvel, assim se adm itiu que o mesmo processo se p od ia estabelecer p ara o conhecim ento do Direito.

    Como se viria a verificar, se h nesta concepo algo de decisivo p ara qu e o Direito seja possvel com o Filosofia do Direito, isto , p ara que o Direito se afirm e com o sujeito ou capacidade fo rm al de pensam ento, no poderia ela ter lugar dentro de um a filosofia que se apresente com o kantiana. A ceitando, com o no p od ia deixar d e o fazer, a distino entre os dom nios da R azo Pura, a que p ertencem as questes sobre a possibilidade do conhecim ento, e os dom nios da R azo Prtica, a que pertencem as determ inaes reais da vontade, fo i em vo que os neo- kantianos a procuraram sujeitar aos mesmos processos de conhecim ento atravs da defin io daquilo a que se cham ava cincias da natureza e daqu ilo que se p d e designar p or cincias do esprito. Aqui, porm , j a filo sofia hegeliana qu e com ea a reaparecer4.

    O neokantism o ju rd ico no pod ia, pois, ter resistido a esta crtica e a o que p o r ela se representava d e perdu-

    XVI

  • Prefcio do Tradutor I a Edio

    rao, no pensam ento do direito, do positivism o de que os neokantianospretendiam libertar o direito. Com efeito, tratar o qu e era objeto resultante do pensam ento especulativo, ou da criao do hom em com o esprito, segundo o mesmo processo d e conhecim ento adequ ado aos objetos naturais, ou extrnseca e im ediatam ente dados na sensibilidade, eq ivalia a rem eter p a ra o p lan o do simples evento, do simples fa to positivo, da im ediateida- de, o que, em princpio, a se reconhecia qu e no estava.

    A distino entre m undo da natureza e m undo da cultura, ou entre cincias da natureza e cincias do esprito, era assim um a distino que, logo ao pensar-se, se dilua. Alguma coisa ou algum abism o tinha, todavia, de separar o rea l d a natureza e o rea l do esprito, e a questo que ento surge a realidade ou ontologia do mundo do esprito, ou do conceito, ou da idia. assim que, uma vez situado o pensam ento filosfico perante a realidade da idia, o regresso a Kantprom ove o regresso a Hegel.

    Neste crucial momento d a evoluo do pensam ento jurdico, a interpretao dos Princpios da filosofia do direito aparece, pois, com o aqu ilo de qu e tudo depende.

    Deve ser reconhecido que se verifica, sem pre que um pen sador aborda o hegelianism o ou se atreve a algum a interpretao pessoal, um a inibitria atitude d e tem or e respeito p ela vastido e profu n didade da obra do grande filsofo. N o fo i esta, no entanto, a atitude daqu elas reaes ou epigonias que o hegelianism o im ediatam ente prom oveu: o existencialism o de K ierkegaard, o socialismo d e Feuerbach, M arx e Stimer, bem com o a cham ada direita hegelian a com Michelet, Rosenkranz e Vera, uns e outros se propondo prosseguir, refutar ou superar Hegel, com resultados que no resistiram, na adequ ao

    XVII

  • Princpios da Filosofia do Direito

    a esse proposto fim , s prim eiras crticas. No sabem os at que ponto tais crticas tero contribudo p ara a timo- rata e inibitria atitude que o hegelianism o passou a p ro vocar. Entretanto, outros motivos vieram p esar sobre aqu ela in ibio.

    Na Alem anha, a exigncia d e um regresso a Hegel fo i brevem ente seguida - to brevem ente que ele a in da no obtivera os prim eiros fru tos - pelo despertar do nacional-socialism o que, com o seu absorvente carter doutrinrio, logo englobou as prim eiras afirm aes do pensam ento ju rd ico neo-hegeliano. Alguns aspectos dos Princpios da filosofia do direito, quase os mesmos da superficial interpretao liberalista a que aludimos, ju stificariam tal absoro, mas, com o em geral acontece com as doutrinas ju rd icas e polticas abon adas em Hegel, passaram -se em silncio aqueles outros aspectos que contradiriam tal absoro como, p or exemplo, a refutao hegeliana d e tudo o que fosse distines raciais dentro do Estado ou, em geral, a salvaguarda do individualism o.

    Esta absoro poltica do hegelianism o no s o tornou suspeito e proibido - m ais do qu e o perm ite a seriedade do pensam ento - aos pensadores de outros pases, com o im pediu um a interpretao d e tipo individualista, no sentido a que teria pertencido aquela, a que alu d imos, de foseph Kohler. Se no pudem os ler o livro deste escritor, as vrias referncias com que deparam os suscitam-nos no entanto um a fu n d ad a curiosidade p o r essa interpretao que ser, na espontaneidade in icial do regresso da cultura alem a Hegel, a prim eira fe ita de um ponto de vista que no sabem os ter sido m ais adotado ou desenvolvido e que nos p arece sobrem aneira justi

    XVIII

  • ficad o . Com efeito, no s a prim eira parte dos Princpios da filosofia do direito, aqu ela que Hegel designou p or Direito Abstrato, a que se ocupa do direito do indivduo, com o a in da o prprio Hegel observa que todo o livro deve ser lido e com preendido tendo sem pre presente, com o ele o teve na sua elaborao, esse mesmo Direito Abstrato.

    Todavia, enquanto o pensam ento alem o se dispersava na m ultiplicidade d e escolas neokantianas, na generalidade dos pases o sentido do pensam ento especulativo subsum ia-se no predom nio do positivismo provocando, at nos melhores espritos, um a incom preenso da filosofia que era especialm ente representada pelo paradoxal prestgio e ignorncia que envolviam a obra de Hegel. Nas revolues do sculo XIX e em especial na de 1848

    - diz-nos Benedetto Croce - todas as fa ces participaram variam ente da escola hegelian a5 mas, p o r outro lado, Hegel nem sequer era lido e a sua ptria alem , to esquecida do grande filho, nem mesmo tornou a impri- mir-lhe as obras e p rofere freqentem ente ju zos acerca dele que nos espantam, a ns que estamos nos limites extremos da Itlia, a ns qu e no chegam os a esquec-lo de todo e em certa m edida o havem os fe ito nosso, unindo- o a o nolano Bruno e aoparten opeu Vico6.

    Quando, em 1932, se com em orou o centenrio de Hegel, n o fo i sem espanto que, refletindo, os pensadores alem es verificaram com o o grande filsofo estava esquecido entre eles. Ao lado deste esquecim ento, com o vimos j em 1906denunciado p o r Croce, p od ia o pen sador italiano assinalar a perdu rao do hegelianism o no s na Itlia m as sobretudo na Inglaterra. Sobretudo na Inglaterra, d izia ele, p o r motivos que revelam a sua adm ira

    ----------------------------Prefcio do Tradutor Ia Edio__________________

    XIX

  • Princpios da Filosofia do Direito

    o pelo livro de Stirling, O segredo de Hegel, m as tam bm porque n o contava a in da com a sua mesma obra nem com a cultura hegelianista que a Escola de Npoles ia desenvolver na pennsula. Vrias razes podero exp licar o xito do hegelianism o na Itlia; duas delas apresentam significativa im portncia:

    Ao contrrio do que aconteceu na A lem anha e, d epois, na Frana, o hegelianism o n o fo i, na Itlia, resultado da reao contra o positivismo. Antes a introduo do hegelianism o coin cide com a introduo do positivismo. Com efeito, ao mesmo tempo qu e Roberto Ardig d ifu n d ia na Itlia o positivismo, fu n dava Bertrando Spa- venta a escola neo-hegeliana d e Npoles, d e onde h a viam de sair pensadores com o o mesmo Croce, Gentile, M aggiore e Ugo Spirito. Esta independncia d e qualquer fin alidade, esta autonom ia peran te os im ediatos interesses da cultura, deu aos estudiosos d e Hegel aquela liberdade, aquele desinteresse que, segundo o prprio Hegel, condio de todo o pensam ento especulativo.

    Outra razo radica-se nas caractersticas da cultura italiana, naquelas que podem ver-se representadas no pensam ento, a muitos ttulos precursor do de Hegel (na concepo da histria, na determ inao do esprito do povo, p or exem plo) de fo o Batista Vico. Foi significativamente um hegeliano, esse mesmo Croce, que, p or assim dizer, arrancou do olvido a obra d e Vico e quem, a o mesmo tempo que desenvolvia o neo-hegelianism o italiano, a fa z ia reconhecer com o obra essencial da cultura eu ropia . Dir-se-, talvez, que ao olvido de um a obra assim precursora n o poderia correspondera predisposio dos espritos p a ra a com preenso do que lhe afim ; m as o que, p or outro lado, se tem de reconhecer que quanto

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  • Prefcio do Tradutor I a Edio

    algum a vez fo i pen sado e expresso n a cultura de um povo, se nessa expresso porventura se olvidou, no deixar de perm an ecer atravs de um a espcie de sabedoria infusa.

