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Foucault e a caixa de ferramentas: modos de pensar sobre a cidade, modos de agir na cidade Foucault and the toolbox: ways of thinking about the city, ways of acting in the city Coordenador: Fernando Augusto Souza Pinho, PUC Campinas, pesquisador, [email protected] Debatedor: Robert Pechman, UFRJ, professor, [email protected]

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Foucaulteacaixadeferramentas:modosdepensarsobreacidade,modosdeagirnacidade

Foucaultandthetoolbox:waysofthinkingaboutthecity,waysofactinginthecity

Coordenador:FernandoAugustoSouzaPinho,PUCCampinas,pesquisador,[email protected]

Debatedor:RobertPechman,UFRJ,professor,[email protected]

SESSÃO L IVRE

DESENVOLVIMENTO,CRISEERESISTÊNCIA:QUAISOSCAMINHOSDOPLANEJAMENTOURBANOEREGIONAL? 2

Filósofosuigeneris,MichelFoucault (1926-1984) lançounovosolharesàcompreensãodosocial,cujosreflexostransformaramcamposdesaberesedepráticasparaalémdafilosofia,taiscomoahistória, a psicanálise, o feminismo, as ciências sociais, entre outros. A trajetória intelectual deMichelFoucaultécostumeiramentedivididaemtrêsmomentos,fasesoudomínios,segundoseusprincipais comentadores: a arqueológica (análise sobre a constituição do saber), a genealógica(análise sobre as formasdeexercíciodopoder) e a ética/estéticadaexistência (análise sobreosujeitocomoportadorecriadordeumacondutaéticaoumoral).Cabedestacarquetaisdivisõesse constituem apenas como um recurso didático, já que, de fato, inexiste um início e um fimnítidosdecada fase,massimumentrelaçamentoentreelas.Ementrevistaconcedida,nosanos80, antes de sua morte, Michel Foucault elaborou uma espécie de síntese de seu programafilosófico–umaontologiahistórica,umagenealogiabaseadaemtrêseixos:

Primeiro, uma ontologia histórica de nós mesmos em relação à verdadeatravés da qual nos constituímos como sujeitos de saber; segundo, umaontologiahistóricadenósmesmosemrelaçãoaumcampodepoderatravésdoqualnosconstituímoscomosujeitosdeaçãosobreosoutros;terceiro,umaontologiahistóricaemrelaçãoàéticaatravésdaqualnosconstituímoscomoagentesmorais(DreyfuseRabinow,1995).

Comoumabreve introduçãoaopensamentodeMichelFoucault,atravessaremosessepercurso,suasfaseseconceitosfundamentaisapartirdetrêsobras,demodoacontextualizaroescopoeosobjetivos desta sessão livre, a saber: o A arqueologia do saber como representante da fasearqueológica, o Vigiar e punir e História da sexualidade 1: a vontade de saber para a fasegenealógica e os História da sexualidade 2: o uso dos prazeres e História da sexualidade 3: ocuidadodesiparaaética/estéticadaexistência.

OdiscursoconstituiuumdostermosequestõesqueatravessaramtodoopensamentodeMichelFoucault. Em A arqueologia do saber (L’archéology du savoir, 1969), livro que pretendeusistematizar o empreendimento arqueológico foucaultiano, o discurso é definido como umconjuntodeenunciadosqueseapoiamnamesmaformaçãodiscursiva,“umnúmerolimitadodeenunciados para os quais podemos definir um conjunto de condições de existência” (Foucault,2005).Aarqueologiafoucaultiana–quecaracterizaumdeterminadoempreendimentointelectualdo autor, em especial no que se refere ao saber-poder – seria uma espécie demodalidade deanálise do discurso na modalidade de arquivo. O arquivo refere-se ao conjunto de discursosefetivamentepronunciados,mastambéméosistemaqueregeoquepodeserditoeosurgimentodeenunciadoscomoacontecimentossingulares.Assim,Foucaultespecificasua formadeanálisedodiscursoesobreasrelaçõesentrediscursoepoderemsuaobra:

