figueiredo, adriana dos atos parodísticos

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    Resumo

    O artigo pretende alcançar uma reflexão sobre o conceito deatitudes parodísticas, lançado por Judith Butler (2003). Pensando-as como espaços pertinentes para execução de ações, não só dereiteração, mas de teor político entre os indivíduos quecompartilham uma identificação queer , através de umaperformance descontextualizada dos gêneros normativos. Aquiserá trazido o trabalho de campo realizado com sete travestis, dos23 aos 40 anos, da Região Nordeste do Brasil, em específico dacidade do Recife-PE, para aprofundar os mecanismos pelos quaissão executadas as performances paródicas na experiência datravestilidade. Com este intuito, será procurado estabelecer umdiálogo entre teoria e a prática de campo, centrando-seincisivamente numa análise do discurso e na idéia da recuperaçãodas vozes, via recapitulação de trajetórias de vida, que ficaramdurante tanto tempo subsumidas nas análises da história social,nos levando a perceber como historicamente a sexualidade sempreesteve atrelada aos mecanismos de poder.

    Palavras-Chaves: paródia, travestilidade, gênero.

    Abstract

    The article has as main aim to achieve a reflexion about the concept

    of parodistic acts, launched by Judith Butler (2003). Thinking themas suitable spaces for the execution of actions, not just of reiteration,but of politic al content among individuals who share a queeridentification, through a performance out of context in relation tonormative genders. Here, it will be brought forward the fieldworkrealized with seven transvestites, between 23 and 40 years old, fromthe brazilian's Region Northeast, specifically from the city of Recife-PE, to analyse the mechanisms that make the execution of theparodistic performances at the transvestite experience possible.With this objective, it will be stablished a dialogue between theoryand practice, focused in the analysis of the discourse and in itsmultivocality, through the ransom of life's trajectories, which were,during so many times, ignored in the analyses of social history,making us realize how historically the sexuality has always beenlinked to the mechanisms of power.

    Keywords: parody, transvestite, gender.

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    DOS ATOS PARODÍSTICOS:A execução da performance paródica na

    experiência da travestilidade

     Adrianna FigueiredoCientista Social e Mestre em Antropologia

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    Introdução

    O original é vulgar por causa do seu passado. Foi só umaexperiência; uma tentativa. A ilusão de uma coisa não é essa

    coisa. Mas a cópia é perfeita, tal como a vejo. [...] Odoresfalsos. Mas melhores que os verdadeiros. Os originais são1vulgares: uma tentativa.

    A experiência da travestilidade no sentido trazido por Butler (2003)enquanto Identidade parodística revela o ato paródico como um profícuo campo deinvestigação para se pensar as relações contemporâneas, visto que através destaexperiência podemos observar o rompimento de estruturas normativas. O que apriori pode parecer uma atitude acrítica de mera reiteração, nos revela umaoperação muito mais profunda ocorrida justamente através da incorporação de

    uma dita identidade oposta, pautada, sobretudo na idéia essencialista, jáamplamente criticada pelo construtivismo, de uma verdade anatômica. Assim, astravestis ao revelarem através de atos paródicos uma performance destoante desua anatomia culturalmente 'generificada', executam, o que para Butler (2003),

    2 3reside na maior riqueza das experiências queer   para o ataque ao discursoheteronormativo, já que para ela a ação política de contestação viria justamente viaesses procedimentos paródicos.

    A hipérbole do feminino executada de maneira central nos esquemas de

    performatividades das travestis foi, e são, simbolizadas pelo movimento feministacomo atitudes que ajudam a reiterar antigos papéis de teor degradante à imagemdo 'sujeito mulher'. Isto, pois, símbolos que são parodiados na travestilidade muitocomumente encontram-se dentro de uma matriz de percepção normativa, pautadono discurso patriarcal dos imaginários que regem o conceito de 'mulher ideal',centrado nos papéis tradicionais de mãe/esposa. Daquela que sabe não só cuidar-se - através de inúmeras e específicas práticas corporais tomadas como própriasde um ethos feminino - mas como também cuidar do seu lar, do seu marido e filhos.

    No entanto, o que nos cabe aqui é pensar como esta reiteração desimbolismos mais tradicionais do feminino funciona dentro dos esquemas deadequação de uma identificação pautada na travestilidade. Pois o fato é que, paraas travestis, elas acabam por preencher justamente o 'vazio' deixado pelasconquistas da mulher atual – é muito comum escutar quando da presença detravestis, críticas às mulheres atuais, que são simbolizadas por elas como sem'feminilidade', sem cuidado, sem os atributos necessários para 'segurar umhomem' – sendo esta a maneira pela qual acreditam se encaixar dentro dosesquemas desejantes do homem heterossexual, que é aquele perseguido como

    ideal afetivo-sexual para as experiências amorosas na travestilidade, comotrataremos mais adiante.

    Para Butler (2003) ainda, esta crítica feminista parece um tanto simplista,visto a opulência discursiva e política que as atitudes parodísticas podem vir arepresentar por um olhar mais atento. Para ela, pois, tomar estas operaçõesapenas como imitações acríticas, seria cair num erro conceitual, analítico e deestratégia política, dada à relação extremamente complexa que a ideia de imitaçãoe pretensa originalidade podem envolver, pois:

    [...] ela nos dá uma indicação sobre a maneira como a relaçãoentre identificação primária - isto é, os significados originaisatribuídos aos gêneros - e as experiências posteriores dogênero pode ser reformulada. [...] Por mais que crie umaimagem unificada da 'mulher' (ao que seus críticos se opõemfrequentemente), o travesti também revela a distinção dosaspectos da experiência do gênero que são falsamentenaturalizados como uma unidade através da ficção reguladorada coerência heterossexual (p. 196).

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    Justamente aqui reside a subversão na paródia, dentro de suapossibilidade de repetidamente através da performance de imitação de um gênero,descontextualizada, demonstrar o aspecto imitativo da própria doxia que envolvea naturalização dos gêneros.

    Neste sentido, o interessante de nos centrarmos a partir de agora emcomo estes atos paródicos se revelaram em campo é justamente a possibilidade deperceber como essas operações combinatórias colocam em funcionamento demaneira bastante prosaica a incrível possibilidade de contestação política presentena aparência de esvaziada reflexividade política da paródia. Seja através dasoperações de (re) significações, via paródia, do modelo dimórfico de sexoanatômico, seja na demonstração pragmática das linhas divergentes e fluidez deidentidade de gênero e mais ainda das performances descontextualizadas quepodem ser executadas via conceito heteronormativo de gênero.

    Assim, a possibilidade de debate político executada pelos atosparodísticos, reside mesmo na ação de revelar através da agência da imitaçãorepetida dos gestos estilizados de gênero, que a coerência da heteronorma já é emsi a cópia de uma originalidade fabricada. Podendo assim ser experimentada viadesnaturalização dos conceitos estáticos de sexo e gênero “[...] por meio de uma performance que confessa sua distinção e dramatiza o mecanismo cultural de suaunidade fabricada”.(Butler, 2003, p.197)

    É necessário destacar, contudo, que a noção de paródia defendida porButler não está promulgando a existência de algo original pelas quais essasperformances parodísticas executam a imitação, o que seria então ir de encontro atoda a argumentação desnaturalizante executada pela autora e pela teoria queer .O que a autora pretende deixar claro sobre esta égide, é que, na própriapossibilidade de existência paródica é revelada a não existência de originalidadeou essência de certas atitudes destinadas distintivamente ao modelo normativo degênero, no qual “a paródia que se faz é da própria idéia de um original” (Butler,2003, p.197).

