filosofia uspiana

6
FILOSOFIA USPIANA, OU: TREMELIQUES DE MLLE. RIGUEUR SE DURANTE DÉCADAS o Departamento de Filosofia da USP não produziu filosofia nenhuma, não foi por inépcia nem por preguiça, mas por uma louvável renúncia ascética. Pelo menos é o que nos asseguram os funcionários e diretores dessa digna repartição. A crença ali dominante, escreve Paulo Arantes, era que só poderia nascer uma filosofia no Brasil “ao término de um infindável aprendizado de técnicas intelectuais criteriosamente importadas”. Mais urgente do que filosofar, era portanto seguir os debates que se travavam nos grandes “centros produtores” de cultura filosófica. Mas “seguir”, nesse contexto, não significava apenas manter- se informado: significava tomar o padrão europeu do dia como norma de aferição do valor e da importância do pensamento

Upload: marceloolegarioignez

Post on 10-Nov-2015

213 views

Category:

Documents


1 download

DESCRIPTION

Debate, democracia , revista

TRANSCRIPT

FILOSOFIA USPIANA, OU: TREMELIQUES DE MLLE.RIGUEURSE DURANTE DCADAS o Departamento de Filosofia da USP noproduziu filosofia nenhuma, no foi por inpcia nem por preguia,mas por uma louvvel renncia asctica. Pelo menos oque nos asseguram os funcionrios e diretores dessa digna repartio.A crena ali dominante, escreve Paulo Arantes, era ques poderia nascer uma filosofia no Brasil ao trmino de uminfindvel aprendizado de tcnicas intelectuais criteriosamenteimportadas. Mais urgente do que filosofar, era portanto seguiros debates que se travavam nos grandes centros produtores decultura filosfica.Mas seguir, nesse contexto, no significava apenas manter-se informado: significava tomar o padro europeu do diacomo norma de aferio do valor e da importncia do pensamentolocal. Esse padro, por sua vez, era mltiplo e cambiante,pela razo mesma de originar-se em pases dotados de um establishmentfilosfico rico e generoso, capaz de sustentar legiesde crebros inventivos, de uma loquacidade inesgotvel. Nessascondies, qualquer atividade filosfica que pretendesse seralgo mais do que mera expresso de idiossincrasias pessoaistinha de submeter-se a uma sucesso de peneiras mentais diferentese mutuamente contraditrias, cujo nmero crescia emprogresso geomtrica medida que novas teorias, vindas dequalquer lugar do mundo, sugerissem novos tipos e modalidadesde objees possveis, por disparatadas que fossem. E estaexigncia no era vista ali como um meio de aperfeioar afilosofia existente, mas como um requisito preliminar para queuma idia filosfica nascente chegasse a merecer a ateno dotribunal universitrio paulista, autocolocado assim numa alturainacessvel a qualquer clamor humano. Naturalmente o corpodocente da instituio tinha plena liberdade de selecionar aspeneiras, superp-las, troc-las ou fundi-las, conforme o que lheparecesse necessrio, no momento, para provar que no podiaexistir vida filosfica inteligente fora do Departamento. O aspirantea filsofo a quem acontecesse a infeliz idia de confiar-seao julgamento da USP era assim submetido a um massacre entreos dedos de ferro de um superego europeu que, sob a carrancasolene do rigor la rigueur , ocultava o corao instvel ecaprichoso de uma deusa histrica na menopausa. O NOME DESSA DEUSA Moda. La Rigueur de la Mode, meus amigos, exigiriaque Ren Descartes tivesse prontas as Objections et Rponsesantes mesmo de redigir as Mditations; e que, de modo geral, assegundas edies ( corrigidas e aumentadas ) fossem publicadasantes das primeiras.Imaginando ou fingindo preservar a mente brasileira dosriscos de uma independncia prematura, o que os matres penser da USP fizeram foi apenas