fiorin (1988) - o regime de 1964

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  • 8/10/2019 Fiorin (1988) - O Regime de 1964

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    J o s ~ uiz iorin

  • 8/10/2019 Fiorin (1988) - O Regime de 1964

    2/159

    Jos Luiz iorin

    O

    R GIM

    DE 964

    Discurso e Ideologia

    988

    SRIE

    LENDO

    Coordenao

    eth

    Brait

  • 8/10/2019 Fiorin (1988) - O Regime de 1964

    3/159

    Capa:

    Zildo

    Braz

    sobre arte de Alexandre Martins Fontes)

    AUf

    Composio:

    Linoart

    Ltda

    ~

    ~ T - C 5 l 3 ~

    Copyright@ Jos

    Luiz

    Fiorin

    Dados de Catalogao na

    Publlca )

    CIP) Internacional

    Cmara Brasileira do Livro, SP Brasil)

    Fiorin,

    Jos

    Luiz.

    F553r

    O regime de

    1964

    : discurso e ideologia/ Jos Luiz Fiorin.

    87 0618

    1. ed. - So Paulo : Atual, 1988.

    Srie lendo)

    Bibliografia.

    1. Brasil - Histria - Revoluo de

    1964

    2. Brasil - Poltica

    e governo - 1964 I Ttulo.

    I I

    Srie.

    1ndices para catlogo sistemtico:

    1 Brasil: Discurso poltico, 1964

    320.98108

    2. Brasil : Histria, 1964

    981.08

    1:3

    Brasil : Ideologia poltica, 1964

    320.98108

    4. Revoluo

    de

    1964 : Brasil : Histria 981.08

    Todos os direitos reservados

    ATUAL EDITORA LTDA

    Rua

    Jos Antnio Coelho, 785

    Telefone:

    575 1544

    04011

    - So

    Paulo

    - SP

    LOYLNVV

    2 4 6 8 1 9 7 5 3 1

    CDD 981.0B

    320.98108

    NOS PEDIDOS TELEGRAFICOS BASTA CITAR O CDIGO:

    ANCL0207T

  • 8/10/2019 Fiorin (1988) - O Regime de 1964

    4/159

    SUMR O_

    INTRODUO

    1

    I - LINGUAGEM E IDEOLOGIA: A BUSCA DA HIST

    RIA

    PERDIDA

    O Objeto da Lingstica .

    O Alargamento do Objeto

    da

    Linglstica

    .

    Formalistas e ldeologistas .

    O Discurso: Autonomia e Determinao

    .

    Formcu;es Ideolgicas e Formaes Discursivas

    .

    O Social e o Individual: Discurso e Texto

    .

    O Problema do Sujeito do Discurso .

    Concluso ;

    O Discurso Lacunar: Algumas Opes e t o d o l g i ~ a s ..

    O Discurso Lacunar: Algumas Opes Metodolgicas ..

    O Discurso Construdo: Invariantes do Discurso de

    6

    .

    O Componente Narrativo e a Semntica do Comp onente

    Discursivo , , :

    Temas e Figuras: Posio de Classe do Narrador e do

    Narratrio :

    .

    Alguns Procedimentos Discursivos

    .

    O Componente Fundamental

    3

    3

    4

    5

    6

    12

    14

    15

    17

    18

    18

    20

    21

    8

    125

    133

    III

    - A SACRALIZAO DO

    DISCURSO

    POUTICO

    139,

    .

    O Discurso Religioso e o Discurso Poltico.

    139

    O Problema da Sacralizao ~ 7

    CONCLUSO ; . . . . . . . . . . . . . . 152

    BIBLIOGRAFIA

    _,

    - -

    ............

    ........... ...............................

    154

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    5/159

    1

    LINGUAGEM E IDEOLOGIA BUSCA

    D

    HISTRI PERDIDA

    O Objeto da Llngilistica

    acabou vendo Joan Brossa

    que

    os

    verbos do catalo

    tinh m

    coisas por detrs

    eram s palavras, no.

    Joo Cabral de Melo Neto

    Saussure, em seu Curso de Lingtstica Geral, mostra

    que

    a

    linguagem

    um

    fenmeno

    multiforme

    e

    heterclito ,

    com

    muitos

    nveis e dimenses,

    uma

    vez que fsica, fisiolgica e psquica,

    individual

    e social. Diante dessa

    multiplicidade

    de

    fenmenos,

    se

    ria preciso estabelecer

    o

    objeto da cincia da

    linguagem. Prope

    ele, ento, a

    distino entre

    lngua e

    fala.

    A lngua

    suscetvel

    de

    uma definio

    autnoma, pois

    a

    parte

    social da lingut\gem, ex-

    terior

    ao

    indivduo, que

    no

    pode

    cri-la nem modific-la .

    Para

    Saussure,

    a lngua um produto

    acabado

    que o falante registra

    em sua memria. Constitui

    ela

    um

    sistema

    que conhece apenas

    sua prpria ordem. A ll\ lYlla no ,

    para

    Saussure, uma

    lista

    de

    palavras

    ou

    de sons, mas um

    conjunto

    de relaes. Segundo ele,

    na

    lngua no

    h

    seno

    diferenas. Assim, a lngua forma e no

    substncia. O exemplo do

    jogo

    de

    xadrez

    ilustra essas concepes.

    No

    importa para

    o

    jogo

    que

    as

    peas

    sejam

    grandes

    ou pequenas,

    de

    marfim ou de

    madeira, etc. O

    que importa

    o

    valor que as

    pe

    as

    tm, ou seja, as diferenas que uma tem em

    relao a todas

    as outras,

    o que

    lhe d uma funo especfica dentro do jogo.

    -

    sim tambm,

    o

    valor

    especfico

    de

    mala

    advm

    do

    fato

    de

    que

    ela

    diferente

    de

    bala , sala , mata , mela ,

    etc.

    A

    fala

    a atualizao do sistema lingstico (lngua)

    numa

    dada

    situao.

    Por isso, a

    fala

    individual, um ato de vontade

    e de inteligncia, o lugar da liberdade e da criao. Se a lngua

    constitui

    um

    cdigo, a fala so as combinaes pelas quais o indi

    vduo realiza

    o cdigo

    da lngua com

    a finalidade

    de exprimir seu

    pensamento.

    Ao

    separar

    a

    lngua

    d

    fala, Saussure

    estabelece

    que

    o

    objeto

    da

    Lingstica a lngua. Afasta,

    assim,

    a fala da

    cincia da

    lin

    guagem. Ao

    mesmo

    tempo,

    ao verificar

    a autonomia

    da

    lngua, pe

    marge1ll

    da Lingistica tudo aquilo que

    ele

    chama

    elementos

    externos da

    lngua,

    entre eles

    as

    relaes

    entre

    lngua e h i s t r i ~

    As mudanas no sistema lingstico se do por razes

    internas

    ~

    3

  • 8/10/2019 Fiorin (1988) - O Regime de 1964

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    pr9prio sistema como por

    exemplo,

    a

    instabilidade

    das oposies

    isoladas ou o preenchimento

    de

    casas vazias para o

    estabelecimen

    de

    correlaes perfeitas.

    pensamento saussuriano bastante complexo e trouxe ine-

    gveis progressos para a cinca da linguagem. A distino

    de

    base

    de Saussure

    sorreu

    alteraes,

    mudanas,

    ac.rscimos

    ao longo

    da

    histria da Lingstica. Houve mesmo

    mudanas

    significativas na

    maneira

    de

    encarar o

    objeto

    da Linglstica.

    No entanto,

    resumin-

    do de

    uma

    maneira um tanto

    esquemtica, poderamos dizer que

    a Lingstica moderna

    desenvolveu durante

    muito

    tempo

    a Lin

    gstica da

    lngua

    pautando-se

    sempre pelo princpio da

    imanncia

    e deixando

    de

    lado portanto, os elementos considerados

    externos.

    Tudo

    na linguagem

    deveria ser

    exp1icado pelas relaes

    internas.

    Por isso os campos

    que

    conheceram

    um extraordinrio

    desenvol-

    vimento

    nas ltimas dcadas

    foram a

    fonologia a .morfologia e

    a sintaxe. So esses os nveis em

    que a lngua

    tem

    autonomia

    em

    relao prtica social.

    A

    semntica,

    o contrrio,

    teve

    at recen

    temente um pequeno avano, pois

    o estudo dos

    significados no

    poderia ser feito s na bas.e dos mtodos

    da

    fonologia.

    O largamento

    o

    Objeto da Llngstlca

    Um

    dos problemas da Lingstica da lngua

    que

    seu limite

    o nvel da frase uma vez que o texto pertence muito mais fala

    do que propriamente

    lngua. No entanto,

    a

    nica

    realidade para

    o falante .so os discursos e no os fonemas

    os

    morfemas ou

    as

    frases isoladas.

    Com o temp esse e

    outros

    problemas

    novos

    se colocam.

    Lembremos,

    rapidamente, alguns: o problema

    do

    uso

    da

    lingua

    gem, dos

    atos

    de fala

    da

    contextualizao, das

    relaes

    entre

    lin

    guagem e sociedade

    das

    condies de produo do discurso,

    da

    argumentao, da

    enunciao, da

    textualizao. O

    nmero das

    no-

    vas questes que se discutem imenso.

    Os

    lingistas sentem as

    insuficincias da teoria e a estreiteza de seu

    objeto

    de estudos.

    Comeam a ajuntar

    os problemas

    novos ao clssico objeto

    da

    Lin-

    gilistica como espcies

    de

    anexos

    mais

    ou menos heterogneos

    em

    relao ao corpo trico

    assentado.

    A Llngstica inicia sua crise

    epistemolgica.

    No

    nossa inteno

    discutir

    todos

    os

    problemas que se co-

    locam

    hoje

    para a Lingstica. Tomaremos apenas um aspecto, o

    das relaes entre linguagem e

    histria

    e esboaremos a

    respeito

    desse problema algumas idias, que carecelll ainda ~ refinamen1o.

    A preocupao com as relaes d

    linguagem

    com a histria

    no deriva da opo

    pessoal

    de

    alguns

    Ungistas pela novidade in

    conseqente,

    nem. de

    seu gosto por aquilo que se considerou,

    por

    4

  • 8/10/2019 Fiorin (1988) - O Regime de 1964

    7/159

    muito tempo,

    como elementos extralingsticos,

    nem

    mesmo de

    seu desejo de incorporar

    a Cincia

    da linguagem

    cincia da

    his

    tria,

    mas decorre

    do. prprio

    desenvolvimento da Lingstica.

    Quando

    esta

    comea

    a estudar problemas

    como

    as condies de

    produo

    discursiva,

    a enunciao, a intertextualidade, etc., surge

    o

    problema da determinao histrica da linguagem.