    Cabe-nos ainda dizer que a paródia não pode ser confundida compastiche, pois apesar das duas ações envolverem a ideia da imitação estilística dealgo, suas motivações e significados de execução são distintos, sendocaracterístico da paródia à ideia de se estar imitando algo que mesmo na mímicaainda se considera como natural ou normal que seria sublinhado via esses atosparodísticos. Já o pastiche mesmo sendo

    [...] como a paródia, a imitação de um estilo único ou peculiar, évestir uma máscara estilística, falar uma língua morta: mas éuma prática neutra de mímica, sem a motivação ulterior daparódia, sem o impulso satírico, sem o riso, sem aquelesentimento ainda latente de que existe algo normal , secomparado ao qual aquilo que é imitado é sumamente cômico.O pastiche é a paródia esvaziada, a paródia que perdeu seuhumor (Jameson apud   Butler, 2003, p.197-198).

    Sobre a ideia do riso na paródia, também nos fala Baktin (2002), como

    algo que seria característico das movimentações da cultura popular, e sendo aquias travestis um grupo que preponderantemente advém das camadas maispopulares da estratificação social, acompanham este tipo de operação que sepauta numa concepção sobre o mundo que se opõe à seriedade.

    Bakhtin observa, assim, o riso como atitude que possibilita mudança etransformação, características dos esquemas de inversão próprios da culturapopular. Residindo como atributo fundamental deste riso não uma degradação,mas uma ultrapassagem daquilo que, contornado por uma atmosfera cômica, pode

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    deslocar e reinventar para fora de um contexto dito original. (Ferreira, Jerusa,p.2002). É, pois através da paródia, ou para Baktin do riso, que aqui percebemos apossibilidade de se performatizar algo que é tomado como ontológico e essencialem corpos e atitudes que mesclando ordem e desordem demonstram onderesidem as capacidades de movimentações dos sujeitos. Acabando mesmo porexpor a paródia como espaço de contestação.

    Assim, ao utilizar uma aparelhagem discursiva, formal e normativa, quepassa a coabitar com a repetição parodística de significação, permeando o ato emsi de uma atmosfera misógina, revelam sim o riso, mas um riso que esboça o poderdos fracos que nos fala De Certeau(1994); o riso da vitória de quem se encontramna abjeção, e que cria o 'novo' a partir de velhos conceitos.

    Neste sentido, “É pelo exagero corporal, e pela transgressão do habitual,pela exacerbação simbólica das funções vitais que se esboça uma forma de atingiro outro pólo, deixando-se de lado a idéia de rebaixamento ou degradação”(Ferreira, Jerusa, 2002, p.401).

    Seguindo estes passos, a proliferação parodística dentro dos modelosem que funciona a travestilidade, pôde ser observada neste trabalho através daanálise de três atos próprios e específicos desta experiência, que nos revelam aparódia como elemento central de simultânea contestação e identificação.

    Seria assim: (1) a paródia corporal , na qual será buscada a análise dasmaneiras pelas quais são copilados os cuidados e marcas corporais tomados como'naturais' da experiência de ser 'mulher'. Este ato será debatido tanto viaexperiência empírica advinda da apreciação e significação das práticas e técnicascorporais cotidianas das travestis quanto pela análise do discurso dos anúncios daseção de acompanhantes recolhidas durante todo o ano de 2007 e início de 2008

    4dos dois principais jornais de Pernambuco .

    Já a segunda e a terceira performances paródicas revelam que nãoapenas o corpo é tomado como único cenário de atuação parodística, tambémpodendo ser revelada na maneira muito particular tanto em que são vivenciados oselementos centrais da prostituição- em que o sexo pago pode não ser a únicafinalidade desta atividade- quanto também no que tange às relações afetivo-sexuais da travestilidade – pela qual podem ser questionadas as idéias daatmosfera episódica (Giddens, 1993), como comumente são tratadas as relaçõeshomo-orientadas.

    Chamaremos assim de (2)  prostituição parodística,  as performancesgeridas pelas travestis dentro da prostituição, na qual é possível perceber apolissemia de sentidos que pode esta atividade envolver, observando o trottoir  nãoapenas em seu aspecto utilitário e mercadológico, mas como espaço legitimado natravestilidade como próprio para vivências afetivo-emocionais positivadas que vãomuito além do aspecto funcional e nefasto que comumente são tratadas asmotivações para a prostituição; (3) e por fim, será trazida a idéia da execução deuma paródia amorosa, a qual segue assim, os passos de atuação extra-corpórea,mas que devemos lembrar, contudo, que segue a formar a ideia de corporalidade,

    ou seja, como elementos que cercam este corpo e o preenchem de sentidos emotivações. Neste ato perceberemos a maneira em que as travestis parafraseiamafetiva e emocionalmente os sentimentos e elementos que modelam a ideia doamor romântico, compartilhando com o imaginário social maior de que esta seria amaneira apropriada de uma 'mulher' amar, e, portanto um elemento perseguido edignificado discursiva e afetivamente em suas trajetórias de vida.

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    Contextualização metodológica

    Antes de efetivamente cruzar as questões empíricas desta pesquisa comas questões teóricas já aqui introduzidas, cabe esclarecer alguns dos caminhos

    metodológicos adotados. A metodologia privilegiada para esta pesquisa foi oroteiro de entrevista semi-estruturado, através do qual realizei, no ano de 2007,sete entrevistas, sendo três destas com travestis acionadas através de inúmerasredes e sem qualquer envolvimento político, em que uma delas era também

    5'bombadeira' . As outras quatro entrevistas foram realizadas com travestis queparticipam do grupo Oxumaré formado pela ONG Gestos, para contemplar astravestis soropositivas, o qual se reúne semanalmente para discutir ações políticaspara a categoria, principalmente no que tange à temática da Aids. As questões que

    procuravam privilegiar o percurso individual das histórias de vida de cada umadessas travestis, buscando traçar através destas histórias subjetivas intersecçõesque revelassem um perfil não só socioeconômico como afetivo para a experiênciada travestilidade.

    O curto tempo de pesquisa realizado dentro do período do mestradolevou-me a concentrar forças nas entrevistas, já que a centralidade do estudo eratrabalhar sobre a perspectiva da metodologia queer, preponderantementepreocupada “[...] em dar mais espaço às vozes e às experiências que foram

    suprimidas” (Gamson, 2007, p.345). Então, a motivação investigativa foi focalizaros discursos revelados via trajetórias de vida. Foi, assim, utilizada a noção de“trajetórias” tal como aponta Suelly Kofes (2001), como uma série de posiçõessucessivamente ocupadas por um mesmo agente ou mesmo grupo - em devircontínuo que é submetido a transformações incessantes. Esta noção, segundo aautora, permite-nos locar e deslocar o sujeito, situando acontecimentos biográficosem alocações e deslocamentos no espaço social, onde, um agente específico teriaque ser vinculado ao conjunto de outros agentes no campo considerado, focando-se na trajetória (privilégio ao itinerário e ao percurso) para a constituição de uma

    etnografia dessas experiências.Neste sentido, o método escolhido para trabalhar estas narrativas foi

    análise do discurso através da reflexão de categorias que apareceram de maneiracentral e mais valorizadas nestas narrativas. O objetivo maior foi dar vazão às falassobre como elas refletem sobre seu cotidiano mais prosaico, para além do quepode ser observado por aqueles que não estão inseridos nesta experiênciaespecífica. A idéia da valorização da experiência, de clara influência dametodologia queer , foi também um caminho metodológico a ser seguido,

    procurando cruzar minhas impressões de campo com a maneira subjetiva em queelas dotavam de valor e significado suas experiências, já que entre os teóricosqueer  existe um direcionamento em centralizar-se na perspectiva das narrativas,sob o intuito de proporcionar maior visibilidade a sujeitos delegados socialmente àinvisibilidade, “[...] no qual narrativas pessoais e verdades experimentais foramutilizadas no sentido de recuperar uma subjetividade gay ou lésbica que havia sidohistoricamente negada” (Gamson, 2007, p.349)

