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Friedrich Engels - Do socialismo Utópico ao Socialismo Científico

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Prefcio edio inglesa

Do socialismo Utpico ao Socialismo Cientfico Friedrich Engels

Prefcio edio inglesa

O pequeno trabalho que o leitor tem diante de si fazia parte, originariamente, de uma obra maior. Em 1875, o dr. E. Duhring, docente da Universidade de Berlim, anunciou inopinadamente e com bastante alarido a sua converso ao socialismo e apresentou ao pblico alemo no s uma teoria socialista minuciosamente elaborada, como tambm um plano prtico completo para a reorganizao da sociedade. Lanou-se, naturalmente, sobre os seus predecessores, distinguindo particularmente Marx, sobre quem derramou a sua transbordante clera.

Isto acontecia num momento em que os dois setores do Partido Socialista Alemo os eisenachianos e os assallianos acabavam de se fundir, adquirindo assim no s um imenso fortalecimento mas algo ainda mais importante: a possibilidade de desenvolver toda essa fora contra o inimigo comum. O Partido Socialista da Alemanha convertia-se rapidamente numa potncia. Mas para que se convertesse numa potncia a condio essencial residia em que no fosse posta em perigo a unidade recm-conquistada. E o dr. Duhring disps-se publicamente a formar em torno da sua pessoa uma seita ncleo do que seria no futuro, um partido parte. No havia, pois, outro remdio seno aceitar a luva que nos atirava e entrar na luta, por menos agradvel que isso nos parecesse.

Certamente, ainda que no fosse muito difcil, a coisa haveria de ser, evidentemente, bastante pesada. sabido que ns, os alemes, temos uma terrvel e poderosa Grundlichkeit um radicalismo profundo ou uma radical profundidade, como se queira chamar. Quando um de ns expe algo que reputa ser uma nova doutrina, a primeira coisa que faz elabor-la sob a forma de um sistema universal. Tem que demonstrar que tanto os princpios bsicos da lgica como as leis fundamentais do universo no existiram, desde toda a eternidade, seno com o propsito de conduzir, afinal, a essa teoria recm-descoberta, que vai coroar ento tudo quanto existe. A este respeito, o dr. Duhring estava talhado perfeitamente pelo padro nacional. Nada menos que um Sistema Completo da Filosofia filosofia intelectual, moral, natural e da histria , um Sistema Completo de Economia Poltica e de Socialismo e, finalmente, uma Histria Crtica de Economia Poltica trs grossos volumes in-8., pesados por fora e por dentro, trs destacamentos militares de argumentos, mobilizados contra todos os filsofos e economistas anteriores, em geral, e contra Marx em particular; na realidade, uma tentativa de completa "subverso da cincia. Tive que defrontar-me com tudo isso; tive que tratar todos os temas possveis, desde as idias sobre o tempo e o espao at ao bimetalismo desde a eternidade da matria e do movimento at natureza perecvel das idias morais; desde a seleo natural de Darwin at educao da juventude numa sociedade futura. certo que a sistemtica universalidade do meu contendor me oferecia a oportunidade para desenvolver perante ele numa forma mais coerente do que at ento se havia feito, as idias sustentadas por Marx e por mim acerca de to grande variedade de matrias. E foi essa a razo principal que me levou a empreender essa tarefa, alm do mais to ingrata.

A minha rplica apareceu, primeiro, numa srie de artigos publicados no Vorwarts (1) de Leipzig, rgo central do Partido Socialista, e mais tarde em forma de livro, com o titulo Herrn Eugen Dhring Umwalzung der Wissenschaft Subverso da Cincia Pelo Sr. E. Duhring, do qual foi publicado em Zurique uma segunda edio em 1886.

A pedido do meu amigo Paul Lafargue, atual representante de Lilie na Cmara dos Deputados da Frana, destaquei trs captulos desse livro para um folheto, que ele traduziu e publicou em 1880 com o ttulo Socialisme Utopique et Socialisme Scientifique. Desse texto francs foram feitas uma verso polonesa e outra espanhola. Em 1883 os nossos amigos da Alemanha publicaram o folheto no seu idioma original. Desde ento publicaram-se, base do texto alemo, tradues para o italiano, o russo, o dinamarqus, o holands e o romeno. Assim, incluindo a atual edio inglesa, este folheto foi difundido em dez lnguas. No sei de nenhuma outra publicao socialista, inclusive o nosso Manifesto Comunista de 1848 e O Capital de Marx, que tenha sido traduzida tantas vezes. Na Alemanha foram feitas quatro edies, com uma tiragem total de cerca de 20 mil exemplares.

O apndice Marca foi escrito com o propsito de difundir entre o Partido Socialista Alemo algumas noes elementares a respeito da histria e do desenvolvimento da propriedade rural na Alemanha. Naquele tempo isso era extremamente necessrio, tanto mais que a incorporao dos operrios urbanos no Partido fizera j um grande progresso e j se colocava a tarefa de se dedicar s massas de operrios agrcolas e dos camponeses. Esse apndice foi incluido na edio tendo em conta a circunstncia de que as formas primitivas de posse da terra, comuns a todas as tribos teutnicas assim como a histria da sua decadncia, so ainda menos conhecidas na Inglaterra do que na Alemanha. Deixei o texto na sua forma original, sem aludir hiptese recentemente exposta por Maxim Kovalevski, segundo a qual a repartio das terras de cultivo e de pastagem entre os membros da Marca precedeu o cultivo em comum dessas terras por uma grande comunidade familiar patriarcal, que compreendia vrias geraes (pode servir de exemplo a z druga do sul da Eslvia, existente at hoje). Logo porm que a comunidade cresceu e se tornou demasiado numerosa para administrar em comum a economia, verificou-se a repartio da terra. provvel que Kovalevski tenha razo, mas o assunto ainda se encontra sub judice.

Os termos de economia empregados neste trabalho coincidem, sempre que novos, com os da edio inglesa de O Capital de Marx. Designamos como produo de mercadorias aquela fase econmica em que os objetos no so produzidos apenas para o uso do produtor, mas tambm para fins de troca, isto , como mercadorias e no valores de uso. Esta fase vai desde as alvores da produo para troca at aos tempos presentes; mas s alcana o seu pleno desenvolvimento sob a produo capitalista, isto , sob as condies em que o capitalista, proprietrio dos meios de produo, emprega, em troca de um salrio, operrios, homens despojados de qualquer meio de produo, exceto a sua prpria fora de trabalho, e embolsa o excedente do preo de venda dos produtos sobre o seu custo de produo. Dividimos a histria da produo industrial desde a Idade Mdia em trs perodos: 1) indstria artesanal, pequenos mestres artesos com alguns oficiais e aprendizes, em que cada operrio elabora o artigo completo; 2) manufatura, em que se congrega num completo estabelecimento um nmero considervel de operrios, elaborando-se o artigo completo de acordo com o principio da diviso do trabalho, onde cada operrio s executa uma operao parcial, de tal forma que o produto s est completo e acabado quando tenha passado sucessivamente pelas mos de todos; 3) indstria moderna, em que o produto fabricado mediante a mquina movida pela fora motriz e o trabalho do operrio se limita a vigiar e retificar operaes do mecanismo.

Sei multo bem que o contedo deste livro indignar grande parte do pblico britnico. Mas se ns, os continentais, houvssemos guardada a menor considerao pelos preconceitos da respeitabilidade britnica, isto , pelo filistaismo britnico, pior ainda teramos sardo. Esta obra defende o que ns chamamos o materialismo histrico, e para os ouvidos da imensa maioria dos leitores britnicos a palavra materialismo soa multo mal. Agnosticismo (2) ainda poderia passar, mas materialismo totalmente inadmissvel.

E no entanto a ptria primitiva de todo o materialismo moderno, a partir do sculo XVII, a Inglaterra. O materialismo filho nato da Gr-Bretanha. J o escolstico britnico Duns Scot perguntava a si mesmo se a matria no poderia pensar.

Para realizar este milagre refugiava-se na onipotncia divina, isto , obrigava a prpria teologia a pregar o materialismo. Alm disso, Duns Scot era nominalista, O nominalismo (5) aparece como elemento primordial nos materialistas Ingleses e , em geral, a expresso primeira do materialismo.

O verdadeiro pai do materialismo ingls Bacon. Para ele, a cincia da natureza a verdadeira cincia, e a fsica experimental a parte mais Importante da cincia da natureza. Anaxgoras, com as suas hemo amei-ias, e Demcrito com os seus tomos, so as autoridades que cita com frequncia. Segundo a sua teoria, os sentidos so infalveis e constituem a fonte de todos os conhecimentos. Toda a cincia se baseia na experincia e consiste em aplicar um mtodo racional de Investigao ao que dado pelos sentidos. A induo, a anlise, a comparao, a observao, a experimentao so as condies fundamentais desse mtodo racional. Entre as propriedades inerentes matria, a primeira e mais importante o movimento concebido no s como um movimento mecnico e matemtico, mas ainda como impulso, como esprito vital, como tenso, como Qual (4) para empregar a expresso de Jakob Bhme da matria.

As formas primitivas deste ltimo so foras substanciais vivas, individualizantes, a ela inerentes, foras que produzem as diferenas especficas.

Em Bacon, como seu primeiro criador, o materialismo guarda ainda, de maneira ingnua, os germes de um desenvolvimento multilateral. A matria sorri com um fulgor poeticamente sensorial a todo homem. Em troca, a doutrina aforstica ainda, por si mesma, um manancial de inconseqncia teolgicas.

No seu desenvolvimento posterior, o materialismo torna-se unilateral. Hobbes sistematiza o materialismo de Bacon. A sensoriedade perde o seu brilho e converte-se na sensoriedade abstrata do gemetra. O movimento fsico sacrifica-se ao movimento mecnico ou matemtico, a geometria proclamada a cincia fundamental, O materialismo torna-se misantropo Para poder dar combate no seu prprio terreno ao esprito misantrpico e descarnado, o materialismo v-se obrigado tambm a flagelar a sua carne e a converter-se em asceta Apresenta-se como entidade intelectual, mas desenvolve tambm a lgica impiedosa do intelecto.

Se os sentidos fornecem ao homem todos os conhecimentos argumenta Hobbes partindo de Bacon , os conceitos, as idias, as representaes mentais, etc., no so seno fantasmas do mundo fsico, mais ou menos despojado da sua forma sensorial. A cincia no pode fazer mais do que dar nomes a estes fantasmas. Um nome pode ser atribuido a vrios fantasmas. Pode inclusive haver nomes de nomes. Mas seria uma contradio querer por um lado. buscar a origem de todas as idias no mundo dos sentidos e, por outro lado, afirmar que uma palavra algo mais que uma palavra, que alm dos seres concretos que ns nos representamos, existem seres universais. Uma substncia incorprea um contra-senso igual a um corpo incorpreo. Corpo, ser, substncia, vm a ser uma e a mesma idia real. No se pode separar o pensamento da matria que pensa. Ela o sujeito de todas as mudanas. A palavra infinito carece de sentido , a no ser como expresso da capacidade do nosso esprito para acrescentar sem fim. Como s o marial perceptvel, susceptvel de ser conhecido, nada se conhece da existncia de Deus. S a minha prpria existncia certa. Toda a paixo humana movimento mecnico que termina ou comea. Os objetos do impulso so o bem. O homem acha-se sujeito s mesmas leis que a natureza. O poder e a liberdade so coisas idnticas.