    Entretanto, tam bm no hegelianism o italiano estes Princpios da filosofia do direito fo ram unilateralm ente considerados e interpretados, segundo um a aceitao p arcelar n o s da doutrina m as a in da do valor ju rdico e atfilosfico deste livro. assim que Giuseppe M aggiore p d e p r de lado toda a prim eira e segunda partes - O Direito Abstrato e a M oralidade Subjetiva - Um dos obstculos m ais difceis d a filo so fia ju rd ica hegeliana , sem dvida, a infelicssim a especulao sobre o direito abstrato. Este direito, com o anterior a o Estado e at a Sociedade Civil, no p od e ser outro sen o o antigo Direito Natural. E, m ais adiante, o jurista italiano acen tua: S h um direito concreto: o que se realiza no Estado. Q ualquer outro direito extra-estadual ou pr- estadual - portanto abstrato, um no-ser. D ialetizar um direito privado (direito da pessoa, da coisa ou contratual), abstrato, ao mesmo tempo que um direito p blico concreto absurdo. 7

    O livro que apresentam os agora aos leitores de lngua portuguesa ser, talvez, o m ais d ifcil dos livros de Hegel; , decerto, um livro de pen osa leitura e de muito com plexo entendim ento. Pode o leitor ter apreendido, p or quanto dissemos, com o o pensam ento filosfico, poltico e ju rd ico contido nestes Princpios da filosofia do direito, alm de se haver imposto com o aqu ele que todas as doutrinaes se obrigam a ter considerado, se apresenta tam bm com o origem e fundam en to das m ais diversas e at contrapolares doutrinas do nosso tempo e, ainda, da

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  • Princpios da Filosofia do Direito

    mesma evoluo, transform ao ou atu alizao delas. No p od e deixar d e suscitar um im pressionante espanto qu e a este msmo livro e uno pensam ento de um filsofo possam ir buscar seus princpios movimentos to d iferen tes com o o individualism o e o fascism o, o corporativism o e o estatismo, o m arxism o e o m onarquism o.

    Se algum conselho no fo r despretensioso darm os aos leitores, ser o d e no utilizarem este livro com o um tratado de consulta nem de o quererem entender a partir daqueles pontos que lhes sejam m ais afins, m as que, antes, penosam ente (e com a deslum brante elu cidao de todo o pensar) o procurem com preender desde o seu in cio at o seu termo, caso se possa fa lar, quanto a um livro d e Hegel, em algo d e term inal.

    Em m atrias com o esta de F ilosofia do Direito - e no que ela envolve de pensam ento poltico, de fundam ento tico, de pragm atism o convivente - a nossa cultura tem an dado entregue a um a ingnua ignorncia e seu con seqente, perturbante desam paro logo que, p ela dinm ica da razo, p ela deslocao dos interesses, p ela apreenso e p elas apreenses quanto a o destino nacional, se tm de aban don ar aquelas instituies e regimes ou aquelas doutrinas extrnsecas que conosco perderam relaes ou se esvaziaram de contedo. Oscilamos, p o r isso, nos vendavais d a opinio, entre a geral irreflexo de um anarquism o inform e e os particu lares interesses de um estatismo form al. Um e outro extrem o tm, decerto, a sua verdade, m as no a tm separada e absoluta. Indivduo e Estado so o princpio e o fim deste livro, na sua unio est a totalidade desta Filosofia do Direito.

    ORLANDO VITORINO

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  • Prefcio

    O primeiro motivo que me levou a publicar este esboo foi a necessidade de oferecer aos meus ouvintes um fio condutor para as lies que oficialmente ministro sobre a Filosofia do Direito. Este manual o desenvolvimento mais completo e mais sistemtico das idias fundamentais sobre o mesmo assunto expostas na Enciclop d ia das cincias filosficas que dediquei tambm ao ensino (Heidelberg, 1817).

    Um segundo motivo explica que este esboo aparea impresso e, assim, atinja tambm o grande pblico: o desejo de que as notas, que primitivamente no deviam passar de breves aluses a concepes mais prximas ou mais divergentes, a conseqncias longnquas, etc., e ulteriormente seriam explicadas nas lies, nesta redao se tenham desenvolvido umas vezes para esclarecer o contedo mais abstrato do texto, outras para tornarem mais explcita a referncia a idias atualmente correntes.

    Disso nasceu uma srie de observaes mais extensas do que as habitualmente abrangidas nos limites e no estilo de um resumo. No seu sentido prprio, um resumo tem por objeto uma cincia que se d por acabada, e a sua singularidade reside essencialmente, a no ser algu

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  • Princpios da Filosofia do Direito

    ma breve indicao suplementar aqui e ali, na composio e ordem dos momentos essenciais de um contedo dado, h muito admitido, conhecido e apresentado segundo regras e processos definitivos. Ora, de um esboo filosfico no se pode esperar esse carter de definitivo, que mais no seja porque a filosofia, como obra, pode imaginar-se um manto de Penlope que noite se desfia e todos os dias recomea desde o princpio.

    O que, desde logo, diferencia este ensaio de um resumo o mtodo que o dirige. Supomos, porm, admitido que a maneira como a filosofia passa de uma matria para outra ou fornece uma demonstrao cientfica, que o que conhecimento especulativo em geral se distingue de qualquer outro modo de conhecimento. S reconhecendo a necessidade deste carter singular se poder arrancar a filosofia vergonhosa decadncia em que a vemos nos nossos dias. certo ter-se j reconhecido, ou, antes, ter-se sentido em vez de reconhecer-se, que as regras da antiga lgica, da definio, da classificao e do raciocnio que contm as regras da inteleco no convm cincia especulativa. Rejeitaram-se essas regras, certo, mas como se fossem simples cadeias, para se passar a dissertar arbitrariamente, de acordo com o sentimento e a imaginao e ao sabor das intuies. Como, por isso, no se pde ir alm da reflexo e das relaes intelectuais, obedece-se inconscientemente aos desdenhados processos habituais de deduo e raciocnio. Na minha Cincia lgica desenvolvi completamente a natureza do saber especulativo. Neste presente ensaio, apenas acrescento, num ou noutro ponto, alguns esclarecimentos sobre a marcha das idias e o mtodo. E, como a matria to concreta e contm tanta diversidade, no

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  • Prefcio

    cuidei de sublinhar em todos os pormenores a continuidade lgica. Poderia isso ser considerado como suprfluo pois, por um lado, supe-se conhecido o mtodo cientfico e, por outro lado, ser por si mesmo evidente que tanto o conjunto como o desenvolvimento das partes se fundam no esprito lgico. Queria eu, todavia, que se considerasse e julgasse este tratado tendo em especial ateno esse aspecto, pois aquilo de que se trata a cincia e na cincia o contedo encontra-se essencialmente ligado forma.

    Aqueles que parecem mais preocupados com o que h de mais profundo, esses podero decerto dizer que a forma algo de exterior e alheio natureza da coisa, e esta tudo o que importa; podero dizer que a misso do escritor, e sobretudo do filsofo, descobrir verdades, afirmar verdades, divulgar verdades e conceitos vlidos. Mas, se depois de os ouvir, formos verificar como na realidade cumprem essa misso, o que encontraremos ser sempre o mesmo velho palavreado, cozido e recozido. Ter esta ocupao o mrito de formar e despertar sentimentos, mas antes dever considerar-se como uma agitao suprflua. Tm eles Moiss e os profetas; ouam-nos (Lc 16, 29). O que sobretudo nos espanta o tom e a pretenso que assim se manifestam, como se o que sempre tivesse faltado no mundo fossem esses zelosos propagadores de verdades, como se a velha sopa recozida trouxesse novas e inauditas verdades, como se fosse sempre precisamente agora a ocasio de as ouvir. Por outro lado, verifica-se que um lote de tais verdades propostas aqui submergido e abafado por outras verdades da mesma espcie divulgadas ali. Como que se pode distinguir dessas consideraes informes

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  • Princpios da Filosofia do Direito

    e infundadas o que nesse turbilho de verdades no velho nem novo, mas permanente? Como isso se pode distinguir e assegurar, seno pela cincia?