    As entrevistas foram realizadas nas residências dessas travestis, em

    distintos subúrbios da Região Metropolitana do Recife com exceção de uma queocorreu em minha própria casa, e outra que ocorreu na ONG Gestos, a escolha porestes espaços se deu no sentido de amenizar a tensão implícita, como já debatidapor Roberto Cardoso de Oliveira (2000), da metodologia de entrevista, já que emsuas casas foi possível estabelecer um ambiente apropriado para a proposta derecuperar suas histórias de vida, sem que nada, além da já citada tensão, asconstrangessem. O uso do método de entrevista se justificou, por sua natureza, empossibilitar a “compreensão dos mundos da vida dos entrevistados e de grupos 

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    sociais especificados [que é] a condição sine qua non da entrevista qualitativa”(Gaskell, 2002, p.65). Ainda para este autor, além dos amplos objetivos descritivosda entrevista, ela desempenha um papel vital na combinação com outros métodos.Sendo assim, estas foram as metodologias utilizadas que possibilitaram acomposição etnográfica dessas experiências, sem limitar suas falas, mas guiando-as através deste diálogo.

    Houve ainda certo padrão no que concerne à faixa etária dasentrevistadas que variou dos 23 aos 40 anos, o que encaixamos no grupo deadultos. Apesar de ter tido uma interlocutora que possuía 18 anos, o que foiinteressante à pesquisa como possibilidade de observar contrapontos etários.

    A escolha do grupo etário não foi aleatória, e firmou-se na aposta de que

    quanto maior o passar dos anos, mais experiências de vida são acumuladas,preenchendo as narrativas de amplas vivências, o que possibilitou neste sentidoum vasto e dilatado “material” de análise que fez de “poucas” experiências, nosentido quantitativo, um profundo campo de investigação, que seguiu os ideais dapesquisa qualitativa caracteristicamente antropológica. Foi realizada ainda umaentrevista com um cirurgião plástico do Hospital das Clínicas da UniversidadeFederal de Pernambuco, que por questões éticas, dado o conteúdo altamentecombatido na pesquisa e fortemente presente em suas falas, foi preferível não

    revelar o nome.Alguns nomes foram modificados, atendendo e respeitando os pedidos daspróprias interlocutoras, como também percebendo a importância de proteger suasidentidades devido à centralidade em histórias que revelam aspectos muito íntimosde suas vidas.

    A Paródia Corporal

    O corpo na contemporaneidade, incisivamente, tem adotado um sentido6muito mais amplo do que seu significado formal, gramatical, normativo e estreito .

    As considerações relacionadas exclusivamente a nossa constituição anatômicaparecem não mais preencher o imaginário simbólico das sociedades atuais, quecontornam seus corpos de um complexo de sentidos, práticas, cuidados,permeados por sentimentos que se movimentam para adequação identitáriaatravés dele.

    Estes sentimentos atuam, assim, traduzindo e codificando as relações

    sociais fora dos modelos essencialistas, e traçando linhas convergentes edivergentes de expressões de subjetivação. No quanto também nem mesmo estaideia de fisiologia humana dividida entre masculino e feminino seja sobre osmesmo signos (vagina e pênis) compartilhados por toda a diversidade dos gruposhumanos.

    Neste sentido a ideia que envolve o conceito de corporificação, palavraesta inexistente em nosso prosaico vocábulo, parece substancializar melhor aforma como experimentamos e performatizamos nossas experiências corporais.

    E será através desta perspectiva que veremos a experiência datravestilidade, na qual o corpo se torna elemento primordial de investimentos deadequação, recurso imprescindível para as movimentações cotidianas permeadaspor (re) significações, observando de maneira mais incisiva como o sujeito circulaentre manutenção e subversão dos esquemas de poder.

    O corpo se torna então conformado de maneira simbólica por um processomuito mais abrangente que mera fisiologia óssea e conjunto racionalizado de

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    Ser travesti, como podemos observar, quando tratamos nos termos dasautodefinições empreendidas por elas - fugindo das instâncias disciplinadoras epatologizantes - é irremediavelmente cuidar-se, aprendendo e dominando práticasespecíficas, bem como ter a coragem necessária diante dos riscos que envolvemesta modificação corporal. Pois parecem preferir enfrentar corajosamente osriscos, dores e desafios que envolvem suas práticas a manter as marcas domasculino em seus corpos, nos remetendo também a ideia de um ethos moldadona coragem.

    Mas não é um cuidado pessoal normativo presente nas ideias mais10amplas de empreender-se numa vida saudável . O fato é que nem sempre

    tratamos dos nossos corpos de maneira extensiva (Vargas, 1998), ou do que pelo

    discurso médico se pretende extensivo e durador, pois o vigor e aexperimentação de vida, de como ansiamos intensamente a maneira de adequardesejos, podem se impor ao aspecto do discurso do saudável e a possívelextensão de duração de vida:

    A dor experimentada nas sessões de aplicação de siliconelíquido, as náuseas provocadas pela ingestão de hormôniosem grande quantidade, assim como as diárias intervençõescorporais, fazem parte do 'cuidar-se', valor moral caro àstravestis. Só assim elas se tornarão 'belíssimas.'. (Pelúcio,

    2006, p.193).No filme Tirésia, se torna bastante perceptível o valor e aspecto

    imprescindível do cuidado para a promoção da pessoa travesti. A execução e amanutenção das remodelações corporais demonstram como este corpo se tornafruto de preponderante agência, percebido através da pragmática de utilização deum aparato tecnológico disponível e reinventado para a promoção dos si mesmos

    11 possíveis.

    Tirésia nos traz a história de uma travesti brasileira, a qual se prostituíra

    em Paris, e que uma vez seqüestrada, é mantida em cárcere afastada de seusmecanismos de construção corporal. Durante o período em que é mantida emcativeiro, podemos observar suas mudanças corporais, onde contrariamente dadaà falta dos usos de suas práticas, o masculino passa a se fazer presente nestecorpo que necessita de constante manutenção, dos símbolos, de corporeidadefeminina, criados a viva derme, e sua obra passa a ser traída pela impossibilidadede manusear este corpo polimorfo.

    Fruto da ausência das práticas travestidas é possível apreciarmos com o12passar do tempo em cárcere, amarrada pelas mãos à cama, que seu chuchu

    passa a nascer, a não ingestão dos hormônios femininos fazem o já aspecto dehibridez de seu corpo se tornar ainda mais acentuado. As formas anguladas equadradas de sua anatomia masculina passam a acentuar sua dependência doscuidados de si específicos deste grupo.