Nãotentoencontraratrásdodiscursoumacoisaqueseriaopoderequeseriasua fonte, como em uma descrição de tipo fenomenológico ou de qualquermétodo interpretativo. Eu parto do discurso tal como é. Em uma descriçãofenomenológica, tenta-se deduzir do discurso algo que concerne ao sujeitofalante; trata-se de reencontrar, a partir do discurso, quais são asintencionalidadesdosujeitofalante,umpensamentoqueestáseformando.Otipodeanálisequeeupraticonão seocupadoproblemado sujeito falante,mas examina as diferentes maneiras pelas quais o discurso cumpre umafunçãodentrodeumsistemaestratégicoondeopoderestáimplicadoepeloqualopoderfunciona.Opodernãoestá,poisforadodiscurso.Opodernãoénemafontenemaorigemdodiscurso.Opoderéalgoquefuncionaatravésdodiscurso,porqueodiscursoé,elemesmo,umelementoemumdispositivoestratégicoderelaçõesdepoder(FoucaultapudCastro,2009,p.120).

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Umadesuasmaiscitadascontribuiçõesérepresentadapelaanalíticadopoderesuarelaçãocomo saber. Usamos os termos “análise” e/ou “analítica”, seguindo o entendimento de RobertoMachado (1979), tendo em vista que “não existe em Foucault uma teoria geral do poder”.Entendemos, portanto, que as análises feitas por Michel Foucault, não somente acerca dasrelações de poder,mas também sobre o saber e o sujeito, eram resultado de uma formulaçãoespecíficaparacadaobjeto.

Sobre o poder, a novidade estaria na ideia de que ele não seria uma essência, algo localizadosomentenosaparelhosdoEstado,comoacostumavamapregoaraeconomiapolíticaeafilosofiapolítica; ao contrário, para Michel Foucault, o poder é uma prática social, historicamenteconstituída,equeseexerceemtodoocorposocialcomoumaredeedaqualnãosepodeescapar.Porissonãoexistiriampontosespecíficosdelocalizaçãodopoder,muitomenososseusdonoseaqueles que dele estão excluídos. Por isso, onde há poder, há resistência, uma espécie decontrapoder,comosmesmospontosmóveisetransitórios.Opodernãopoderiaservistoapenasem sua conotação negativa, como repressão, destruição e violência. Foi importante reconhecertambémsuapositividade,oseuimpulsoparaacriaçãoetransformação.Nestaduplaconcepção,opodertemuma“eficáciaprodutiva”,jáqueagindosobreocorpobuscatorná-loútiledócil.

Em Vigiar e punir (Surveiller et punir, 1975), Foucault demonstrou que o indivíduo era o alvodaquiloqueelechamoude“disciplina”ou“poderdisciplinar”,cujoobjetivoeratorná-loumcorpodócil, “umcorpoquepodeser submetido,quepodeserutilizado,quepodeser transformadoeaperfeiçoado”(FOUCAULT,2009,p.132).Nesseviésopoderdisciplinarteriaquatrocaracterísticasbásicas.Aprimeiraéumtipodepoderqueorganizaoespaço,distribuindoosindivíduossegundoumdeterminadoobjetivoespecífico.Ocontroledotempoéasegundacaracterística,quefazosindivíduossujeitarem-seaotempovisandoomáximodeeficiênciaeeficáciaprodutiva.Aterceiracaracterística refere-seà vigilância comoum instrumentode controle,onipresentee contínuoesem limites, aos moldes do Panopticon, de Jeremy Bentham. Por fim, a última característicaapontaparaapresençadeumregistroregulardoqueeraconhecido,oqueimplicaqueoexercíciodopoderproduzumsaber. Tem-se,portanto,queopoderdisciplinaréumexemplar típicodasrelaçõesdeproduçãoindustrialcapitalista,tendoemvistaquefoiatravésdelequeseproduziuoindivíduonecessárioparaoseufuncionamentoeampliação.

