filosofia da floresta

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Filosofia da floresta: reflexões acerca dos fundamentos do conhecimento entre os Mbyá-Guarani no Sul do Brasil Carlos Eduardo N. de Moraes PPGAS/UFRGS O propósito desse ensaio etnográfico é discutir o tema do conhecimento entre os Mbyá-Guarani em sua estrita relação com a expressão falada. Para isso, exploro a ligação entre duas noções que considero fundamentais, arandu e ayvu porã, e o complexo cultural que as envolvem, entendendo-as como uma janela por onde se possa se aproximar do mbyá reko (modo mbyá de estar no mundo) e explorar seus aspectos relacionados ao saber. Estabeleço um diálogo entre a literatura etnológica sobre o tema, principalmente no trabalho de Leon Cadogan (1997) e informações etnográficas obtidas junto aos Mbyá-Guarani no Rio Grande do Sul ao longo de minha trajetória com o grupo. Acompanhei diversos eventos narrativos, em que estavam em questão a palavra Mbyá e seu enunciado. Penso que a compreensão sobre a mitologia do grupo faz-se de extrema importância para entender-se a conformação narrativa da memória e sua ligação com o saber do ponto de vista indígena. Seus fragmentos oferecem orientações às práticas cotidianas e rituais, fornecendo o fundo cultural específico para o pensamento Mbyá, a despeito de não esgotá-lo. 1. O fluxo da palavra entre os Mbyá-Guarani Minha experiência entre os Mbyá-Guarani permitiu observar diversos aspectos sua vida em que a palavra e a fala estão envolvidos. A importância cosmológica da palavra entre os Mbyá-Guarani é tema recorrente nos estudos etnológicos sobre o grupo desde que se iniciaram trabalhados mais aprofundados sobre aspectos de sua cultura. Leon Cadogan (1997), Pierre Clastres (1990), Helene Clastres (1978), Egon Schaden (1974), Graciela Chamorro (2008) apenas para citar alguns, são autores que se detiveram sobre o tema. A palavra liga deuses e homens por meio de atos inspirados de fala, essa relação marca a transferência do saber, atributo por excelência dos

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  • Filosofia da floresta: reflexes acerca dos fundamentos do conhecimento entre os Mby-Guarani no Sul do Brasil

    Carlos Eduardo N. de Moraes PPGAS/UFRGS

    O propsito desse ensaio etnogrfico discutir o tema do conhecimento entre os Mby-Guarani em sua estrita relao com a expresso falada. Para isso, exploro a ligao entre duas noes que considero fundamentais, arandu e ayvu por, e o complexo cultural que as envolvem, entendendo-as como uma janela por onde se possa se aproximar do mby reko (modo mby de estar no mundo) e explorar seus aspectos relacionados ao saber.

    Estabeleo um dilogo entre a literatura etnolgica sobre o tema, principalmente no trabalho de Leon Cadogan (1997) e informaes etnogrficas obtidas junto aos Mby-Guarani no Rio Grande do Sul ao longo de minha trajetria com o grupo. Acompanhei diversos eventos narrativos, em que estavam em questo a palavra Mby e seu enunciado. Penso que a compreenso sobre a mitologia do grupo faz-se de extrema importncia para entender-se a conformao narrativa da memria e sua ligao com o saber do ponto de vista indgena. Seus fragmentos oferecem orientaes s prticas cotidianas e rituais, fornecendo o fundo cultural especfico para o pensamento Mby, a despeito de no esgot-lo.

    1. O fluxo da palavra entre os Mby-Guarani Minha experincia entre os Mby-Guarani permitiu observar diversos

    aspectos sua vida em que a palavra e a fala esto envolvidos. A importncia cosmolgica da palavra entre os Mby-Guarani tema recorrente nos estudos etnolgicos sobre o grupo desde que se iniciaram trabalhados mais aprofundados sobre aspectos de sua cultura. Leon Cadogan (1997), Pierre Clastres (1990), Helene Clastres (1978), Egon Schaden (1974), Graciela Chamorro (2008) apenas para citar alguns, so autores que se detiveram sobre o tema. A palavra liga deuses e homens por meio de atos inspirados de fala, essa relao marca a transferncia do saber, atributo por excelncia dos

  • deuses, aos verdadeiros adornados (jeguakava), seus escolhidos, como se consideram os Mby (Clastres 1990, 9). O conhecimento arandu e a linguagem de inspirao divina ayvu por esto, portanto, intimamente relacionados e constituem-se num dos aspectos mais centrais de sua cosmologia.

    O uso da palavra muito importante entre os Mby-Guarani. Um bom orador portador de prestgio, designao, por conseguinte, de poder poltico.1 As principais lideranas polticas (mburuvix) so bons oradores. Por outro lado, os kara (rezadores) e as kunh-kara (rezadoras) detentores por excelncia das belas palavras, enviadas diretamente pelos deuses, tm forte influncia na forma tradicional de poltica. Em certos eventos narrativos, os narradores so acompanhados no decorrer de sua performance oratria por um ou mais xondaro, guardies da palavra. Esses personagens no mais das vezes so jovens do sexo masculino que portando bastes nas mos vo seguindo os passos do narrador nas voltas e contra-voltas que fazem e que marcam a dramaticidade da sua performance a fim de o proteger no sagrado momento de inspirao, assim como, e principalmente, proteger suas palavras.