    Pode-se dizer

    que

    o

    aparecimento

    dessa questo

    no

    mbito

    da

    Lingstica

    tem

    sua origem

    na

    crise epistemolgica

    da

    cincia da linguagem, ou

    seja,

    na prpria histria

    da

    Lingilistica.

    ormalistas e

    ldeologlst s

    Aqueles que

    se

    interessam

    pelos

    estudos

    lingsticos podem-se

    dividir,

    de

    maneira

    esquemtica,

    em

    duas

    grandes

    tendncias:

    o

    formalismo

    e o

    ideologismo.

    A

    primeira, em termos

    gerais,

    concebe

    a

    linguagem como uma

    autarcia, ou seja, como um sistema fechado

    em

    si mesmo; com

    preende

    o

    texto

    como um

    todo que

    se

    basta

    a

    si mesmo,

    no.

    se

    importando

    com

    as relaes entre

    a linguagem e a

    histria.

    A se

    gunda

    despreza

    os

    elementos

    lingsticos e

    procura relacionar, de

    maneira direta e

    .mecnica, tal ou

    qual

    aspecto

    do

    texto

    com a es

    trutura

    social.

    Bakhtin

    Todorov, 1981), ao fazer um

    balano

    das

    duas

    tendncias,

    mostra que, embora os formalistas

    estejam

    fun

    dados

    sobre

    pressupostos

    filosficos

    falsos,

    .eles

    contriburam, de

    maneira inegvel, para o avano da Lingstica,

    ao

    discutir

    pro

    blemas do

    funcic::iamento especfico da linguagem que

    no

    podem

    mais

    ser

    ignorados. Seu

    julgamento em

    relao aos ideolegistas

    muito mais

    severo: eles no s

    ajudaram no

    desenvolvimento dos

    estudos

    lingsticos, como

    contriburam,

    de

    maneira poderosa, para

    a vulgarizao do marxismo. Segundo Bakhtin, preciso herdar o

    formalismo, recolocando-o

    sobre

    riovas

    bases

    filosficas.

    O primeiro

    problema do lingista , pois,

    perceber

    que

    a lip-

    guagem goza de uma

    certa

    autonomia em relao s

    fo:rmaes

    sociais,

    mas, ao mesmo tempo, sofre determinaes histrcas.

    As

    sim, uma

    teoria

    geral

    da linguagem

    deveria comear por

    reconhe

    cer os

    nveis

    e as

    dimenses em que

    a

    linguagem tem

    uma certa

    autonomia e aqueles em que ela sofre

    determinaes.

    A renncia a considerar a existncia

    dos

    diferentes nveis de

    articulao

    e

    as

    variadas

    dimenses

    da

    linguagem

    gerou

    erros

    en-

    tre os quais um sociologismo

    e

    um

    historicismo ,

    c9mo os da

    teoria

    marrista, que

    pretendem

    explicar

    toda

    a

    linguagem

    e

    as

    suas muta_s

    pelas

    mudanas na infra-estrutura

    econmica

    e que

    trazem como conseqncia

    a impossibilidade

    de explicar

    certas

    .

    categorias lingilisticas

    e determinadas mutaes

    internas

    que

    se

    operam

    em

    alguns nveis. da

    linguagem,

    como, por exemplo,

    no

    n-

  • 8/10/2019 Fiorin (1988) - O Regime de 1964

    8/159

    vel fonolgico. No se_poder explicar a sonorizao das consoan

    tes surdas intervoclicas

    na

    passagem do

    latim

    ao portugus

    por

    mutaes na infra-esttutura. Nota o prprio Engels, em

    carta

    a

    Bloch,

    que nem

    todas

    as

    alteraes se

    explicam

    por causas

    eco

    nmicas e exemplifica essa afirmao com a mutao consonntica

    do

    alto alemo, que se processa por fatores exclusivamente lings

    ticos (Marx

    e

    Engels,

    1977, 34). Dessa forma, a lngua,

    no

    sentido

    saussuriano,

    goza

    de

    certa

    autonomia

    em

    relao

    s

    formaes

    sociais. O

    russo

    e o chins tm o mesmo sistema fonolgico e mor

    fossinttico antes e depois da Revoluo. O sistema fonolgico do

    portugus

    fundamentalmente

    o

    mesmo

    do sculo

    XVI at

    nossos

    dias.

    Abandonado,

    pois, o

    sistema,

    voltemo-nos

    para

    a fala, para

    investigar

    se

    ela sofre determinaes sociais.

    A

    fala,

    em

    Saussure,

    o

    domnio da liberdade

    e da

    criao.

    Nota Rgine Robin (1977, 25)

    que

    essa

    concepo

    de discurso ar

    ticula-se

    no

    interior

    de

    uma

    filosofia

    do

    sujeito neutro , que

    se

    conhece

    muito

    bem (uma filosofia anterior a Freud). e da concep

    o

    de

    sujeito como

    um ser que

    no. sofre

    qualquer

    determinao

    scio-ideolgica

    (uma

    filosofia de

    antes

    de Marx). E mais uma ida

    de que eu falo do que a de que eu sou falado por um

    determi

    nado

    discurso.

    Da

    tornar-se impossvel

    uma cincia da atividade

    lingstica,

    pois, nesse campo, tudo se passa como se

    fosse

    inde

    terminado,

    como

    se

    nada fosse comum, como

    se

    no

    houvesse

    re-.

    petio.

    No

    entanto, dois pontos devem

    ser

    examinados: a liber

    dade;, da

    fala,

    na maioria das

    vezes, dissolve-se

    no interior de

    falas

    estereotipadas (lembremo-nos

    das

    pessoas que

    falam

    sentenciosa

    mente por meio de provrbios); h determinaes que incidem so

    bre

    a

    linguagem, levando

    criao

    desses

    esteretipos.

    De

    agora em diante, no se

    usar mais o termo fala mas

    so-

    mente

    o vocbulo discurso Esta no simplesmente uma

    mudan

    a

    terminolgica,

    mas

    revela uma

    determinada postura diante do

    problema

    da atividade lingstica, pois

    a

    noo de discurso pres

    supe

    a

    de

    sujeito.

    Co.qio a

    linguagem

    um

    fato

    caracteristica

    mente

    humano e social, s

    se

    pode falar

    de

    sujeito

    no

    quadro

    das

    relaes sociais

    que se estabelecem no interior

    de uma formao

    social. Assim, falar de

    discurso

    remeter ao problema da relao

    da linguagem

    com

    a histria.

    O

    Discurso:

    Autonomia e

    Determinao

    Quando se fala em determinao do discurso, pergunta-se

    ime

    diatamente

    se

    ele um fenmeno

    de superestrutura.

    Muitos on

    sideraram o

    prprio sistema

    lingstico como

    um fenmeno

    de

    classe. A lngua em sr no um fenmeno de classe, uma vez que

    ela existe nas sociedades sem classes,

    existe

    nas sociedades

    de

    6

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    9/159

    classes e continuar existindo quando as classes forem abolidas.

    Como mostra E 1gels (s.d.b, 174-175), ela surge da necessidade de

    relaes sociais, que no se reduzem, porm, ao mero intercmbio

    de idias,

    uma vez que

    a linguagem

    to

    complexa quanto os de-

    mais fenmenos sociais.

    Enfatiza

    Engels

    que

    o trabalho a cate

    goria fundadora da histria e que, a

    partir

    do

    processo de traba

    lho, estabelecem-se relaes

    sociais

    que

    esto

    na base da origem

    da

    linguagem.

    Por seu

    turno, trabalho

    e linguagem

    esto

    associa

    dos

    no

    desenvolvimento da

    capacidade de

    pensar, que, por sua vez,

    aperfeioou a linguagem e os processos de trabalho. Assim, a lin

    guagem no

    um

    .fenmeno de classe, mas recebe as marcas da

    existncia

    das

    classes sociais, ou seja,

    as

    classes,

    ou fraes

    de

    classe,

    apropriam-se

    da linguagem para

    transmitir

    suas

    represen

    " taes ideolgicas e, assim, agir no mundo. No a linguagem

    propriamente um fenmeno de superestrutura,

    mas

    o

    veculo

    das manifestaes

    superestruturais que,

    por

    isso,

    moldam

    nela

    suas representaes. Determinaes scio-ideolgicas esto pre-

    sentes na

    linguagem,

    ou mais precisamente

    no

    .diSUrso

    uma

    vez

    que consideramos o

    sistema

    u elemento que goza de

    relativa

    autonomia

    em relao

    s formaes sociais. determinao

    sobre

    o discurso no ,

    porm,

    reecnica, mas passa por sucessivas me

    diaes, e

    tem,

    por isso, tambm o discurso relativa autonomia.

    Dizer

    que as representaes ideolgicas

    moldam o discurso,

    mas que

    h

    uma

    relativa

    .autonomia

    da

    linguagem

    em

    r e l o ~

    ideologia,

    ou seja,

    que o nvel lingstico -no

    se

    reduz ao nvel

    ideolgico, implica

    distinguir

    nveis e

    dimenses

    do discurso e

    os

    componentes

    de

    cada

    nvel.

    O

    discurso

    no

    um

    amontoado de

    frases,

    mas

    regido por

    ' eis de estruturao, para que

    ganhe

    sentido. Esses mecanismos

    de

    estruturao

    discursiva, sua sintaxe, so

    dotados

    de uma relativa

    autonomia em relao s formaes sociais. Mecanismos como o

    discurso direto, o

    discurso indireto,

    o

    discurso

    indireto livre,

    uma

    vez criados, podem veicular contedos de

    distintas

    formaes ideo-

    lgicas. Isso significa que o lugar

    por

    excelncia da manifestao

    ideolgica o nvel semntico do discurso.

    Mas

    preciso ir deva

    gar. Diversas objees j se levantam.

    Distinguimos inicialmente

    uma

    sintaxe e uma

    semntica no

    discurso. No entanto, h que pensar tambm que, depois de

    Chomsky, a

    Lingstica

    no pode

    mais

    deixar de

    considerar

    a exis

    tncia de

    uma

    estrutura

    superficial e

    uma

    estrutura profunda.

    Assim, deve-se

    pensar, ao propor

    u

    modelo

    de anlise,

    que

    a es

    trutura

    discursiva constituda de nveis de invarincia sempre

    crescente, que explicam como ir da manifestao instncia b

    quo

    da

    gerao

    do

    sentido.

    O modelo de anlise vai propor a exis

    tncia

    de

    um

    percurso

    gerativo

    do sentido.