Foi no primeiro volumedeHistória da sexualidade (Histoire de la sexualité, 1976) que Foucaultchegou à elaboração dos conceitos de biopoder e de biopolítica. Ao estudar o dispositivo dasexualidade,o filófosoobservouquenãosomenteosexoeraalvodepoderesdisciplinares,mastambémtodoumconjuntodeprocedimentosquegerenciavaavidaeamorte.Ouseja,naviradado século XVIII para o século XIX, surge uma nova forma de exercício do poder, não maisdirecionadaao indivíduo– comoageopoderdisciplinar,mas simàgestãocalculadadavidadapopulação de um determinado corpo social – o biopoder. Porém, como destacou o próprioFoucault, a passagemdo poder disciplinar para o biopoder não significa a exclusão de umpelooutro,esimaintegraçãodeambasasmodalidades.Abiopolíticaseriaconstituída,comomododeexercício do biopoder, pelos mecanismos de normalização da vida da população. Fazer viver edeixarmorrersugeremumtraçocaracterísticodabiopolítica.

Com a publicação dos volumes 2 e 3 de História da sexualidade percebe-se mais umametamorfose no interesse de Michel Foucault. O filósofo move-se para o passado grego paraexaminarosmodosdeconstituiçãodesi,caracterizandoassimsuaabordagemacercadaéticaedaestética da existência. Eis, talvez, o momento em que se radicaliza a questão da liberdade,pensadacomoumexercício,comoalgoquetematizaogovernodesieogovernodosoutros–avidacomoumtrabalhodesi,avidacomoumaobradearte.

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Nessebrevíssimopanorama,poderíamosafirmarqueoquepoderiamesmocaracterizarafilosofiade Michel Foucault seria, acima de tudo, uma inquietação. O filósofo se mostrou avesso aformulações rígidas, estando o seu fazer filosófico constantemente envolto em reformulações,conformeoavançodeseupensamentoeasquestõesempíricasporelecolocadas.Trata-se,pois,de um pensamento em constante crise: um pensamento que se debruçou sobre a crise dopensamento, bem como um pensamento em crise, os quais ousaram reinventar-se a todo oinstante.

É sob esse horizonte, e numa perspectiva interdisciplinar, que a proposta desta sessão livre seassenta.Combasenopensamento filosóficodeMichelFoucault,nossos trabalhossituam-seempontos presentes nas suas abordagens arqueológica, genealógica e da estética da existência,compondoassimumaespéciedeanálisecríticadenossacontemporaneidade,aumainterrogaçãosobre a atualidade, apostando no uso das noções e conceitos foucaultianos como “caixa deferramentas”.

Palavras-chave:MichelFoucault;Cidade;Sujeitourbano.

Oesquartejamentodashoras:aregulamentaçãodotempoeainstituiçãodeumcotidianourbano

ElianaKuster,IFES,professora,[email protected]

Partindodadetecçãodasnovas formasdegeriro tempoque foram instituídaspelocapitalismoindustrial, vamos falar sobre a constituição de um cotidiano que tem por base o sistema deproduçãocapitalistaaliadoàvidaurbana.SeguindooraciocíniodeFoucaultquedefendequeumtema não preexiste a si mesmo, mas emerge dos acontecimentos de cada momento, é queabordaremos essa construção histórica que passará a ser denominada como cotidiano urbano.Estevaiserformadoaliandoasnovasformasdecomportamentoditadaspelavidanascidades,aseparaçãodotempodedicadoàsdiversasatividadesaseremdesempenhadasaolongododiaeainstituiçãodeformasdelazeraceitáveisaoscitadinos.Éapartirdareuniãodesseselementosquese dará o estabelecimento de padrões de normalidade para várias das rotinas urbanas queperduramatéosdiasatuais.

Palavras-chave:Tempo;Cotidiano;Trabalho.

AsaudadedabelleépoqueemBelém:poder,subjetivaçãoedispositivo

FernandoAugustoSouzaPinho,PUCCampinas,pesquisador,[email protected]

No conjunto da obra do filósofo francêsMichel Foucault, a noção de dispositivo assumemaiordestaquenapassagemdesuaabordagemarqueológicaparaumaabordagemgenealógica.Nafasearqueológica, Foucault preocupava-se em descrever epistemes (como lugar de produção desaberes),enquantoquenafasegenealógica,comaintroduçãodaanálisedopoder,oobjetoseria