    A ayvu por (bela linguagem) interpretada por Clastres (1990) como a condio de humanidade, e ao mesmo tempo como a essncia divina dessa humanidade, ou seja, ela permite que, por meio do modo perfeito de estar no mundo (aguyje), haja a possibilidade de transcendncia. Assim, a palavra tem esse carter de unir essencialmente homens (os Mby se consideram os escolhidos dos deuses ou adornados) e deuses. Esse desejo marca ontologicamente o modo de estar no mundo da pessoa Mby enquanto devir, enquanto um entre (Catafesto de Souza, 2008; Viveiros de Castro, 1986).

    Clastres (1990, 10-11) ressalta, ainda, a forte espiritualidade Mby-Guarani atribuindo-lhe inclusive o status de sustentculo da tradio. O Eu coletivo resiste, segundo ele, calcado no espao da f, o qual continua inabalado, e situa os Mby-Guarani como uma comunidade de crentes. Se sua marcha proftica-religiosa no mais se efetiva na busca da perfeio (aguyje), da condio eterna (devir que caracteriza a pessoa Mby), a fora desse desejo voltou-se meditao. Assim, segundo Clastres,

    1 Segundo Pierre Clastres (1978), uma liderana poltica indgena no detm poder, e sim

    prestgio, uma vez que trabalha pelo grupo (e no o contrrio).

  • houve, no limite, um movimento do ativismo migratrio para o pensamento questionante, passagem da exterioridade do gesto concreto da gesta religiosa interioridade constantemente explorada de uma sabedoria contemplativa. O desejo Guarani de transcender a condio humana ultrapassou por sua vez a histria e, conservando intacta sua fora atravs do tempo, investiu totalmente no esforo do pensamento e de sua expresso falada (Clastres, 1990, p.12-13, grifo meu).

    A alcunha de filsofos da floresta muito se deve a esse movimento expresso pelo autor francs. A reflexividade impressiona entre os Mby-Guarani. A necessidade do tempo para pensar, que um evento coletivo, caracteriza as reunies do grupo. Esse o espao da poltica, da narrao, da escuta, da reflexo e da construo de consensos. Esse tempo beira do fogo, ao longo da noite, ao som da fala sagrada; como pano de fundo, o crepitar das labaredas. Os Mby consideram-se vivendo o final dos tempos, enquanto os ltimos entre os adornados, o que no lhes retrai o desejo de ascender morada dos deuses, nem de viver sob os preceitos do Mby rek.

    2. Elementos da mito-cosmologia Mby-Guarani Lon Cadogan, padre e etnlogo, escreveu seu clebre livro Ayvu

    Rapyta (originalmente lanado em 1959) tomando por objeto a linguagem sagrada Mby-Guarani, apreendida durante anos de interao com os Mby-Guarani da regio do Guaira no Paraguai. Falante do Guarani, ele conquistou a confiana do grupo e obteve acesso a esse aspecto to importante de sua cosmologia. O autor apresenta diferentes narrativas mticas que do conta de uma complexidade de elementos que compem a cosmolgica Mby.

    A primeira parte dos relatos mticos dos Mby versa sobre a criao do mundo, criao dos seres que habitam o mundo terreno e celeste, incluindo-se a etnognese dos Jeguakava (os verdadeiros adornados): os Mby-Guarani. Cadogan considera essa a parte mais sagrada da cosmologia Mby. Cadogan inicia tratando da autogerao de Nhanderu Papa Tenond, que desde seu prprio corpo cria as trevas primevas, e em meio a elas cria as plantas dos ps e os pequenos assentos redondos (apyk).

    O autor destaca nos relatos dos Mby a presena nas mos do criador do yvyra'i (vara insgnia) e do adorno em sua cabea: o cocar de plumas (jaguak) cobertas de orvalho por onde voava o colibri, o primeiro pssaro.

  • Mesmo em meio s trevas originrias sem que o sol ainda existisse o criador no via a escurido, pois era iluminado pelo reflexo da sabedoria contida em sua prpria divindade (Cadogan, 1997, 26). De uma pequena poro dessa divindade em virtude de sua sabedoria criadora o pai verdadeiro Nhamandu2, erguendo-se (tomando forma humana), cria o fundamento da linguagem humana (ayvu rapyta). Depois de dar origem ao fundamento da linguagem, o ser criador fez existir o princpio do amor3 (mborayu) e a origem dos hinos sagrados (mbae a) compostas pelas ayvu maraey (palavras indestrutveis) (Cadogan, 1997, 33-35). Havendo criado esses fundamentos primordiais da existncia humana ele criou aqueles que seriam companheiros de sua divindade: os futuros pais de Kara, Jakaira e Tup e as futuras mes de Kara, Jakaira e Tup: os pais das almas-palavra (neey Ru) e as mes das almas-palavra (neey Xy), respectivamente, fazendo-os sabedores de sua divindade. Ainda em meio s trevas originrias, pela chama e neblina de seu poder criador, ele criou o Sol (Quaray), enquanto reflexo de sua sabedoria divina (Cadogan 1997, 35-39).

    Em seguida, se trata da criao da primeira terra, Yvy Tenonde, a qual foi criada por Nhamand a partir da extremidade de sua vara insgnia. Ao centro da terra foi criada uma palmeira eterna (pindovy), outra foi posta na morada de tup (oeste), outra na morada de kara (leste), outra na origem dos ventos bons (norte) e outra na origem dos ventos originrios (sul). s cinco palmeiras est amarrado o disco terrestre em que est a morada terrena (tataypy ryp). Essa terra habitada por homens-deuses e pelos animais sagrados.