    Quando nua, ao banhar-se, se dirige ao seu algoz e delata a realidade' desua corporalidade: “Você não vê o que está acontecendo? Você sabe o que sou.Sabe que não é natural. É química.”  A personagem denuncia neste exato momentocomo a autoconstrução é uma ação imprescindível na experiência datravestilidade, e para efetuar sua atuação se faz necessário uma série de

    13formulações, de teor combinatório , e que acabam por revelar um saber muitoespecífico permeado por práticas corporais, ora reiterativas – pois faz uso demarcadores corporais e dos cuidados historicamente destinados à identidadefeminina - ora subversivas – tendo em vista que essas práticas e marcadorescorporais essencializados como femininos são recontextualizados em corposmasculinos.

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    Ser mulher para nossa conformação cultural não é apenas ter seiossalientes, vagina, e formas arredondadas, mas também trazer para este corpo asassinaturas culturais que o concluem, para além do biológico, como feminino.Miríades destas práticas foram impostas culturalmente para fazer da mulher “aindamais mulher”, e são, assim, insistentemente perseguidas pelas travestis. Sãovividos de maneira intensa, e nunca esquecidos, pois o descuido não rima comtravestilidade. Elas valorizam o cuidado como parte intrínseca de suaspersonalidades.

     Fazer as unhas; se manter com poucos pêlos; tratar e cultivar longasmadeixas; 'limpar” as sobrancelhas para trazer para si os “suaves” traços faciaisque deve a mulher possuir para se distinguir dos “fortes” traços masculinos;acentuar, “montar” e criar “beleza” via arsenal estético e tecnológico comomaquiagem, tinturas de cabelos, cremes das mais infinitas finalidades, fazem partedo arsenal sacado para os perseguidos cuidados . Indo ainda mais além para aconstrução destes corpos, capturam taticamente em alopatias postas(anticoncepcional) os hormônios femininos, e se valem do silicone industrial, paramoldar à viva derme as marcas corporais tomadas como femininas. Preenchendoangulosamente seios, quadris, nádegas e faces, via este líquido.

    14Muitas publicações se preocuparam em revelar com detalhes todasessas práticas, o que também foi feito em minha dissertação, na qual procurei

    defender a ideia de um saber alternativo à medicina oficial através da (re) invençãopopular dessas técnicas. Contudo as poucas laudas dadas aqui não me permitemtrazer este campo de maneira mais detalhada. E buscando contribuir com um outroolhar que revela, para além destas práticas, como estes corpos são colocados emdiscurso, procuro perceber, através da análise da seção de acompanhantes do jornal, como, em poucas linhas, as travestis apresentam as marcas corporais eperformáticas mais dignificadas em suas experiências.

    Feminina, super feminina, quase mulher!15“ KARINA: travesti feminina quase mulher b.grego c/ local” 

    Um caminho encontrado para deixar ainda mais clara esta performancede busca intensiva pelos modelos de feminilidade, além dos elementos já tratadossobre as práticas e técnicas corporais específicas, foi analisar a maneira como elas

    16“vendem” e publicizam este corpo , de modo a torná-lo desejante, através dos17símbolos de que se valem para se mostrarem belíssimas   diante da

    impossibilidade de mostrar visualmente, nesses curtos espaços dedicados àsletras, as características que consideram desejantes.

    O intuito desta modalidade de análise se mostrou bastante frutífero dianteda motivação em perceber como, num breve espaço promocional, as travestissalientam as características pessoais e corporais que consideram maisimportantes para trazer, através de suas atitudes parodísticas de corporeidade, ossignos mais dignificados, quando da necessidade de uma descrição mais fulgidadentro do amplo leque de suas experiências. E, neste sentido, também buscando

    intensivamente seguir os rastros da metodologia queer , na centralização dosesquemas de autodefinição dos sujeitos em discurso.

    O fato a acentuar-se repousa na pergunta que me fiz sobre o que astravestis focalizam quando possuem um curto espaço para falarem sobre simesmas. O que percebi durante mais de um ano acompanhando diariamente estesanúncios é que a resposta, mais uma vez, cai na valorização de seus corpos e desua “hiper-feminilidade”, como elementos a causar desejo. E a paródia dasatenuantes sociais que representam a feminilidade é sentida de maneira evidente.

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    Sabemos que o aspecto erótico nos classificados destinados aacompanhantes está implícito, mas também são promulgadas características dapersonalidade e da própria vida de quem se anuncia, com igual intuito defetichização. Portanto, ser: carinhosa, discreta, solteira, casada ou viúva,universitária, simpática, sensual , elegante, dondoca classe média, cheirosa, alto

    18nível, meiga, doce e delicada ou ainda uma garota de família , fazem parte doarsenal sacado pelas mulheres, mas não pelas travestis, que se apresentam nosanúncios. Essas mulheres buscam parodiar outros elementos, para além dapossível erotização dos seus signos corpóreos, pois de fato as naturalizações dossignificantes sociais de gênero se fazem aqui mais uma vez presentes.

    As travestis, ao contrário, buscam valorizar de maneira incisiva afeminilidade de seus corpos, através do dimensionamento das marcas corporaissimbolizadas como elemento de desejo de corpos femininos, afirmando, nestesentido, a premissa da não existência de corpos pré-discursivos (Butler; 2001),pois é um corpo, além das práticas, formulado através do discurso parodísticodesse simbolismo de gênero.

    Portanto, se para as mulheres sua “natural” condição já não precisa sersalientada, a paródia discursiva desses elementos na experiência da travestilidadese torna fator primordial; como não se basta ser apenas travesti, ou possuir práticassexuais específicas, se faz necessária a paródia das representações mais

    dimensionais de feminilidade.

      Através das autodefinições sugeridas nos anúncios, percebemos umamiscelânea de motivações, na qual se fundem dois elementos: (1) o que astravestis acreditam e imaginam ser , aqui abalizadas pelos aspectos de sua

    19identificação pessoal e de seu próprio gosto . Assim, são traduzidasdiscursivamente nas categorias femininas: 100% feminina; delícia de mulher; super-feminina; quase mulher ; escultural  e ainda de incomparável beleza. 

    Frequentemente apenas usar o termo travesti feminina, ou outraadjacência que remeta ao extremo de feminilização, encerra o texto,demonstrando como a sua conquistada e desejante feminilidade parece ser acaracterística mais dignificada e imediatamente sacada quando pouco se poderevelar sobre si. E é onde, via paródia da acentuação do feminino em seus corpos,revelam a característica de contingência dos significantes de teor estático dosgêneros, a partir do ponto em que ditos sujeitos-corpos masculinos podem parodiaros sujeitos-corpos femininos.

    No que tange ao outro pólo observado, (2) o que elas acreditam atrair osoutros em sua experiência, as características físicas também fazem vez, mas nãosó o seu aspecto de encontro com o feminino, embora também a preocupação emdeixar clara suas medidas e seu intenso cuidado, bem como sua distinção atravésde titulações próprias do universo da travestilidade, buscando talvez afirmar eatestar sua beleza e sucesso de modificação, capital simbólico bastante valorizadodevido às conseqüências de deformação corporal que podem sofrer diante dacerta “precariedade” de suas práticas (como o uso do silicone industrial) demodificações corporais.

    Ter, então, sucesso através do uso dessas práticas, promove aconstrução de um “estilo de carne feminina” que deve ser salientado e acentuadocomo conquista dignificante e elemento de distinção, sendo, portanto, importantessignos para elaborar esta rápida apresentação. Dando uma atmosferaextraordinária à sua corporeidade, enfatizam características como: seremindelevelmente  perfeitas; seios 66, bumbum 110 ; gata luxo; alto nível ; semdecepção; corpo de modelo; miss; ex-miss; top de linha; travesti nº 1; de A à Z;artigo de luxo; pantera; incomparável beleza, rosto e corpo exuberante; belíssima.