    Alis, no direito, na moralidade e no Estado, a verdade to antiga como o seu aparecimento e reconhecimento nas leis, na moral pblica e na religio. Uma vez que o esprito que pensa no se limita a possu-la nessas formas, imediatas, s pode ter para com ela a atitude de a conceber e de encontrar uma forma racional para um contedo que j o em si. Em conseqncia, este contedo ficar justificado para o pensamento livre que, em vez de se encerrar no que dado - esteja este dado apoiado na autoridade positiva do Estado ou no acordo entre os homens ou na autoridade do ntimo sentimento e do testemunho imediato da aprovao do esprito s a si mesmo toma como princpio e por isso tem de estar intimamente unido verdade.

    A atitude do sentimento ingnuo simplesmente a de se limitar verdade publicamente reconhecida, com uma confiante convico, e de, sobre esta firme base, estabelecer a sua conduta e a sua posio na vida. A esta atitude simples desde logo se ope a dificuldade que resulta da infinita diversidade de opinies, que no permite distinguir e determinar o que nelas poder haver de universalmente vlido; facilmente se pode, no entanto, imaginar que esta dificuldade, verdadeira e seriamente, provm da natureza das coisas. Mas, na realidade, aqueles que julgam tirar partido desta dificuldade ficam na situao de no ver a floresta por causa das rvores: esto em face de um obstculo e de uma dificuldade que eles mesmos ergueram. Mais ainda: tal obstculo a prova de que o que pretendem no o que reconhe

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  • Prefcio

    cido e vlido universalmente, no a substncia do direito e da moralidade objetiva. Pois se disso verdadeiramente se tratasse, e no da vaidade e da individualidade da sua opinio e do seu ser, no se afastariam do direito substancial, das regras da moralidade objetiva e do Estado, e a elas conformariam suas vidas. Mas o homem pensa e no pensamento que procura a sua liberdade e o princpio da sua moralidade. Este direito, por mais nobre e divino que seja, logo se transforma em injustia se o pensamento s a si mesmo reconhece e apenas se sente livre quando se afasta dos valores universalmente reconhecidos, imaginando descobrir algo que lhe seja prprio.

    Dir-se-ia que, atualmente, nas questes que se referem ao Estado que se encontra a mais forte raiz daquelas representaes segundo as quais a prova de que um pensamento livre seria o inconformismo e at a hostilidade contra os valores publicamente reconhecidos e, por conseguinte, uma filosofia do Estado deveria ser especialmente formulada para inventar e expor mais uma teoria mas, bem entendido, uma teoria nova e particular. Quando se considera tal concepo, bem como os processos que dela resultam, chega a parecer-nos que nunca houve ainda sobre a Terra, como ainda no haver hoje, nenhum Estado nem nenhuma Constituio Poltica. Seria a partir de agora (e este agora renova- se sempre indefinidamente) preciso recomear tudo desde o princpio, pois o mundo moral teria esperado at o momento presente que fosse profundamente pensado e se lhe desse uma base. Quanto natureza, concede-se que a filosofia deve conhec-la tal como ela , que, se em algum lugar se oculta a pedra filosofal, sem

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  • Princpios da Filosofia do Direito

    pre ser na natureza que se encontra, que ela contm em si a sua razo, razo que a natureza deve conceber, no nas formas contingentes que superfcie se mostram, mas na sua harmonia eterna; a sua lei imanente e a sua essncia que a cincia dever investigar. Pelo contrrio, o mundo moral, o Estado, a razo tal como existe no plano da conscincia de si nada ganhariam em ser realmente aquilo onde a razo se ergue ao poder e fora, se afirma imanente a essas instituies. O universo espiritual deveria ser abandonado contingncia e arbitrariedade, ser abandonado de Deus, embora, segundo este atesmo do mundo moral, a verdade se encontre fora deste mundo, de onde resulta que tambm a razo se encontra fora dele e que, portanto, a verdade tem ma existncia problemtica. Da provm o direito e tambm o dever de cada pensamento levantar o seu vo, mas no para procurar a pedra filosofal, pois na filosofia do nosso tempo a investigao dispensvel e todos tm a certeza de sem esforo poderem dispor daquela pedra. Acontece, ento, que aqueles que vivem na realidade efetiva do Estado e nisso encontram a satisfao do seu saber e da sua vontade (e esses so muitos mais do que os que disso tm conscincia pois, no fundo, todos a vivem) ou, pelo menos, aqueles que conscientemente encontram a sua satisfao no Estado, desdenham de tanta presuno e segurana, tomam-nas como uma brincadeira sem sentido, mais ou menos sria, mais ou menos perigosa. Esta inquieta agitao da reflexo e da vaidade, o acolhimento e o favor de que goza seriam coisa sem importncia que se manifestaria no seu ambiente e sua maneira, se, por causa dela, a filosofia no se expusesse ao desprezo e ao descrdito. A forma mais

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  • Prefcio

    grave de tal desprezo consiste, como se disse, em cada um estar convencido de saber, de uma vez por todas, algo sobre a filosofia em geral e estar em condies de a discutir. Nenhuma arte, nenhuma cincia est exposta a to fundo grau de desprezo como quando qualquer um pode julgar domin-la.

    Efetivamente, quando vemos o que, sobre o Estado, a filosofia contempornea produziu com toda sua pretenso, temos de admitir que quem tiver a fantasia de se meter nesses assuntos com boas razes se pode persuadir de que facilmente tira de si mesmo qualquer coisa de semelhante, e assim concluir que est na posse da filosofia. Alis, essa chamada filosofia expressamente declarou que a verdade no pode ser conhecida, ou o que cada um ergue de dentro de si, do seu sentimento e do seu entusiasmo sobre os objetos morais, particularmente sobre o Estado, o Governo, a Constituio.

    O que no se disse a este respeito, sobretudo no gosto da juventude e que a juventude escuta de bom grado! A frase da Escritura: Ele d aos eleitos durante o sono foi aplicada cincia e no houve sonhador que no se contasse entre os eleitos. Os conceitos que assim recebem enquanto dormem deveriam, pois, construir a verdade. Um corifeu desta vil doutrina, que d a si mesmo o nome de filsofo, um tal Fries, no se envergonhou de, numa solenidade pblica que ficou clebre, fazer um discurso sobre o projeto do Estado e da Constituio, em que propunha esta idia: No povo onde reina um verdadeiro esprito comum, as funes de interesse pblico devem possuir uma vida que lhes vem de baixo, do povo. A tudo o que for obra de cultura popular e de servio do povo se devem consagrar as sociedades, indisso-

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  • Princpios da Filosofia do Direito

    luvelmente unidas pelos sagrados laos da amizade, e assim sucessivamente.

    Esta sensaboria consiste essencialmente em fundamentar a cincia no no desenvolvimento dos pensamentos e dos conceitos, mas no sentimento imediato e na imaginao contingente, e em dissolver no fervilhar do corao, da amizade e do entusiasmo a rica articulao ntima do mundo moral que o Estado, a sua racional arquitetura, que, pela ntida distino do que a vida pblica e sua respectiva legitimidade, pelo rigor do clculo que segura cada pilar, cada arco, cada contraforte, constri a fora do todo, a harmonia dos seus membros. Como Epicuro faz com o mundo em geral, esta concepo abandona, ou, antes, deveria abandonar, o mundo moral contingncia subjetiva da opinio e da arbitrariedade.

    Este remdio caseiro, que consiste em tornar dependente do sentimento o trabalho muitas vezes milenar do pensamento e do intelecto, talvez sirva para dispensar todo o esforo de cognio e inteligncia racional dirigidos pelos conceitos do pensamento. Em Goethe (uma boa autoridade), Mefistfeles diz o que j citei noutro livro: Se desdenhares da inteligncia e da cincia, que so os dons mais altos da humanidade, entregas-te ao diabo e ests perdido.

    quela concepo s faltava vestir tambm as roupagens da piedade. E que processos procuraram para se autorizar? Na santidade divina e na Bblia julgaram encontrar a mais alta justificao para desprezar a ordem moral e a objetividade das leis. que , sem dvida, a piedade que relaciona a verdade, que no mundo se explicita num domnio organizado, com a intuio mais

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  • Prefcio

    simples do sentimento. Mas, se ela for de uma pura espcie, abandona a forma prpria a esta regio e logo sai do domnio interior para entrar na luz da renncia, onde a riqueza da Idia se revela. O que conserva da prtica do servio divino o respeito por uma verdade e uma lei existentes em si e para si e elevadas acima da forma subjetiva do sentimento.

    Podemos tambm aqui observar a forma particular de m conscincia que se manifesta na eloqncia com que aquela vulgaridade se enfatua. Em primeiro lugar, onde menos espiritual que fala mais do esprito; onde a sua linguagem mais morta e coricea onde mais pronuncia as palavras vida e vivificar; onde manifesta mais amor-prprio e orgulhosa vaidade onde tem sempre na boca a palavra povo.