    Os primeiros a habitarem a morada terrena, ao atingir o aguyje (maturao espiritual) e conseqentemente o kandire (estado de perfeio), transcenderam aos amb (moradas dos deuses). Os seres que no atingiram tal fortaleza espiritual, sofreram metamorfose e passaram a habitar amb enquanto animais, plantas e outros seres (Cadogan, 1997, 61). Uma caracterstica da vida em Yvy Tenond, que marca a natureza originria dos

    2 O nome do criador varia de verso para verso do mito, ou nas diferentes facetas do mesmo

    mito. Assim, ora ouvimos Nhamandu, Papa tenonde, Nhanderu, Papa Miri. Jos Cirilo para designar o criador vale-se do termo Papa Miri. 3 Esse termo foi utilizado por Clastres a fim de propor novas tradues quelas elaboradas por

    Cadogan, em que o forte apelo cristo, deturpava seu sentido mico. Ao termo Mborayu, ao invs de amor pelo prximo, Clastres sugere princpio de reciprocidade (Clasters, 1990).

  • animais, que eles tambm portavam a faculdade da fala. Os animais habitantes da nova terra no passam de imagens desses seres originrios.

    Nhanderu Tenond deixa a cargo dos deuses pais das almas-palavra (nhee) a responsabilidade pelos elementos por ele criado: a Kara tataendy ja (senhor das chamas) fica a atribuio sobre o fogo, sobre a primavera representando a renovao; a garantia de cada nova aurora. A Jakara coube a responsabilidade sobre a fonte de neblina que engendra as palavras inspiradas; assim como, conduzir a bruma originria ao coronrio de seus filhos. A Tup deixou a responsabilidade pelas guas, pelo grande oceano (Para Guau) representando o frescor que traz harmonia ao corao dos habitantes da morada terrena.

    Yvy Tenond foi destruda pelo dilvio (Yvy Ruu) causado pelo casamento incestuoso de Kara Jeupe com sua tia materna. Esse ato negou-lhes a condio de perfeio, deixando-os vulnerveis a fria das guas enviadas por Nhanderu. A responsabilidade sobre a criao da segunda terra, Yvy Pyau (terra nova), o mundo atual em que habitamos, ao que tudo indica, ficou a cargo de Jakaira que quando questionado por Nhamandu aceita esse desafio, apesar da ressalva de ter pressgios de infortnio para seus filhos4. Ele, no entanto, promete espalhar a neblina vivificante e as chamas sagradas sobre todos os seres verdadeiros que trilham os caminhos da imperfeio (estatuto por excelncia de Yvy Pyau). Para que seus filhos se defendam dos infortnios, ele cria o tabaco (pety) e o cachimbo (petyngua) (Cadogan, 1997, 105).

    De acordo com os informantes de Cadogan, Papa Miri, para av da nova terra, criou o tatu e deixou enquanto dona da nova terra a minhoca. Numa de minhas conversas com Jos Cirilo ele fez referncia ao fato de o rei dos animais para os Mby-Guarani ser o tatu, pois quando Papa Tenonde criava Yvy Pyau, o tatu ia cavando e ajudando a expandir a terra.

    Porque Yvy Mbite foi criado no Paraguai, a primeira terra. Porque o Papa Tenonde no tem pai nem me. Ento ele surgiu sozinho, Papa Tenonde, no tem parente, tipo assim. Ele... primeiro homem, sozinho. Porque na poca, quando no tinha terra, era tudo gua. Tudo gua.

    4 Todavia, as verses ouvidas por Cadogan do conta de que tenha sido Nhanderu Papa Miri o

    criador dessa segunda terra. Em minha etnografia, Jos Cirilo, ao referir-se a criao vale-se do termo Papa Tenonde para designar seu deus criador

  • Ento ele saiu, Papa Tenonde, colocando yvy. Qual animal que primeiro foi criado por Papa Tenonde? E qual rvore que criou Papa Tenonde? O rei dos animais... para os primeiros animais saiu o tatu. Porque que saiu o tatu primeiro? Porque ele vai buscando minhoca, vai com o biquinho, vai aumentando a terra... Ele estava ajudando Papa Tenonde, o tatu, para crescer a terra.5

    Voltando a obra de Cadogan, seguindo nas narrativas dos Mby do Guair, o criador tambm povoou a terra de seres humanos fazendo com que soasse nela primeiramente o canto sagrado do homem. O acompanhamento do canto sagrado do homem, na morada terrena, foi o canto sagrado da mulher (Cadogan, 1997, 107).

    De acordo com Cirilo os Mby foram engendrados a partir do popygua, o mesmo utilizado por Nhanderu, segundo Cadogan, para a criao de Yvy Tenonde. O popygua um dos instrumentos xamnicos, insgnia da etnognese Mby. Entretanto, observa-se que Yvy Pyau est marcada pelo convvio com o juru, o que refora sua natureza probatria na busca dos verdadeiros adornados (jeguakva) por sua condio divina. A presena juru mais um indicativo de que Yvy Pyau existe sob o signo da imperfeio (tek axy, vida imperfeita).