Hobbes sistematizou Bacon, mas sem oferecer novas provas a favor do seu princpio fundamental: o de que os conhecimentos e as idias tm a sua origem no mundo dos sentidos.

Locke, na sua obra Essay on the Human Understanding (Ensaio sobre o Entendimento Humano) fundamenta o princpio de Bacon e Hobbes.

Do mesmo modo que Hobbes destruiu os preconceitos testicos (5) do materialismo baconiano, Coilins, DodweiI, Coward, Hartley, Priestley, etc., derrubaram a ltima barreira teolgica do sensualismo de Locke. O desmo (6) no , pelo menos para os materialistas mais do que uma maneira cmoda e indolente de desfazer-se da religio.

Assim se expressa Karl Marx referindo-se s origens britnicas do materialismo moderno. E lamentamos se aos ingleses de hoje no agrada muito esta homenagem prestada por Marx aos seus antepassados. Mas inegvel, apesar de tudo, que Bacon, Hobbes e Locke foram os pais daquela brilhante escola de materialistas franceses que, apesar das derrotas que os alemes e ingleses infligiram Frana por mar e por terra, fizeram do sculo XVIII um sculo eminentemente francs; e isso muito antes daquela revoluo francesa que coroou o final do sculo e cujos resultados ainda hoje nos esforamos por aclimatar na inglaterra e na Alemanha.

No se pode negar- Se em meados do sculo um estrangeiro culto se instalasse na inglaterra, o que mais lhe causaria surpresa seria a beatice religiosa e a estupidez assim teria ele que considerar da "respeitvel classe mdia inglesa. Todos ns ramos, ento, materialistas ou, pelo menos, livres-pensadores muito avanados, e parecia-nos inconcebvel que quase todos os homens cultos da inglaterra acreditassem numa srie de milagres impossveis e que at gelogos como Buckland e Manteil tergiversassem os fatos da sua cincia, para no desmascarar muito frontalmente os mitos do Gnesis inconcebvel era que, para encontrar pessoas que se atrevessem a servir-se da sua inteligncia em matria religiosa, tivessem que recorrer aos setores incultos, s hordas dos que no se lavam, como se dizia ento, aos operrios e, principalmente, aos socialistas owenianos.

Mas, de l para c, a Inglaterra "civilizou-se" - A Exposio de 1851 foi o repique fnebre do exclusivismo insular Ingls. A Inglaterra foi, pouco a pouco, internacionalizando-se nas comidas e nas bebidas, nos costumes e nas idias, at um ponto que me faz desejar que certos costumes ingleses encontrassem no Continente um acolhimento to geral como o tm encontrado outros hbitos continentais na Inglaterra. O que se pode assegurar que a difuso do azeite para salada (que antes de 1851 s era conhecido pela aristocracia) foi acompanhada de uma fatal difuso do ceticismo continental em matria religiosa, chegando-se ate ao extremo da que o agnosticismo, embora ainda no considerado to elegante como a igreja anglicana, est contudo, no que se refere respeitabilidade, quase na mesma altura da seita anabatista, ocupando mesmo, posio muito mais alta que o Exrcito da Salvao. No posso deixar de pensar que, para muitos que deploram e amaldioam com toda a sua alma tais progressos da descrena, ser um consolo saber que essas idias flamejantes no so de origem estrangeira, no circulam com a marca Made in Germany, como tantos outros artigos de uso dirio, mas tm, pelo contrrio, antiga e venervel origem inglesa e que os seus autores britnicos de h duzentos anos atrs iam muito mais longe do que os seus atuais descendentes.

Com efeito, que o agnosticismo seno um materialismo envergonhado? A concepo agnstica da natureza inteiramente materialista. Todo o mundo natural regido por leis e exclui por completo toda a influncia exterior. Mas ns, acrescenta cautelosamente o agnstico, no estamos em condies de poder provar ou refutar a existncia de um ser supremo fora do mundo por ns conhecido. Esta reserva podia ter a sua razo de ser na poca em que Laplace, respondendo a Napoleo porque que na Mecanique Cleste do grande astrnomo no se mencionava sequer o criador do mundo, respondia com estas palavras orgulhosas: Je navais pas besoin de cette hypothese. Mas hoje a nossa idia do universo no seu desenvolvimento no deixa o menor lugar nem para um criador nem para um regente do universo; e se quisssemos admitir a existncia de um ser supremo posto margem de todo o mundo existente, incorreramos numa contradio lgica e, alm disso, parece-me, feriramos desnecessariamente os sentimentos das pessoas religiosas.

O agnstico reconhece tambm que todos os nossos conhecimentos tm por base as comunicaes que recebemos por intermdio dos sentidos. Mas, como sabemos acrescenta se os nossos sentidos nos transmitem realmente a imagem exata dos objetos por eles percebidos? E continua dizendo: quando falo das coisas e das propriedades no me refiro, em verdade, a essas coisas e s suas propriedades em si, acerca das quais nada posso saber de certo, mas apenas s impresses que deixam nos meus sentidos. E, certamente, uma forma de conceber que parece difcil de contestar atravs de simples argumentao. Mas os homens, antes de argumentar, haviam atuado, Im Anfang war die Tat. E a ao humana havia resolvido a dificuldade muito antes de os sofismas humanos a inventarem. The proof of the pudding is in the eating. Desde o momento em que aplicamos estas coisas, de acordo com as qualidades que percebemos nelas, ao nosso prprio uso, submetemos as percepoes dos nossos sentidos a uma prova infalvel no que se refere sua exatido ou sua falsidade. Se estas percepes fossem falsas, falso seria tambm o nosso juzo acerca da possibilidade de empregar a coisa de que se trata, e a nossa tentativa de empreg-la teria forosamente de fracassar. Mas se conseguimos o fim desejado, se achamos que a coisa corresponde idia que dela fazemos, que nos d o que dela espervamos ao us-la, teremos a prova positiva de que, dentro desses limites, as nossas percepes acerca dessa coisa e das suas propriedades coincidem com a realidade existente fora de ns. Em troca, se acontece termos dado um golpe em falso, geralmente no tardamos muito em descobrir as causas do nosso engano; conclumos que a percepo em que se baseava a nossa ao era incompleta e superficial, ou se achava enlaada com os resultados de outras percepes de um modo no justificado pela realidade das coisas; quer dizer: havamos realizado o que chamamos um raciocnio defeituoso. Enquanto adestrarmos e empregarmos bem os nossos sentidos e ajustarmos o nosso modo de proceder aos limites traados pelas observaes bem feitas e bem utilizadas, veremos que os resultados dos nossos atos fornecero a prova da conformidade das nossas percepes com a natureza objetiva das coisas percebidas. Em caso nenhum, segundo a experincia que possumos at hoje, nos vimos obrigados a chegar concluso de que as percepes sensoriais cientificamente controladas originam no nosso crebro idias do mundo exterior que, pela sua natureza, diferem da realidade, ou de que entre o mundo exterior e as percepes que os nossos sentidos dele nos transmitem medeia uma incompatibilidade inata.

Mas, ao chegar aqui, apresenta-se o agnstico neo-kantiano e diz-nos: Sim, poderemos talvez perceber exatamente as propriedades de uma coisa, mas nunca apreender a coisa em si por meio de nenhum processo sensorial ou discursivo. Esta coisa em si situa-se alm das nossas possibilidades de conhecimento. J Hegel, h muito tempo, respondeu a isso: desde o momento em que conhecemos todas as propriedades de uma coisa, conhecemos tambm a prpria coisa; fica somente de p o fato de que essa coisa existe fora de ns, e enquanto os nossos sentidos nos fornecerem esse fato, apreendemos at ao ltimo resduo da coisa em si, a famosa incognoscvel Ding an sich de Kant. Hoje, s podemos acrescentar a isso que, na poca de Kant, o conhecimento que se tinha das coisas naturais era suficientemente fragmentado para se poder suspeitar, por trs de cada uma delas, uma misteriosa coisa em si. Mas, de l para c, essas coisas inapreensveis foram apreendidas, analisadas e, mais ainda, reproduzidas uma aps outra pelos gigantescos progressos da cincia. E desde o instante em que podemos produzir uma coisa, no h nenhuma razo para que ela seja considerada incognoscvel. Para a qumica da primeira metade do nosso sculo, as substncias orgnicas eram coisas misteriosas. Hoje, j aprendemos a fabric-las uma aps outra, base dos elementos qumicos e sem ajuda dos processos orgnicos. A qumica moderna diz-nos que, logo que se conhea a constituio qumica de qualquer corpo, esse corpo pode integrar-se a partir dos seus elementos. Estamos atualmente muito longe ainda de conhecer exatamente a constituio das substncias orgnicas superiores, os chamados corpos albuminides, mas no existe absolutamente nenhuma razo para que no adquiramos, ainda que tal se d dentro de vrios sculos, esse conhecimento, e com a sua ajuda possamos fabricar albumina artificial. E quando o conseguirmos teremos conseguido tambm produzir a vida orgnica, pois a vida, desde as suas formas mais inferiores s mais elevadas, no seno a modalidade normal de existncia dos corpos albuminides.

Mas, depois de feitas estas reservas formais, o nosso agnstico faia e atua em tudo como o materialista empedernido que no fundo . Poder dizer: a julgar pelo que ns sabemos, a matria e o movimento ou, como agora se diz, a energia, no podem criar-se nem destruir-se mas no temos provas de que ambas no tenham sido criadas num tempo remoto e desconhecido. E se tentardes dirigir contra ele esta confisso, num caso determinado, chamar-vos apressadamente ordem e mandar-vos calar. Se in abstracto reconhece a Possibilidade do espiritualismo, in concreto nada quer saber sobre ele. Dir-vos-: pelo que sabemos e podemos saber, no existe criador nem regente do universo; no que a ns se refere, a matria e a energia so to incriveis como indestrutveis; para ns o pensamento uma forma da energia, uma funo do crebro. Tudo o que sabemos leva-nos concluso de que o mundo material se acha regido por leis imutveis, etc., etc. Portanto, na medida em que um homem de cincia, na medida em que sabe algo, o agnstico materialista; fora dos confins da sua cincia, nos campos que no domina, traduz a sua ignorncia para o grego, chamando-lhe agnosticismo

Em todo caso, o que se pode assegurar que, ainda que eu fosse agnstico, no poderia dar concepo da histria esboada neste pequeno livro o nome de agnosticismo histrico. As pessoas de sentimentos religiosos rir--se-iam de mim, e os agnsticos perguntar-me-iam indignados, se pretendia zombar deles. Assim, confio em que a respeitabilidade britnica, que em alemo se chama filistasmo, no se aborrecer demasiado por eu empregar em Ingls, como em tantos outros idiomas, o nome de materialismo histrico para designar esta concepo dos roteiros da histria universal que v a causa final e a causa propulsora decisiva de todos os acontecimentos histricos importantes no desenvolvimento econmico da sociedade, nas transformaes do modo de produo e de troca, na conseqente diviso da sociedade em diferentes classes e nas lutas dessas classes entre si.