    Mas o mais caracterstico sinal que traz na fronte o dio lei. O direito, a moralidade e a realidade jurdica e moral concebem-se atravs de pensamentos, adquirem a forma racional, isto : universal e determinada, por meio de pensamento. isso o que constitui a lei, e esta sentimentalidade que se arroga o arbitrrio, que faz consistir o direito na convico subjetiva, tem bons motivos para considerar a lei como o seu pior inimigo. A forma que o direito assume no dever e na lei aparece- lhe como letra morta e fria, como uma priso. Nela no se pode reconhecer, nela no se pode encontrar a sua liberdade, pois a lei a razo em cada coisa e no permite que o sentimento se exalte na sua prpria particularidade. A lei tambm, como se ver no decurso deste manual, a pedra de toque com que se distinguem os falsos amigos e os pretensos irmos daquilo a que chamam o povo.

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  • Princpios da Filosofia do Direito

    Ora, como estes trapaceiros do livre-arbtrio se apossaram do nome da filosofia e conseguiram convencer uma grande parte do pblico de que tal maneira de pensar a filosofia, tornou-se quase uma desonra falar filosoficamente da natureza do Estado, e no podemos queixar-nos das pessoas honestas que manifestam a sua impacincia ao ouvir falar de uma cincia filosfica do Estado. Menos nos admiraremos de ver os governos acabarem por se acautelar de tal filosofia, tanto mais que entre ns a filosofia no cultivada, maneira dos gregos, como uma arte privada, mas possui uma existncia pblica ao servio, principalmente, da coletividade ou at, exclusivamente, do Estado.

    Os governos que afirmaram a sua confiana nos sbios consagrados a esta disciplina, responsabilidade deles, entregando completamente o desenvolvimento e a continuidade da filosofia, ou aqueles que, menos por confiana do que por indiferena para com esta cincia, certas cadeiras mantiveram por tradio (como, ao que sei, se mantiveram na Frana as cadeiras de metafsica), tais governos viram-se mal pagos da confiana que os moveu; e se, em um ou outro caso, foi a indiferena que os ter movido, o resultado obtido, que a decadncia de todo o conhecimento profundo, poder ser considerado como o castigo dessa indiferena. certo que, primeira vista, aqueles pensamentos vulgares sero perfeitamente conciliveis com a ordem e a tranqilidade exteriores, pois no chegam a aflorar, nem sequer a pressentir a substncia das coisas e, do ponto de vista policial, de nada se podero acusar. Mas o Estado contm em si a exigncia de uma cultura e de uma inteligncia mais profundas e carece da satisfao da cincia.

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  • Prefcio

    Alm disso, depressa aquele gnero de pensamentos por si mesmo cai, quando considera o direito, a moralidade e o dever, nos princpios que, em cada um desses domnios, constituem precisamente o erro superficial, os princpios dos sofistas que Plato nos transmitiu, os princpios que fundamentam o direito em finalidades e opinies subjetivas, no sentimento e na convico particulares, os princpios de que provm no s a destruio da moralidade interior, da conscincia jurdica, do amor e do direito entre pessoas privadas, como tambm a da ordem pblica e das leis do Estado.

    No podemos iludir-nos sobre a significao que tais fenmenos so suscetveis de adquirir para os governos que podem deixar-se transviar pelo prestgio de ttulos com os quais, e apoiando-se na confiana concedida e na autoridade das funes, se exige do Estado que feche os olhos corrupo dos princpios gerais, origem substancial dos atos, e que alimente assim a revolta como se isso no fosse contraditrio. Um velho gracejo diz que a quem Deus d uma funo d tambm a competncia; hoje ningum o tomar a srio.

    Se as circunstncias despertaram nos governos o sentido da importncia dos mtodos e do esprito da filosofia, preciso no desconhecer a proteo e o auxlio de que, em muitos outros aspectos, o estudo da filosofia hoje carece. Efetivamente, quando se lem as produes de cincia positiva ou religiosas ou literrias, no s se verifica como o desprezo da filosofia se manifesta em pessoas que, completamente desatualizadas quanto ao desenvolvimento das idias e visivelmente estrangeiras filosofia, a tratam como algo ultrapassado, mas tambm como abertamente se encarniam contra ela e declaram

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  • Princpios da Filosofia do Direito

    que o seu contedo - o conhecimento conceituai de Deus e da natureza fsica e espiritual, o da verdade - uma presuno louca ou pecaminosa. Sempre e incessantemente, a razo acusada, diminuda e condenada. Sempre, pelo menos, se d a entender que, na prtica cientfica ideal, as reivindicaes do conceito so incmodas. Quando nos vemos em face de tais fenmenos, lcito perguntarmo-nos se a tradio ainda ter suficiente fora para honrosamente assegurar ao estudo da filosofia a tolerncia e a existncia pblicas1. Tais declaraes e tais ataques, hoje correntes, contra a filosofia oferecem-nos pois este curioso espetculo: por um lado, s so possveis devido degenerescncia e degradao desta cincia, por outro lado tm a mesma base que essas idias que assim atacam com ingratido.

    Com efeito, essa chamada filosofia, ao dizer que o conhecimento da verdade uma tentativa insensata, toma idnticos a virtude e o vcio, a honra e a desonra, a sabedoria e a ignorncia, nivelando todos os pensamentos e todos os objetos de modo anlogo ao que o despotismo imperial de Roma utilizou para a nobreza e os escravos.

    Assim, os conceitos de verdade, as leis morais nada mais sero do que opinies e convices subjetivas e, enquanto convices, os princpios criminosos so colocados na mesma categoria das leis. No haver, por conseguinte, objeto que, por mais pobre ou mais particular, nem matria que, por mais vazia, no possa ter a mesma dignidade daquilo que constitui o interesse de todos os homens que pensam e dos laos do mundo moral.

    Todavia, devemos considerar como foi uma felicidade para a cincia (alis, isso que est de acordo com a necessidade das coisas) que tal filosofia, que podia ter se

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  • Prefcio

    desenvolvido em si mesma como uma doutrina escolar, viesse se apresentar na mais ntima relao com a realidade, onde os princpios do direito e do dever acabam sempre por se afirmar com seriedade e onde sempre reina a luz da conscincia. A a ruptura tinha, desde logo, de se manifestar. por causa desta situao da filosofia perante a realidade que os erros se evidenciam, e repito o que j antes observei: porque precisamente o fundamento do racional, a filosofia a inteligncia do presente e do real, no a construo de um alm que s Deus sabe onde se encontra ou que, antes, todos ns sabemos onde est - no erro, nos raciocnios parciais e vazios.

    No decurso desta obra indicarei que A Repblica de Plato, imagem proverbial de um ideal vazio, se limita essencialmente a apreender a natureza da moralidade grega. Teve Plato a conscincia de um princpio mais profundo cuja falta era uma brecha nessa moralidade mas que, na conscincia que dele assim possua, apenas podia consistir numa aspirao insatisfeita e tinha portanto de aparecer como um princpio corrupto. Arrebatado por esta aspirao, procurou Plato um recurso contra isso; mas tal recurso, tal socorro s podia vir do alto e, por isso, nada mais podia fazer do que procur-lo numa forma exterior e particular daquela moralidade. Julgando que assim se tornava senhor da corrupo, o que alcanava era apenas ferir intimamente o que havia de mais profundo: a personalidade livre infinita. No entanto, mostrou Plato o grande esprito que era pois, precisamente, o princpio em volta do qual gira tudo o que h de decisivo na sua idia o princpio em volta do qual gira toda a revoluo mundial que ento se preparava:

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  • Princpios da Filosofia do Direito

    O que racion al rea l e o que rea l racional

    Esta a convico de toda conscincia livre de preconceitos e dela parte a filosofia tanto ao considerar o universo espiritual como o universo natural. Quando a reflexo, o sentimento e em geral a conscincia subjetiva de qualquer modo consideram o presente como vo, o ultrapassam e querem saber mais, caem no vazio e, porque s no presente tm realidade, eles mesmos so esse vazio.

    Quanto ao ponto de vista inverso, o daqueles para quem a Idia s vale no sentido restrito de representao da opinio, a esses ope a filosofia a viso mais verdica de que s a idia, e nada mais, real, e ento do que se trata de reconhecer na aparncia do temporal e do transitrio a substncia que imanente e o eterno que presente.