    7

  • 8/10/2019 Fiorin (1988) - O Regime de 1964

    10/159

    A necessidade de

    uma

    anlise do discurso

    por

    meio de um

    percurso

    gerativo justifica-se na medida em

    que um investimento

    semntico mais abstrato como a conjuno de um sujeito com o

    objeto-valor liberdade pode

    ser recoberto por

    diferentes atores,

    temas e figuras. O

    enunciador

    pode

    manifestar o sujeito

    como

    um

    indivduo

    ou

    uma classe social. A conjuno

    com

    a liberdade pode

    ser

    a evaso temporal, figurativizada,

    por

    exemplo,

    pela

    volta

    infncia ou pela volta Idade Mdia; a evaso espacial, figurati

    vizada pela ida para. lugares exticos ou para

    outros

    planetas; a

    derrubada

    de opressores; a violao de usos e costumes, figura

    tivizada, por exemplo,

    pelo

    uso

    da

    cala velha, azul e desbotada .

    Para compreender bem a multiplicidade dos

    investimentos

    s e m n ~

    ticos concretos,

    preciso reduzi-los a investimentos

    mais

    abstra

    tos. Entendendo o elemento abstrato e a concretizao possvel,

    no se vai apreender, por exemplo, a liberdade e a

    democracia

    como elementos indistintos,

    apaream onde

    e como aparecerem.

    Na

    anlise do percurso gerativo

    de

    sentido,

    h

    que distinguir,

    em

    primeiro

    lugar, a imanncia

    da

    manifestao. Aquela o plano

    de contedo, e esta a unio de

    um

    plano de contedo

    com

    um pla

    no

    de

    expresso. Tal distino se faz necessria,

    pois

    o

    mesmo

    plano de contedo pode ser veiculado

    por

    diferentes planos de

    expresso: verbal, visual, etc. Beijo da

    Mulher ranha

    livro,

    filme e pea de teatro.

    E

    claro que tambm o plano

    de

    expresso

    agrega significados

    ao

    cntedo.

    No

    totalmente

    indistinto

    trans

    mitir um

    determinado contedo

    por

    este

    ou aquele meio

    .de ex

    presso. Mas voltaremos a isso mais diante.

    m

    segundo lugar,

    h

    que distinguir os diferentes nveis de

    generalizao

    do

    contedo.

    Greimas

    1979,

    157-160) prope um

    percurso

    gerativo

    de

    sen

    tido (referente, portanto,

    ao

    plano do contedo), que,

    embora

    su

    jeito a c r t i c s ~ e revises,

    r e v e l a s ~

    operatrio

    para

    o

    estudo

    do

    discurso

    em

    nveis

    crescentes

    de

    invarincia.

    Poderia ele

    ser

    es

    quematizado

    da seguinte forma:

    Componente sintxico

    Componente semntieo

    Estruturas

    Nvel

    Sintaxe

    smio-narra

    Semntica-fundamental

    tivas

    profundo fundamental

    Nfvel da

    Sintaxe

    Semntica narrativa

    superfcie

    narrativa

    1

    8

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    11/159

    Sintaxe discursiva

    Semntica

    discursiva

    Discursivizao

    Estruturas

    discursivas

    actorialilao J

    J

    tematizao

    temporaliz:ao

    figurativizao

    espacializao

    O nvel profundo

    constitudo dos

    elementos mais abstratos,

    responsveis pela produo, pelo funcionamento e pela compreen

    so

    do

    discurso, que pode ser manifestado verbalmente ou no

    verbalmente; a instncia

    ab quo

    do

    percurso

    gerativo. A semn-

    tica fundamental aparece corno um inventrio de oposies se

    mnticas, que sero

    trabalhadas pelo

    sujeito da enunciao. Assim,

    no

    romance

    A Cidade e s Serras de

    Ea de

    Queirs, a categoria

    de base com

    que

    opera o autor

    a oposio /civilizao/vs./natu

    reza/. Um dos elementos

    da categoria

    semntica

    de

    base

    consi

    derado

    eufrico

    e o

    outro

    disfrico. No caso, ao final do

    romance,

    verifica-se que a civilizao o termo disfrico e a natureza o ter

    mo

    eufrico.

    s duas operaes

    da

    sintaxe fundamental so a

    negao

    e a

    assero. Ao negarmos um termo qualquer de urna oposio se

    mntica,

    que

    constituda de termos contrrios entre si,

    temos

    um termo contraditrio:

    civilizao - no-civilizao;

    natureza

    -

    no-natureza. A assero permite reunir os

    termos

    situados no eixo

    dos contrrios

    ex.: natureza e civlizao) ou no eixo

    dos

    sub

    contrrios ex.: no-natureza e no-civilizao). O mito

    parece

    ser

    sempre

    a unio de contrrios

    ou

    de

    subcontrrios.

    No

    interior

    do

    sistema de valores do cristianismo, Cristo , por exemplo, divino

    e

    humano,

    enquanto os anjos so no--divinos e no-humanos. Em

    A

    Cidade e as

    Serras e s ~ s operaes

    transformaes)

    so as se

    guintes; afirmao do termo a civilizao vida em Paris); negao

    do termo a no-civilizao

    momento

    da chegada

    de

    Jacinto a

    Portugal);

    afirmao

    do termo b natureza

    descoberta

    do valor

    das coisas simples,

    em

    Portugal).

    Os elementos

    do

    nvel fundamental so retoma.dos pelo nvel

    narrativo,

    que

    constitudo de um conjunto de estados relao

    de um sujeito

    com

    um objetal e de

    transformaes

    alterao da

    relao de

    um sujeito

    com

    um

    objeto). O nvel narrativo faz tor

    narem-se

    um

    pouco menos

    abstratas

    as categorias do nvel fun

    damental.

    Os

    elementos

    semnticos

    do

    nvel

    fundamental so

    ins

    critos no objeto do nvel narrativo. Assim, no nosso

    exemplo,

    a

    civilizao disfrica a doena e a infelicidade, enquanto a natu

    reza eufrica

    a

    sade

    e a felicidade. O sujeito, na civilizao,

    est

    em

    relao

    conjuntiva

    coin a doena e a infelicidade e, con

    seqentemente,

    em relao

    disjuntiva com

    a

    sade

    e a felicidade.

  • 8/10/2019 Fiorin (1988) - O Regime de 1964

    12/159

    No percurso

    narrativo, essa relao

    altera-se

    e o

    sujeito

    entra

    em

    conjuno

    com

    a sade e a felicidade. A semntica

    narrativa trata

    dos valores inscritos nos objetos, enquanto a sintaxe narrativa

    contm as operaes

    de

    transformao de estados.

    A sintaxe

    discursiva

    contm

    as operaes

    de actorializao, de

    espacializao e

    de

    temporalizao, que

    inscrevem

    os enunciados

    narrativos

    em coordenadas espao-temporais

    e

    revestem os papis

    narrativos, como sujeito

    e

    objeto, de atores discursivas. Isso se

    faz pelos

    mecanismos

    de

    enunciao. Nesse nvel, colocam-se to

    dos os

    problemas

    da relao enunciador-enunciatrio, como, por

    exemplo, as estratgias

    argumentativas. As

    operaes da sintaxe

    discursiva

    visam a criar efeitos de

    realidade

    e

    de verdade,

    com o

    objetivo de

    convencer

    o enunciatrio, de faz-lo crer. A semntica

    discursiva constituda de

    temas

    e figuras, que so dois patama

    res sucessivos

    de

    concretizao

    do sentido

    e que

    geram,

    respecti

    vamente,

    os discursos

    no-figurativos e

    os

    discursivas

    figurativos.

    A tematizao o revestimento de um dado percurso narrativo

    com atores e coordenadas espao-temporais no concretizados. No

    nosso exemplo, reveste-se o percurso da busca

    da

    felicidade

    pelo

    sujeito com

    o tema da

    evaso

    espacial, que o

    deslocamento de

    algum no

    espao.

    A figurativizao o revestimento de um

    tema

    por figuras, que so signos cujo plano de contedo

    remete

    a ele

    mentos

    presentes

    no mundo

    natural.

    Em

    A Cidade e

    s

    Serras

    o

    tema da

    evaso

    temporal

    figurativizado

    como:

    Jacinto

    deixou

    Paris e partiu

    para

    Tormes.

    Como

    se v, nesse romance, Paris e

    Tormes figurativizam, respectivamente, a civilizao e a

    natureza.

    J

    dissemos que o

    componente

    sintxico

    do discurso

    garante

    sua

    estruturao peculiar e

    garante sua relativa autonomia em

    re

    lao

    s formaes

    sociais. J o

    investimento semntico revela

    o

    universo ideolgico

    do

    sujeito enunciador, pois no

    indistinto

    o

    estabelecimento dos objetos

    disciplina ou liberdade (cf.

    os

    dis

    cursos

    dos

    pensadores

    polticos

    autoritrios

    e

    os

    dos anarquistas),

    riqueza

    ou

    glria

    de

    Deus (cf. os discursos do Tio Patinhas, de

    Walt

    Disney, e o discurso

    jesutio que expressava

    sua finalidade

    pela mxima

    Ad majorem Dei gloriam ).

    Por

    outro lado, a

    aplicao

    dos termos eufrico e disfrico

    s

    categorias semnticas fundamentais no

    neutra,

    mas revela

    um

    universo ideolgico. Assim, um conto de fadas como A

    Gata

    Bor-

    ralheira

    revela uma determinada formao ideolgica, ao conside

    rar

    eufricas as

    virtudes da obedincia,

    da submisso

    e d

    hu

    mildade,

    que so recompensadas,

    e

    disfricos

    o

    orgulho

    e a

    pre

    potncia,

    que so

    castigados. O romance

    Justine

    de Sade, mostra

    um

    universo

    ideolgico

    contrrio,

    pois nele disfrkos so o

    amor

    ao

    1

    pr?'imo, a caridade e a

    bondade,

    que

    so

    sempre

    castigados,

    enquanto eufricos

    so ludibriar

    os vutros e cometer malvadezas,

    que so aes premiadas.

    1

  • 8/10/2019 Fiorin (1988) - O Regime de 1964

    13/159

    O nvel por excelncia de manifestao ideolgica , porm, o

    nvel discursivo, ou seja, no nvel da semntica

    discursiva

    que,

    realmente, as formaes ideolg{cas se manifestam, pois um ~ -

    mo

    valor

    (elemento da

    semntica

    narrativa),

    como a liberdade ,

    pode ser tematizado, pela

    assuno

    do papel temtico do omo

    ludens

    e pela negao

    do

    papel

    temtico

    do

    homo faber

    figurati

    vizados

    por

    jovens

    no

    espao e no tempo do lazer. Analise-se,

    por

    exemplo, a pea publicitria

    de

    jeans que diz Liberdade uma

    cala velha, azul e desbotada . Nesse caso, a liberdade o lazer,

    figurativizado pelo

    no-trabalho, indicado

    pela roupa. Liberdade

    pode

    ser tematizada

    pelo direito diferena , corno no cii.so dos

    discursos de minorias sexuais. Pode

    ainda

    ser tematizada pela

    no-explorao da fora de trabalho produtiva . Essas trs tema

    tizaes diferentes do mesmo

    valor pertencem

    a formaes ideo

    lgicas distintas.