Dispensar-me-o talvez esta considerao, sobretudo se demonstro que o materialismo histrico pode inclusive ser til para a responsabilidade do filisteu britnico. J aludi ao fato de que, h quarenta ou cinqenta anos, o estrangeiro culto que se instalasse para viver na Inglaterra se veria desagradavelmente surpreendido pelo que necessariamente teria de considerar beatice e hipocrisia religiosa da respeitvel classe mdia inglesa. Demonstrarei agora que a respeitvel classe mdia inglesa daquele tempo no era, contudo, to estpida como o estrangeiro inteligente imaginava. As suas tendncias religiosas tinham explicao.

Quando a Europa saiu da Idade Mdia, a classe mdia urbana em ascenso era O seu elemento revolucionrio. A posio reconhecida que conquistara dentro do regime feudal da idade Mdia era j demasiado estreita para a sua fora de expanso. O livre desenvolvimento desta classe mdia, a burguesia, J no era compatvel com o regime feudal; este tinha forosamente que desmoronar.

Mas o grande centro internacional do feudalismo era a igreja Catlica Romana. Ela unia toda a Europa ocidental feudalizada, apesar de todas as suas guerras intestinas, numa grande unidade poltica. contraposta tanto ao mundo cismtico grego como ao mundo maometano. Rodeou as instituies feudais com o halo da graa divina. Tambm ela havia erguido a sua hierarquia segundo o modelo feudal e era, afinal de contas, o maior de todos os senhores feudais, pois possua: pelo menos, a tera parte de toda a propriedade territorial do mundo catlico. Antes de poder dar combate, em cada pais e nos diversos terrenos, ao feudalismo secular, seria necessrio destruir a organizao central santificada.

Passo a passo, com a ascenso da burguesia produzia-se o grande ressurgimento da cincia. Voltava-se a cultivar a astronomia, a mecnica, a fsica, a anatomia, a fisiologia. A burguesia necessitava, para o desenvolvimento da sua produo industrial, de uma cincia que investigasse as propriedades dos corpos fsicos e o funcionamento das foras naturais. Mas at ento a cincia no havia sido mais do que a servidora humilde da igreja, no lhe sendo permitido transpor as fronteiras estabelecidas pela f; numa palavra, havia sido tudo menos uma cincia. Agora, a cincia rebelava-se contra a Igreja; a burguesia precisava da cincia e lanou-se com ela na rebelio.

No toquei aqui seno em dois pontos em que a burguesia em ascenso tinha necessariamente que se chocar com a religio estabelecida. Mas isso bastar para provar: primeiro, que a classe mais empenhada na luta contra o poder da Igreja Catlica era precisamente a burguesia e, segundo, que ento toda luta contra o feudalismo tinha que vestir-se com uma roupagem religiosa e dirigir-se em primeira instncia contra a igreja. Mas o grito de guerra lanado pelas universidades e os homens de negcios das cidades tinha inevitavelmente de encontrar, como de fato encontrou, uma forte ressonncia entre as massas do campo, entre os camponeses, que em toda a parte estavam empenhados numa dura luta contra os senhores feudais eclesisticos e seculares, luta em que estava em foco a sua existncia.

A grande campanha da burguesia europia contra o feudalismo culminou em trs grandes batalhas decisivas.

A primeira foi a que chamamos Reforma protestante alem. Ao grito de rebelio de Lutero contra a igreja responderam duas insurreies polticas: primeiro, a da nobreza inferior, acaudilhada por Franz von Sickingen, em 1523, e logo a grande guerra camponesa em 1525. Ambas foram esmagadas, por causa principalmente da falta de deciso do partido mais interessado na luta: a burguesia das cidades falta de deciso cujas causas no podemos analisar aqui. Desde esse momento a luta degenerou numa rixa entre os diversos prncipes e o poder central do imperador, trazendo como conseqncia o afastamento da Alemanha por duzentos anos de concerto das naes politicamente ativas da Europa. certo que a Reforma luterana conduziu a uma nova religio, aquela justamente de que a monarquia absoluta precisava. Mal abraaram o luteranismo, viram-se os camponeses do nordeste da Alemanha rebaixados da condio de homens livres de servos de gleba.?

Mas, onde Lutero falhou, triunfou Calvino. O dogma calvinista servia aos mais intrpidos burgueses da poca. A sua doutrina da predestinaao era expresso religiosa do fato de que no mundo comercial, no mundo da concorrncia, o xito ou a bancarrota no dependem da atividade ou da aptido do indivduo, mas de circunstncias independentes dele. Ele no depende da vontade ou da fuga de ningum mas da misericrdia, de foras econmicas superiores mas desconhecidas. E isso era mais do que nunca uma verdade numa poca de revoluo econmica, em que todos os velhos centros e caminhos comerciais eram substitudos por outros novos, em que se abriam ao mundo a Amrica e a ndia e em que vacilavam e vinham abaixo at os artigos econmicos de f mais sagrada: os valores do ouro e da prata. De resto, o regime da Igreja calvinista era absolutamente democrtico e republicano; como podiam os remos deste mundo continuar sendo sditos dos reis, dos bispos e dos senhores feudais onde o reino de Deus se havia republicanizado? Se o luteranismo alemo se converteu num instrumento submisso nas mos dos pequenos prncipes alemes, o calvinismo fundou uma Repblica na Holanda e fortes partidos republicanos na inglaterra e, sobretudo, na Esccia.

No calvinismo a segunda grande insurreio da burguesia encontrou, acabada, a sua teoria de luta. Esta insurreio verificou-se na inglaterra. Foi posta em marcha pela burguesia das cidades, mas foram os camponeses mdios (a yeomanry) dos distritos rurais que conseguiram o triunfo. Coisa singular: nas trs grandes revolues burguesas so os camponeses que fornecem as tropas de combate e so tambm eles, precisamente, a classe que, depois de alcanar o triunfo, sai arruinada infalivelmente pelas conseqncias econmicas desse triunfo. Cem anos depois de Cromwell, pode-se dizer que a yeomanry da inglaterra quase desaparecera- Em todo o caso, sem a interveno desta yeomanry e do elemento plebeu das cidades, a burguesia jamais teria podido conduzir a luta ao seu final vitorioso nem levado Carlos I ao cadafalso. Para que a burguesia embolsasse embora s os frutos mais maduros do triunfo, foi necessrio levar a revoluo muito alm da sua meta; exatamente como haveria de ocorrer na Frana em 1793 e na Alemanha em 1848. Parece ser esta, com efeito, uma das leis que presidem evoluo da sociedade burguesa.

Aps este excesso de atividade revolucionria, seguiu-se a Inevitvel reao que, por sua vez, tambm ultrapassou o ponto em que devia ter-se mantido. Depois de uma srie de vacilaes conseguiu por fim fixar-se o novo centro de gravidade, que se converteu, por sua vez, em novo ponto de partida. O perodo grandioso da histria inglesa, ao qual os flisteus do o nome de a grande rebelio, e as lutas que se lhe seguiram alcanam o seu coroamento no episdio relativamente insignificante de 1689, que os historiadores liberais assinalam com o nome de revoluo gloriosa

O novo ponto de partida foi uma transao entre a burguesia em ascenso e os antigos grandes latifundirios feudais. Estes, embora fossem conhecidos, ento como hoje, pelo nome de aristocracia, estavam desde h muito tempo em vias de converter-se no que Lus Filipe havia de ser multo depois na Frana nos primeiros burgueses da nao. Para felicidade da Inglaterra os antigos bares feudais haviam-se destroado entre si nas guerras das Rosas. Os seus sucessores, embora na sua maioria descendentes das mesmas antigas famlias, procediam j de linhas colaterais to afastadas que formavam uma corporao completamente nova; os seus costumes e tendncias tinham muito mais de burgueses que de feudais; conheciam perfeitamente o valor do dinheiro e dedicaram-se, em seguida, a aumentar as rendas das suas terras expulsando delas centenas de pequenos arrendatrios e substituindo-os por rebanhos de ovelhas. Henrique VIII criou uma massa de novos landlords burgueses, distribuindo e dilapidando os bens da igreja; e a idnticoresultado levaram as confiscaes de grandes propriedades territoriais, levadas a efeito sem interrupo at fins do sculo XVII, para logo as entregar a indivduos meio ou inteiramente adventcios. Por isso que a "aristocracia inglesa, desde Henrique Vil, longe de se opor ao desenvolvimento da produo industrial, procura tirar indiretamente proveito dela. Alm disso, uma parte dos grandes latifundirio5 mostrou-se disposta a todo o momento, por motivos econmicos ou polticos, a colaborar com os caudilhos da burguesia industrial ou financeira. A transao de 1869 no foi, pois, difcil de conseguir. Os trofus polticos os cargos, as sinecuras, os elevados ordenados das grandes famlias da aristocracia rural foram respeitados, com a condio de que defendessem cabalmente os interesses econmicos da classe mdia financeira, industrial e mercantil. E esses interesses econmicos j eram, ento, bastante poderosos; eram eles que traavam, em ltima anlise, os rumos da poltica nacional. Poderia haver discrepncias em torno de detalhes, mas a oligarquia aristocrtica sabia demasiado bem quanto se achava a sua prpria prosperidade econmica inseparavelmente unida da burguesia industrial e comercial.

A partir desse momento a burguesia converteu-se em parte integrante, modesta mas reconhecida, das classes dominantes da inglaterra. Compartilhava com todas elas do interesse em manter oprimida a grande massa trabalhadora do povo. O comerciante ou mesmo o fabricante ocupava, em relao ao seu subordinado, aos seus operrios ou aos seus criados, a posio de senhor, de seu superior natural, como se dizia at h pouco na inglaterra. Tinha que sugar deles a maior quantidade e a melhor qualidade possvel de trabalho; para consegui-lo, tinha de educ-los numa submisso adequada. Pessoalmente, era um homem religioso; a sua religio havia-lhe fornecido a bandeira sob a qual combateu o rei e os senhores; descobrira tambm, havia pouco, os recursos que essa religio lhe oferecia para trabalhar o esprito dos seus inferiores naturais e torn-los submissos s ordens dos amos, que os desgnios imperscrutveis de Deus lhe inspiravam. Numa palavra, o burgus da Inglaterra participava agora na empresa de oprimir as classes inferiores, a grande massa produtora da nao, e um dos meios empregados para isso era a influncia da religio.

Mas a isso vinha se acrescentar uma nova circunstncia. que reforava as inclinaes religiosas da burguesia: o aparecimento do materialismo na Inglaterra. Esta nova doutrina no s feria os sentimentos piedosos da classe mdia, mas, alm disso, anunciava-se como uma filosofia destinada a penas aos sbios e aos homens cultos do grande mundo; ao contrrio da religio, boa para a grande massa no ilustrada, inclusive a burguesia. Com Hobbes, esta doutrina deu entrada em cena corno defensora das prerrogativas e da onipotncia reais e convidou a monarquia absoluta a trazer em rdea curta aquele puer robustus malitiosus que era o povo.