    Com efeito, o racional, que sinnimo da Idia, adquire, ao entrar com a sua realidade na existncia exterior, uma riqueza infinita de formas, de aparncias e de manifestaes, envolve-se, como as sementes, num caroo onde a conscincia primeiro se abriga mas que o conceito acaba por penetrar para surpreender a pulsao interna e senti-la bater debaixo da aparncia exterior. So infinitas as diversas situaes que surgem nesta exte- rioridade durante a apario da essncia, mas no cumpre filosofia regul-las. Se o fizesse, misturar-se-ia com assuntos que no lhe pertencem, e pode portanto dis- pensar-se de dar conselhos sobre eles. Bem podia Plato ter-se dispensado de recomendar s amas que nunca estivessem quietas com as crianas e incessantemente as embalassem nos braos, como Fichte de querer aperfei

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  • Prefcio

    oar o policiamento das identificaes a ponto de pretender que s pusesse nos bilhetes de identidade dos suspeitos no apenas os seus sinais, mas tambm os seus retratos. Em tais declaraes no h o menor trao de filosofia, que antes deve despreocupar-se de to extrema prudncia, precisamente porque lhe cumpre mostrar-se liberal para com essa imensa espcie de pormenores. Assim se apresentar imune daquela hostilidade que uma crtica vazia dirige s circunstncias e s instituies, hostilidade em que a mediocridade quase sempre se compraz porque nela obtm a satisfao de si mesma.

    assim que este nosso tratado sobre a cincia do Estado nada mais quer representar seno uma tentativa para conceber o Estado como algo de racional em si. um escrito filosfico e, portanto, nada lhe pode ser mais alheio do que a construo ideal de um Estado como deve ser. Se nele est contida uma lio, no se dirige ela ao Estado, mas antes ensina como o Estado, que o universo moral, deve ser conhecido: Hic Rhodus, h ic saltus.

    A misso da filosofia est em conceber o que , porque o que a razo. No que se refere aos indivduos, cada um filho do seu tempo; assim tambm para a filosofia que, no pensamento, pensa o seu tempo. To grande loucura imaginar que uma filosofia ultrapassar o mundo contemporneo como acreditar que um indivduo saltar para fora do seu tempo, transpor Rhodus. Se uma teoria ultrapassar estes limites, se construir um mundo tal como entenda dever ser, este mundo existe decerto, mas apenas na opinio, que um elemento inconsciente sempre pronto a adaptar-se a qualquer forma.

    Um pouco modificada, a frmula expressiva seria esta:

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  • Princpios da Filosofia do Direito

    Aqui est a rosa, aqu i vam os danar.

    O que h entre a razo como esprito consciente de si e a razo como realidade dada, o que separa a primeira da segunda e a impede de se realizar o estar ela enleada na abstrao sem que se liberte para atingir o conceito.

    Reconhecer a razo como rosa na cruz do sofrimento presente e contempl-la com regozijo, eis a viso racional, medianeira e conciliadora com a realidade, o que procura a filosofia daqueles que sentiram alguma vez a necessidade interior de conceber e de conservar a liberdade subjetiva no que substancial, de no a abandonar ao contingente e particular, de a situar no que em si e para si.

    Isso tambm o que constitui o sentido concreto do que j designamos, de maneira abstrata, como unidade da forma e do contedo. Com efeito, em sua mais concreta significao, a forma a razo como conhecimento conceituai e o contedo a razo como essncia substancial da realidade moral e tambm natural.

    A identidade consciente do contedo e forma a Idia filosfica. Uma grande obstinao, mas que d honra ao homem, a de recusar reconhecer o que quer que seja dos nossos sentimentos que no esteja justificado pelo pensamento, obstinao caracterstica dos tempos modernos. esse, alis, o princpio do protestantismo. O que Lutero comeara a apreender, como crena, no sentimento e no testemunho do esprito o que o esprito, posteriormente amadurecido, se esforou por conceber na forma de conceito para assim no presente se libertar e reencontrar. Uma frase clebre

    XXXVIII

  • Prefcio

    ensina que meia filosofia afasta de Deus ( aquela metade que atribui ao saber uma aproximao da verdade), mas que a verdadeira filosofia conduz a Deus, e o mesmo acontece com o Estado. Assim tambm a razo no se contenta com uma aproximao, que no nem quente nem fria e portanto tem de ser vomitada (Ap 3, 16). Tampouco se contenta com aquele frio desespero que, reconhecendo que neste mundo tudo est mal, mais ou menos mal, acrescenta que nada pode haver de melhor, e conclui que o que preciso viver em paz com a realidade; ora, a paz que nasce do verdadeiro conhecimento uma paz mais calorosa.

    Para dizermos algo mais sobre a pretenso de se ensinar como deve ser o mundo, acrescentaremos que a filosofia cega sempre muito tarde. Como pensamento do mundo, s aparece quando a realidade efetuou e completou o processo da sua formao. O que o conceito ensina mostra-o a histria com a mesma necessidade: na maturidade dos seres que o ideal se ergue em face do real, e depois de ter apreendido, o mundo na sua substncia reconstri-o na forma de um imprio de idias. Quando a filosofia chega com a sua luz crepuscular a um mundo j a anoitecer, quando uma manifestao de vida est prestes a findar. No vem a filosofia para a rejuvenescer, mas apenas reconhec-la. Quando as sombras da noite comearam a cair que levanta vo o pssaro de Minerva.

    tempo de terminar este prefcio. Como prefcio, apenas pretendeu indicar, exterior e subjetivamente, o ponto de vista do escrito que precede. Se filosoficamente se tem de falar de um assunto, o nico mtodo ade

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  • quado o cientfico e objetivo e, por isso, o autor considerar como acrscimo subjetivo, comentrio arbitrrio e, portanto, indiferente toda a refutao que no assuma a forma de um estudo cientfico do objeto.

    Berlim, 25 de junho de 1820

    __________________ Princpios da Filosofia do Direito___________________

    XL

  • Introduo

    1 - 0 objeto da cincia filosfica do direito a Idia do direito, quer dizer, o conceito do direito e a sua realizao.

    Nota - Do que a filosofia se ocupa de Idias, no do conceito em sentido restrito; mostra, pelo contrrio, que este parcial e inadequado, revelando que o verdadeiro conceito (e no o que assim se denomina muitas vezes e no passa de uma determinao abstrata do intelecto) o nico que possui realidade justamente porque ele mesmo a assume. Toda a realidade que no for a realidade assumida pelo prprio conceito existncia passageira, contingncia exterior, opinio, aparncia superficial, erro, iluso, etc. A forma concreta que o conceito a si mesmo se d ao realizar-se est no conhecimento do prprio conceito, o segundo momento distinto da sua forma de puro conceito.

    2 - A cincia do direito faz parte da filosofia. O seu objeto , por conseguinte, desenvolver, a partir do conceito, a Idia, porquanto esta a razo do objeto, ou, o que o mesmo, observar a evoluo imanente prpria da matria. Como parte da filosofia, tem um ponto de

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  • Princpios da Filosofia do Direito

    partida definido que o resultado e a verdade do que precede e do qual constitui aquilo a que se chama prova. Quanto sua gnese, o conceito do direito encontra-se, portanto, fora da cincia do direito. A sua deduo est aqui suposta e ter de ser aceita como dado.

    o mtodo formal e no filosfico que exige e procura antes de tudo a definio, para possuir ao menos a forma exterior da exposio cientfica. Alis, a cincia positiva do direito pouco tem a ver com tal exigncia, pois o que sobretudo lhe importa formular o que de direito, ou seja, as disposies legais particulares. Por isso se diz: om nis defin itio in ju re civilipericu losa. Com efeito, quanto mais incoerncia e contradies houver no contedo das regras de um direito, menos possveis sero as definies que devem conter as regras gerais, e estas tornam imediatamente visvel, em toda a sua crueza, a contradio que , aqui, a injustia. assim que, por exemplo, nenhuma definio do homem seria possvel no direito romano porque ela no poderia se estender ao escravo, cuja existncia era uma ofensa ao conceito daquela definio; igualmente perigosa seria, em muitas situaes, a definio da propriedade e do proprietrio. A deduo da definio feita muitas vezes pela etimologia, mas quase sempre extrada dos casos particulares e, ento, funda-se no sentimento e na representao dos homens. A correo da definio passa, por iso, a consistir no acordo com as representaes existentes. Com este mtodo, pe-se de lado aquilo que unicamente importa: do ponto de vista do contedo, a necessidade do objeto (aqui, do direito) em si para si; do ponto de vista da forma, a natureza do conceito. Ora, no conhecimento filosfico, a necessida

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  • Introduo

    de de um conceito , de longe, a coisa principal, e a prova e a deduo disso esto no caminho por onde ela se atinge como resultado de um processo. Uma vez assim atingido um contedo necessrio para si, chega a ocasio de, em segundo lugar, se procurar o que lhe corresponde na representao e na linguagem. Quanto forma abstrata e configurao, no s podem como devem ser diferentes, por um lado a maneira de ser deste conceito para si e em sua verdade, por outro lado o seu aspecto na representao. Se a representao no falseada no seu prprio contedo, pode sem dvida acontecer que o conceito seja dado luz, uma vez que em sua essncia est implicado e presente naquela representao. Ento a representao assume a forma do conceito. Mas, longe de ser a medida e o critrio do conceito necessrio e verdadeiro para si, a representao recebe dele a sua verdade, por ele se corrige e se conhece.