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    Vemos, assim, nessa operação entre o que elas creem ser e o queacreditam ocasionar desejo neste outro, o sacar de categorias que revelam apreocupação em se mostrarem, para além do corriqueiro, mais que bonitas,estando muito além das “mulheres comuns”, que disputam com elas este espaçode divulgação.

    Percebe-se, pois, que os significantes que alicerçam esta feminilidadeextraordinária revelam que os corpos marcados por gênero são assim, “[...]'estilosde carne'. Esses estilos nunca são completamente originais, pois os estilos têmuma história, e suas histórias condicionam e limitam suas possibilidades”(BUTLER, 2003: 198).

    Ainda assim, mesmo diante desses investimentos discursivos, parece

    que é dada, ao cliente da travesti, uma possibilidade distinta de “conferir” suascaracterísticas afirmadas nesses anúncios. A grande maioria das travestisdisponibiliza seus home pages aos clientes, ao contrário das mulheres. Isso seexplica pelo fato de que talvez uma mulher não necessite tanto comprovar suascaracterísticas femininas, pois já carrega nas suas trajetórias a bagagem dodiscurso ontológico. Diferente disso, as travestis estão demonstrando, viaperformance paródica, a sua capacidade de revelar o aspecto não-ontológico daexperiência de gênero.

    As práticas sexuais também entram como vetores distintivos dos20anúncios das travestis, que serão liberalíssimas; praticarão beijo grego ; usarãoacessórios de fetiche; e terão enfim a característica específica de girar entre as

    21práticas sexuais ativ. ou pass .

    Através da experiência de anunciar-se nestes fulgidos e mercadológicosespaços dirigidos para um grande público, elas buscam, às finas linhas,especificarem o que são, através da mescla do que consideram como capitalsimbólico essencial, ou seja, o fato de serem “hiperbolicamente” femininas, como

    também atestarem o sucesso e a garantia da não decepção deste procedimentometamórfico, além de suas distintas práticas sexuais.

    Esses anúncios fazem saltar aos olhos que os atos paródicos não sãorealizados através de uma ontologia, mas sim de ideais socialmentecompartilhados, que revelam os estilos de carne  e de subjetividade a seremperformatizados como capital simbólico desta experiência.

    Prostituição parodística: Fazendo o vício! 

    A discussão a cerca das motivações da já histórica atividade deprostituição é delicada e fruto de inúmeras divergências. Discussão esta, quetornará a pequena problematização, aqui proposta, deveras importante paraentendermos as operações empreendidas nesta profissão, nos levando a pensarpara além de seu conteúdo mercadológico, ao menos quando falamos daexperiência da travestilidade.

    Para o movimento feminista, a pornografia e a prostituição são elementosde dominação do poder fálico e patriarcal, se configurando, para esta ideologia, comoatividades das mais degradantes para a identidade feminina, bem como elementoprimordial de submissão, cuja extinção seria a única medida cabível e sequer suadescriminalização se tornaria prerrogativa aceitável. (Friedman, 2002)

    Contudo, assistimos atualmente a um movimento bastante sólido emdireção à descriminalização dessa atividade, requerendo seu status de profissão

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    legalmente reconhecida. O que nos faz pensar, pertinentemente, se as pessoasque a executam realmente a percebem nos contornos nefastos que são propostospor algumas opiniões. Sobre isso nos fala Simmel, que mesmo engendrado naslinhas morais da sua época, já elabora chaves para se pensar a prostituição sobreoutros moldes:

    A indignação moral que a “boa sociedade” manifesta emrelação à prostituição é, sob muitos aspectos, matéria deceticismo. Como se a prostituição não fosse a conseqüênciainevitável de um estado de coisas que essa “boa sociedade”impõe ao conjunto da população! [...] Claro que a primeira vezem que o infortúnio, a solidão sem recursos, a ausência deeducação moral, ou ainda o mau exemplo do ambiente incitamuma moça a se oferecer por dinheiro e por outro lado, aindescritível miséria em que, de ordinário, sua carreira seencerra, claro, entre esses dois extremos, existe na maiorparte do tempo um período de prazer e despreocupação(Simmel, 2001, p.1).

    Ao utilizar esta citação, procuro trazer sua interpretação para o nossotempo. Quando se fala, que a “boa sociedade” empurra determinadas pessoaspara a prostituição, não seria apenas, como quer Simmel, pelo aspecto de abjeçãoe de miséria que possa possuir determinada parcela da população que se prostitui,

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    por mais que não esteja aqui afirmando que isso também não ocorra . Mas, diantedesta explicação unilateral, como explicaríamos, por exemplo, sobre estes termos,a prostituição de meninas de classe média alta, universitárias, advindas dos statusmais altos da hierarquia social, que praticam a atividade em nome do consumo oupor outras motivações como o gosto e prazer. Contudo me faltam dados paramelhor dissertar sobre estas motivações específicas.

    O que estou aqui procurando problematizar é que nossa sociedadeatualmente não incentiva a prostituição apenas sobre os termos econômicos que

    nos fala ainda o autor, ou mesmo sociais, baseado no modelo normativo decasamento onde podem ser vislumbradas as categorias de “mulher pra casar” e23reproduzir, e “mulher pra trepar” e liberar fantasias eróticas . Mas a atual incitação

    do sexo, da pornografia, dos corpos sexualmente atrativos, como característicaspessoais valorizadas, leva a observar nas habilidades sexuais uma competência

    24de teor profissional e que pode também se aliar ao prazer.

    Sem fugir, contudo, de nossa reflexão, e continuando com Simmel,mesmo ao salientar a característica de miséria e não “escolha” da profissão, que

    ocorre, sobretudo, devido à atmosfera criminalizante e impura que esta possui noimaginário social maior, o autor nos fala que entre estes termos estigmatizantes,outras operações podem ser encontradas, reconhecendo a existência do prazer eda despreocupação que igualmente pode a atividade abarcar.

    Nos estudos sobre prostituição é freqüente o assinalar que a maiormotivação para a prática seria sua recompensa financeira, como revelada empesquisa realizada por Rogério Araújo (2006), com um grupo de profissionais dosexo na cidade de Goiânia. Esta motivação econômica também aparece nas

    narrativas das travestis, e muitas não observam prazer na atividade e consideram-25se empurradas para este campo devido à abjeção social da qual são vítimas . Masfoi possível perceber nas falas, que também podemos pensar conjuntamente aisso, que devido ao caráter estigmatizado da experiência da travestilidade, sejaestratégico transformar o ambiente e a atividade da prostituição num momentoagradável. E o fator distintivo de suas experiências na prostituição em relação àsmulheres seria o conforto afetivo-emocional que o espaço pode possibilitar a estes

    26corpos abjetos .

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    Isso foi possível perceber, durante a pesquisa de campo, pois algumastravestis, que possuem uma renda mensal garantida pelo Estado - como beneficioproporcionado em caso de contaminação do vírus HIV, e infelizmente muitas delaso são - ou são reformadas tanto do exército, quanto da marinha, continuam aexecutar a prática da prostituição.

    A garantia da aceitação de suas transformações corporais traduzidaspelo desejo do cliente em pagar para manter relações sexuais com elas ou, porvezes, nada pagar, o que é vivenciado pelas travestis sobre a categoria de “fazer ovício”, fez-me perceber as operações da prostituição na travestilidade, observandoeste ato também como um espaço para vivenciar, mesmo que momentaneamente,sentimentos de aceitabilidade e positividade.