    As

    duas primeiras pertencem

    ao

    universo ideolgico

    que

    v a

    liberdade como a -possibilidade de o indivduo ou de

    um

    grupo de

    indivduos libertar-se

    das

    coeres sociais.

    Embora

    pertenam elas

    ao

    mesmo quadro de valores, so

    distintas:

    a primeira coloca-se

    no

    domnio

    das opes

    permitidas;

    a segunda, no das injunes

    negativas, sejando

    tornar

    o

    que proibido

    permitido, numa

    dada

    sociedade.

    A

    terceira

    pertence a outro universo ideolgico,

    pois v a liberdade

    como

    decorrncia da .alterao de todo o sis

    t ~ m

    de

    relaes sociais.

    O

    discurso

    religioso

    catlico

    apresenta, em nossos dias, Cristo

    m dois papis temticos

    distintos:

    salvador e libertador.

    Insiste

    no

    papel

    temtico salvador o discurso de parcelas tradicionais

    da Igreja. Ressalta o papel libertador a faco comprometida

    com a chamada opo preferencial pelos pobres .

    Nos discursos no-figurativos, a ideologia patenteia-se

    num

    dado conjunto de temas, enquanto nos discursos figurativos

    re

    vela-se,

    de maneira

    explcita,

    na

    relao

    entre

    temas e

    figuras;

    pois

    o

    mesmo

    tema,

    relacionado com

    figuras distintas, pode

    aparecer em

    formaes

    ideolgicas

    distintas.

    O

    tema

    do exlio'', em Gonalves

    Dias, aparece relacionado

    s

    figuras da natureza em que a ptria

    maior e melhor que a

    terra

    do exlio. Isso reflete o momento

    da

    constituio da

    nacionalidade. O

    mesmo

    tema aparece, em

    Murilo

    Mendes,. relacionado s figuras da dominao cultural

    estrangeira

    ( Minha terra tem macieiras

    da

    Califrnia,/onde

    cantam gatura

    mos

    de Veneza ).

    determinao do

    discurso

    bastante complexa, pois h

    um

    campo da manipulao eonsciente e um da determinao

    incons

    ciente.

    O campo da manipulao consciente o da sintaxe discursiva,

    em

    que o enunciador lana mo de estratgis argumentativas e

  • 8/10/2019 Fiorin (1988) - O Regime de 1964

    14/159

    de

    outros

    procedimentos

    para criar

    efeitos de

    verdade

    e -

    de rea

    lidade,

    com

    a

    finalidade de convencer

    o interlocutor.

    O enuncia

    dor organiza

    a estratgia discursiva em

    funo

    de

    um

    jogo

    de

    ima

    gens: a imagem

    que

    tem do

    interlocutor,

    a imagem que pensa

    que o

    interlocutor

    tem dele, a

    imagem

    que deseja passar para o

    interlocutor, etc. (Pecheux, 1975). em funo

    desse jogo

    de ima

    gens

    que

    ele

    usa certos

    expedientes

    argumentativos

    e

    no outros.

    Embora consideremos

    este o campo

    da

    manipulao

    consciente,

    pode-se,

    em virtude de hbitos adquiridos, usar esses recursos

    de

    maneira inconsciente.

    O

    campo das

    determinaes

    inconscientes

    constitudo de

    um

    conjunto de

    temas

    e

    figuras

    que constituem a maneira domi

    nante de explicar

    os

    fatos do mundo numa dada poca

    e

    que so

    oriundos de outros discursos

    j

    articulados, cristalizados e cujas

    condies

    de

    produo

    foram

    apagadas.

    Este o

    campo

    da

    deter

    minao

    ideolgica

    propriamente

    dita.

    Conquanto seja

    incons

    ciente a determinao ideolgica,

    pode

    ela ser tambm

    consciente.

    necessrio agora precisar

    os

    conceitos

    de

    formao

    ideolgica

    e de formao discursiva.

    Formaes Ideolgicas e Formaes Discursivas

    Marx mostra,

    em

    O

    Capital

    que

    h

    no real

    um

    nvel

    de

    es

    sncia e um nvel de aparncia.

    No

    modo

    de produo capitalista,

    a aparncia do real vista como o prprio

    real.

    O capitalismo

    engendra formas

    que

    mascaram sua e s s n c j ~ Assim, por exem

    plo, no

    nvel

    da

    circulao aparncia), todos os homens apare

    cem

    como

    iguais, pois todos

    so

    detentores de mercadorias, que

    so

    trocadas.

    Alguns vendem

    seu

    trabalho,

    livres

    de quaisquer

    vnculos

    de

    dependncia pessoal;

    so

    livres para estabelecer rela

    es

    contratuais

    com

    outros homens

    e

    em troca

    recebem

    um

    sa

    lrio. Aprofundando-se,

    no

    entanto, a

    anlise, nota-se que

    eles

    no

    vendem

    seu

    trabalho, mas

    sua

    fora

    de

    trabalho.

    Com

    isso, ob

    serva-se que

    a jornada de trabalho divide-se em tempo

    de traba

    lho pago

    e

    tempo

    de trabalho no pago. O

    capitalista apropria-se

    do trabalho no pago, constitutivo

    da

    mais-valia. O salrio,

    que

    no

    seno

    o

    elemento destinado

    reproduo

    da mo-de-obra,

    apaga a

    distino entre tempo de trabalho necessrio

    repro

    duo

    da fora

    de

    trabalho e

    tempo

    no

    pago.

    O salrio, no

    nvel

    da

    aparncia,

    aparece

    como

    o

    pagamento do trabalho

    e

    no

    da fora

    de trabalho.

    Observe-se, ento,

    que,

    no nvel da circulao, as

    relaes

    so

    ciais

    aparecem como relaes

    entre

    indivduos livres e

    iguais.

    Entretanto, no nvel da fSsncia, essas relaes so entre classes

    e no entre pessoas.

    No existe

    a troca,

    mas

    a

    explorao. No

    2

  • 8/10/2019 Fiorin (1988) - O Regime de 1964

    15/159

    h nesse nvel, nem igualdade nem liberdade mas relaes de

    poder. A partir da

    produo

    estabelecem-se as classes, sociais; a

    h exploradores a explorados. O real

    no

    nvel da aparencia pe

    se invertido

    e , a partir da, que

    se

    elaboram as

    repiesentaes

    que servem para pensar a

    relao

    dos homens entre si. Assim,

    ideologia o conjunto

    de representaes elaboradas

    a

    partir

    da

    aparncia do real o conjunto de racionalizaes que justificam

    no

    nosso

    caso

    a

    sociedade burguesa.

    No

    entanto

    h a seguinte questo. Por que a Economia Pol

    tica s6 ficou na aparncia do real, ao

    analisar

    a sociedade capita

    lista, e

    no

    chegou sua essncia? A resposta que ela se identi

    ficava

    com

    os

    interesses

    da

    burguesia e

    portanto

    s poderia ir

    at aquelas formas do real engendradas para mascarar a essn

    cia

    da

    sociedade capitalista.

    Isso

    no quer

    dizer que a classe he

    gemnica s revele os fatos que lhe

    interessam

    ocultando deli

    beradamente outros

    para

    ludibriar

    o

    proletariado. Embora

    no

    se possa excluir essa possibilidade as representaes ideolgicas

    esto presentes

    na

    maneira de todas as classes

    pensarem

    a socie

    dade. Elas justificam a hegemonia de uma classe

    para

    todos os

    membros

    da

    sociedade.

    Assim, os problemas que a

    Economia

    Po

    ltica clssica se colocava eram aqueles relacionados com a apa

    rncia

    do real.

    Isso

    significa

    que nenhum conhecimento

    neutro

    pois ele expressa sempre uma viso de mundo. Dessa forma h

    um

    corihecimento

    que

    sobrepaira

    as

    aparncias

    e

    outro que

    vai

    at a

    essncia

    do real. Podemos, pois

    entender

    nesse sentido, a

    ideologia

    como

    uma viso de

    mundo

    que no

    seno

    o ponto

    de

    vista

    de

    uma

    classe social. Assim, poder-se-ia

    historicizar

    o

    onceito

    de

    ideologia: so representaes que se elaboram a par

    tir da

    realidade

    seja

    de suas

    formas aparentes seja

    de

    suas for

    mas essenciais.

    A

    partir

    da, pode-se observar que

    no

    h uma

    separao

    en

    tre ideologia e cincia, como queria

    por

    exemplo, Althusser,

    pois

    a cincia

    que

    trata das aparncias do real analisa tambm ele

    mentos reais

    como o salrio, a mercadoria o preo etc. A ideolo

    gia

    assim

    constituda pela realidade e constituinte

    da

    realidade.

    Na sociedade burguesa

    o ponto de vista burgus

    a viso

    de

    mundo

    elaborada

    a partir das

    aparncias

    do real, enquanto a

    proletria

    organizada

    a partir

    de sua

    essncia.

    H que

    observar

    entretanto que a viso de mundo domina,nte na sociedade bur

    guesa a

    cosmoviso

    burguesa.

    Como

    se

    materializam

    essas vises

    de

    mundo?

    Materializam

    se

    na linguagem

    em

    suas

    i ~ r e n t e s

    manifestaes: a

    verbal

    a

    visual, a gestual etc. Essas vises

    de

    mundo corporificam-se num

    estoque

    de temas e figuras,

    que

    constituem a

    maneira

    de pensar

    o mundo numa dada poca.

    Esses

    temas e figuras So repetidos

    na

    maior

    parte dos discursos produzidos

    numa

    formao social

    3

  • 8/10/2019 Fiorin (1988) - O Regime de 1964

    16/159

    concreta.

    Temos, ento, que considerar a form o ideolgic

    como

    urna viso de mundo,

    ou

    seja, o ponto de vista de uma elas

    se

    presente

    numa determinada formao social, e a f

    rm o dis

    cursiv

    como o

    conjunto de

    ternas e figuras que materializam

    uma

    dada formao

    ideolgica.

    Ainda resta o

    espinhoso

    problema do sujeito que produz o

    discurso. Em primeiro lugar, existe o sentimento arraigado

    de

    que

    o homem livre para

    pensar

    e para

    produzir

    enunciados.

    Em segundo, nota-se

    que os

    textos

    que

    os

    homens produzem no

    so iguais, o que invalidaria, segundo

    certos

    crticos, a idia de

    que os

    discursos

    so determinados

    pelas

    formaes ideolgicas.

    Comecemos pela

    segunda

    objeo. Para respond-la

    preciso

    pen-

    sar um

    outro

    nvel

    da

    linguagem, o da manifestao.