    Se, hoje, este primeiro mtodo de conhecimento por meio de formalismo das definies, silogismos e demonstraes j mais ou menos desapareceu, no tem dignidade a afetao que o subsistiu e que consiste em afirmar e apreender imediatamente como dados da conscincia as Idias em geral e, em particular, a do direito e suas determinaes, e em situar a origem do direito na natureza ou num sentido exaltado de amor ou entusiasmo. um mtodo mais cmodo mas tambm menos filosfico (para no falarmos de outros aspectos desta concepo que se referem no s ao conhecimento terico mas ainda, e imediatamente, ao conhecimento prtico). Enquanto o primeiro mtodo, formal sem dvida, tem pelo menos a vantagem de exigir a forma do conceito na definio e a forma da necessidade na demonstra

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  • Princpios da Filosofia do Direito

    o, j pelo contrrio a maneira da conscincia imediata e do sentimento transforma em princpios o que contingente, subjetivo e arbitrrio.

    3 - 0 direito positivo em geral:

    a - Pelo carter formal de ser vlido num Estado, validade legal que serve de princpio ao seu estudo: a cincia positiva do direito;

    b - Quanto ao contedo, o direito adquire um elemento positivo: 1) pelo carter nacional particular de um povo, o nvel do seu desenvolvimento histrico e o conjunto de condies que dependem da necessidade natural; 2) pela obrigao que todo sistema de leis tem de implicar a aplicao de um conceito geral natureza particular dos objetos e das causas, que dada de fora (aplicao que j no pensamento especulativo nem desenvolvimento do conceito mas absoro do intelecto); 3) pelas ltimas disposies necessrias para decidir na realidade.

    Nota - Pode opor-se ao direito positivo e s leis a sentimentalidade, a inclinao e o livre-arbtrio, mas, pelo menos, no se venha pedir filosofia que reconhea tais autoridades; a violncia e a tirania podem constituir um elemento do direito positivo, mas trata-se de um acidente que nada tem a ver com a sua natureza. Mostraremos mais adiante, nos 211a a 214a, o trnsito em que o direito se torna positivo. Se aqui introduzimos j as determinaes que a se iro encontrar, fazemo-lo para traar os limites do direito filosfico e para afastar desde

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  • Introduo

    j a idia eventual ou, at, a exigncia de que um cdigo positivo, como o de que todos os Estados precisam, possa provir do desenvolvimento sistemtico da filosofia do direito. Grave erro seria extrair, da afirmada diferena entre o direito natural ou filosfico e o direito positivo, a concluso de que se opem ou contradizem. Antes esto um para o outro como as Instituies para as Pandectas.

    Quanto ao elemento histrico em primeiro lugar mencionado no pargrafo (fatores histricos do direito positivo), foi Montesquieu quem definiu a verdadeira viso histrica, o verdadeiro ponto de vista filosfico, que consiste em no considerar isolada e abstratamente a legislao geral e suas determinaes, mas v-las como elemento condicionado de uma totalidade e correlacionadas com as outras determinaes que constituem o carter de um povo e de uma poca; nesse conjunto adquirem elas o seu verdadeiro significado e nisso encontram portanto a sua justificao.

    O estudo da origem e desenvolvimento das regras jurdicas tais como aparecem no tempo, trabalho puramente histrico, bem como a descoberta da sua coerncia lgica formal com a situao jurdica j existente constituem investigaes que, no seu domnio prprio, no deixam de ter valor e interesse. Mas ficam margem da investigao filosfica, pois o que se desenvolve sobre bases histricas no pode se confundir com o desenvolvimento a partir do conceito, nem a legitimao e explicao histricas atingem jamais o alcance de uma justificao em si e para si. Esta diferena, que to importante e til manter, tambm muito reveladora: uma determinao jurdica pode apresentar-se plena-

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  • Princpios da Filosofia do Direito

    , mente fundamentada e coerente com as circunstncias e instituies existentes e ser, no entanto, irracional e injusta em si e para si, como por exemplo uma infinidade de regras do direito privado romano que so inteiramente conseqentes de instituies tais como o poder paternal e o direito conjugal. Mesmo que essas regras fossem justas e racionais, ainda haveria uma grande diferena entre demonstrar que possuem esse carter, o que na verdade s se pode fazer pelo conceito, e contar a histria da sua origem, das circunstncias, casos particulares, exigncias e oportunidades que levaram a estabelec-las. A tal descrio ou conhecimento prtico segundo as causas histricas prximas ou remotas se chama muitas vezes uma explicao ou, at, uma concepo, e julga-se ter atingido assim, com esse relato do aspecto histrico, o que essencial e unicamente importa para compreender a instituio legal ou jurdica, quando na realidade o que verdadeiramente essencial, o conceito da coisa, no foi sequer apercebido. Criou-se assim o hbito de falar em conceitos jurdicos romanos ou germnicos tal como estariam definidos neste ou naquele cdigo, quando no se fala de nada que se parea com conceitos mas apenas de regras jurdicas gerais, princpios abstratos, axiomas, leis, etc. Se no se atender a esta diferena, acaba-se por falsear o ponto de vista e pe-se a mscara de uma busca da verdadeira legitimao no que no passa de uma justificao pelas circunstncias e pela coerncia com hipteses que so tambm imprprias para obter esse fim; de um modo geral, pe-se o relativo no lugar do absoluto, o fenmeno exterior no lugar da natureza da coisa. E este esforo de legitimao pela histria, quando confunde a gnese temporal com a

  • Introduo

    gnese conceituai, acaba por fazer inconscientemente aquilo mesmo que o contrrio do que visa. Com efeito, quando uma instituio aparece em circunstncias determinadas e plenamente adequada e necessria, e uma vez cumprida a misso que o ponto de vista histrico lhe definia, ento, ao generalizar-se este gnero de justificao, o que resulta o contrrio, pois as circunstncias deixam de ser as mesmas e a instituio perdeu todo o sentido e todo o direito. isso, por exemplo, o que acontece quando se discute a conservao da vida monacal e se fazem valer os benefcios que trouxe aos desertos que povoou e desvendou, cultura que transmitiu pelas cpias e pelo ensino, invocando-se tais benefcios como razo e condio da sua conservao, assim se obrigando a concluir, ao contrrio do que se pretendia, que sendo as circunstncias completamente alteradas aquela vida se tornou, pelo menos na medida desta alterao, suprflua e intil.

    Se de um e de outro lado, se a exposio e explicao histricas do dever e a viso filosfica do conceito no sarem dos domnios que lhes so prprios, poder observar-se uma recproca neutralidade. Como, porm, at no domnio cientfico, nem sempre esta atitude foi observada, vou acrescentar ainda algumas indicaes da sua posio, tais como as que nos apareceram no M anual d e histria do direito rom ano, de Hugo. Delas podemos tirar, ao mesmo tempo, alguns esclarecimentos sobre a pretenso de as opor.

    Declara Hugo (5a edio, 53Q) que Ccero faz o elogio das XII tbuas com certo desdm pelos filsofos e que o filsofo Favorinus as trata exatamente como, mais tarde, muitos grandes filsofos trataram o direito positi

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  • Princpios da Filosofia do Direito

    vo. Na mesma passagem, Hugo fundamenta a condenao de tal mtodo no motivo de Favorinus ter compreendido as XII tbuas to mal quanto os filsofos compreenderam o direito positivo.

    No que se refere reprimenda dada ao filsofo Favorinus pelo jurista Sextus Caecilius (Aulo Glio, Noites ticas, XX, I), a se encontra o princpio, que continua a ser verdadeiro, da justificao do que puramente filosfico segundo o seu contedo. Muito acertadamente diz Caecilius a Favorinus: Non ignoras legum opportunita- tes et m edelas uro utilitatum rationibus, proqu e vitiorum quibus m edendum est fervoribus m utari a l flec ti neque uno statu consistere, quin, ut fa c ie s coeli et m aris ita rerum atque fortu n ae tempestatibus varientur. Q uid salubrius visum este rogatione illa Solonis, etc., qu id uti- liusplebiscito Voconio, etc. om nia tam en haec obliterata ea operta sun civitatis opulentia.