Tambm nos continuadores de Hobbes, em Bolingbroke, em Shafestbury etc, a nova forma destica do materialismo continuava sendo uma doutrina aristocrtica, esotrica e, portanto, odiada pela burguesia, no s por ser uma heresia religiosa, mas tambm pelas suas conexes polticas antiburguesas Por isso, frente ao materialismo e ao deismo da aristocracia, eram principalmente as seitas protestantes que haviam fornecido a bandeira e os homens para a luta contra os Stuarts, que davam o contingente principal s foras da classe mdia progressista e que ainda formam a medida do "grande partido liberal.

Entretanto, o materialismo transferiu-se da inglaterra para a Frana, onde se encontrou com uma segunda escola materialista de filsofos, que havia surgido do cartesianismo e com a qual se refundiu. Tambm na Frana continua sendo, a principio, uma doutrina exclusivamente aristocrtica. Mas o seu carter revolucionrio no tardou a revelar-se. Os materialistas franceses no limitavam a sua crtica simplesmente aos assuntos religiosos, mas estendiam-na a todas as tradies cientficas e a todas as instituies polticas do seu tempo; para demonstrar a possibilidade da aplicao universal da sua teoria seguiram o caminho mais curto: aplicaram-na audazmente a todos os ramos do saber na Encyclopdie a obra gigantesca que lhes valeu o nome de enciclopedistas. Deste modo, o materialismo, sob uma forma ou outra como materialismo declarado ou como desmo , converteu-se no credo de toda a juventude culta da Frana; a tal ponto que, durante a Grande Revoluo, a teoria criada pelos realistas ingleses serviu de bandeira terica aos republicanos e terroristas franceses, e dela saiu o texto da Declarao dos Direitos do Homem. A grande Revoluo Francesa foi a terceira insurreio da burguesia, mas a primeira que se despojou totalmente do manto religioso, travando a batalha no campo poltico aberto. E foi a primeira que levou realmente o combate at destruio de um dos dois combatentes, a aristocracia, e ao triunfo completo do outro, a burguesia. Na inglaterra, a continuidade ininterrupta das instituies pr-revolucionrias e ps-revolucionrias e a transao selada entre os grandes latifundirios e os capitalistas encontravam a sua expresso na continuidade dos precedentes judiciais, assim como na respeitosa conservao das formas legais do feudalismo. Na Frana, a revoluo rompeu plenamente com as tradies do feudalismo e criou, com o Cede civil, uma magistral adaptao do antigo direito romano s relaes capitalistas modernas, daquela expresso quase perfeita das relaes jurdicas derivadas da fase econmica que Marx chama a produo de mercadorias; to magistral que este cdigo francs revolucionrio serve ainda hoje em todos os pases sem excetuar a inglaterra de modelo para as reformas do direito de propriedade. Mas, nem por isso devemos perder de vista uma coisa. Embora o direito ingls continue expressando as relaes econmicas da sociedade capitalista numa linguagem feudal brbara, que guarda com a coisa exprimida a mesma relao que a ortografia com a fcntica inglesa vous ecrivez Londres et vous prononcez Constantinople. dizia um francs esse direito ingls o nico que conservou intacta atravs dos sculos e transplantou para a Amrica do Norte e para as colnias a melhor parte daquela liberdade pessoal; aquela autonomia local e aquela salvaguarda contra qualquer ingerncia, fora da dos tribunais; numa palavra, aquelas antigas liberdades germnicas que tinham sido perdidas no Continente sob o re- gime da monarquia absoluta e que no foram at agora re cobradas em parte alguma.

Voltemos porm ao nosso burgus britnico. A Revoluo Francesa ofereceu-lhe uma magnfica oportunidade para arruinar, com a ajuda das monarquias constitucionais, o comrcio martimo francs, anexar as colnias francesas e reprimir as ltimas pretenses francesas de lhe fazer concorrncia por mar. A segunda razo consistia em que os mtodos dessa revoluo eram muito pouco do seu agrado. No s o seu execrvel terrorismo, mas tambm a sua tentativa de implantar o regime burgus at s ltimas conseqncias. Que faria no mundo o burgus britnico sem a sua aristocracia, que lhe ensinava maneiras (e que maneiras! e inventava modas para ele, que lhe fornecia a oficialidade para o exrcito, garantia de ordem dentro do pas, e para a marinha, conquistadora de novos domnios coloniais e de novos mercados no exterior? certo que havia tambm dentro da burguesia uma minoria progressista, formada por pessoas cujos interesses no tinham sido bem sucedidos na transao; esta minoria, integrada pela classe mdia de posio mais modesta, simpatizava com a revoluo, mas era impotente no Parlamento.

Portanto, quanto mais se convertia o materialismo no credo da Revoluco Francesa, tanto mais se aferrava o piedoso burgus britnico sua religio. Por acaso a poca de terror em Paris no demonstrara o que se d quando o povo perde a religio? medida que se estendia o materialismo da Frana aos pases vizinhos e recebia o reforo de outras correntes tericas afins, principalmente da filosofia alem; medida que, no Continente o fato de se ser materialista e livre-pensador era, na realidade, uma qualidade indispensvel para se ser pessoa culta mais tenazmente se afirmava a classe mdia inglesa nas suas diversas confisses religiosas. Por muito que variassem umas das outras, eram todas confisses decididamente religiosas, crists.

Enquanto que a revoluo assegurava o triunfo poltico da burguesia na Frana, na Inglaterra, Watt. Arkwright, Cartwright e outros iniciaram uma revoluo industrial, que deslocou completamente o centro de gravidade do poder econmico. Agora, a burguesia enriquecia muito mais rapidamente do que a aristocracia latifundiria. E, dentro da prpria burguesia. a aristocracia financeira, os banqueiros, etc., iam passando cada vez mais para segundo plano em face dos fabricantes. A transao de 1869, mesmo com as emendas que foram sendo introduzidas pouco a pouco a favor da burguesia. j no correspondia posio recproca das duas partes interessadas. Mudara tambm o carter destas: a burguesia de 1830 diferia muito da do sculo anterior. o poder poltico que a aristocracia ainda conservava e que punha em ao contra as pretenses da nova burguesia industrial tornou-se incompatvel com os novos interesses econmicos. Colocava-se a necessidade de renovar a luta contra a aristocracia; e esta luta s podia terminar com o triunfo do novo poder econmico. Sob o impulso da revoluo francesa de 1830, imps-se em primeiro lugar, apesar de todas as resistncias, a lei de reforma eleitoral, que assegurou burguesia uma posio forte e prestigiosa no Parlamento. Em seguida, veio a derrogao das leis dos cereais, que instaurou de uma vez para sempre o predomnio da burguesia, sobretudo da sua parte mais ativa, os fabricantes, sobre a aristocracia da terra. Foi este o maior triunfo da burguesia, mas foi tambm o ltimo conseguido no seu interesse prprio e exclusivo. Todos os triunfos posteriores tiveram de ser por ela divididos com um novo poder social, seu aliado a principio, mas logo depois seu rival.

A revoluo industrial criara uma classe de grandes fabricantes capitalistas, mas criara tambm outra, muito mais numerosa de operrios fabris, classe que crescia constantemente em nmero, medida que a revoluo industrial se la apoderando de um ramo industrial aps outro. E com o seu nmero, crescia tambm a sua fora, demonstrada j em 1824, quando obrigou o Parlamento, rangendo os dentes, a revogar as leis contra a liberdade de coalizo. Durante a campanha de agitao pela reforma da lei eleitoral, os operrios formavam a ala radical do partido da reforma; e quando a lei de 1832 os privou do direito de sufrgio, sintetizaram as suas reivindicaes na Carta do Povo (Peoples Charter) e, em oposio ao grande partido burgus que combatia as leis cerealistas, constituiram-se em partido independente, o partido cartista, que foi o primeiro partido operrio do nosso tempo.

Em seguida, vieram as revolues continentais de Fevereiro e Maro de 1848, nas quais os operrios tiveram um papei to importante e nas quais levantaram pela primeira vez, em Paris, reivindicaes que eram resolutamente inadmissveis do ponto de vista da sociedade capitalista. E sobreveio logo a reao geral. Primeiro foi a derrota dos cartistas de 10 de Abril de 1848; depois, o esmagamento da insurreio operria de Paris, em Junho do mesmo ano; mais tarde, os descalabros de 1849 na itlia, Hungria e sul da Alemanha; por ltimo, o triunfo de Lus Bonaparte sobre Paris, em 2 de Dezembro de 1851. Deste modo, consegui. ra-se afugentar, pelo menos durante algum tempo, o espantalho das reivindicaes operrias mas a que preo! Portanto, se o burgus j se achava antes convencido da necessidade de manter no povo vil o esprito religioso, com que motivos muito mais fortes tinha que sentir esta necessidade depois de todas aquelas experincias. Por isso, sem fazer o menor caso das chacotas dos seus colegas continentais, continuava anos aps anos gastando milhares e dezenas de milhares na evangelizao das classes baixas. No satisfeito com a sua prpria maquinaria religiosa, dirigiu-se ao Irmo Jonathan (7), o maior organizador de negcios religiosos da poca, e importou dos Estados Unidos os revivalistas Moody e Sankey (8), etc.; por fim, aceitou at a perigosa ajuda do Exrcito de Salvao, que veio restaurar os recursos de propaganda do cristianismo primitivo que se dirige tanto aos pobres como aos eleitos, combatendo o capitalismo sua maneira religiosa e atiando assim um elemento de luta de classes do cristianismo primitivo que um bom dia pode chegar a ser fatal para as pessoas ricas que hoje oferecem do seu bolso o dinheiro para essa propaganda.

Parece ser uma lei do desenvolvimento histrico o fato de que a burguesia no possa deter em nenhum pais da Europa o poder poltico pelo menos durante muito tempo da mesma maneira exclusiva com que pde faz-lo a aristocracia feudal durante a idade Mdia Mesmo na Frana, onde se extirpou pela raiz o feudalismo, a burguesia, como classe global, apenas exerce o poder durante breves perodos de tempo. Sob Lus Filipe (1830/1848), s uma pequena parte da burguesia governava, pois outra parte muito mais considervel era excluda do exerccio do sufrgio devido ao elevado censo de fortuna que se exigia para poder votar. Sob a Segunda Repblica (1848/1851), governou toda a burguesia, mas s durante trs anos; a sua incapacidade abriu caminho ao Segundo imprio. S agora, sob a Terceira Repblica, vemos a burguesia em bloco empunhar o leme por um espao de vinte anos, mas nisso revela j graves sintomas de decadncia. At agora uma dominao mantida durante muitos anos pela burguesia s foi possvel em pases como a Amrica do Norte, que jamais conheceram o feudalismo e onde a sociedade se construiu, desde O primeiro momento, sobre uma base burguesa. Mas at na Frana e na Amrica do Norte j batem porta com pancadas fortes os sucessores da burguesia: os operrios.

Na Inglaterra a burguesia nunca exerceu o poder indiviso. At ao triunfo de 1832 deixou a aristocracia no gozo quase exclusivo de todos os altos cargos pblicos. J no conseguia explicar a mim mesmo a submisso com que a classe mdia rica se resignava a tolerar esta situao, at que um dia o grande fabricante liberal senhor W. A. Forster, num discurso, suplicou aos jovens de Bradford que aprendessem francs se quisessem fazer carreira, narrando a propsito o triste papel que ele fizera quando, sendo ministro, se viu envolvido numa reunio em que o francs era pelo menos to necessrio quanto o ingls. Com efeito, os burgueses britnicos de ento eram, uns mais outros menos, novos-ricos sem cultura, que tinham de ceder aristocracia, quisessem ou no, todos aqueles altos postos de governo que exigiam outros dotes alm da limitao e da fatuidade insulares, apimentadas pela astcia para os negcios. (9).