    O Social e o Individual Discurso e Texto

    At agora estivemos refletindo sobre o plano do contedo.

    contedo

    manifesta-se por meio de um

    plano

    de expresso. A ma

    nifestao , pois, o

    encontro do plano

    de

    contedo

    discursivo

    com um plano de er:presso, que pode ser verbal, visual,

    gestual,

    etc. O

    plano

    de

    expresso

    veicula o significado. Nesse plano, ocor

    rem os efeitos estilsticos e as mltiplas coeres do

    material

    uti

    lizado.

    Os efeitos estilsticos agregam sentidos da

    expresso

    ao pla

    no

    do contedo. No verso Pedras, pingos pulam de alegria , do

    poema

    Chuva de Pedra , de Augusto Meyer, a aliterao do /p/

    patenteia

    o saltitar das gotas

    duras .

    No verso de Garcilaso ces

    tillos blancos

    de purpreas

    rosas ,

    mostra

    Dmaso Alonso

    que

    o

    vermelho ias rosas oferecidas

    ninfa morta

    destacado certa

    mente pelo contraste com o branco dos cestinhos

    em que

    eram

    trazidos, porm esse contraste reforado pela ordem quistica

    das

    palavras dos dois sintagmas, pelo contraste dos timbres e

    u

    nos adjetivos e pelos acentos colocados sobre essas

    duas

    vogais.

    A

    coero do material responsvel pelo fato

    de

    determina-

    dos aspectos do

    sentido serem

    mais bem expressos por um

    plano

    de manifestao

    do

    que por

    outro. A

    cor

    tem

    importncia muito

    grande no filme Gritos e sussurros ,

    de

    Bergman. H todo

    um

    sentido derivado do

    contraste

    entre os tons escuros e os tons

    claros

    e luminosos. Dificilmente esse sentido seria revelado por

    um plano verbal

    de manifestao.

    Essa

    coero

    ocorre

    tambm

    quando usamos uma lngua e no outra. Da a dificuldade de tra

    duo do texto potico, que faz

    largo

    uso dos efeitos estilsticos

    de expresso. Se se

    traduz

    o verso virgiliano Stetit illa tremens

    por E ela parou tremendo ,

    perdemos

    o valor sonoro do

    tremor,

    dado pela aliterao do

    /t/.

    4

  • 8/10/2019 Fiorin (1988) - O Regime de 1964

    17/159

    discurso

    pertence

    ao plano

    do

    contedo. :e o

    cemponente

    do. percurso gerativo p ~ sentido em que as formas

    do

    componente

    narrativo so r ~ v e s t i d s de temas e figuras, localizadas ac::orial,

    espacial e temporalmente. texto o lugar da

    unio

    de um plano

    de contedo

    com um

    plano de expresso.

    O

    texto

    tambm um lugar da

    manipulao consciente

    em /-

    que

    o

    falante pode organizar

    os

    recursos

    da

    expresso

    para

    vei

    cular da melhor maneira possvel certo discurso. A formao

    discursiva constitui

    a matria-prima. de que um

    homem de

    uma

    dada

    formao

    social dispe para elaborar seus discursos. Ele,

    no

    geral

    reproduz

    em seus discursos os

    temas

    e as figuras pre

    sentes nos discursos dominantes

    de

    uma dada poca. No entanto

    cada pessoa

    textualiza

    diferefl:temente os temas e figuras -repe

    tidos na maior

    parte

    dos discursos produzidos numa

    certa

    poca

    numa dada formao social. O discurso o lugar do social, en- i

    quanto

    o

    texto

    o

    lugar

    por

    excelncia

    do

    individual.

    A iluso da

    liberdade

    discursiva situa-se no

    fato de

    que o

    texto individual ou seja

    nico

    e irrepetvel. O

    discurso

    smu

    la ser individual, porque o texto que o veicula e

    que enquanto

    plano

    de

    expresso no tem sentido varia

    de

    pessoa

    para

    pessoa.

    Entretanto deve-se ressaltar que se a textualizao individual

    ou

    seja subjetiva essa subjetividade objetivada

    isto essa

    individualidade socializada, uma vez que ela formada por meio

    de operaes

    modelizantes

    de aprendizagem,

    que

    incluem

    o

    apren

    dizado da lngua, da retrica e dos procedimentos de formas de

    elocuo.

    O mesmo discurso pode manifestar-se

    por

    muitos textos di:

    ferentes. Por

    isso, a liberdade de textualizar

    muito

    grande

    e

    est condicionada apenas pelos processos modelizantes de apren

    dizagem ou seja

    pela

    tradio textual.

    O

    Prob\ema do

    Sujeito do Discurso

    Muitas vezes se diz, que m p ~ s s v e l pensar o p r o b l e ~ , a ~ -

    relao

    entre

    classe social e discurso

    porque

    o enunciador real

    pode simular um

    discurso

    que

    no

    represerita a

    formao

    ideol

    gica a que ele est ligado. Desse modo, no se

    pode

    dizer que

    quem

    pl Oduziu um discurso

    seja um burgus ou

    um

    proletrio

    ..

    Esse

    um

    falso

    problema.

    Seno

    vejamos.

    Bakhtin

    mostra

    que

    a realidade da conscincia a linguagem. Os contedos da

    conscincia so

    lingsticos.

    Segundo

    ele, sem

    linguagem. no

    se

    pode

    falar

    em

    psiquismo

    humano

    mas

    somente

    em processos

    fisiolgicos ou processos do sistema? nervoso. No

    h para

    ele,

    uma atividade mental independente

    da

    linguagem. O discurso no

    5

  • 8/10/2019 Fiorin (1988) - O Regime de 1964

    18/159

    expresso de uma conscincia mas esta formada pelo con

    junto

    de

    d i s u r ~ o s

    interiorizados pelo indivduo. Se os discursos

    so sociais a conscincia tambm o .

    A ideologia burguesa

    reluta em

    apoiar a tese de que a cons

    cincia

    social pois

    repousa

    sobre o conceito de individualidade

    e concebe a conscincia como o lugar da liberdade do indivduo.

    No

    mago

    do seu ser ele

    estaria

    livre

    da

    opresso

    social. Desses

    conceitos derivam as idias de uma liberdade abstrata

    de

    pensa

    mento e expresso e

    de uma criatividade

    que

    seria preciso

    culti

    var

    pois seria

    a expresso

    da subjetividade

    da

    conscincia indivi

    dual. No entanto como a conscincia constituda

    de

    discursos

    ela social. No existe a liberdade

    absoluta

    do indivduo preco

    nizada

    pela

    ideologia burguesa pois o indivduo produto de

    relaes

    sociais.

    O

    enunciador

    enquanto ser

    social

    depositrio de

    vrias

    formaes discursivas que existem numa

    formao social

    concre-.

    ta dividida em classes sociais distintas embora em geral ele

    seja

    suport apenas da formao discursiva dominante aquela

    que

    materializa

    a formao ideolgica

    dominante.

    Assim a anlise do

    discurso no se interessa por

    saber

    se o enunciador real est re

    velando ou

    pcultando

    com

    o

    discurso sua posio

    de classe.

    n

    lise do discurso no investigao policial. O interesse da anlise

    pela ideologia

    transmitida

    pelo

    enunciador

    inscrito no interior

    do

    discurso

    ou seja

    aquele

    que no

    discurso

    diz eu

    O enunciador real sempre vocaf:a as formaes ideolgicas

    existentes

    na

    formao

    social em

    que vive. Ao

    enunciar

    revelan

    do

    ou ocultando sua posio de classe ele

    d

    voz

    aos

    diferentes

    agentes do discurso que so as classes ou as

    fraes

    de

    classe de

    uma

    determinada formao social.

    Tolstoi

    era

    aristocrata

    mas

    em seus romances ele

    d

    voz

    por

    exemplo ao campesinato. O

    que certo

    que um enunciador

    no foge nunca a uma

    das

    for

    maes

    discursivas

    da

    sociedade

    em

    que

    vive.

    O discurso no

    portanto

    o lugar

    da

    liberdade e

    da

    criao

    mas o lugar de reproduo dos discursos das classes e

    das

    fraes

    de classe. O

    indivduo

    no fala o

    que quer mas

    o

    que as

    formaes

    discursivas querem que ele fale. Ele no fala mas

    falado por

    um

    discurso. Quando se diz porm que

    cada

    classe

    tem o seu discurso

    no

    se pode

    esquecer que

    assim

    como

    a ideo

    logia dominante a da classe

    dominante

    o

    discurso

    dominante

    o

    da

    classe dominante.

    No

    se

    exclui

    e v i d e n t ~ e n t e

    a possibili

    dade de

    o homem

    forjar discursos

    crticos

    qiferentes portanto

    dos discursos dominantes. S que o discurso crtico no surge

    do

    nada

    mas

    est previsto numa

    formao

    social.

    Se o sujeito do discurso

    no

    um indivduo pouco importa

    que

    seu

    discurso seja

    sincero

    ou mentiroso ele

    estar sempre

    16

  • 8/10/2019 Fiorin (1988) - O Regime de 1964

    19/159

    manifestando alguma

    formao

    discursiva

    exfstente na sociedade.

    Mesmo quando cria outros mundos,

    como, por

    exemplo,

    na

    fico

    cientfica, ele revela os valores, as carncias e as

    angstias

    >re-

    sentes

    numa

    dada

    formao

    social.

    oncluso

    Uma teoria geral da

    linguagem

    deve estar atenta. para

    as de-

    terminaes sociais

    que

    incidem

    sobre

    a

    linguagem

    e

    para

    a rela

    fiva

    autonomia da

    linguagem

    em relao

    s formaes sociais.

    Para

    isso,

    unia

    teoria

    deve comear

    por

    distinguir

    nveis e dimen

    ses

    determinados ou

    autnoroos,

    individuais ou

    sociais. O lin

    gista deve

    ter

    presente a fala

    de Riobaldo em Grande Serto

    Veredas;

    Todos

    esto loucos, neste mundo?

    Porque

    a cabea da gente uma

    s, e as coisas

    que h

    e que este> para

    haver so

    demais

    de

    muitas,

    muito maiores

    diferentes, e a gen.te

    tem que necessitar de aumentar

    a

    cabea

    para o

    total.

    17

  • 8/10/2019 Fiorin (1988) - O Regime de 1964

    20/159

    II O DELITO SEMNTICO

    A semntica tortuosa

    dos

    demagogos

    transmudava o mal em bem e o bem

    em mal, prenunciando trgica

    noite

    da

    naufrgio de nossas mais puras tra-

    dies culturais.

    Ernesto

    Geisel

    O

    Discurso

    Lacunar: Algumas Opes Metodolgicas

    A

    revoluo

    produziu

    uma enorme massa de discursos.

    Para tratar esses dados tivemos que tomar algumas decises meto

    dolgicas.

    Em

    primeiro lugar, limitamos a

    nossa tarefa,

    principal

    mente, ao

    estudo dos

    discursos

    do

    marechal

    Castelo

    Branco.