    27 28“Fazer o vício” ou namorar   na pista aponta para o deslocamento doaspecto utilitário para o afetivo. Isso alerta para o aspecto distintivo na experiênciada travestilidade, já que, mesmo através da reivindicação das profissionais do sexode que sua atividade se torne juridicamente reconhecida, ainda há um discursomaior de que as motivações para tal exercício sejam suas recompensaseconômicas e não o possível prazer de se executar essa atividade laboral, na qualas prostitutas mulheres “[...] subrayan su carácter de opción económica (y nomoral)” (Juliano, 2005, p.81).

    Nas histórias de vida das travestis comumente se simboliza a experiênciada prostituição de maneira híbrida, pois parecem taticamente combinar o que há debom e ruim para elas nesta atividade, formando um semblante menoscriminalizante, vitimizador e violento para a prática, buscando os momentos deprazer que ela pode ocasionar.

    Como “a posição da prostituição depende dos sentimentos sociais que eladesperta” (Simmel, 2001, p.15), estes momentos prazerosos surgemespecificamente na ocasião em que os homens se tornam “bons clientes”, e eles

    serão assim simbolizados a partir do momento, não em que, necessariamente,pagam bem pelo programa, mas preponderantemente se este possui a distinção dedurante o programa fazerem-nas vivenciar experiências para além das utilitárias,que sugerem gestos de carinho, beijos, afagos, conquistas e romance, servindopara amenizar a atmosfera de perigo e erotismo envolvida em tal exercício:

    Olhe, porque na prostituição tem os dois lados. Pra curtir,namorar e tem o lado de ganhar dinheiro. Todo dia é diabranco... O que não mata, engorda. Tem dia que você pega um

    cliente bom, sai, ganha dinheiro, ganha carícias, ganha beijos,pra arrebentar. Mas tem uns, minha filha, que vai direto aoassunto, olha pra você como você fosse um objeto. Me sintohorrível, né? Sua auto-estima fica logo baixa. A prostituição étriste, você tem que ter muito peito. Pra você tá exposto numaavenida, numa rua, no mundo em que se vive hoje de violência.É assim mesmo, tem o lado bom e o lado ruim. Vou falar pravocê, eu não vou mentir não. Eu gosto da prostituição. Eu gostode me prostituir, para os clientes bons (Carol, 36 anos, travesti).

    Este possível abandono do caráter utilitário pode ainda revelar umavalorização de si, em oposição às transações impessoais mediadas pelo dinheiro(Simmel, 2001), através da possibilidade de ser desejada e cortejada, mesmo queno fugaz momento de um programa, (re) significando a prostituição com um sentidomais profundo.

    Ao parodiar não apenas uma profissão que historicamente foi destinadaàs mulheres, como também (re) significando-a através de operações muitopróprias, mesclando abjeção e prazer, significando o ato de trabalhar via

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    habilidades sexuais não puramente em seu conteúdo utilitário e trazendo ovivenciar de prazeres e sentimentos, não de degradação, mas de exaltação, parapreencher a prostituição de outros sentidos, as travestis promovem os esquemasde (re) elaboração na citação característica do ato parodístico, como refletido porButler (2003).

    Torna-se, neste sentido, necessário observar o fenômeno da prostituição,através da multiplicidade de motivações e opiniões dentro da mesma experiência,como um elemento que se conecta com outros pontos da vida dos sujeitos e nãosendo em si um fenômeno isolável da trajetória de vida de quem o executa,

    29revelando o aspecto multifacetário que o ato de se prostituir pode representar.

    A paródia amorosa:

    Só se ama uma vez o resto é putaria

    A paródia via amor romântico expõe, de maneira bastante reveladora, assimbologias pelas quais as travestis comumente significam suas histórias derelacionamentos afetivo-sexuais. O curioso foi que, em nenhum momento anteriorao campo, tive a intenção de focalizar tal temática. Contudo, se revelou de maneiratão vivaz e dignificada nos discursos, que não pude aqui vendar meus olhos para

    esta operação.Na experiência da travestilidade é sempre procurado ressaltar a vivência

    do amor através de sua atmosfera romantizada e novelesca; um amor único, dequem é penetrado e nunca penetra, que revela os relacionamentos de teor ideal natravestilidade. O que elas significam como um homem todo  ou um homem deverdade, permeado pelo ciúme e característica provedora de seus “homensideais”, significados como os únicos capazes de amar à maneira das operaçõesamorosas exaltadas na travestilidade. Nessas interações afetivas, elas, mais uma

    vez, performatizam parodicamente as maneiras significadas pelo imagináriosocial, como próprias do arsenal simbólico feminino. Sendo o amor romântico um30estilo de sentimento e afetividade historicamente destinado à identidade feminina .

    Talvez esta característica desmedida de amar, revelada pelas históriasamorosas na experiência da travestilidade, pautadas preponderantemente nosideais do amor romântico, desnude como são vivenciadas outras formas deinteração interpessoais (as familiares, por exemplo), parecendo ser a possibilidadeúnica de experimentarem esse aspecto desmesurado, característico desta

    modalidade de amor.Isto, pois, se romantismo pode se tornar uma prática de repulsão da

    sociedade daqueles que não se encontram engendrados nos aspectos dacomunidade familiar (Costa, 2004) e sendo o amor romântico um valor e um signo

    31altamente estimado pelas travestis devido às experiências de rejeições familiares- referida de maneira bastante dolorosa nas suas trajetórias de vida -, observamosna impossibilidade de viverem tal amor uma das motivações, juntamente com acapitulação dos referenciais afetivos da mulher, que as levam a vivenciar suas

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    experiências afetivo-sexuais através destes significantes românticos .Portanto, quando nos falam, em tom confessional, de suas histórias de

    amor, procuram fugir da atmosfera de perversão, pornografia e erotismo que sãoempurradas cotidianamente por instituições, família e sociedade envolvente, jáque são insistentemente alocadas nas zonas de abjeção. E, à maneira do Marquês

    33de Sade (2007), em seu romance Os crimes de Amor  , pretendem revelar àsociedade que “os perversos também amam”, promovendo um contra-discursosobre sua própria identificação.

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    A performance em viver seus relacionamentos afetivo-sexuais através daparódia do amor romântico, tanto as aproxima da mulher que ama, quanto dossignificantes de humanidade, pois o ato de amar encontra-se dentro do arsenalsimbólico social como “fraqueza”, característica, própria de humanização:

    O homem está sujeito a duas fraquezas inerentes a suaexistência, que a caracterizam. Por toda parte cumpre que elereze, e por toda parte cumpre que ele ame, eis a base de todosos romances: fê-lo para pintar os seres a quem implorava, fê-lopara celebrar aqueles que amava.[...] E como em todas aspartes do globo onde habitou, houve romances, isto é, obrasque ora pintaram os objetos fabulosos de seu culto, ora os maisreais de seu amor. (Sade, 2007, p.26)

    O homem está sujeito a duas fraquezas inerentes a sua existência, que acaracterizam. Por toda parte cumpre que ele reze, e por toda parte cumpre que eleame, eis a base de todos os romances: fê-lo para pintar os seres a quem implorava,fê-lo para celebrar aqueles que amava.[...] E como em todas as partes do globoonde habitou, houve romances, isto é, obras que ora pintaram os objetos fabulososde seu culto, ora os mais reais de seu amor. (Sade, 2007, p.26)