Ainda hoje os debates interminveis da imprensa sobre a middie-classe-education revelam que a classe mdia inglesa no se considera ainda em condies suficientes para receber a melhor educao e procura algo mais modesto. Por isso, mesmo depois da revogao das leis cerealistas considerou-se como coisa natural que os que haviam conseguido o triunfo, os Cobden, os Bright, os Forster, etc., ficassem privados de qualquer participao no governo oficial at que. por fim, vinte anos depois, uma nova lei de Reforma lhe abriu as portas do ministrio. A burguesia inglesa acha-se at hoje to imbuda de um sentimento de inferioridade social que, s suas custas e do povo, sustenta uma casta decorativa de folgazes que tm por ofcio representar dignamente a nao em todos os atos solenes e considerasse honradssima quando encontrado um burgus qualquer reconhecido como digno de ingressar nessa corporao seleta e privilegiada, que afinal foi fabricada pela prpria burguesia.

Assim, a classe mdia industrial e comercial no havia conseguido ainda afastar por completo a aristocracia latifundiria do poder poltico, quando surgiu em cena o novo rival: a classe operria. A reao que adveio depois do movimento cartista e das revolues continentais, Juntamente com a expanso sem precedentes da indstria inglesa de 1848 a 1866 (expanso que se costuma atribuir apenas ao livre-comrcio, mas que resultou muito mais da gigantesca extenso das linhas frreas, dos transatlnticos e dos meios de comunicao em geral) voltou a colocar os operrios sob a dependncia dos liberais, cuja ala radical formavam como nos tempos anteriores com o cartismo. Mas, pouco a pouco, as exigncias Operrias quanto ao sufrgio universal foram-se tornando irresistveis. Enquanto os whigs, os caudilhos dos liberais, tremiam de medo. Disraeli mostrava a sua superioridade: soube aproveitar o momento prprio para o "tories, introduzindo nos distritos eleitorais urbanos o regime eleitoral do household suffrage (10) e, em relao com Isso, uma nova distribuio dos distritos eleitorais. Seguiu-se. pouco depois, o ballot (11), depois, em 1884, o household suffrage tornou-se extensivo a todos os distritos, inclusive aos dos condados, e introduziu-se uma nova distribuio das circunscries eleitorais que at certo ponto as nivelava. Todas essas reformas aumentaram de tal modo a fora da classe operria nas eleies que eia representava j a maioria dos eleitores em 150 a 200 distritos. No h, porm, melhor escola de respeito tradio do que o sistema parlamentar Se a classe mdia olha com devoo e venerao o grupo que lorde John Manners chama a gozar a nossa velha nobreza, a massa dos operrios olhava ento com respeito e acatamento ao que na poca se chamava a classe melhor, a burguesia. Na realidade, o operrio britnico de h quinze anos era esse operrio-modelo cuja considerao respeitosa pela posio do seu patro e cuja timidez e humildade ao colocar as suas prprias reivindicaes punham um pouco de blsamo nas feridas que as incorrigveis tendncias comunistas e revolucionrias dos operrios alemes provocam entre os nossos socialistas de ctedra.

Contudo, os burgueses britnicos, como bons homens de negcios, viam mais que os professores alemes. S contrariados que haviam dividido o poder com os operrios. Durante o perodo cartista tinham tido a oportunidade de aprender do que era capaz o povo, aquele puer robustus sed malitiosus. Desde ento tiveram que aceitar e ver convertida em lei nacional a maior parte da Carta do Povo. Agora, mais do que nunca, era necessrio manter o povo distncia mediante recursos morais; e o primeiro e mais importante recurso morai com que se podia influenciar as massas continua a ser a religio. Da a maioria dos postos entregues aos padres nos organismos escolares e da a burguesia impor-se a si mesma cada vez mais tributos para sustentar toda a espcie de revivalismos, desde o ritualismo at o Exrcito de Salvao.

A esta como triunfava o respeitvel filisteismo britnico sobre a liberdade de pensamento e a indiferena em assuntos religiosos do burgus continental. Os operrios da Frana e da Alemanha tornaramse rebeldes. Estavam totalmente contaminados de socialismo e, alm disso, por motivos muito fortes, no davam muita importncia legalidade dos meios empregados para conquistar o poder. Aqui, o puer robustus tornara-se realmente cada dia mais malitiosus. E ao burgus francs ou alemo no restava outro recurso seno renunciar tacitamente a continuar sendo livre-pensa. dor, como esses rapazes engraados que, quando irremediavelmente atacados de enjo, deixam cair o cigarro fumegante com que faziam palhaadas a bordo. Os gracejadores foram adotando, um aps outro, exteriormente, uma atitude devota e comearam a referir-se com respeito igreja, aos seus dogmas e ritos, chegando inclusive, quando no havia outra soluo, a participar neles. Os burgueses franceses negavam.se a comer carne s sextas-feiras e os burgueses alemes suportavam, suando nos seus genuflexrios os interminveis sermes protestantes Haviam chegado com o seu materialismo a uma situao embaraosa. preciso conservar-se a religio para o povo: era o ltimo e nico recurso para salvar a sociedade da sua runa total. Por desgraa sua, no compreenderam isso seno depois de terem feito o humanamente possvel para derrubar em definitivo a religio. Chegara, pois, o momento em que o burgus britnico podia rir-se deles, por sua vez, e gritar-lhes: Ah bobos, eu j poderia ter dito isso h duzentos anos!

Entretanto, receio muito que nem a estupidez religiosa do burgus britnico nem a conservao post fastum do burgus continental consigam opor um dique crescente mar proletria A tradio uma grande fora freadora; a vis inertige da histria. Mas uma fora meramente passiva, e por isso tem necessariamente que sucumbir Da a religio no poder servir por muito tempo de muralha protetora da sociedade capitalista. Se as nossas idias jurdicas, filosficas e religiosas no so seno frutos mais prximos ou mais remotos das condies econmicas imperantes numa dada sociedade, a longo prazo essas idias no podem manter-se havendo uma mudana fundamental daquelas condies. Das duas uma: ou acreditamos numa revelao sobrenatural ou temos que reconhecer que no h pregao religiosa capaz de escorar uma sociedade em derrocada.

E a verdade que tambm na Inglaterra comeam os operrios novamente a movimentar-se indiscutivelmente o operrio ingls est preso a uma srie de tradies. Tradies burguesas, como a to difundida crena de que no podem existir mais que dois partidos, O conservador e o liberal e de que a classe operria tem de valer-se do grande partido liberal para trabalhar pela sua emancipao. E tradies operarias herdadas dos tempos dos seus primeiros ensaios de atuao independente, como a eliminao. nas numerosas e antigas trade-unions, de todos os operrios que no tiverem um determinado periodo de aprendizagem: o que significa. em rigor, que cada um desses sindicatos cria os seus prprios fura-greves. Mas, apesar de tudo isso e de muito mais, a classe operria avana, como o prprio professor Brentano se viu obrigado a comunicar, com grande pesar. aos seus irmos, os socialistas de ctedra. Avana, como tudo na Inglaterra a passo lento e ritmado, vacilante aqui, e ali mediante ensaios, s vezes estreis; avana aos poucos. com uma desconfiana excessivamente prudente. at quanto ao nome socialismo, mas assimilando gradualmente a essncia. Avana, e o seu avano vai-se transmitindo a uma camada operria aps outra. Sacudiu agora a apatia dos operrios no qualificados do East End de Londres, e todos ns j vimos que magnfico impulso deram classe operria, por sua vez, essas novas foras. E se o ritmo do movimento no est em consonncia com a impacincia de uns e outros, estes no devem esquecer que a classe operria que mantm vivos os melhores traos do carter nacional ingls e que, na Inglaterra. quando se d um passo adiante, j no se recua mais. Se os filhos dos velhos cartistas no deram, pelos motivos indicados, tudo o que deles se podia esperar. parece que os netos sero dignos dos avs.

De resto, o triunfo da classe operria no depende somente da Inglaterra. Este triunfo s pode ser assegurado mediante a cooperao, pelo menos, da inglaterra, Frana e Alemanha. Nos dois ltimos pases o movimento operrio leva uma boa dianteira sobre o da Inglaterra. Os progressos alcanados aqui h vinte e cinco anos no tm precedente. O movimento operrio alemo avana a uma velocidade acelerada. E se a burguesia alem tem dado provas da sua ausncia lamentvel de capacidade poltica, de disciplina. de bravura, de energia e de perseverana, a classe operria da Alemanha demonstrou que possui em grau extraordinrio todas estas qualidades. J h quase quatrocentos anos que a Alemanha foi o ponto de partida do primeiro levante da classe mdia da Europa. No ponto em que se acham as coisas, ser despropositado pensar que a Alemanha venha a tornar-se tambm o cenrio do primeiro grande triunfo do proletariado europeu?

20 de Abril de 1892.

F.Engels

(1) Vorwarts (Adiante): jornal publicado em Leipzig entre 1876 e 1878. Era o rgo principal da social-democracia alem depois do congresso de Gotha.(2) Doutrina criada por Hume e Kant no sc. XVII mas que tem o seu apogeu em meados do sc. XIX. Teoria Idealista, ctica e reacionria, que prega a idia de que o mundo incognoscvel, isto , que no pode ser conhecido pelo crebro humano.(3) Escola progressista e materialista da Idade Mdia. A filosofia nominalista dizia que os objetos materiais existiam na realidade, enquanto que os conceitos elaborados pelo crebro humano no refletiam as propriedades e as qualidades da matria. Um dos nominalistas mais famosos foi Guilherme de Occam, que deve ter nascido em 1300 e morrido em 1350. Occam demonstrou que a existncia de Deus s pode ser concebida pela f e no por intermdio da razo humana.(4) Qual um jogo de palavras filosfico: Qual significa, literalmente, tortura, dor que incita a realizar uma ao qualquer. Ao mesmo tempo, o mstico Bhme transfere para a palavra alem algo do termo qualitas (qualidade). O seu Qual era, por oposio dor produzida exteriormente, um princpio ativo, nascido do desenvolvimento espontneo da coisa, da relao ou da personalidade submetida a seu Influxo e que, por sua vez, provoca esse desenvolvimento. (Nota de F. Engels).(5) Tesmo Doutrina filosfica-religiosa que defende a existncia de um Deus que governa todas as aes dos homens.(6) Doutrina nascida em Inglaterra no sc. XVII. O Desmo reconhece a existncia de Deus como criador do Universo, mas recusa a interferncia daquele nas leis da natureza e do homem.(7) Nome genrico dado aos E. U. A. Mais tarde foi substitudo por Tio 8am.(8) O revivalismo foi um movimento religioso que tinha por finalidade fortalecer a influncia decrescente da religio. Moody e Sankey foram dois pregadores clebres dessa organizao(9) E at em matria de negcios a fatuidade do chauvinismo nacional mau conselheiro. At h pouco tempo, o fabricante ingls comum considerava infamante para o ingls falar outro idioma que no fosse o seu prprio e enchia-se de orgulho, de certo modo, ao ver esses pobres-diabos dos estrangeiros instalarem-se na inglaterra, livrando-o com isso de vender os seus produtos no estrangeiro. No percebia sequer que esses estrangeiros, na sua maior parte ais-mies, se apoderavam desse modo de uma grande parte do comrcio exterior da inglaterra tanto de importao como de exportao e que o comrcio direto dos ingleses com o estrangeiro ia-se reduzindo quase exclusivamente s colnias, China, Estados Unidos e Amrica do Sul. To-pouco percebia que esses alemes comerciavam com outros alemes do estrangeiro, que organizavam com o tempo uma rede completa de colnias comerciais por todo o mundo E quando, h quarenta anos, a Alemanha comeou seriamente a fabricar para a exportao encontrou nessas colnias comerciais alems um instrumento que lhe prestou maravilhosos servios na empresa de se transformar em to pouco tempo de um pas exportador de cereais num pas industrial de primeira ordem. Por fim, h cerca de dez anos, os fabricantes ingleses comearam a inquietar-se e a perguntar aos seus embaixadores e cnsules porque que j no podiam reter todos os seus clientes A resposta unnime foi esta:1.) porque no vos dais ao trabalho de aprender o idioma dos vossos clientes e exigis que eles aprendam o vosso; e 2.) porque no tentais sequer satisfazer as necessidades, os costumes e os gostos dos vossos clientes, mas quereis que eles se atenham aos vossos, aos da inglaterra (Nota de Engels).(10) O household suffrage estabelecia o direito de voto para todas as pessoas que morassem na mesma casa.(11)Votao secreta.