    Cre

    mos que

    seus discursos so representativos do discurso

    do movi

    mento militar

    de

    64,

    porque,

    conforme constatamos, seus temas

    e as figuras invariantes esto presentes, em sua plenitude, no dis

    curso

    do

    primeiro presidente ps-64 e porque, agindo o presidente,

    assim como

    todos os demais que

    se

    lhe

    seguiram, como delegado

    e

    representante

    do

    que se

    convencionou

    chamar sistema ,

    fala

    ria a palavra do ncleo do poder. Ademais, como chefe

    de

    um

    poder

    executivo

    todo-poderoso, que tirou do legislativo muitos

    dos

    seus poderes,

    submetendo-o a

    seus

    desgnios

    por meio

    de

    uma maioria

    dcil e da

    cassao dos mandatos

    dos

    insubmissos,

    que subtraiu,

    por

    meio

    de

    atos institucionais, muitas das suas

    atividades da apreciao

    do

    judicirio, que

    conseguiu

    muitas vi-

    trias

    polticas

    nos

    tribunais

    superiores,

    cassando

    alguns dos

    seus

    membros, aumentando ou

    diminuindo

    o

    nmero de

    juzes

    conforme

    seus

    interesses e suspendendo as garantias constitu

    cionais de vitaliciedade

    e inamovibilidade

    da magistratura,

    o pre

    sidente

    da

    Repblica imprimia

    a

    linha

    a

    ser seguida nos discursos

    situacionistas.

    Alm disso, todos os

    presidentes

    que se segui

    raro ao

    marechal Castelo Branco

    apresentaram-se como

    con

    tinuadores

    da obra da

    revoluo

    de 64 e,

    assim sendo,

    no

    poderiam falar um outro discurso.

    -Em segundo lugar, deliberamos e s c ~ l h e r

    dentro

    da

    massa

    de

    dados, os pontos que

    sero

    analisados. O ato de conhecer uma

    interao entre

    o

    sujeito cognoscente

    e o objeto.

    conhecimento

    no , como queriam

    os idealistas,

    apenas produto ou construo

    da subjetividad_e,

    nem

    como ensinavam os _positivistas, produto

    ' da

    realidade

    objetiva. O sujeito desernpenh um papel ativo no

    processo

    cognitivo.

    No entanto,

    deve-se

    entender

    que. o sujeito

    8

  • 8/10/2019 Fiorin (1988) - O Regime de 1964

    21/159

    no uma

    subjetividade pura,

    mas uma consc1encia, que contm

    predilees, pontos e vista. _ :nfim, uma viso de mundo, que

    resulta

    das

    condies materiais de existncia. Essa subjetividade

    tem origens

    sociais e,

    por isso, ela no

    qualifica

    apenas u

    dado

    indivduo.

    Assim,

    se

    ela

    resultante

    dos condicionamentos sociais,

    exteriores ao indivduo, - uma subjetividade objetiva. Objetividade

    e subjetividade fundem-se no processo

    do

    conhecimento (Bakhtin,

    1972,

    21-22, 34;

    Marx, 1968, 59).

    -

    Se

    o

    conhecimento

    uma

    interao dialtica do sujeito

    cog

    noscente e

    do objeto,

    no

    h possibilidade

    de

    uma nica leitura

    dos textos, mas abre-se a possibilidade de diversas leituras que

    f se fundamentam nas escolhas que fz o analist_a. O texto a ser

    analisado

    um texto construdo com base

    nos diferentes textos

    ocorrncia. Com isso,

    estamos

    alertando para o fato de que o

    texto construdo

    no

    apresenta todos

    os

    programas

    narrativos,

    os

    temas

    e

    as

    figuras e

    os processos

    de enunciao

    que

    aparecem

    nos textos-ocorrncia, mas somente aqueles elementos

    pertinentes

    de cada

    nvel de

    anlise

    que

    constituem inv ri ntes do

    discurso

    revolucionrio .

    A marcha da anlise um vaivm do texto cons

    trudo

    para os textos-ocorrncia.

    Este estudo pretende desvendar

    as lacunas do cfGcurso do

    poder. Como mostra Marilena Chau 1981, 21), o

    discurso

    ideol

    gico

    lacunar

    e

    sua

    coerncia

    no

    existe, apesar dessa lacuna

    ridade, mas

    graas a ela.

    Diz

    a

    mesma

    autora

    que ele

    coerente

    e

    eficaz

    porque no diz

    tudo nem pode

    diz-lo. O preenchimen

    to

    das lacunas no corrigiria o discurso ideolgico, mas destru

    lo-ia,

    porque

    retiraria

    dele

    a condio necessria de

    sua

    existn

    eia e de sua fora. Esta provm de uma lgica que poderia

    ser

    chamada lgica

    da

    lacuna,

    lgica do

    branco .

    Este trabalho pretende

    mostrar

    as lacunas do discurso revo

    lucionrio . Como, porm, mostr-las, cingindo-se

    apenas

    ao tex-

    ' ,

    to

    analisado?

    H contradies

    facilmente

    demonstrveis no texto.

    A presena, entretanto,

    de

    um nico

    enunciador

    garante uma cer

    ta

    homogeneidade ao discurso.

    Diferentemente, por exemplo, de

    uma pea teatral

    em

    que h vrios enunciadores,

    manifestando

    -diferentes

    vises-

    da

    realidade, e

    em

    que

    no

    h, seno nas mar

    cas cnicas (ou s vezes no coro que sublinha uma viso do real),

    um narrador

    que exerce

    uma

    funo veridictria,

    apresentando

    enunciados

    que

    determinam o que verdade e o

    que

    mentira,

    o discurso poltico tem

    um narrador

    nico,

    presente

    corno ator

    na

    narrativa.

    Se

    no

    h

    vrios narradores,

    no

    h

    vrias vises

    da narrativa.

    Para

    mostrar

    a ambigidade

    da narrativa,

    preciso

    ouvir narradores diferentes. No

    caso

    de discursos que tm por

    funo precpua

    transmitir

    uma

    ideoloiia,

    preciso

    ouvir

    narra

    dores diferentes, colocados em lugares sociais

    distintos

    e q\le te-

    nhal11;, por isso, ideologias _diversas.

    .

    19

  • 8/10/2019 Fiorin (1988) - O Regime de 1964

    22/159

    Tendo levantado os

    diferentes

    contedos aII).bguos, a opo

    por

    uma das verses da

    narrativa

    se faz

    com fundamento

    numa

    postura

    ideolgica.

    Nota

    Rastier 1973, 93) que,

    quando

    Greirnas,

    no comeo da descrio da narrativa mtica, considera que o me

    nino

    que viola a me um tr.aidor, ele o faz eqm base no conhe

    cimento

    de uma axiologia

    social

    que

    tem

    as relaes. sexuais

    entre

    me

    e filho

    n

    conta

    de interdies. Nada

    impede

    que, den

    tro de outro. sistema social, o

    mesmo ator seja

    o heri. Da mes

    ma

    forma, os contedos investidos

    no

    discurso do poder ganham

    um determinado valor na

    verso

    de

    um

    enunciador e

    outro

    na

    de um segundo responsvel pela enunciao. O traidor de um

    verso ser

    o heri de outra, o

    que eufrico

    numa

    ser

    disf

    rico noutra e assim sucessivamente.

    Reconhecemos

    que

    nosso estudo fundado numa viso de

    mundo,

    pois no

    admitimos, conforme

    explicamos em outra par

    te, a neutralidade cientfica.

    H,

    porm, estudos que ficam na

    aparncia

    do real e outros que procuram

    chegr

    at sua essncia.

    Quer este

    trabalho mostrar que o discurso do golpe de 64

    tenta

    fazer crer que formas aparentes do

    real

    constituam a realidade

    total.

    O Discurso Construdo: . Invariantes do Discurso

    de 64

    a)

    O

    povo elegeu

    Goulart

    vice-presidente da

    Repblica.

    b)

    Goulart tomou posse da presidncia na vacncia do

    cargo

    por

    renncia do

    seu

    titular

    .,,, c) Goulart conduz o

    pas para

    o

    caos

    subverso poltica,

    estagnao

    econmica e

    corrupo).

    d) A imprensa informa o povo do

    verdadeiro

    sentido dos

    atos

    de

    Goulart.

    e)

    povo, descontente com

    a

    siruao, desqualifica

    Goulart

    e

    qualifica as

    Foras

    Armadas

    para

    dirigir

    o

    pas.

    f) As Foras

    Armadas

    depem Goulart, para .salvar o pals do

    comunismo. .

    g)

    As

    Foras Armadas repem o pas no caminho da

    ordem

    e do desenvolvimento e acabam com

    a

    corrupo. O que as Foras

    Armadas fizeram foi uma revoluo; no deram um golpe .de

    Estado,

    h) H algumas dificuldades

    no presente,

    mas anuncia-se

    para

    o

    pas uma

    poca

    de grande prosperidade

    e

    tranqilidade em que

    o Brasil realizar o

    seu

    destino histrico de

    grande

    potncia. Nes

    se

    tempo, todos os brasileiros colhero os butos do desenvolvi

    mnto.

    i) H alguns antipatriotas que pretendem contestar o regime.

    j)

    O que cada

    um

    deve fai:er, dentro

    do sistema,

    trabalhar

    para o engrandecimento do Brasil.

    21

  • 8/10/2019 Fiorin (1988) - O Regime de 1964

    23/159

    1

    As realizaes da revoluo em seu

    trabalho

    pelo cresci

    mento

    do Brasil so X

    11

    X

    2

    X 3 X n

    m) O

    coqflito

    que

    se travou no

    Brasil_ est irlserido na

    luta

    entre a democracia e o comunismo.

    Ao relacionar.

    as

    proposies

    invarin

    tes do discurso

    do

    po-

    der, o

    que

    fizemos foi transformar

    os

    discursos-oorrncia

    em

    discurso do descritor ,

    ou

    s e j ~

    reduzimqs

    as

    variantes a inva

    riantes.

    Os

    discursos-ocorrncia

    nada

    mais fazem do que saturar j

    semanticamente

    a forma abstrata acima exposta. '

    A

    reduo

    foi feita,

    limitando-se as sinonmias

    parciais. Cons

    tituram-se, assim,

    as

    classes

    de

    contedo a

    operar. Essas

    classes

    definem

    atores e processos. Para. chegar, entretanto, aos enun

    ciados cannicos da narrativa,

    onde

    sero

    identificados

    estados

    e'

    transformaes, . preciso substituir

    os enunciados

    lingsticos

    derivados por

    sua estrutura

    de base

    {Rastier,

    1973, 97-98.) Isso

    ser

    feito

    medida que cada enunciado for sendo

    analisado.

    .

    Deve-se notar

    que

    os

    enunciados

    narrativos sero apresen

    tados na

    ordem de

    sucesso no

    tempo

    d

    narrativa

    e no na.

    ordem

    de

    manifestao

    no discurso lingstico.