    Segundo Cadogan (1997, 115), a criao de Yvy Pyau (terra nova) e o retorno de seu criador Papa Miri para a Morada dos deuses encerra a primeira parte das narrativas mitolgicas Mby, sua parte mais sagrada. As peripcias de Pai Rete Kuaray, el seor del cuerpo resplandeciente como el sol (idem, p. 116) marca o segundo ciclo de narrativas mticas, as quais incluem a etnognese dos atuais Mby. Na cosmogonia Mby, a origem de Kuaray est relacionada ao mito de nascimento do sol em que esto presentes caractersticas de sua divindade (quando ele mesmo criou seu irmo caula Jaxy, a Lua) e de sua resplandecente indestrutibilidade (quando as onas originrias que devoraram sua me, por mais que se esforassem, no causam nenhum dano ao seu corpo dourado). Alm do mais, no seu caminhar pela terra ele nomeava as coisas do mundo: animais, plantas, acidentes geogrficos, fenmenos naturais etc. O ato de nominar criava o mundo.

    5 Nesse relato interessante perceber a analogia entre Yvy Mbite, o centro da terra no atual

    Paraguai com a criao da primeira terra, destruda pelo dilvio.

  • Uma vez pronto o mundo, foram criados seus habitantes, os atuais Mby, de modo que algumas interpretaes do conta de ser Pa Ret Kuaray o seu pai verdadeiro. A etimologia do nome Kuaray, de acordo com anlise de Cadogan (1997, 43) aponta para o seguinte sentido: kuaa = saber; ra = criar; 'y = coluna, mastro, manifestao, ou seja, "manifestao da sabedoria e poder criador". A luz primeira, que tirou o mundo das trevas originrias no momento de sua criao, kuaarara, estando, assim, a resplandecncia solar relacionada sabedoria dos deuses e ao poder de criao. Sabedoria tambm pode ser designada pela noo mbaekuaa. Desse modo, o mesmo radical kuaa (saber) est presente no termo que representa o primeiro sopro criativo de Nhanderu, e fornece-nos os primeiros elementos para fundamentar a natureza celeste da sabedoria entre os Mby. Segundo Garlet,

    Na sua mitologia se compreende o que divino para os Mby. Uma das caractersticas mais gerais a de que o ser divino aquele que possui uma habilidade intrnseca de conhecer, de possuir sabedoria. Justamente por possu-la que ele capaz de criar. No mito transcrito por CADOGAN, denominado El fundamento del lenguage humano, por exemplo, amandu atravs de sua sabedoria (que algo que lhe constitui) cria a linguagem humana. esta linguagem (que num certo sentido a lngua Mby) que permitir a concepo da alma, e a partir desta, a criao do ser humano. possvel compreender ento que, na medida em que se pronunciam as palavras, elas se transformam em coisas. A palavra cria. (Garlet, 1997, 105-6 grifos meus)

    3. A (SOBRE)NATUREZA DO SABER MBY Desdobrando a dimenso do saber, em sua relao com a mito-cosmologia Mby, trago aqui relatos oferecidos por Cadogan, no cruzamento com informaes etnogrficas, em que algumas dimenses da esfera do saber se destacam. Por tratar-se de uma etnia tradicionalmente grafa, evidencia-se que a fala mantm uma relao estrita com a circulao do saber, a qual marcada esteticamente por tempos-espaos prprios, envolvendo smbolos prprios e personagens especiais. Tomados esses excertos mito-cosmolgicos como base ao entendimento da natureza celeste da dimenso do saber entre os Mby, proponho a sua aproximao aos elementos culturalmente significativos essa esfera: concepo da pessoa, alma-palavra, Ayvu Rapyta e arandu por, la buena ciencia nos termos Cadogan (1997, 80).

  • 3.1. Da alma-palavra ao esprito das palavras A concepo da pessoa exige, mesmo que sumariamente, um momento

    a parte nesta reflexo sobre aspectos propriamente ligados ao saber Mby, at porque tal faculdade se inicia com o nascimento. A idia de nascimento se relaciona ao nascimento do mundo quando entre as primeiras criaes de Nhanderu est o apyka (pequeno banco de madeira zoomorfo). Segundo Clastres, no se diz uma criana, nasce, mas algum se prov de assento. Pois nesse assento que o esprito fortalecido retorna, sem a prova da morte, morada dos deuses, segundo Jos Cirilo. Ele marca ontologicamente o devir da pessoa, sua humanizao pela aquisio de alma-palavra e sua ascenso morada dos deuses, enquanto ijaguyje (aquele que atingiu a maturao espiritual).

    Retomo excertos mticos citados anteriormente como base ao entendimento dos desdobramentos cosmo-sociolgicos da obra de Nhamandu, que a partir de sua sabedoria criadora, cria a linguagem humana enquanto atributo por excelncia de humanidade, condio de existncia da alma e conseqentemente da pessoa. Cadogan entende uma ligao intrnseca entre alma e palavra traduzindo o termo Mby Nhee como alma-palavra. Ou seja, a fala constitui-se como condio de humanidade e a palavra o meio de ligao com as divindades. Essa ligao dos homens com os deuses marca a vida na primeira terra. No entanto, com o fim de Yvy Tenond, esse estatuto de divindade experienciado pelos homens submerso pelas guas do dilvio. A existncia na segunda terra, com isso, pautada pela busca de uma condio anterior: o retorno da condio de deidade aos homens.