DO SOCIALISMO UTPICO AO SOCIALISMO CIENTFICO

I

O socialismo moderno , em primeiro lugar, pelo seu contedo, fruto do reflexo na inteligncia, por um lado dos antagonismos de classe que imperam na moderna sociedade entre possuidores e despossudos, capitalistas e operrios assalariados, e, por outro lado, da anarquia que reina na produo. Pela sua forma terica, porm, o socialismo comea apresentar-se como uma continuao, mais desenvolvida e mais conseqente, dos princpios proclamados pelos grandes pensadores franceses do sculo XVIII. Como toda a teoria nova, o socialismo, embora tivesse as suas razes nos fatos materiais econmicos, teve de ligar-se, ao nascer, s idias existentes.

Os grandes homens que, na Frana, iluminaram os crebros para a revoluo que se havia de desencadear, adotaram uma atitude resolutamente revolucionria. No reconheciam autoridade exterior de nenhuma espcie. A religio, a concepo da natureza, a sociedade, a ordem estatal: tudo eles submetiam crtica mais impiedosa; tudo quanto existia devia justificar a sua existncia ante o foro da razo, ou renunciar a continuar existindo. A tudo se aplicava como rasura nica a razo pensante. Era a poca em que, segundo Hegel, o mundo girava sobre a cabea (12), primeiro no sentido de que a cabea humana e os princpios estabelecidos pela sua especulao reclamavam o direito de ser acatados como base de todos os atos humanos e de toda a relao social, e logo tambm, no sentido mais amplo de que a realidade que no se ajustava a essas concluses se via subvertida, de fato, desde os alicerces at o alto. Todas as formas anteriores de sociedade e de Estado, todas as leis tradicionais, foram atiradas ao lixo como irracionais; at ento o mundo deixara-se governar por puros preconceitos; todo o passado no merecia seno comiserao e desprezo. S agora despontava a aurora, o reino da razo; daqui por diante a superstio, a injustia, o privilgio e a opresso seriam substitudos pela verdade eterna, pela eterna justia, pela igualdade baseada na natureza e pelos direitos inalienveis do homem.

J sabemos, hoje, que este imprio da razo no era mais do que o imprio idealizado pela burguesia; que a justia eterna tomou corpo na justia burguesa; que a igualdade se reduziu igualdade burguesa em face da lei, que, como um dos direitos mais essenciais do homem, foi proclamada a propriedade burguesa; e que o Estado da razo, o contrato social de Rousseau, Pisou e somente podia pisar o terreno da realidade, convertido na repblica democrtica burguesa. Os grandes pensadores do sculo XVIII, como todos os seus predecessores no podiam romper as fronteiras que a sua prpria poca lhes impunha.

Mas, ao lado do antagonismo entre a nobreza feudal e a burguesia, que se erigia em representante de todo o resto da sociedade, mantinha-se de p os antagonismos geral entre exploradores e explorados, entre ricos gozadores e pobres que trabalhavam E este fato exatamente que permitia aos representantes da burguesia arrogar-se a representao, no de uma classe determinada, mas de toda a humanidade sofredora Mais ainda: desde o momento em que nasceu, a burguesia transportava nas suas entranhas a sua prpria anttese, pois os capitalistas no podem existir sem os operrios assalariados, e na mesma proporo em que os mestres de ofcios das corporaes medievais se convertiam em burgueses modernos, os oficiais e os jornaleiros no agremiados transformavam se em proletrios E se, em termos gerais, a burguesia podia arrogar-se o direito de representar, nas suas lutas com a nobreza, alm dos seus interesses, os das diferentes classes trabalhadoras da poca ao lado de qualquer grande movimento burgus que se desencadeava eclodiam movimentos independentes daquela classe que era o procedente mais ou menos desenvolvido do proletariado moderno. Tal foi na poca da Reforma e das guerras camponesas na Alemanha a tendncia dos anabatistas e de Thomas Mnzer, na grande Revoluo Inglesa os levellers (13), e na Revoluo Francesa, Babeuf. Estas sublevaes revolucionrias de uma classe incipiente so acompanhadas, por sua vez, pelas correspondentes manifestaes tericas: nos sculos XVI e XVII aparecem as descries utpicas de um regime ideal da sociedade; no sculo XVIII, teorias j abertamente comunistas, como as de Morelly (14) e Mably (15). A reivindicao da igualdade nao se limitava aos direitos polticos, mas estendia-se s condies sociais de vida de cada indivduo; j no se tratava de abolir os privilgios de classe, mas de destruir as prprias diferenas de classe. Um comunismo asctico maneira espartana, que renunciava a todos os gozos da vida, tal foi a primeira forma de manifestao da nova teoria. Mais tarde vieram os trs grandes utopistas: Sant-Smon, cuja tendncia continua ainda a afirmar-se, at certo ponto, junto tendncia proletria; Fourier e Owen, este ltimo num pas onde a produo capitalista estava mais desenvolvida e sob a presso engendrada por ela, expondo de forma sistemtica uma srie de medidas orientadas no sentido de abolir as diferenas de classe, em relao direta com o materialismo francs.

Trao comum aos trs que no atuavam como representantes dos interesses do proletariado, que entretanto surgira como um produto histrico. Da mesma maneira que os enciclopedistas, no se propem emancipar primeiramente uma classe determinada, mas, de chofre, toda a humanidade. E assim como eles, pretendem instaurar o imprio da razo e da justia eterna. Mas entre o seu imprio e o dos enciclopedistas medeia um abismo. Tambm o mundo burgus, instaurado segundo os princpios dos enciclopedistas, injusto e irracional e merece, portanto, ser deitado fora como trastes imprestveis, tanto quanto o feudalismo e as formas sociais que o antecederam. Se at agora a verdadeira razo e a verdadeira justia no governaram o mundo simplesmente porque ningum soube penetrar devidamente nelas. Faltava o homem genial, que agora se ergue ante a humanidade com a verdade, por fim descoberta. O fato de que esse homem tenha aparecido agora, e no antes, o fato de que a verdade tenha sido por fim descoberta agora, e no antes, no , segundo eles, um acontecimento inevitvel, imposto pela concatenao do desenvolvimento histrico, e sim porque o simples acaso assim o quis. Poderia ter aparecido quinhentos anos antes, poupando assim humanidade quinhentos anos de erros, de lutas e de sofrimentos.

Vimos como os filsofos franceses do sculo XVIII, que abriram o caminho revoluo, apelavam para a razo como o juiz nico de tudo o que existe. Pretendia-se instaurar um Estado racional, uma sociedade ajustada razo, e tudo quanto contradissesse a razo eterna deveria ser rechaado sem nenhuma piedade. Vimos tambm que, na realidade, essa razo no era mais que o senso comum do homem idealizado da classe mdia que, precisamente ento, se convertia em burgus. Por isso, quando a Revoluo Francesa empreendeu a construo dessa sociedade e desse Estado da razo, redundou que as novas instituies, por mais racionais que fossem em comparao com as antigas distavam bastante da razo absoluta. O estado da razo falira completamente. O contrato social de Rousseau tomara corpo na poca do terror, e a burguesia perdida a f na sua prpria habilidade poltica, refugiou-se, primeiro na corrupo do Diretrio e, por ltimo, sob a gide do despotismo napolenico. A prometida paz eterna covertera-se numa interminvel guerra de conquistas. Nem teve melhor sorte a sociedade da razo. O antagonismo entre pobres e ricos, longe de dissolver-se no bem-estar geral, aguara-se com o desaparecimento dos privilgios das corporaes e outros, que estendiam uma ponte sobre ele, e os estabelecimentos eclesisticos de beneficncia, que o atenuavam. A libertao da propriedade dos entraves feudais, que agora se convertia em realidade, vinha a ser para o pequeno burgus e o pequeno campons a liberdade de vender a esses mesmos poderosos senhores a sua pequena propriedade, esgotada pela esmagadora concorrncia do grande capital e da grande propriedade latifundiria; com o que se transformava na libertao do pequeno burgus e do pequeno campons de toda e qualquer propriedade. A ascenso da indstria sobre bases capitalistas converteu a pobreza e a misria das massas trabalhadoras em condio de vida da sociedade. O pagamento vista transformava-se, cada vez mais, segundo a expresso de Carlyle, no nico elo que unia a sociedade. A estatstica criminal crescia de ano para ano. Os vcios feudais, que at ento eram exibidos impudicamente, luz do dia, no desapareceram, mas recolheram-se, por um momento, um pouco ao fundo do cenrio; em troca, floresciam exuberantemente os vcios burgueses, at ento superficialmente ocultos. O comrcio foi degenerando, cada vez mais, em vigarice. A fraternidade do lema revolucionrio tomou corpo nas deslealdades e na inveja da luta de concorrncia. A opresso violenta cedeu lugar corrupo, e a espada, como principal alavanca do poder social, foi substituda pelo dinheiro. O direito de pernada (16) passou do senhor feudal ao fabricante burgus. A prostituio desenvolveu-se em propores at ento desconhecidas. O prprio casamento continuou sendo o que j era: a forma reconhecida pela lei, o manto com que se cobria a prostituio, completado alm disso com uma abundncia de adultrios. Numa palavra, comparadas com as brilhantes promessas dos pensadores, as instituies sociais e polticas instauradas pelo triunfo da razo redundaram em tristes e decepcionantes caricaturas. Faltavam apenas os homens que pusessem em relevo o desengano e esses homens surgiram nos primeiros anos do sculo XIX. Em 1802, vieram luz as Cartas de Genebra de Saint-Simon; em 1808, Fourier publicou a sua primeira obra, embora as bases da sua teoria datassem j de 1799; a 1 de Janeiro de 1800, Robert Owen assumiu a direo da empresa de New Lanark.