    O Componente

    Narrativo

    e a Semntica do Componente Discursivo

    A Eleio de Jango

    1. O mecanismo

    democrtico

    O princpio

    sobre

    o

    qual

    se fundamentam

    as democracias

    .

    burguesas

    o que est inscrito no artigo

    primeiro

    da Constitui

    o

    do

    Brasil:

    Todo poder emana

    do povo e em seu nome

    exercido . Nota Marilena Chau {1980, 88-89)

    que

    o liberalismo

    concebe

    a

    democracia exclusivamente como um sistema poltico

    que

    repousa sobre cinco postulados institucionais:

    a) eleio dos

    governantes por

    melo de consulta popular pe

    ridica,

    em que

    prevalece a

    vontade

    da

    maioria;

    b) competio entre posies diversas de

    homens, gIUJ?OS ou

    partidos nas

    eleies;

    c) liberdade de expresso e de

    divulgao

    de opinies diver

    gentes na competio;

    d)

    proteo

    maioria contra a perpetuao de um grupo no

    poder

    e

    minoria contra

    o

    alijamento das

    assemblias

    em

    que

    se discutem e decidem questes de. interesse pblico;

    e)

    proteo

    dada pelo judicirio ao

    cidado

    contra o arbtrio.

    dos

    governantes

    e

    ao

    sistema 'contra o despotismo, submete_ndo

    governantes e. governados ao

    imprio

    da

    lei,

    ou

    seja,

    da

    corisfi

    tuio.

  • 8/10/2019 Fiorin (1988) - O Regime de 1964

    24/159

    No se

    pretende

    discutir aqui se esses postulados correspon

    dem ou no realidade, quais so suas fraquezas e

    seus

    pont-os

    falhas. Sero aceitas, para efeito de argumentao, da maneira

    como

    esto

    postos. Teoricamente, numa democracia, o povo o

    detentor do poder.

    Por isso, nesse sistema poltico

    deve

    haver,

    peiodicamente,

    eleies

    livres

    em

    que

    os

    governantes so esco

    lhidos

    pela maioria

    dos

    eleitores

    e

    as

    minorias esto represen

    tadas

    no

    Parlamento. Isso se

    faz conjugando-se o

    sistema de

    elei

    es

    rnajoritrias

    com o sistema de eleies proporcionais>

    O processo democrtico pode ser analisado

    como

    uma srie

    de enunciados narrativos. Uma

    eleio

    um

    contrato

    entre um

    destinador e

    um destinatrio-sujeito.

    O

    destinador

    a

    maioria dos

    cidados

    de um pas,

    de um

    Estado ou

    de um

    municpio nas

    eleies

    rnajoritrias

    ou

    uma parte

    deles nas eleies

    proporcio

    nais.

    O

    destinatrio pode

    ser

    um

    homem,

    um

    grupo

    ou

    um

    par

    tido. O contrato unilateral, pois o destinador manifesta urna

    proposio que pode ser interpretada como: D

    1

    (destinador) quer

    que

    D

    2

    (destinatrio)

    seja

    governante e

    faa

    aquilo que ele props

    fazer em

    seu

    plano de

    governo;

    o

    destinatrio,

    por

    sua

    vez, as

    sume o

    compromisso que

    no_

    seno

    o

    dever de

    D

    2

    de

    execut:rr

    o

    querer de

    D

    1

    O

    contrato unilateral composto

    de uma deter

    minao

    e uma

    aceitao. Por

    isso, o

    contrato

    altera o.

    estatuto

    de

    cada

    participante.

    No

    momento em

    que se

    d

    o

    contrato

    elei

    o), o destinador torna o destinatrio-sujeito competente segundo

    o poder pois lhe transmite o

    /poder-fazer/

    (todo poder

    emana

    do

    povo), embora no

    renuncie

    a ele o

    povo

    sempre detentor

    do poder), mas

    ao seu

    exerccio direto o poder exercido em

    nome do

    povo).

    Ocorre, aqui, o dom do /poder-fazer/, porque a

    uma atribuio do objeto a D

    2

    corresponde uma

    renncia

    por parte

    de D

    1

    O

    destinador

    atribui o poder ao destinatrio e ren_uncia a seu

    exerccio.

    O

    contrato

    estabelece um dever-fazer para D

    2

    (prescrio) e,

    ao mesmo tempo, institui um /no-poder-no-fazer/ obedincia),

    que

    implica

    um /poder-fazer/. Correlacionados o

    /dever-fazer/

    de

    D

    2

    , que

    conforme

    com o /querer/ de D

    1

    , e o /no-poder-no

    fazer/, que

    obriga o governante a fazer

    aquilo

    que est

    previsto

    no

    plano

    de

    governo,

    o /poder-fazer/ da

    resultante

    poderia

    ser

    denominado liberdade vigiada .

    No

    final da execuo

    do

    fazer

    do

    sujeito (fim

    do

    mandato).

    o destinador povo)

    exerce

    a sua

    sano sobre

    seu fazer. A sano

    executada

    pelo destinador cognitiva e

    pragmtica,

    positiva ou

    negativa.

    Se

    o

    sujeito

    cumpriu as obrigaes

    contratuais

    recebe

    a recompensa positiva).

    Em

    caso contrrio, sofre a punio ne

    gativa).

    No sistema democrtico, se a

    sano cognitiva

    e

    pragm

    tica for positiva, o destinador tem como recompensa a atri-

  • 8/10/2019 Fiorin (1988) - O Regime de 1964

    25/159

    buio do

    poder

    por um

    outro

    perodo determinado (novo m n-

    daw).,Se

    for negativa, a punio ser-,a-cas ae,oo:poder atribudo

    anteriormente (no-reeleio). O poder e o

    querer

    so intrnsecos

    condio

    de cidado.

    -,

    Para

    que haja democracia

    preciso

    que

    haja competio

    liV're

    entre

    os concorrentes ao

    papel

    de

    contratante com

    o povo. O des

    tinador, ento, escolhe seu destinatrio. Desse modo, o contrato

    precedido por uma outra

    operao da

    ordem do

    saber em que

    programas virtuais

    de

    fazer (programas de governo) so propos

    tos para

    o destinador.

    Essa operao

    cognitiva e

    pressupe um

    fazer persuasivo dos que pretendem

    ser

    o

    destinatrio

    do /poder

    fazer

    atribudo

    pelo

    povo e um fazer interpretativo do destina

    dor

    do

    poder. Os

    diferentes candidatos procuram comunicar um

    objeto

    do saber (plano de governo), modalizado como verdadeiro.

    Os eleitores

    exercem um

    fazer interpretativo

    que

    procura avaliar

    o

    objeto

    a

    partir

    da

    sua

    viso

    de mundo.

    a

    um

    fazer

    dedutivo,

    que tem

    um

    estatuto formal comparvel ao do raciocnio mate

    mtico:

    os

    teoremas que se podem deduzir

    de um

    axioma

    dado

    so corretos, mas no

    so

    verdadeiros no sentido

    estrito do

    ter

    mo; seu valor

    de verdade

    depende inteiramente d verdade

    dos

    enunciados

    constitutvos

    do axioma (Greimas, 1976, 188).

    Assim,

    os eleitores estabelecem a

    verdade falsidade mentira

    do objeto

    transferido,

    com

    base em valores

    da

    sua viso de mundo, tomada

    como

    um

    axioma.

    o

    saber

    que

    adquirem,

    nesse

    caso'

    no

    neces

    sariamenie verdadeiro,

    mas

    correto

    em

    relao

    sua

    ideologia.

    Nessa operao de transferncia do

    saber,

    os candidatos so des

    tinadores

    e

    o povo o destinatrio. Os candidatos apresentam-se

    como

    sujeitos

    competentes segundo o saber.

    Tendo

    o povo reali

    zado

    o fazer interpretativo,

    realiza

    a seleo de

    um

    dos progra- ,

    mas e quer

    que

    ele

    seja

    executado. Para isso, sendo o destinador

    segundo o poder, o n e d ~ a competncia /poder-fazer/ ao candi

    dato

    escolhido, que o destinatrio segundo o poder, o querer

    e, agora tambm, segundo o sber.

    O discurso poltico _ essencialmente persuasivo. Distingue-se

    em discurso poltico

    da

    situao e da oposio. o discurso situa

    cionista

    o

    diSCW sa

    da

    prestaa

    .de contas, ou seja,.

    aquele que

    visa a persuadir o destindor da sano de que o que foi contratado

    foi cumprido e de que, por isso, o sujeito deve receber uma san

    o positiva

    no

    plano cognitivo e no plano pragmtico. O

    dscurso

    oposicionista pretende mostrar que o

    fazer

    no foi executado ou

    que

    foi

    danoso

    ao

    povo e que,

    por

    isso, o

    sujeito

    deve

    sofrer

    uma

    sano

    negativa. Alm disso,

    prope

    a execuo de

    um outro

    fa.

    zer e, para isso, deseja obter o poder de que o povo detntor.

    Situao e oposio desejam fazer com que o povo atribua a um

    partido e no a outro o poder. eleio

    ,

    antes _de mais nada,

    um conflito de manipuladores, em que o povo escolhe

    um e l e s ~

    23

  • 8/10/2019 Fiorin (1988) - O Regime de 1964

    26/159

    fundamental, para que

    haja processo democrtico, que

    pos

    sa haver competio entre pessoas, grupos ou partidos, o que im

    plca

    a possibilidade de

    alternncia no

    poder, ou

    seja,

    que exista

    uma relao entre desapossameI1to_e

    atribuio

    do poder. No

    pode,

    entretanto,

    haver

    uma

    oposio entre desapossamento e

    atribuio, pois cada uma dessas

    operaes

    no a projeo si- -

    mtrica

    da

    outra. A

    relao entre elas

    ,

    ento, urna

    relao fun.

    dada em um princpio de sucesso. No entanto, como cada

    um

    dos

    termos

    sucessivos projeta a

    sua

    imagem invertida,

    ocorrendo

    uma

    relao entre

    desapossamento

    e atribuio, devem essas trans

    formaes estar correlacionadas, respectivamente, com a apropria

    o

    e a renncia. O povo, na eleio,

    apropria-se

    do poder que

    atribura a um destinatrio e,

    por

    conseguinte, desapossa-o dele.

    Em seguida, atribui-o a

    outro destinatrio

    ou

    ao

    mesmo e

    renun

    :i ; eia a seu exerccio direto. A eleio o

    momento

    em que h

    ntida

    distino

    entre

    o

    poder'

    e o

    seu ocupante,

    ou

    seja,

    entre

    objeto

    modal e sujeito.

    As categorias semnticas usadas no discurso so temporali

    zadas

    e, ento,

    articulam-se

    numa nova categoria

    /permanncia/ vs. /incidncia/

    que

    a adaptao ao

    tempo

    da categoria

    /contnuo/ vs.