    O homem está sujeito a duas fraquezas inerentes a sua existência, que acaracterizam. Por toda parte cumpre que ele reze, e por toda parte cumpre que ele

    ame, eis a base de todos os romances: fê-lo para pintar os seres a quem implorava,fê-lo para celebrar aqueles que amava.[...] E como em todas as partes do globoonde habitou, houve romances, isto é, obras que ora pintaram os objetos fabulososde seu culto, ora os mais reais de seu amor. (Sade, 2007, p.26)

    Através da paródia das considerações de feminilidade, como também dehumanidade, as travestis buscam subverter a atmosfera de encontros episódicosdos relacionamentos homossexuais (Giddens, 1993) e tratam de carregar, nastintas de apenas um relacionamento, tonalidades ímpares, que serão simbolizadas

    através do verbo “amar”.A atmosfera de “pessoa especial” e de unicidade do ato de amar, que são

    características próprias do amor romântico (Giddens, 1993), surgem de maneirasublinhada em suas narrativas amorosas, observando no ideal do amorcaracterísticas de fixação, intensidade única, verdade irremediável e infinitude:

    Amores? Só tive um... Itamar. Eu amo ele ainda, minha filha.Mas os outros eu conheci, né? Mas nenhum me tocou não. Ohomem que me compra é um homem que me fala a verdade.Amar é um sentimento que não tem nem explicação. Terrespeito um pro outro, eu acho. Aí a gente só ama uma vez.Ninguém ama duas vezes, não. Eu só amei Itamar, num ameimais nenhum homem. Não amo nenhum. Posso transar comtodos, mas o homem que eu amo é Itamar. É amor. O amor étudo de bom: é o prazer, é a confiança, é o convívio dia-a-dia,ser sincero comigo, eu ser sincera com ele, ele ser sincerocomigo. Então, eu podia estar com mil homens, podia tá comum homem rico na minha casa, mas se Itamar chegar eu diria:“Sai você e Itamar fica!” (Sheila Magda, 37 anos, travesti).

    Esta fala revela as características que segundo Giddens (1993)diferenciam o amor romântico do que ele chama de amor confluente, visualizado naprática atual sobre a atmosfera do relacionamento puro. Mesmo tendo serelacionado a mais de vinte anos com Itamar, e morado com ele durante cinco anos,Magda demonstra, através da atmosfera novelesca da fala, que essa experiênciade teor único em sua vida nunca foi jogada para o passado e é denotada por umanarrativa dignificante, prazerosa, que faz parte do seu passado, de seu presentecomo também do futuro.

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    Nos tipos de operações reflexivas envolvidas na ideia de amor romântico,o objetivo incansável de se buscar uma “pessoa especial” e de ser “felizes parasempre”, formulado dentro de uma separação rígida entre os papéis de gênero,centrado na mulher/mãe/esposa/privado e do homem/provedor/protetor/público,diverge dos ideais do relacionamento puro, que é em si contingente, secaracterizando por uma prática contemporânea na busca de não mais idealizaruma pessoa distinta, que irá suprir todas as angústias e carências, já que com asconquistas femininas de se lançarem para fora do doméstico, a divisão entre osgêneros é mais igualitária, refletindo nos novos modelos de relações afetivas.

    As travestis em sua busca pela identificação feminina, se pautam,sobretudo no modelo tradicional de comportamento feminino, característico doamor romântico, reiterando, ao mesmo tempo em que parodiando, os arquétipos

    desta rígida separação dos papéis de gênero.

    Assim, surge-nos de maneira muito freqüente em suas falas que omodelo do “homem ideal” se baseia sobre os termos novelescos do romance:daquele que provém, protege, sente ciúmes e assume sua parceira nos moldes damulher/esposa. Essas são as características distintivas que fazem de umadeterminada e única pessoa de suas vidas o modelo e veículo próprio parareflexividade que envolve suas operações sobre o amor.

     Eu só me apaixonei uma vez, que foi o meu, que foi embora, aí

    meu coração petrificou, não bateu a química. Não sei o quesenti. É uma coisa que você não tem como explicar. Comigoaconteceu de maneira carente. Proteção. Aquela coisa devocê não ter uma estabilidade, não ter uma segurança, masquando você se depara com a amizade, bate-papo, aquelerelacionamento... Exatamente. De ter ciúme, esse aqui [atualparceiro] num tem ciúme nada... Eu saio de madrugada, voufazer com gosto [procurar outras pessoas para se relacionarafetivo-sexualmente], chego em casa às 4 da manhã, caio nacama, acabou-se. Ele se levanta às cinco da manhã... Sabe

    aquela coisa? Não tem... Sabe... O pessoal fala que ele querbotar pra trás. Ele não tem como se defender, não se defende.Ele deixa os problemas chegar na minha porta. Aviso a ele...'Como você é mané' . O amor é a convivência, o jeito dapessoa, aquela coisa do homem. Uma vez eu me vestindo, iapra batalha. Ele [o homem que considera como único amor]com os amigos jogando, aí eu cheguei só com um shortzinho,um salto deste tamanho, toda cheirosa, perfumada, cabeloestiloso... Aí fui pra perto dele... Olhou pra minha cara e disse:'Você não tem o que fazer não? O que é que você está fazendo

    aqui?' Ah! Nessa hora, minha filha, saio louca. Mas louca nãode raiva, mas de prazer. (Flávia)

    Na fala de Flávia é possível encontrar alguns dos elementos quedistinguem seu atual parceiro, significado por ela como indefeso e omisso emrelação a sua proteção, o qual deixa os problemas chegarem à sua porta e nãosente ciúmes; diferente o homem todo ou o homem de verdade, expressão quereflete a imagem idealizada do homem que se quer como parceiro, quando se vivenos ideais da travestilidade:

    É aquela coisa: carência e segurança. Porque é muito bomvocê ter uma pessoa e saber que está sendo protegida poraquela pessoa. Sabendo que você vai enfrentar o preconceito eaquela pessoa está ali do seu lado. O problema todo é esse. E odesejo é o dia-a-dia. [...] O meu antigo era assim. Homem todo.Não procurava a minha frente, era beijo nos seios pra cima, nãotinha aquela coisa, tá entendendo? A carência, a maneira depegar, a maneira de acariciar, a relação da foda mesmo eradiferente, porque eu só fazia mesmo as posição de mulher.Sempre eu escondia o meu lado... Aquela coisa... (Flávia)

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    Esta idealização do parceiro afetivo-sexual foi também observada porPelúcio (2006, p.526), quando afirma que elas “esperam que os 'homens deverdade' sejam másculos, ativos, empreendedores, penetradores” . Os homens deverdade são aqueles que não possuem outro interesse além de amar, prover eassumir sua parceira como esposa e mulher, tratando-a, assim, dentro dos ideaistradicionais do casal heterossexual e monogâmico.

    Flávia significa a expressão homem todo através também da preferênciade prática sexual executada por este homem, que, para ela, reflete comosignificante de sua virilidade e de sua orientação sexual para a

    34heterossexualidade . Reproduzindo, assim, os modelos da heteronormatividade,na divisão de práticas sexuais entre ativos e passivos, que revelarão fatalmente aspreferências sexuais do sujeito que vive sobre este imaginário. Isto porque, de

    maneira muito freqüente “[...] as travestis gostam de se relacionar sexual eafetivamente com homens, porém, não se identificam com os homens homo-orientados” (Pelúcio; 2006, p.525).