    Segundo as palavras de Cadogan, baseadas nos relatos de seus informantes, ayvu corresponde a linguagem humana (Cadogan, 1997, 43). Pissolato reitera a correspondncia proposta por Cadogan entre as noes Mby ayvu (linguagem), nhee (alma-palavra de origem divina) e e (dizer) sendo ayvu a obra primeira de divindade e fundamento da existncia humana. A existncia humana, por sua vez, traduzida como capacidade de dizer-se pela palavra-alma que ganha vida na Terra ou correspondendo ao manter erguido o fluido do [prprio] dizer (Pissolato, 2008, 260-261). De acordo com as palavras da autora o que se torna erguido (-) na Terra, o faz como dizer e

  • s se mantm nessa condio na medida em que os humanos sejam capazes de preservar o fluxo das palavras nomes, cantos, potencialidades dizveis (...) (Pissolato 2008, 261).

    Num certo sentido Nhee por (belas palavras) e ayvu por (bela linguagem) se confundem como expresso da faculdade humanizadora que ao mesmo tempo unem humanos e deidades. Essa caracterstica intrnseca de unir homens e deuses estabelece um estatuto demirgico s belas palavras Mby que, segundo Clastres, demarcam a origem e o destino da humanidade. Nhee se manifesta na pessoa ainda criana por volta de um ano quando passam a postarem-se eretas e proferir as primeiras palavras, dando incio ao processo de sustentar erguido o fludo do dizer, atributo humano imagem do divino.

    O ritual do Nhemongara, tambm conhecido como a festa do milho (avati), o momento em que esse processo se consolida com a nominao da criana. O ritual se realiza, de acordo com nosso calendrio, no incio do ano (meses de janeiro e fevereiro), poca de maturao do milho que a base dos alimentos consumidos no perodo ritual, como o mbojape (bolo de milho), mbite (espcie de pamonha), kaguejy (bebida fermentada). O ritual acontece no interior da opy ao som da jerojy e conduzido pelo kara yvyraija (segundo Ladeira, 2007, 134) que com o auxlio ritual do petyngua (o cachimbo) recebe dos deuses a informao sobre a procedncia da alma-palavra da criana. A nhee enviada pelos pais da alma palavra (nhee Ru e nhee Xy) e de acordo com sua origem se estabelece o nome de seu filho.

    Certa ocasio, Jos Cirilo relatou que todos os seres tm esprito porque tem a palavra, e a palavra tem esprito e por isso a palavra viva. Cada palavra, portanto, portadora de um esprito e por estar ligado a esse esprito por meio da palavra que o nomeia , que os corpos, tanto das pessoas como dos objetos, tem certas propriedades agentivas. Assim, a etimologia das palavras remete a sua raiz, seu esprito, sua essncia ou propriedade a qual transmitida aos seres e objetos que nomeia. As plantas, os animais, os minerais e fenmenos naturais so portadores de esprito porque h uma palavra mby-guarani que os denomina, e que os remete a uma experincia criadora.

  • Nessa perspectiva, os humanos, assim como os no-humanos, carregam ontologicamente as propriedades das palavras que os denominam. A palavra como portadora de esprito ao nomear uma pessoa liga-a a preceitos csmicos que estabelecem diferenas sociais, enquanto herana de caracteres dos diferentes pais e mes das palavras. O rito de nominao, marca a existncia espiritual da pessoa que at receber o nome, vive sujeita a uma srie de agncias nefastas. Nhee trata-se, pois, da primeira potncia produtora de conscincia.

    3.2. Ayvu Rapyta: uma etnografia Designado por Cadogan como a origem ou fundamento da linguagem

    humana, ainda no ttulo de seu livro, o termo ayvu rapyta foi tema de conversa entre o cacique Jos Cirilo e eu. Ele referiu-se a uma essncia comum s palavras. Disse-me que se Tava, kara, tup, so razes, ayvu rapyta o tronco. Ele contou que se trata de uma linguagem espiritual, utilizada pelos kara e que apenas algumas pessoas conhecem. "No porque velhinho que sabe a ayvu rapyta disse. Foi difcil para ele me explicar em portugus o que representa essa forma de falar, essa linguagem espiritualizada que veicula um conhecimento obtido do contato com os deuses, que se d pelo uso ritual do cachimbo e se manifesta na inspirao narrativa. Noutra oportunidade em campo, Jos Cirilo retomou a metfora do tronco. Indaguei-o sobre a unio dos extratos celeste e terrestre. Ele concordou e citou a opy (casa de reza) como o lugar onde se concretiza essa ligao. A planta dos ps, a parte superior da cabea (coronrio), representam no corpo a mesma idia. Ele ento listou os elementos necessrios para um cenrio propcio ao uso da palavra e sua escuta atenta, o que representa a transmisso do conhecimento verdadeiro, arandu. Segundo ele, a ayvu rapyta est associada ao tataypy rup, o fogo e a fumaa (tatachina). Ele deu a entender que o petyngua, principal instrumento xamnico, sintetiza os dois elementos. Alm disso, as rodas de chimarro (caay) foram apontadas por Cirilo como momentos privilegiados ao uso da palavra e transmisso do conhecimento. Quando se tem alguma dvida se pergunta ao kara na opy ou na roda de chimarro, que via de regra circunda a fogueira. Por fim, a prpria opy completa o rol dos elementos que proporcionam a inspirao para as belas

  • palavras. Sua porta pequena exige que para adentr-la a pessoa curve-se, o que indica sinal de respeito aos deuses. Cirilo, ainda, ressaltou o carter coletivo da conformao narrativa do saber, quando se referiu a arandu e enfatizou o ficar junto ao redor do fogo.