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a descrição de dispositivos (disciplinar, o carcerário, de poder, de saber, de sexualidade, porexemplo). Parece, então, haver um deslocamento da noção de episteme para a noção dedispositivodepoder,eposteriormenteparaumaproblematizaçãododispositivocomoprodutorde subjetividades ede verdades. É sobessaperspectivaque, a partir da análisedoque chamei“sujeitodasaudade”emmaterialidadesverbaiseimagéticas,quetraçoumdiálogocomanoçãofoucaultiana de dispositivo para a compreensão do discurso saudosista sobre a belle époqueparaense. Em linhas gerais, esta apresentação procura dar respostas à seguinte questão: Se a“saudadebellepoquiana”emBelémpodeser tomadacomoumdispositivo,comoa redequeseestabelece entre práticas discursivas e não discursivas que tematizam amemória da Belém dabelle époque e que promovem um efeito de ausência, de falta a ser satisfeita, como se dá ainscriçãododispositivosaudosistanoscamposdopoderedasubjetivação?

Palavras-chave:Dispositivo;Subjetivação;Governamento.

Cinema,discursoeconflitosurbanos

GiovanaZimermann,UFRJ,pesquisadora,[email protected]

Este texto faz um relatodeminha experiência naoferta dadisciplinaoptativa “O cinema comodispositivododiscursosobreosconflitosurbanos”,nocursodegraduaçãoemGestãoPúblicaparaoDesenvolvimentoEconômicoeSocialdaUFRJ,em2015,comopartedemeupós-doutorado.Adinâmica da disciplina consistiu na apresentação e discussão em torno de produções fílmicasrelacionadasaosestudosurbanos,maisprecisamentesobreosconflitosurbanos.Foienfatizadaapromoçãodoprotagonismodosalunospormeiodaproblematizaçãodeseuscotidianos,conformeas noções de dispositivo segundo Michel Foucault e de tática segundo Michel de Certeau. Ocinema funcionou como dispositivo de saber-poder, como ferramenta, como tática, comoexercício prático, embora experimental. A disciplina foi encerrada comumamostra audiovisual,intitulada"Conflitosurbanos,arteesociedade",equeconstoudosseguintesvídeos feitospelosalunos: "Alojamento da UFRJ", "A influência da música na sociedade", "BRTrem pra quem?","Transporte como divisor de classes sociais", "Mulheres contra Cunha", "Maré de muros","Realidadeinvisível:ummundoqueasociedadeescolhenãoenxergar","Prisão:ainstituiçãoquea sociedadedeseja sever livre", "RodasculturaisnoRiode Janeiro"e "Traçosda rua", sobreografite.Comesseexperimento,podemosperceberqueosalunostiveramapossibilidadedeagirno interiorde suasquestõesmaisprementespormeiododispositivoaudiovisual e, alémdisso,constatamos que as narrativas fílmicas produzidas pelos alunos foram, de alguma maneira,atravessadaspelosdispositivosdisciplinar,carcerário,depoder,desaberedesexualidade.

Palavras-chave:Ensino;Conflitosurbanos;Audiovisual.

Posteridadescínicasevidasqueerizadascomopossibilidadedequestionamentonos/doscontextosurbanoscontemporâneos

JamilCabralSierra,UFPR,professor,[email protected]

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Diantedasformasatuaisdegovernamentodadiversidadesexual,formasessasquetêmoperadona lógica de inclusão neoliberal, bem como das políticas identitárias direcionadas à populaçãoLGBT, este trabalho parte dos últimos cursos de Foucault para provocar algumas tensões nesseempreendimentobiopolíticoquepromoveumaespéciedecapturadadiferençasexual,deixandopoucoespaçoparaaconstituiçãodeoutrosmodosdevidaouparaaquiloquetenhodenominadodevida vivível.Pormeiodocruzamentoentreoquechamodeatitudequeereatitudecínicaevalendo-me dos aportes foucautianos sobre a noção de ética/estética da existência, dopensamentoqueer e da figura deGilda, travesti que viveu nas ruas de Curitiba nos anos 1980,ensaio a elaboração de um argumento que pretende questionar a lógica identitária, bem comocaracterizaralgumasformascontemporâneasdeserelacionarcomocontextourbanoemqueoscorposesexualidadesdissonantesassumem,nacidade,posiçãocentraldequestionamentofrenteaosprocessosdenormalizaçãodaspráticasdegênerosexuais.

Palavras-chave:Cinismo;Queer;Vidaurbana.