    /descontnu()/.

    O

    discurso

    aparece,

    ento,

    como

    uma

    sucesso

    de

    permanncias

    e

    de incidncias. Uma incidncia deve necessariamente intercalar-se

    entre

    duas permanncias, para

    que

    elas possam ser tom.adas como

    distintas. O tempo articula-se na manifestao com um aspecto,

    que a maneira como um

    observador

    percebe a temporalidade.

    Para ele, a permanncia durativa,

    enquanto

    a incidncia pon

    tual.

    O

    encadeamento

    de /permanncia/ e de /incidncia/ s se

    transforma

    em processo se a

    /pontualidade/

    marcada

    como

    o

    fim

    (terminatividade)

    ou

    o

    comeo

    (incoatividade) do

    processo

    de

    /duratividade/.

    As temporalidades podem ser denominadas e

    ' investidas de um conjunto de

    determinaes

    semnticas. O pe

    riodo

    uma

    permanncia denominada e o acontecimento uma

    incidncia

    denominada

    Greimas, 1976, 71-72).

    Dentro

    do

    processo democrtico de

    transferncia de poder, a

    eleio um

    acontecimento,

    enquanto o tempo

    de

    governo e a

    legislatura

    so

    um

    perodo, A incidncia, articulando-se com o va

    lor aspectual /pontualidade/, incio de um perodo Uini::oativi

    dade/)

    e fim

    de

    outro

    (/terminatividade/).

    O

    que

    caracteriza

    o

    processo democrtico que o

    perodo

    r e ~ a r ou seja, tem

    um

    tempo de

    durao delimitado

    a priori No

    se pode, sem

    que

    se

    resvale na

    tirania, aumentar a durao do perodo, enquanto

    ele

    transcorre,

    sem

    consulta

    populao. Da mesma forma, no

    se pode diminuir o

    perodo.

    24

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    27/159

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    fazer/,

    que lhe

    fora atribudo

    pelo

    povo, disjunge-se dele

    por

    von.

    tade

    prpria .

    4

    Nessa poca

    Goulart

    estava viajandp,

    em

    misso

    oficial,

    pela

    China

    e pelo Oriente Mdio. renncia apanhou-o em Paris. Ao

    lhe

    ser

    comunicada a notcia da renncia de Jnio, Goulart co

    mea

    sua viagem de volta para o

    Brasil.

    De Paris voou para Nova

    York

    (30

    de

    agosto);

    da, para Montevidu

    (31

    de agosto);

    da

    Ca"

    pital do Uruguai

    para

    Porto Alegre 1.

    0

    de

    setembro).

    Chegou de

    avio a

    Braslia

    no dia 5 de setembro.

    O presidente interino, Ranieri Mazzilli, notificou ao

    Congresso

    Nacional, no dia 28 de

    agosto,

    que os principais lderes militares

    eram contrrios ascenso

    de

    Jango

    presidncia por razes

    de

    segurana

    nacional. Na vspera, o marechal Odlio Denys, minis

    tro da Guerra, declarara que havia chegado a hora

    de

    optar en

    tre o comunismo e o

    Brasil

    (Young, 1973,

    125-126).

    No dia 30,

    os

    ministros militares

    divulgam 'uma

    nota

    conjunta em que

    ma

    nifestam

    que o regresso

    do

    vice-presidente ao pas

    era

    um risco,

    pois, por suas posies ideolgicas, conduziria o pas ao caos,

    anarquia

    e

    guerra

    civil,

    terminando

    por entreg-lo

    ao comunis

    mo, que faria ruir as instituies democrticas e, com elas, a

    justia, a

    liberdade,

    a paz social, todos os mais altos padres de

    nossa cultura crist .

    5

    Comea a ruir o discurso

    revolucionrio ,

    pois, antes de Goulart

    tomar

    posse, ele

    j estava prejulgado.

    O

    golpe foi

    abortado

    e

    outro

    comeou

    a

    ser

    preparado

    (Dreifuss,

    1981). Na realidade, o povo mais uma vez, por meio das suas

    lideranas

    polticas

    eleitas, qualificava

    Goulart.

    O destinador (povo) havia estabelecido Goulart como o

    desti

    natrio virtual do

    poder.

    O

    cargo

    de vice

    sempre

    uma posio

    virtual, pois ele

    um

    sujeito instaurado antes de sua juno. Ha

    vendo uma disjuno

    entre

    o titular

    do

    cargo e o poder, ocorre

    a conjuno que estabelece a realizao. Os lderes militares

    so oponentes

    da

    transformao

    do sujeito

    virtual

    em

    sujeito

    real, enquanto os governadores do Rio Grande do Sul, Gois,.

    Santa

    Catarina, Paran,

    o III Exrcito, a cadeia da legalidade ,

    populares

    e

    outras

    personalidades civis e militares que

    se pronun

    ciaram a

    favor

    da posse de Goulart so os adjuvantes.

    Para que

    houvesse a posse de

    Goulart

    (conjuno com o po

    der)

    houve

    um contrato

    unilateral.

    O Congresso Nacional desa

    possa Goulart de parte do poder (poder executivo de

    governar)

    e atribui esse

    objeto

    a um

    primeiro-ministro;

    ao mesmo tempo,

    atribui

    a

    Goulart

    o

    poder de chefe

    de Estado.

    A

    relao

    entre

    desapossamento e atribuio

    tematiz'da

    pela implantao do

    regime

    parlamentarista

    no Brasil. O querer do Congresso, ex

    presso

    em

    emenda Constituio, implica uma obrigao

    (/lever

    fazer/)

    para Goulart. A determinao

    do

    Congresso corresponde

    uma aceitao de Goulart.

    26

  • 8/10/2019 Fiorin (1988) - O Regime de 1964

    29/159

    A

    reforma

    constitucional determinava que

    um

    presidente,

    eleito pelo Congress, oomearia

    um p r i l l 1 e i r ~ m i n i s t r o cm

    a apro

    vao

    da

    Cmara dos Deputados; o primeiro-ministro,

    como

    pre

    sidente do gabinete,

    desempenharia

    os poderes executivos ante

    riormente exercidos pelo presidente; o Congresso poderia destituir

    o primeiro-ministro; um plebiscito seria realizado em

    1965

    para

    que o povo decidisse se o regime

    parlamentarista continuaria

    a

    existir no Brasil

    ou

    no.

    O presidente estabeleceria um

    sujeito

    virtual do

    poder-fazer

    executivo (nomeao). A virtualidade tornar-se-ia realizao pela

    vontade da Cmara dos

    Deputados. A

    Cmara poderia tambm

    desapossar

    o

    sujeito

    (primeiro-ministro) do poder. O povo,

    pro

    todestinador do poder, seria chamado a manifestar o

    seu

    querer

    sobre a transformao que ocorrera, manifestando a sua sano

    positiva. No dia

    6

    de

    janeiro

    de

    1963,

    o povo sancionou

    negativa

    mente

    o

    parlamentarismo

    e voltou-se

    ao

    presidencialismo,

    onde

    no

    h

    separao entre chefia do governo e do Estado. Novamen

    te

    Goulart

    foi sancionado

    positivamente

    pelo povo. ,,.-

    A Beira do Abismo

    Comearemos, agora, a

    anlise

    do discurso explcito

    do p -

    der. Antes, analisamos alguns

    elementos

    implcitos

    pressupostos

    logicamente pelos

    0ntedos

    explcitos.

    Os papis narrativos colocados pelo discurso revolucion

    rio e os atores correspondentes so:

    Sujeito de Estado . . .

    ..

    . . . . . . . . . . . . . . . . .. . . . . . . . . . .

    Brasil;

    Objetos-valor ordem e caos;

    e Objeto modal ,. poder;

    e Destinador do

    poder

    . . . . . . . . . . . . . . .. . . . . . . . . .

    ..

    . . . . . povo;

    e Sujeito do fazer Foras Armadas

    e

    Anti-sujeito do

    fazer

    , . . . . . . . . . . Governo

    Goulart.

    Goulart

    opera

    uma

    disjuno entre o Brasil e a

    ordem

    e uma

    conjuno entre o Brasil e o

    caos.

    Os parassinnimos do

    caos ,

    que aparecem

    no discurso do golpe,

    so;

    entre outros;'desorden ,

    desrespeito , ''indisciplina , solapamento da autoridade , ' 'que

    bra da hierarquia , subverso , estagnao econmica , orgia

    inflacionria . '.'anarquia , '.'corrupo , demagogia , i n s o l v : Q . ~

    financeira do

    pas .

    Goulart levou o Brasil

    ao

    caos,

    porque seu

    fim

    ltimo era . bolchevizar

    o

    pas ,

    ou

    seja, operar

    uma.

    disjuno

    entre o Brasil e o capitalismo e

    uma

    conjuno entre o pas e o

    comunismo (1,

    157; 2, 34;

    2,

    111; 3, 186; 3,

    207;

    3,

    292 .

    Diz o discurso que a nao estava

    beira

    do abismo . O

    fundo

    seria o comunismo. Goulart

    no

    conseguiu levar a nao

    at l,

    graas

    pronta ao das Foras

    Armadas

    (2, 261-262).

    Nem

    27

    111 ; 1

  • 8/10/2019 Fiorin (1988) - O Regime de 1964

    30/159

    sempre

    a expresso

    beira do abismo aparece

    manifestada.

    Entretanto,

    o

    seu significado

    pode ser

    depreendido

    de

    l e ~ e m s ou

    expresses

    qu indicam um

    quase ,

    como perigos {tninentes

    pairavam-sobre

    a nacionalidade , s

    port s da

    anarquia'', pre-

    nn io da

    agonia ,

    do

    uso do

    pretrito

    imperfeito do indicativo,

    que

    indica

    uma

    ao no

    acabada, como

    em marchvamos

    para

    a

    desordem'',

    da utilizao

    de

    expresses

    como

    a Nao esteve

    exposta a riscos

    1,

    84; 2, 21; 2,

    285;

    3, 50; 3, 245). Esses tempos

    verbais e esses

    lexemas

    e

    expresses

    remetem

    para

    o significado

    beira .

    Para

    perceber

    o significado

    abismo'',

    temos que

    opor

    o

    governo

    Goulart, que

    fazia

    o pas

    caminhar para

    baixo ( afun

    dava

    o pas na corrupo e

    na

    subverso ), aos governos revo

    lucionrios , que

    procuravam levar o pas

    para

    o

    alto

    ( tarefa de

    soerguimento nacional e emergir

    do

    caos financeiro

    em que

    framos

    mergulhados )

    2, 33;

    1,

    14; 1, 21; 1 65; 2, 47; 2, 68; 2,

    9_;

    2

    205;

    3,

    25).

    Para

    descrever a expresso locativa

    beira

    do abismo , deve

    se recorrer aos procedimentos de