    Cadogan apresenta um relato do roubo do fogo pelos Mby. A aquisio do fogo e a possibilidade de cozinhar a carne instituem uma separao entre homens e animais: enquanto os animais comem a carne crua, os humanos comem-na assada. Logo, a humanidade enquanto condio est estritamente vinculada origem do fogo que marca ontologicamente a existncia dos Mby no mundo.

    No que diz respeito ao uso ritual do tabaco e do cachimbo, percebemos nos fragmentos mticos veiculados por Cadogan e transcritos acima que foi Jakara seu criador, enquanto insgnias de proteo aos seus filhos verdadeiros, habitantes de Yvy Pyau, terra marcada pelo tek axy (imperfeio). Clastres aponta a importncia ontolgica da bruma e do calor dizendo que

    Nhamandu fez existir as imagens do novo tempo (primavera), chama como calor e luz, a bruma como signo da chama. Haver nesse mundo uma dupla cpia dessa bruma: de uma parte a neblina que os primeiros longos sis fazem surgir sobre as florestas no fim do inverno; de outra parte, a fumaa do tabaco que fumam em seus cachimbos os sacerdotes e pensadores indgenas. A fumaa de tabaco repete a bruma original e traa, elevando-se do cachimbo, o caminho que conduz o esprito para a morada dos deuses. (Clastres, 1990, 27)

    Sua luta neste mundo para atingir o aguyje, maturao espiritual, passa pela manuteno dos propsitos divinos os quais esto constantemente re-atualizados pelas palavras dos kara, fruto de sua inspirao narrativa. De acordo com Pissolato (2008)

    O tabaco o meio de aquisio de conhecimento divino e instrumento de proteo fornecido pelos deuses de uso estendido a praticamente a todos os Mby [...] a fumaa do tabaco o veculo por excelncia do conhecimento-poder que o xam pode passar para os demais, seja na transmisso de capacidades de cura ou na propiciao do fortalecimento (mbaraet) [...] os xams mais especializados o so na funo-tabaco

    Assim, alm de corroborar a importncia do tabaco enquanto meio de aquisio de saber pela inspirao, a autora ressalta sua ligao a atividade xamnica em sua diversidade, pois alm da aquisio e circulao de saber, a

  • funo-tabaco engendra o poder de diagnstico e cura de doenas do esprito, sendo elemento central na prtica de rezas no interior da opy.

    3.3 Arandu e a transmisso oral do saber Outra noo importante no contexto desta elaborao a de Arandu,

    citada pelo cacique Jos Cirilo e tambm ressaltada pelo kara Adolfo em minha etnografia na regio missioneira. Recupero uma passagem etnogrfica em que indaguei o Jos Cirilo sobre o termo memria e se havia uma categoria correspondente no idioma mby-guarani. Ele me respondeu que memria, conhecimento (j estabelecendo estreita relao entre ambos) arandu, guardar arandu, yaka... [guardar na cabea]. Pensou um pouco em silncio e continuou

    Arandu como a vertente dgua, no acaba nunca, vai sempre jorrando. O conhecimento verdadeiro memria viva e nunca se termina. como a criana na beira do foguinho aprendendo com os mais velhos, o conhecimento est no foguinho, mas tambm est em outros espaos. um conhecimento dirio, ouvindo os mais velhos. Quando olho a vertente, o arandu profundo, difcil de ver l no fundo. Arandu vem, ele brota, aparece e jorra como a nascente. Essa memria, esse saber verdadeiro, as belas palavras sagradas no acontecem a todo o momento. de manh, de noite, na opy, com cachimbo. Tambm no sonho. A inspirao dura quinze minutos e depois passa.

    Esse relato muito importante, pois ressalta a dimenso prtica dos caminhos por onde circula o saber e sua transmisso entre os Mby. O estar junto beira do fogo apontado como o espao por excelncia de troca de conhecimento, o qual apreendido pelo convvio, na troca cotidiana. A escuta atenta s palavras dos mais velhos como meio de passar o conhecimento s crianas e os jovens tendo a fala como seu veculo tambm so formas reconhecidas pelos Mby de transmisso do saber verdadeiro.

    No relato de Cirilo ele ressalta outra importante noo: a inspirao. O saber enviado pelos deuses exige concentrao por parte da pessoa, para entender a mensagem o que se manifesta em algumas oportunidades em virtude da inspirao que converte a imagem em palavra. Cirilo destaca o perodo matutino como de importncia na troca de saberes. Relacionado a isso est o outro ponto narrado por ele: o sonho. Pois a alvorada demarca o tempo de contar aos familiares sobre os sonhos da noite. O ver no sonho um

  • momento especial de inspirao. Pois se o kara (ou outra pessoa, essa faculdade no restrita aos xams) tem um pressentimento ruim, isso influencia na re-organizao das prticas dirias, implicando at mesmo no deslocamento do ncleo familiar para longe da aldeia ou acampamento.