No entanto, naquela poca, o modo capitalista de produo, e com ele o antagonismo entre a burguesia e o proletariado, achava-se ainda muito pouco desenvolvido. A grande indstria, que acabava de nascer na Inglaterra, era ainda desconhecida na Frana. E s a grande indstria desenvolve, por um lado, os conflitos que transformaram numa necessidade imperiosa a subverso do modo de produo e a eliminao do seu carter capitalista conflitos que eclodem no s entre as classes engendradas por essa grande indstria, mas tambm entre as foras produtivas e as formas de distribuio por elas criadas e, por outro, desenvolve nessas gigantescas foras produtivas os meios para solucionar esses conflitos. Em vsperas do sculo XIX, os conflitos que brotavam da nova ordem social mal comeavam a desenvolver-se e menos ainda, naturalmente, os meios que levam a sua soluo. Se as massas despossudas de Paris conseguiram dominar por um momento o poder durante o regime de terror, e assim levar ao triunfo a revoluo burguesa, inclusive contra a burguesia, s serviu para demonstrar at que ponto era impossvel manter por muito tempo esse poder nas condies da poca. O proletariado, que apenas comeava a destacar-se no seio das massas que nada possuem, como tronco de uma nova classe, totalmente incapaz ainda para desenvolver uma ao poltica prpria, no representava mais que um estrato social oprimido, castigado, incapaz de valer-se por si mesmo. A ajuda, no melhor dos casos, tinha que vir de fora, do alto.

Essa situao histrica informa tambm as doutrinas dos fundadores do socialismo. As suas teorias incipientes no fazem mais do que refletir o estado incipiente da produo capitalista, a incipiente condio de classe. Pretendia-se tirar da cabea a soluo dos problemas sociais, latentes ainda nas condies econmicas pouco desenvolvidas da poca. A sociedade no encerrava seno males, que a razo pensante era chamada a remediar.

Tratava-se, por isso, de descobrir um sistema novo e mais perfeito de ordem social, para implant-lo na sociedade vindo de fora, por meio da propaganda e, sendo possvel, com o exemplo, mediante experincias que servissem de modelo. Esses novos sistemas sociais nasciam condenados a mover-se no reino da utopia; quanto mais detalhados e minuciosos fossem, mais tinham que degenerar em puras fantasias.

Assentado isto, no h por que nos determos nem um momento mais neste aspecto, j definitivamente incorporado ao passado. Deixemos que os trapeiros literrios revolvam solenemente essas fantasias, que parecem hoje provocar o riso, para ressaltar sobre o fundo desse cmulo de disparates a superioridade do seu raciocnio sereno. Quanto a ns, admiramos os germes geniais de idias e as idias geniais que brotam por toda a parte sob essa capa de fantasia que os filisteus san incapazes de ver.

Saint-Simon era filho da grande Revoluo Francesa, que estourou quando ele no contava ainda trinta anos. A Revoluo foi o triunfo do terceiro estado, isto , da grande massa ativa da nao, a cujo cargo corriam a produo e o comrcio, sobre os estados at ento ociosos e privilegiados da sociedade: a nobreza e o clero. Mas logo se viu que o triunfo do terceiro estado no era mais que o triunfo de uma parte muito pequena dele, a conquista do poder poltico pelo setor socialmente privilegiado dessa classe: a burguesia possuidora. Esta burguesia desenvolvia-se rapidamente j no processo da revoluo, especulando com as terras confiscadas e logo vendidas da aristocracia e da Igreja, e lesando nao por meio das verbas destinadas ao exrcito. Foi precisamente o governo desses negociantes que, sob o Diretrio, levou a Frana e a Revoluo beira da runa, dando com isso a Napoleo o pretexto para o golpe de Estado. Por isso, na idia de Saint-Simon, o antagonismo entre o terceiro estado e os estados privilegiados da sociedade tomou a forma de um antagonismo entre trabalhadores e ociosos . Os ociosos eram no s os antigos privilegiados, mas todos aqueles que viviam de rendas, sem intervir na produo nem no comrcio. No conceito de trabalhadores no entravam somente os operrios assalariados, mas tambm os fabricantes, os comerciantes e os banqueiros. Que os ociosos haviam perdido a capacidade para dirigir espiritualmente e governar politicamente era um fato indisfarvel, selado em definitivo pela Revoluo. E, para Saint-Simon, as experincias da poca do terror haviam demonstrado, por sua vez, que os descamisados tambm no possuam essa capacidade. Ento, quem haveria de dirigir e governar? Segundo Saint-Simon, a cincia e a indstria, unidas por um novo lao religioso, um novo cristianismo, forosamente mstico e rigorosamente hierrquico, chamado a restaurar a unidade das idias religiosas, destruda desde a Reforma. Mas a cincia eram os sbios acadmicos; e a indstria eram, em primeiro lugar, os burgueses ativos, os fabricantes, os comerciantes, os banqueiros. E embora esses burgueses tivessem de transformar-se numa espcie de funcionrios pblicos, de homens da confiana de toda a sociedade sempre conservariam frente aos operrios uma posio autoritria e economicamente privilegiada. Os banqueiros seriam os chamados em primeiro lugar para regular toda a produo social por meio de uma regulamentao do crdito. Esse modo de conceber correspondia perfeitamente a uma poca em que a grande indstria, e com ela o antagonismo entre a burguesia e o proletariado, mal comeava a despontar na Frana. Mas Saint-Simon insiste muito especialmente neste ponto: o que o preocupa, sempre e em primeiro lugar a sorte da classe mais numerosa e mais pobre da sociedade (la classe la plus nombreuse et la plus pauvre).

Nas suas cartas de Genebra, Saint-Simon formula a tese de que todos os homens devem trabalhar. Na mesma obra j se expressa a idia de que o reinado do terror era o governo das massas despossudas. Vede grita-lhes - o que se passou na Frana quando os vossos camaradas subiram ao poder: provocaram a fome. Mas conceber a Revoluo Francesa com uma luta de classes, e no s entre a nobreza e a burguesia, mas entre a nobreza, a burguesia e os des possudos, era, em 1802, uma descoberta verdadeiramente genial. Em 1816, Saint-Simon declara que a poltica a cincia da produo e prediz j a total absoro da poltica pela economia. E se aqui no faz seno aparecer em germe a idia de que a situao econmica a base das instituies polticas, proclama j claramente a transformao do governo poltico sobre os homens numa administrao das coisas e na direo dos processos da produo, que no seno a idia da abolio do Estado, que tanto alarde levanta ultimamente. E, elevando-se com a mesma superioridade acima dos seus contemporneos, declara, em 1814, imediatamente depois da entrada das tropas coligadas em Paris, e reitera em 1815, durante a Guerra dos Cem Dias, que a aliana da Frana com a Inglaterra e, em segundo lugar, a destes pases com a Alemanha, a nica garantia do desenvolvimento prspero e da paz na Europa. Para aconselhar aos franceses de 1815 uma aliana com os vencedores de Waterloo era necessrio ter tanto de valentia quanto de ca acidade para ver longe na histria.

O que em Saint-Simon amplitude genial de viso, que lhe permite conter j, em germe, quase todas as idias no estritamente econmicas dos socialistas posteriores, em Fourier a crtica engenhosa autenticamente francesa, mas nem por isso menos profunda, das condies sociais existentes. Fourier pega a burguesia pela palavra, pelos seus inflamados profetas de antes e pelos seus interesseiros aduladores de depois da revoluo. Pe a nu, impiedosamente, a misria material e moral do mundo burgus, e compara-a s fascinantes promessas dos velhos enciclopedistas, com a imagem que eles faziam da sociedade em que a razo reinaria sozinha, de uma civilizao que faria felizes todos os homens e de uma ilimitada capacidade humana de perfeio. Desmascara as brilhantes frases dos idelogos burgueses da poca, demonstra como a essas frases grandiloquen. tes corresponde, por toda a parte, a mais cruel das realidades e derrama a sua stira mordaz sobre esse ruidoso fracasso da fraseologia. Fourier no apenas um crtico; o seu esprito sempre jovial faz dele um satrico, um dos maiores satricos de todos os tempos. A especulao criminosa desencadeada com o refluxo da onda revolucionria e o esprito mesquinho do comrcio francs naqueles anos aparecem pintados nas suas obras com traos magistrais e encantadores. Mas ainda mais magistral nele a crtica das relaes entre os sexos e da posio da mulher na sociedade burguesa. ele o primeiro a proclamar que o grau de emancipao da mulher numa sociedade o barmetro natural pelo qual se mede a emancipao geral. Contudo, onde mais sobressai Fourier na maneira como concebe a histria da sociedade. Fourier divide toda a histria anterior em quatro fases ou etapas de desenvolvimento; o selvagismo, a barbrie, o patriarcado e a civilizao, esta ltima fase coincidindo com o que chamamos hoje sociedade burguesa, isto , com o regime social implantado desde o sculo XVI, e demonstra que a ordem civilizada eleva a uma forma complexa, ambgua, equivoca e hipcrita todos aqueles vcios que a barbrie praticava no meio da maior simplicidade. Para ele a civilizao move-se num circulo vicioso, num ciclo de contradies, que se reproduz constantemente sem poder super-las, conseguindo sempre precisamente o contrrio do que deseja ou alega querer conseguir. E assim nos encontramos, por exemplo, com o fato de que na civilizao, a pobreza brota da prpria abundncia. Gomo se v, Fourier maneja a dialtica com a mesma maestria do seu contemporneo Hegel. Diante dos que enchem a boca falando da ilimitada capacidade humana de perfeio, pe em relevo, com igual dialtica, que toda a fase histrica tem a sua vertente ascensional, mas tambm a sua ladeira descendente, e projeta essa concepo sobre o futuro de toda a humanidade. E assim como Kant introduziu na cincia da natureza o desaparecimento futuro da Terra, Fourier introduz no seu estudo da histria a idia do futuro desaparecimento da humanidade.