    So estas leis positivas na medida em que o seu significado e a sua utilidade residem nas circunstncias. Apenas possuem, portanto, um valor histrico e so de uma natureza transitria. A sabedoria dos legisladores e dos governos nas legislaes referentes s circunstncias presentes e s situaes da poca constitui uma questo parte, pertence justificao da histria, que lhe dar uma consagrao tanto mais slida quanto mais apoiada estiver num ponto de vista filosfico. Quanto s outras justificaes das XII tbuas apresentadas contra Favorinus, vou dar um exemplo no qual Caecilius manifesta a perptua impostura do mtodo do intelecto e seus raciocnios. Este mtodo alega um bom motivo para uma coisa m e entende que com isso a justificou.

    O exemplo reside na horrvel lei que d ao credor, depois de ter passado um certo prazo, o direito de matar

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  • Introduo

    o devedor ou de o vender como escravo ou, at, caso os credores sejam vrios, de o cortar em pedaos e dividi- los entre eles com um requinte tal que aquele que cortou de menos ou de mais no pode por isso ser objeto de uma instncia judiciria (clusula que o Shylock de Shakespeare, em O m ercador d e Veneza, no deixaria de aproveitar e aceitar com reconhecimento). O motivo que Caecilius apresenta o de que a fidelidade e a confiana so asseguradas por esta lei que, em virtude do seu prprio horror, jamais devia ter sido aplicada. To grande pobreza de esprito nem sequer foi capaz de refletir que tal condio o que faz frustrar esse mesmo fim de assegurar a f e a confiana, e o prprio Caecilius d a seguir um outro exemplo da inutilidade de uma lei sobre os falsos testemunhos que ficou sem efeito por causa da desproporo das penas.

    preciso, porm, no esquecer o que Hugo quis dizer quando afirma que Favorinus no compreendeu a lei. Qualquer estudante seria capaz de a compreender e, em particular, Shylock imediatamente teria visto as vantagens que lhe dava a clusula que citamos. Devia Hugo pensar que a compreenso uma habilidade do intelecto quando, a propsito de tal lei, se tranqiliza formulando um bom motivo. H outra passagem em que Caecilius tambm acusa Favorinus de no ter compreendido aquilo que um filsofo pode sem vergonha confessar que no compreendeu. Dizia a lei que, para levar um doente como testemunha ao tribunal, se lhe devia fornecer um jumentum e no um arcera. E jumentum significaria no apenas um cavalo mas tambm uma carroa ou qualquer veculo. A propsito dessas regras, encontraria Caecilius novas provas da excelncia e da perfei

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  • Princpios da Filosofia do Direito

    o das antigas leis, que chegavam ao ponto de prever, para a convocao de uma testemunha doente, a distino no apenas entre cavalo e veculo, mas ainda, como diz Caecilius, entre viatura particular coberta e almofada- da e viatura menos confortvel. Assim se pode escolher entre a severidade da lei precedente e a insignificncia dessas clusulas; insignificncia apenas dessas clusulas, pois no vamos falar da insignificncia do assunto e dos sbios comentrios de que eles so objeto, o que seria uma falta de considerao pelos eruditos e outras pessoas do mesmo gnero.

    No citado manual, tambm Hugo chega a falar, ao estudar o direito romano, da racionalidade. O que nisso me chocou foi o seguinte:

    Diz ele, primeiro, no captulo em que trata do perodo que vai desde a origem do Estado at a Lei das XII tbuas ( 382 e 392), que havia em Roma muitas carncias e era-se forado a trabalhar, que isso obrigava a recorrer ajuda de animais de trao e de carga semelhantes aos que hoje utilizamos, que o terreno era uma sucesso de colinas e vales, que a cidade estava sobre uma colina, etc. (indicaes a que pretende dar o mesmo sentido de Montesquieu mas sem o mesmo talento). Depois, no 40s, declara que o estado jurdico ainda estava longe de satisfazer as mais altas exigncias da razo (o que est muito certo: o direito de famlia romano, a escravido, etc., esto at muito longe de satisfazer as mais modestas exigncias da razo), mas ao ocupar-se das pocas posteriores esquece-se de nos dizer em qual delas o direito romano satisfez as mais altas exigncias da razo. No entanto, no 289Q, Hugo declara, a propsito dos juristas clssicos da poca de

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  • Introduo

    maior perfeio do direito romano como cincia, que h muito tempo se sabe que os juristas clssicos foram formados pela filosofia; o que pouca gente sabe (mas agora o nmero aumentou graas s numerosas edies do manual de Hugo) que h raros escritores que, como os juristas romanos, meream ser postos ao lado dos matemticos, pelo rigor lgico dos raciocnios, e dos fundadores da metafsica moderna, pela extraordinria originalidade e desenvolvimento dos conceitos. O que prova este ltimo ponto o fato de em nenhum escritor se encontrarem tantas tricotomias como nos juristas clssicos e em Kant. Esta conseqncia lgica, definida por Leibnitz, sem dvida uma propriedade essencial do direito bem como das matemticas e de qualquer outra cincia de razo, mas, conseqncia do intelecto que , nada tem a ver com a satisfao das exigncias da razo nem com a cincia filosfica. Alis, o que, pelo contrrio, se deve admirar como uma das suas maiores virtudes a inconseqncia dos juristas romanos e dos pretores. Graas a ela se libertaram de instituies injustas e horrveis e eram obrigados a inventar callide distines verbais vazias (como a de designar por bonorum possessio o que na realidade no passa de uma herana) ou at a refugiar-se na parvoce (e a par- voce tambm uma inconseqncia) para salvar a letra da lei. Assim acontece com a fic tio ou wtxpi8i de uma fi lia ser um filiu s (Heinecius, A ntiguidades rom anas, livro I, 24Q). Estulto ser, no entanto, pensar que, por causa de algumas distines tricotmicas (como as dos exemplos dados na nota 5), se possam aproximar os juristas clssicos de Kant e chamar a isso desenvolvimento de conceitos.

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  • Princpios da Filosofia do Direito

    4 - 0 domnio do direito o esprito em geral; a, a sua base prpria, o seu ponto de partida est na vontade livre, de tal modo que a liberdade constitui a sua substncia e o seu destino e que o sistema do direito o imprio da liberdade realizada, o mundo do esprito produzido como uma segunda natureza a partir de si mesmo.

    Nota - No estudo da liberdade, poderemos lembrar quais eram, outrora, as fases da investigao: pressupunha-se, primeiro, a representao da vontade e sobre isso se tentava, depois, estabelecer uma definio. O mtodo da antiga psicologia emprica fundava-se, a seguir, nas diferentes impresses e manifestaes da conscincia corrente, tais como o remorso ou o sentimento da responsabilidade, que, explicados to-s pela vontade livre, apareciam como sendo as chamadas provas da liberdade da vontade. no entanto mais cmodo aceitar simplesmente que a liberdade um dado da conscincia em que foroso acreditar. A liberdade da vontade, a natureza de uma e de outra s se podem deduzir na correlao com o todo (como j se disse no 22). Na Enciclopdia das cincias filosficas expus j, e espero um dia conclu-lo, o esquema destas premissas: o Esprito , de incio, inteligncia, e as determinaes atravs das quais, pela representao, efetua o seu desenvolvimento desde o sentimento at o pensamento so as jornadas para alcanar produzir-se como Vontade, que, enquanto esprito prtico em geral, a verdade prxima da inteligncia. A contribuio que assim espero vir a poder dar a um conhecimento mais profundo da natureza do esprito , pois, tanto mais necessria quanto certo (como j observei no 367a daquela obra) que dificilmente se

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  • Introduo

    encontrar uma cincia que esteja num estado to lamentvel e de tanto abandono como a teoria do esprito comumente designada por psicologia. Na considerao dos elementos do conceito de vontade apresentado neste e nos pargrafos seguintes e que so o desenvolvimento daquelas premissas, poder evocar-se, como auxiliar da representao, a conscincia reflexa de cada um. Pode cada qual encontrar em si o poder de se abstrair de tudo o que cada qual , bem como o de se determinar a si mesmo, de dar a si mesmo, e por si mesmo, no importa que contedo, e ter, portanto, na sua conscincia de si, um exemplo para as determinaes que vamos apresentar. -

    5 - Contm a vontade:a ) O elemento da pura indeterminao ou da pura

    reflexo do eu em si mesmo, e nela se evanesce toda a limitao, todo o contedo fornecido e determinado ou imediatamente pela natureza, as carncias, os desejos e os instintos, ou por qualquer intermedirio; a infinitude ilimitada da abstrao e da generalidade absolutas, o puro pensamento de si mesmo.