incentivar a prtica generalizadado aborto filosfico preventivo. No espanta que, porquatro dcadas, o rigor uspiano, pesando sobre as conscinciascomo o olhar temvel de um malvolo guardio do portal,no produzisse outro resultado seno o rigor mortis de umafilosofia que poderia ter sido e que no foi. preciso escrever mal como Paulo Arantes para captar empalavras o esprito da coisa: que esperana se poderia ter naecloso futura de uma filosofia que, para nascer, devesse aguardarpreliminarmente o trmino do infindvel?Que os prprios sacerdotes do culto uspiano desistissem detornar-se filsofos para acomodar-se no posto de historiadoresda filosofia ou de meros filosofantes, seja movidos pela modstiaou pela covardia, coisa que s a eles diz respeito. Quefizessem porm da sua opo o modelo obrigatrio de todahonestidade intelectual, repelindo a priori tudo o mais comoousadia leviana, s poderia dar no que deu: na inibio paralticade uma filosofia cronicamente adiada, que agora jaz diantede ns como o cadver de uma velha virgem sem virtude. Equando, a ttulo de exemplo, comparamos o fruto seco de quatrodcadas de rigor uspiano riqueza da descendncia deixada porum nico professor universitrio Jos Ortega y Gasset nomundo de fala hispnica, no podemos deixar de sentir a diferenapattica de tnus vital entre a pujana do estmulo dadopor Ortega a seus alunos e sucessores em uma dezena de pases,e a sombria carga de exigncias paralisantes que, somada a umestilo pesado e pedantesco no escrever, o essencial dacontribuio deixada por todo aquele exrcito de professoresque o povo paulista estipendiou para que o ensinassem afilosofar. Nem podemos deixar de, movidos por uma certaindignao evanglica, apostrofar: Ai de vs, que no entraisnem deixais entrar. Mas, como no so bem vistas nesseambiente as citaes evanglicas, acabamos ficando com estasduas de Hegel: A confiana no poder do esprito a primeiracondio da filosofia e O medo de errar , no mais das vezes,o medo da verdade.Na verdade, o Departamento condenou-se esterilidadeperptua no instante mesmo de seu nascimento, quando, noprimeiro concurso para provimento de ctedra, preferiu, a umfilsofo genuno, um filosofante, por motivos ideolgicosocultados sob pretextos burocrticos de uma leviandade atroz( o filsofo a que me refiro era Vicente Ferreira da Silva; seuconcorrente, o prof. Joo Cruz Costa como diria BernardShaw, um homem modesto, a quem no faltavam motivos paras-lo ). O episdio, na poca, escandalizou os observadoresestrangeiros Enzo Paci, Luigi Bagolini e Julin Maras entreoutros. A esse batismo nas guas da mediocridade assumida seguiu-se a crisma, quando a sinistra repartio teimou em ignorarpor quatro dcadas, com o rancor dos invejosos, a obra gigantescade Mrio Ferreira dos Santos o nico pensador brasileiroque at hoje mereceu um verbete de pgina inteira numaenciclopdia filosfica europia, mas que aos olhos dos mosquitosda USP continua a no ser sequer um filsofo, porque imuneao histrionismo de Mlle.Sim, porque Vicente, direitista o quanto fosse, e talvez at um poucofascista, deu no entanto um exemplo de tolerncia democrtica ao abriras pginas da Revista Brasileira de Filosofia, da qual era secretrio, apensadores de todos os matizes ideolgicos, sem patrulhar ningum; edo mesmo modo teria procedido na chefia do Departamento, onde, aocontrrio, foi patrulhado e censurado pelos apstolos da liberdadedemocrtica.94 Os motivos ideolgicos dessas preteries e omisses so flagrantes:Vicente era um direitista ranheta, Mrio um anarquista confesso piorainda, um tipo estranho e incatalogvel, misto de anarquista proudhoniano,catlico tomista e gnstico pitagrico