    Na mesma situao etnogrfica do trecho transcrito acima, emergiu outra narrativa de Cirilo. Ela oferece referenciais ao entendimento de outra esfera do saber, a qual se constitui na experincia dos narradores enquanto processo, demonstrando o quanto os prprios Mby esto em busca dos sentidos de muitas das categorias. Segundo ele,

    Paraguassu... As palavras bem escritas pelos deuses. Par escrito, n. (...) Ento, o que significa? Paraguassu, os deuses, foram deixando essa palavra escrita, n, essa parte, para ter caminho. Os Guarani vo caminhando e vo conhecendo pouco a pouco essa palavra e o que significa. Ento isso fundamental que eu, que ns mesmos muitas vezes no sabemos as palavras, o que ela diz. por isso que a palavra viva! Eu tambm quero saber!

    O conhecimento, portanto, no algo aprendido como um todo, revelado pelos deuses ou pelos kara de uma s vez. Trata-se de um processo pedaggico de envolvimento e escuta atenta e que se desenvolve ao longo de uma vida. Pissolato (2008, 318) apresenta em sua etnografia a noo do aprender na vida escutada mais de uma vez por ela no campo e que justamente remete a dimenso da experincia pessoal, em que Por sua prpria atividade subjetiva, cada Mby adquire foras existenciais, [...] cada um tem sua sabedoria.

    Por fim, recorrendo-se a etimologia da noo arandu percebe-se a natureza narrativa do saber para os Mby: o timo ARA = tempo + NDU = escutar, ouvir (o sentido da audio). Arandu seria o tempo/universo da escuta. Cadogan (1997, 80) traz a voz endu, andu, como ouvir, perceber alegando que arandu traduz nosso conceito de cincia, a qual pode ser m (vai) ou boa (por). Arandu por, a boa cincia, uma noo associada pelo autor a de arakuaa (entendimento).

  • 4. PROPOSTA INTERPRETATIVA Diante do exposto acima neste captulo, entre os fragmentos mticos e informaes etnogrficas, busco estabelecer um modelo interpretativo dimenso do saber entre os Mby-Guarani. Para tanto, vou me valer da inestimvel contribuio do trabalho de Elizabeth Pissolato (2008). Em suas reflexes sobre a produo da pessoa e do socius Mby, a autora prope algo que vem ao encontro do modo como eu penso a funo scio-cosmolgica do conhecimento para os Mby, qual seja: partindo de dois eixos perpendiculares, aos quais ela denomina eixos cosmolgicos vertical e horizontal, sendo que os saberes e poderes que as divindades enviam do alto (yvate) (vertical), estendem-se na Terra, aos humanos que por ela andam (horizontal) (Pissolato, 2008, 318-319). Pissolato est centrando sua anlise no xamanismo e parentesco, o que extrapola o que pretendo aqui, no entanto a homologia desse sistema ser de muita valia para pensar a inspirao que leva ao conhecimento e sua circulao e transmisso entre a coletividade Mby.

    O esquema acima apresenta um esboo para compreenso da relao arandu e ayvu rapyta pensadas por mim como dois eixos cosmolgicos, para usar o termo de Pissolato (2008). O eixo vertical representa ayvu rapyta, o tronco (nas palavras de Cirilo) cuja seiva so as palavras inspiradas, por onde as belas palavras sagradas deslocam-se desde o amb, o extrato celeste da morada dos deuses, at o plano terreno. Trata-se de um caminho metafrico para identificar ayvu rapyta como aquilo que sustenta a linguagem humana, ou seja, que mantm viva a possibilidade de contato com a sabedoria divina.

  • Relacionados a esse eixo vertical est o petyngua e sua fumaa (tatachina), metonmia da bruma originria que traa, segundo Clastres, o caminho do esprito em sua trajetria rumo ao amba. Desse modo, ambos so considerados sagrados caminhos na obteno de conhecimento e inspirao divina. O demiurgo criador do tabaco e do cachimbo, Jakaira, est vinculado a esse eixo cosmolgico, sendo de sua responsabilidade os desdobramentos da bruma originria na relao com o coronrio, parte do corpo humano por onde penetra a palavra demirgica. Em sendo o limite superior da cabea o lcus por excelncia de recebimento do saber e da inspirao celeste, passa-se a entender a importncia do manter-se erguido enquanto metfora da condio humana, expresso na locuo manter erguido o fluido do dizer. Ou seja, manter-se erguido, manter sua capacidade de fala e com ela acessar a sabedoria para a boa conduta na Terra: como proceder na busca pelo caminho sagrado (Tape Miri), o caminho que leva a morada dos deuses.

    A morada de jakaira est situada no znite (ara mbit), junto a Nhamandu. Esse fato vem a corroborar a idia de centralidade do eixo cosmolgico vertical, como fundamento do conhecimento Mby. Esse conhecimento inspirado pelos deuses, denominado segundo Cadogan, kuaarara; ou expresso na noo de sabedoria trazida por Pissolato, mbaekuaa. Em ambas as noes est o radical kuaa, o saber originrio por meio do qual Papa Tenonde desdobrou-se a si mesmo atravs de seu prprio desdobramento, segundo Clastres (1990), o que denota o carter celeste do conhecimento.