Enquanto o vendaval da revoluo varria o solo da Frana, desenvolvia-se na Inglaterra um processo revolucionrio, mais tranqilo embora nem por isso menos poderoso. O vapor e as mquinas-ferramentas converteram a manufatura na grande indstria moderna, revolucionando com isso todos os fundamentos da sociedade burguesa. O ritmo vagaroso do desenvolvimento do perodo da manufatura converteu-se num verdadeiro perodo de luta e embate da produo. Com uma velocidade cada vez mais acelerada, ia-se dando a diviso da sociedade em grandes capitalistas e proletrios que nada possuem e, entre eles, em lugar da antiga classe mdia tranqila e estvel, uma massa instvel de artesos e pequenos comerciantes, a parte mais flutuante da populao, levava uma existncia sem nenhuma segurana. O novo modo de produo apenas comeava a galgar a vertente ascensional; era ainda o modo de produo normal, regular, o nico possvel naquelas circunstncias. E no entanto deu origem a toda uma srie de graves calamidades sociais: amontoamento, nos bairros mais srdidos das grandes cidades, de uma populao arrancada do seu solo; dissoluo de todos os laos tradicionais dos costumes, da submisso patriarcal e da famlia; prolongao abusiva do trabalho, que sobretudo entre as mulheres e as crianas assumia propores aterradoras; desmoralizao em massa da classe trabalhadora, lanada de sbito para condies de vida totalmente novas do campo para a cidade, da agricultura para a indstria, de uma situao estvel para outra constantemente varivel e insegura. Em tais circunstncias, ergue-se como reformador um fabricante de 29 anos, um homem cuja pureza quase infantil tocava as raias do sublime e que era, ao lado disso, um condutor de homens como poucos. Robert Owen assimilava os ensinamentos dos filsofos materialistas do sculo XVIII, segundo os quais o carter do homem , por um lado, produto da sua organizao inata e, por outro, fruto das circunstncias que envolvem o homem durante a sua vida, sobretudo durante o perodo do seu desenvolvimento. A maioria dos homens da sua classe no via na revoluo industrial seno caos e confuso, uma ocasio propcia para pescar no rio revolto e enriquecer depressa. Owen, porm, viu nela o terreno adequado para pr em prtica a sua tese favorita, introduzindo ordem no caos. J em Manchester, dirigindo uma fbrica de mais de 500 operrios, tentara, no sem xito, aplicar praticamente a sua teoria. De 1800 a 1829 orientou no mesmo sentido, embora com maior liberdade de iniciativa e com um xito que lhe valeu fama na Europa, a grande fbrica de fios de algodo de New Lanark, na Esccia, da qual era scio e gerente. Uma Populao operria que foi crescendo paulatina.. mente at 2500 almas, recrutada a princpio entre os elementos mais heterogneos, a maioria dos quais muito desmoralizados, converteu-se nas suas mos numa colnia-modelo, na qual no se conheciam a embriaguez, a polcia, os juizes de paz, os processos, os asilos para pobres nem a beneficncia pblica. Para isso bastou, somente, colocar os seus operrios em condies mais humanas de vida, consagrando um cuidado especial educao da prole. Owen foi o criador dos jardins de infncia que funcionaram pela primeira vez em New Lanark. As crianas eram enviadas s escolas desde os dois anos, e nelas se sentiam to bem que s com dificuldade eram levadas para casa. Enquanto nas fbricas dos seus concorrentes os operrios trabalhavam treze e catorze horas dirias, em New Lanark a jornada de trabalho era de dez horas e meia. Quando uma crise algodoeira obrigou o encerramento da fbrica por quatro meses, os operrios de New Lanark que ficaram sem trabalho, continuaram recebendo as suas dirias integrais. E contudo a empresa incrementara para o dobro o seu, valor e rendeu aos seus proprietrios, at ao ltimo dia, enormes lucros.

Owen, entretanto, no estava satisfeito com o que conseguira. A existncia que se propusera dar aos seus operrios distava muito ainda, a seus olhos, de uma existncia digna de um ser humano. Aqueles homens eram meus escravos . As circunstncias relativamente favorveis em que os colocara estavam ainda muito longe de permitir-lhes desenvolver racionalmente e em todos os aspectos o carter e a inteligncia, e muito menos desenvolver livremente as suas energias. E, contudo, a parte produtora daquela populao de 2500 almas dava sociedade uma soma de riqueza real que, apenas meio sculo antes teria exigido o trabalho de 600 000 homens juntos. Perguntava-me: onde vai parar a diferena entre a riqueza consumida por essas 2500 pessoas e a que precisaria ser consumida pelas 600 000? A resposta era clara: essa diferena era invertida em abonar os proprietrios da empresa com 5 por cento de juros sobre o canital de instalao, ao qual vinham somar-se mais de 300 000 libras esterlinas de lucros. E o caso de New Lanark era, s que em propores maiores, o de todas as fbricas de Inglaterra. Sem essa nova fonte de riqueza criada pelas mquinas, teria sido impossvel levar adiante as guerras travadas para derrubar Napoleo e manter de p os princpios da sociedade aristocrtica. E, no entanto, esse novo poder era obra da classe operria. Portanto, a ela deviam pertencer tambm os seus frutos. As novas e gigantescas foras produtivas, que at ali s haviam servido para que alguns enriquecessem e as massas fossem escravizadas, lanavam, segundo Owen, as bases para uma reconstruo social e estavam fadadas para trabalhar somente para o bem-estar coletivo, como propriedade coletiva de todos os membros da sociedade.

Foi assim, por esse caminho puramente prtico resultado, por assim dizer, dos clculos de um homem de negcios que surgiu o comunismo oweniano, conservando sempre esse carter prtico. Assim, em 1823, Owen prope um sistema de colnias comunistas para combater a misria reinante na Irlanda e apresenta, em apoio da sua proposta, um oramento completo de despesas de instalao, desembolsos anuais e rendas provveis. E assim tambm nos seus planos definitivos da sociedade do futuro, os detalhes tcnicos so calculados com um domnio tal da matria, incluindo at projetos, desenhos de frente, de perfil e do alto que, uma vez aceiro o mtodo oweniano de reforma da sociedade, pouco se poderia objetar, mesmo um tcnico experimentado, contra os pormenores da sua organizao.

O avano para o comunismo constitui um momento crucial na vida de Owen. Enquanto se limitara a atuar s como filantropo, no colhera seno riquezas, aplausos, honra e fama. Era o homem mais popular da Europa. No s os homens da sua classe e posio social, mas tambm os governantes e os prncipes o escutavam e o aprovavam No momento, porm, em que formulou as suas teorias comunistas, virou-se a pgina. Eram precisamente trs grandes obstculos os que, segundo ele, se erguiam no seu caminho da reforma social: a propriedade privada, a religio e a forma atual do casamento. E no ignorava ao que se expunha atacando-os: execrao de toda a sociedade oficial e perda da sua posio social. Mas isso no o deteve nos seus ataques implacveis contra aquelas instituies, e ocorreu o que ele previa. Desterrado pela sociedade oficial, ignorado completamente pela imprensa, arruinado pelas suas fracassadas experincias comunistas na Amrica, s quais sacrificou toda a sua fortuna, dirigiu-se classe operria, no seio da qual atuou ainda durante trinta anos. Todos os movimentos sociais, todos os progressos reais registrados na Inglaterra no interesse da classe trabalhadora, esto ligados ao nome de Owen. Assim, em 1819, depois de cinco anos de grandes esforos, conseguiu que fosse votada a primeira lei limitando o trabalho da mulher e da criana nas fbricas. Foi ele quem presidiu aoprimeiro congresso em que as trade-unions de toda a Inglaterra se fundiram numa grande organizao sindical nica. E foi tambm ele quem criou, como medidas de transio, para que a sociedade pudesse organizar-se demaneira integralmente comunista, por um lado, as cooperativas de consumo e de produo que serviram, pelo menos, para demonstrar na prtica que o comerciantee o fabricante no so indispensveis , e por outro lado, os mercados operrios, estabelecimentos de troca dos produtos do trabalho por meio de bnus de trabalho e cuja unidade a hora de trabalho produzido; esses estabelecimentos tinham necessariamente que fracassar, mas antecipam-se muito aos bancos proudhonianos de troca, diferenciando-se deles somente em que no pretendem ser a panacia universal para todos os males sociais, mas pura e simplesmente um primeiro passo para uma transformao muito mais radical da sociedade.

As concepes dos utopistas dominaram durante muito tempo as idias socialistas do sculo XIX, e em parte ainda hoje as dominam. Rendiam-lhes homenagens, at h muito pouco tempo, todos os socialistas franceses e ingleses e a eles se deve tambm o incipiente comunismo alemo, incluindo Wetling. Para todos eles, o socialismo a expresso da verdade absoluta, da razo e da justia, e bastante revel-lo para, graas sua virtude, conquistar o mundo. E, como a verdade absoluta no est sujeita a condies de espao e de tempo nem ao desenvolvimento histrico da humanida de, s o acaso pode decidir quando e onde essa descoberta se revelar. Acrescentese a isso que a verdade absoluta, a razo e a justia variam com os fundadores de cada escola; e como o carter especfico da verdade absoluta, da razo e da justia est condicionado, por sua vez, em cada um deles, pela inteligncia pessoal, condies de vida, estado de cultura e disciplina mental, resulta que nesse conflito de verjades absolutas a nica soluo que elas se vo acomodando umas s outras. E, assim, era inevitvel que surgisse uma espcie de socialismo ecltico e medocre, como o que, com efeito, continua imperando ainda nas cabeas da maior parte dos operrios socialistas da Frana e da Inglaterra uma mistura extraordinriamente variegada e cheia de matizes, compostas de desabafos crticos econmicos e as imagens sociais do futuro menos discutveis dos diversos fundadores de seitas, mistura tanto mais fcil de compor quanto mais os ingredientes individuais iam perdendo, na torrente da discusso, os seus contornos sutis e agudos, como as pedras limadas pela corrente de um rio. Para converter o socialismo em cincia era necessrio antes de tudo, situ-lo no terreno da realidade.

II

Entretanto, junto filosofia francesa do sculo XVIII, e por trs dela, surgira a moderna filosofia alem, cujo ponto culminante foi Hegel. O principal mrito dessa filosofia a restaurao da dialtica, como forma suprema do pensamento Os antigos filsofos gregos eram todos dialticos inatos, espontneos, e a cabea mais universal de todos eles Aristteles chegara j a estudar as formas mais substanciais do pensamento dialtico. Em troca, a nova filosofia, embora tendo um ou outro brilhante defensor da dialtica (como, por exemplo, Descartes e Espinoza) caa cada vez mais, sob a influncia principalmente dos ingleses, na chamada maneira metafsica de pensar, que tambm dominou quase totalmente entre os franceses do sculo XVIII, pelo menos nas suas obras especificamente filosficas. Fora do campo estritamente filosfico, eles criaram tambm obras-primas de dialtica; como prova, basta citar O Sobrinho de Rameau, de Diderot, e o estudo de Rousseau sobre a origem da desigualdade entre os homens. Resumiremos aqui, sucintamente, os traos mais essenciais de ambos os mtodos discursivos.

Quando nos detemos a pensar sobre a natureza, ou sobre a histria humana, ou sobre a nossa prpria atividade espiritual, deparamo-nos, em primeiro plano, com a imagem de uma trama infinita de concatenaes e influncias recprocas, em que nada permanece o que era, nem como e onde era, mas tudo se move e se transforma,nasce e morre. Vemos, pois, antes de tudo, a imagem de conjunto, na qual os detalhes passam ainda mais ou menos para segundo plano; fixamo-nos mais no movimento, nas transies, na concatenao, do que no que se move, se transforma e se concatena. Essa concepo do mundo, primitiva, ingnua, mas essencialmente exata, a dos filsofos gregos antigos, e aparece claramente expressa pela primeira vez em Herclito: tudo e no , pois tudo flui, tudo se acha sujeito a um processo constante de transformao, de incessante nascimento e caducidade. Mas esta concepo, por mais exatamente que reflita o carter geral do quadro que nos oferecido pelos fenmenos, no basta para explicar os elementos isolados que formam esse quadro total; sem os conhecer, a imagem geral no adquirir to-pouco um sentido claro. Para penetrar