    N ota- Os que consideram o pensamento como uma faculdade particular, independente, separada da vontade que por sua vez concebida tambm como isolada, e que, alm disso, ainda tm o pensamento como perigoso para as vontades, sobretudo para a boa vontade, esses mostram assim, radicalmente, que nada sabem da natureza da vontade (muitas vezes teremos de ter em conta, ao ocuparmo-nos do mesmo assunto, esta observao).

    certo que o aspecto da vontade aqui definido - esta possibilidade de me abstrair de toda a determina

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  • Princpios da Filosofia do Direito

    o em que me encontro ou em que estou situado, esta fuga diante de todo o contedo como diante de toda a restrio - aquele em que a vontade se determina. E isso o que a representao pe para si como liberdade e no passa, portanto, de liberdade negativa ou liberdade do intelecto.

    a liberdade do vazio. Pode ela manifestar-se como uma figura real, e torna-se uma paixo. Caso se mantenha, ento, simplesmente terica, temos o fanatismo da pura contemplao hindu; caso se volte para a ao, teremos, tanto em poltica como em religio, o fanatismo de destruio de toda a ordem social existente, a excomunho de todo indivduo suspeito de querer uma ordem, o aniquilamento de tudo o que se apresente como organizao. S na destruio esta vontade negativa encontra o sentimento da sua existncia. Pensa que quer um estado positivo, o estado, por exemplo, da igualdade universal ou da vida religiosa universal, mas no pode querer efetivamente a realidade positiva pois esta sempre introduz uma ordem qualquer, uma determinao singular das instituies e dos indivduos, e , precisamente, negando esta especificao e determinao objetiva que a liberdade negativa se torna consciente de si. O que julga querer talvez no seja mais do que uma representao abstrata, a realizao do que julga querer talvez no seja mais do que uma furia destruidora.

    6 - b) Ao mesmo tempo, o Eu a passagem da inde- terminao indiferenciada diferenciao, a delimitao e a posio de uma determinao especfica que passa a caracterizar um contedo e um objeto. Pode este contedo ser dado pela natureza ou produzido a partir do con

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  • Introduo

    ceito do esprito. Com esta afirmao de si mesmo como determinado, o Eu entra na existncia em geral; o momento absoluto do finito e do particular no Eu.

    Nota - Este segundo elemento da determinao , tanto como o primeiro, negatividade e abolio. a abolio da primeira negatividade abstrata. Assim comoo particular est contido no universal assim tambm, e pela mesma razo, o segundo elemento est contido no primeiro e constitui uma simples posio do que o primeiro j em si . O primeiro elemento no com efeito, como primeiro para si, a verdadeira infinitude ou universal concreto (quer dizer: conceito), mas apenas algo de determinado, de unilateral; uma vez que abstrao de toda a determinao, no ele mesmo indeterminado pois o seu ser abstrato e unilateral constitui a sua especfica determinao, a sua insuficincia, a sua finitude.

    A separao e a determinao dos dois elementos indicados encontram-se na filosofia de Fichte e tambm na de Kant. Para nos limitarmos quela, vejamos que o Eu como ilimitado (no primeiro princpio da doutrina da cincia) tomado apenas como positivo ( assim que a generalidade e a identidade do intelecto), de tal modo que este Eu abstrato, para si, deve ser o verdadeiro e, portanto, a limitao (ou como obstculo exterior ou como atividade prpria do Eu) aparece como acrescentada (no 2S princpio). Conceber a negatividade imanente no universal ou no idntico, como no Eu, era o progresso que filosofia especulativa ainda faltava fazer, necessidade de que no suspeitam aqueles que, como Fichte, no se apercebem do dualismo do finito e do infinito no ntimo da imanncia e da abstrao.

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  • Princpios da Filosofia do Direito

    1 - c) A vontade a unidade destes dois momentos: a particularidade refletida sobre si e que assim se ergue ao universal, quer dizer, a individualidade. A autodeterminao do Eu consiste em situar-se a si mesmo num estado que a negao do Eu, pois que determinado o limitado, e no deixar de ser ele mesmo, isto , deixar de estar na sua identidade consigo e na sua universalidade, enfim, em no estar ligado seno a si mesmo na determinao.

    O Eu determina-se enquanto relao de negativi- dade consigo mesmo, e o prprio carter de tal relao que o torna indiferente a essa determinao especfica, pois sabe que sua e ideal. Concebe-a como pura vir- tualidade qual no se prende, mas onde se encontra porque ele mesmo l se colocou.

    Tal a liberdade que constitui o conceito ou substncia ou, por assim dizer, a gravidade da vontade, pois do mesmo modo a gravidade constitui a substncia dos corpos.

    Nota - Toda conscincia se concebe como um universal - como possibilidade de se abstrair de todo o contedo - e como um particular que tem um certo objeto, um certo contedo, um certo fim. No entanto, estes dois momentos so apenas abstraes; o que concreto e verdadeiro (tudo o que verdadeiro concreto) so o universal que tem no particular o seu oposto, mas num particular que, graas reflexo que em si mesmo faz, est em concordncia com o universal. A respectiva unidade a individualidade, no na sua imediateidade como unidade (tal a individualidade na representao), mas como o seu prprio conceito (Enciclopdia das cincias filosficas, 112-114).

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  • Introduo

    Os dois primeiros momentos (o de que a vontade se possa abstrair e o de que, ao mesmo tempo, seja determinada por si mesma ou por algo de alheio) facilmente se conjugam e concebem pois, considerados cada um em separado, so momentos abstratos, sem verdade, ao passo que o terceiro, o que verdade, o que especulativo (e o que verdade, para ser concebido, s pode ser pensado especulativamente), aquele que o intelecto sempre se recusa a penetrar, ele que sempre chama de inconcebvel o conceito.

    lgica como filosofia puramente especulativa que pertence a demonstrao e a discusso deste ndu- lo da especulao, do infinito como negatividade que se refere a si, desta origem ltima de toda a atividade, de toda a vida e de toda a conscincia. Aqui, apenas se pode observar que ao dizer-se que a vontade universal, que a vontade se determina, se exprime a vontade como sujeito ou substrato j suposto; no ela, porm, algo de acabado e de universal antes da determinao, pois s, pelo contrrio, vontade como atividade que estabelece sobre si mesma uma mediao a fim de regressar a si.

    8 - 0 que se determina acompanhando a particula- rizao constitui a diferenciao pela qual a vontade adquire forma:

    a ) Na medida em que a determinao especfica se ope formalmente ao subjetivo e ao objetivo como existncia exterior imediata, est-se perante a forma da violao como conscientizao de si. Esbarra ela com um mundo exterior e, enquanto se mantm em tal determinao especfica, a individualidade regressa a si, consti

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  • Princpios da Filosofia do Direito

    tui o processo que realiza o fim subjetivo mediante a atividade e intermedirios. No esprito, tal como em si e para si, a determinao especfica torna-se sua propriedade a sua verdade (Enciclopdia, 363), e a relao com o exterior, que est na simples conscincia do exterior, apenas constitui o lado fenomnico da vontade que, por si, j aqui no estudamos.

    9 - b) Na medida em que as determinaes so o produto prprio da vontade, particularizao refletida em si, pertencem ao contedo.

    Enquanto contedo da vontade, tal contedo , para ela, segundo a forma do pargrafo anterior, um fim: por um lado, um fim interior e subjetivo na vontade que imagina; por outro lado, um fim realizado por intermdio da ao que transpe o sujeito no objeto.

    10 - Este contedo, isto , as diferentes determinaes da vontade comeam por ser imediatas. assim que a vontade s em si, ou para ns, livre ou, em outros termos, s no seu conceito vontade. a partir do momento em que se toma a si mesma por objeto que passa a ser para si o que em si.

    Nota - Segundo esta determinao, o finito consiste no seguinte: a realidade em si ou realidade conceituai de algo uma existncia ou um fenmeno diferente do que para si; assim, por exemplo, a exterioridade abstrata da natureza em si o espao e , para si, o tempo.

    Uma dupla observao deve ser feita aqui:

    Ia - Uma vez que o que verdade idia, se um objeto ou uma determinao forem concebidos apenas

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  • Introduo

    como so em si, conceitualmente, ainda no se tem a sua verdade;

    2Q - Com um ser em si ou conceituai, qualquer objeto possui ao mesmo tempo uma existncia e esta existncia um dos seus aspectos (como, vimos h pouco, o espao).

    A separao entre o ser em si e o ser para si que no finito se produz constitui, simultaneamente, a sua existncia bruta e a sua aparncia (como no exemplo que mais adiante encontraremos a propsito da vontade natural e do direito formal). Limitando-se pura existncia em si, o intelecto chama liberdade uma faculdade pois,