    A noo de verticalidade foi definida por Cirilo pela metfora do tronco, sustentculo da linguagem humana (ayvu rapyta), a qual chega a Terra pelo uso ritual do cachimbo, adentra o ser humano pelo coronrio e socializado pela fala. Aqui chegamos ao vrtice que engendra o eixo horizontal, o qual se desdobra, por assim dizer, em Yvy Pyau, o mundo em que habitamos. O enraizamneto ontolgico dos Mby neste mundo marcado pelo tataypy rup, o assento dos fogos, que caracteriza a teko (aldeia) enquanto condio de manuteno do tek miri (verdadeiro modo de estar no mundo). Em relato transcrito acima, Augustinho fala sobre a centralidade do fogo como condio de existncia dos Mby. O fogo como lugar que origina o saber. Assim, enquanto condio de existncia dos Mby est tambm o circular do saber

  • com a funo de orientar prticas; de transmitir e atualizar sua memria coletiva e os preceitos do bem viver.

    Outro elemento de suma importncia, cuja centralidade abrange as diversas esferas da vida dos Mby sua casa de reza (opy). Pois entendo que ela o legtimo vrtice que une os dois eixos cosmolgicos. Ela congrega todos os elementos at aqui discutidos: o kara e sua tribo, o fogo, a fumaa, o cachimbo, o canto, a dana, o chimarro. Sua estrutura baseada num mastro central de sustentao (representando a verticalidade), ali dentro a planta dos ps (uma das primeiras criaes de Nhamandu) toca o cho (representando sua dimenso terrena). o local por excelncia da atividade xamnica em suas diferentes facetas: religiosa, teraputica, conselheira e de troca de saberes. Tal sua importncia que muito pouco foi falado sobre ela pelos meus interlocutores. H de se respeitar a dimenso do mistrio...

    Yvy Pyau existe sob o signo da imperfeio (tek axy), do convvio com o juru, da busca pelo retorno da condio de deidade (o viver junto aos deuses enquanto seus escolhidos), em suma, est marcada pelos desafios impostos pela histria. Se voc tem alguma dvida, pergunte aos deuses que eles vo te iluminar preconiza o kara Adolfo. Como proceder no mundo em busca do Tape Miri? Esse tipo de questionamento coloca o pensamento em ao, coloca as palavras-no-mundo, na roda em volta do fogo, acompanhadas pelo caay (chimarro) e pelo petyngua, na escuta atenta que caracteriza a troca de conhecimento: arandu. Ou seja, o eixo horizontal representa arandu, a memria viva segundo Cirilo, o conhecimento narrativo transmitido a beira do fogo, na opy, na roda de chimarro, pela fala, principalmente, dos kara. a palavra do conhecimento circulando horizontalmente entre os Mby. Essa fala, no entanto, no exclusivamente uma faculdade dos kara, pois perpassa a atividade cotidiana, o convvio familiar, ensinamentos de pai para filhos, muitas vezes enquanto prtica e observao.

    A dimenso da experincia pessoal enquanto ao no mundo a dimenso da ruptura, em que os sentidos so colocados a prova. O que quero dizer com isso, que o modelo interpretativo discutido aqui tenta dar conta de aspectos que envolvem o saber entre os Mby: sua ligao com os deuses, sua transmisso, a centralidade na palavra. Entretanto, em confronto com a histria e os desafios que ela impe cada um vive sua sabedoria e re-figura

  • em suas prticas cotidianas de uma maneira prpria as palavras do conhecimento. Assim, o fundo cosmolgico no pode ser entendido enquanto essncia, mas enquanto um elemento na dialtica da durao.

    O enunciado no evento narrativo coloca as palavras-no-mundo, onde os sentidos esto em jogo. A compreenso de mundo do sujeito est ligada sua trajetria, e ao narrar acomoda-as de forma a dar sentido a sua existncia como parte de uma coletividade, engendrando contradies e rupturas. Qual seu significado profundo? Ou como articulado na prtica cotidiana enquanto ferramenta de permanncia na vida (citando a preocupao que perpassa o trabalho de Pissolato [2008])? O saber composto de camadas, apreendido em processo e re-figurado de diferentes maneiras. A experincia pessoal se engendra ao mito e as peripcias dos demiurgos, tomadas como exemplos a serem seguidos no imaginrio de quem narra. A questo que no eixo horizontal, eixo da historicidade dos sujeitos no mundo, os sentidos esto sempre em negociao: trata-se do teatro da estrutura no palco da conjuntura, segundo a mxima de Marshall Sahlins (1987).

    FINALIZANDO... O tema aqui retratado deveras amplo e poderia ser mais bem

    explorado, no entanto o universo de um artigo no o permite faz-lo. Mesmo assim, penso que as reflexes aqui dimensionadas podem contribuir no entendimento do universo do conhecimento Mby-Guarani ressaltada sua dimenso mito-cosmolgica com nfase na palavra. Muito poderia se discutir a respeito de uma influncia crist em seu pensamento (Fausto, 2005), explorar a experincia missionria jesutica nesse sentido, mas isso fica para outra oportunidade.

    Discutir os aspectos relevantes ao conhecimento Mby-Guarani desvela importantes quesitos a ser dimensionados na elaborao de polticas pblicas voltadas sade e educao diferenciadas (entre outros temas dignos de polticas especficas) levando-se em conta as particularidades histricas e culturais de cada grupo. Lembro, a ttulo de concluso, da reflexo de um velho kara Mby no Rio Grande do Sul quando, ao discorrer acerca do tema da educao, proferiu as seguintes palavras: o fogo nossa escola e a opy, nossa universidade...

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