    A distinção desses homens, para que entrem na categoria de “amados”,reside ainda no ato de “assunção” de sua parceira. Pois o homem todo também éaquele que assume publicamente sua relação com a travesti, sendo simbolizadoaté mesmo como mais viril que qualquer outro homem. Empreender este ato ésimbolizado, portanto, como mais uma característica a preencher o ethos, deste

    parceiro idealizado, pautado na virilidade, na sua aparência de heterossexualidadee na coragem da assunção deste relacionamento que ocasiona em difíceisenfrentamentos sociais.

    Eu me sinto amada quando um homem me trata bem, me levapros lugares que eu quero, que eu sempre tive vontade, me levepro shopping, essas coisas assim do dia a dia... Que me tratecomo uma mulher normal. Ele tem a coragem de assumir né?Por que é difícil minha filha, assumir, assim pra todos, orelacionamento com uma travesti, e impor moral (Sheila Magda).

    As características físicas deste homem também são pertinentes, paraconformar esse modelo ideal de parceria afetivo-sexual masculina. O modelotradicional de beleza masculina: viril, sem brincos, sem cabelos grandes, sem“frescura”, atestam o imaginário da travesti, que se acredita ainda mais feminina aolado de um homem que marque tão profundamente sua diferença performática ecorporal em relação a elas.

    Gosto de homem assim... Bem homem, sabe? Aquela coisa,másculo mesmo. Bem arrumado, cheiroso, sem brinco, sem

    cabelo grande, sem cueca aparecendo... Sem frescura... Que eume sinta assim bem bonita, mulher, do seu lado. (Sheila Magda).

    O homem que é reverenciado pelos simbolismos do amor diverge damaioria de seus casos episódicos, que são vividos sobre a categoria de “putaria”, enunca de romance. Esses relacionamentos de teor sazonal carregam sempreconsigo uma marcação usualmente manifestada pelas travestis, pelo aspectoutilitário que podem possuir, sendo assim muito comum na experiência datravestilidade que estes homens, não-ideais, possuam preponderante interessefinanceiro em suas relações com as elas.

    Desejo, quem sabe, encontrar um homem que não tenha pormim um interesse financeiro, mas interesse como pessoa. Éisso o que eu procuro nos homens. Porque os homens quandochegam perto da gente: 'Gostei de você, quero ficar com você.'Mas a gente sabe que é na maneira financeira. Sempre rola deencostar (Flávia).

    O que falta a esses homens também, além dos signos já destacados paraserem então considerados por elas como “de verdade”, reside justamente na sua

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    característica de passividade. Mas não só uma passividade no que se refere àprática sexual, como também diante de uma possível traição, sendo o ciúme

    35simbolizado por elas, como prova de amor .

    Mas essa característica de passividade, depreciada na travestilidade noque tange às suas escolhas de parcerias afetivas, também se relaciona através daincapacidade, bem como vontade, deste homem prover o lar e sua companheira.Esses relacionamentos passam a ser vividos sobre esta categoria de “putaria”,onde se supre conscientemente apenas uma necessidade de carênciamomentânea ou uma atração sexual, mas nunca a envolvê-las emocionalmente,ou seja, romanticamente, como já nos revelou Flávia numa das falas acima.

    Não! Outros amores nunca, filha. Depois do meu homem,

    apareceu assim só ficantes. Ficantes mesmo. É como se diz,só na putaria. Só por prazer. Porque a gente nota, né? Uminteresse no dinheiro, mesmo que você não tenha nada. O queeles podem sugar eles sugam. (Sheila Magda).

    A atmosfera que acompanha a idéia de  putaria  remete a certodeslocamento de um modelo romântico para a contingência característica domodelo confluente. Podem assim acompanhar a tendência atual individualista(Bauman, 2004) de terem cravados em suas histórias de vida váriosrelacionamentos afetivo-sexuais, contudo, mesmo assim, e mais uma vez

    hibridizando performaticamente categorias, apenas um será lembrado e carregadode afetividades positivas, e enfim simbolizado como amor.

    No rastro das diferenças entre estes modelos de relacionamentos,romântico e confluente (aqui sendo o lócus da  putaria), o que é significado demaneira tão positiva dentro da idéia de um relacionamento mais igualitário entre osgêneros, que envolve a confluência e converge com as conquistas de maiorindependência e movimentação das mulheres atuais, é sentido pelas travestiscomo algo negativo da atual identificação feminina, simbolizada por elas como

    perda do potencial erótico e de conquista das mulheres.Esta “perda da feminilidade” da mulher atual se torna uma forte

    característica que as travestis recorrem via paródia da mulher romântica, parafundamentar o discurso do porquê homens casados ou mesmo considerados porelas como heterossexuais, irão procurá-las.

    Porque você sabe como é as mulheres de hoje em dia, não temmais tempo pro seu homem, só pensam em trabalhar e ficamsempre cansadas. É casa, trabalho, filhos e o marido fica lá...

    só olhando. É por isso que os maridos delas vêm procurar agente. Procura isso que falta, na gente, né? Eles sempre falamessas coisas: 'Ah! Porque minha mulher não me dá maisatenção, carinho'... Essas coisas que a gente sabe queconquista um homem. Porque somos assim, mais delicadas,atenciosas. Quando estamos para um homem, estamos paraum homem e mais nada (Joelma).

    Atualmente, se a identificação feminina tende a negar o modelo de amorromântico (Giddens, 1993), percebendo um fundamental teor de cerceamento e

    paralisação, que vão contra a inserção das mulheres nas esferas públicas e dotrabalho, isso será utilizado nas performances paródicas da travestilidade, via osideais que permeiam tal modelo, como fator distintivo de sua feminilidade,hiperbolizando esses ideais para preencherem, de maneira a dimensionar, ofeminino de suas identificações.

    Outro ponto relevante a ser observado nesses atos parodísticos do amorromântico, dentro dos agenciamentos da travestilidade que cercam os referenciais

    36deste amor, encontram-se nas características novelescas do sofrimento .

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    Gostei muito desse meu primo, igual a ele nunca gostei.Quando acontece de gostar de uma pessoa a gente pára decomer. Tem essas coisas, assim... Começava a chorar. Eracartas e mais cartas. Mas eu sempre sofro muito por amor, acho

    que faz parte... Nenhum visse? Nenhum deu certo. Acho queamor, a gente rola uma vez só, né? (Larissa, 18 anos, travesti).

    Se nos relacionamentos atuais não nos contentamos em viver erelembrar uma única história de amor, devido ao sofrimento causado pela projeçãodo futuro no outro, característica intrínseca do amor romântico – que ajudou aprovocar o afastamento dos atuais relacionamentos amorosos em relação a esta'modalidade' de amar, ocasionado justamente por essas frustrações deexpectativas amorosas onipotentes (Costa, 1998) –, torna-se um fato, no mínimo

    curioso, que esta paródia amorosa, executada pelas travestis, envolva sofrimentosimplícitos, que as suas operações sobre amor tendem a revelar.

    As histórias de amor das travestis acumulam também características deheroísmo. Falam-nos de um amor que emerge diante de aspectos marginais eimpossíveis, e que, mesmo não convivendo mais com esse “amor”, à maneira desentir sua carne, o sentimento estará para sempre presente, uma vez que refletemsobre suas trajetórias de vida. O amor romântico, dentro dessa experiência, é, assim,tão heróico que subsiste à marginalidade e à criminalidade, e aqui muitas vezes surge

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    a partir delas , como também resiste ao tempo, pois ele nunca se encerra:Não, não me decepcionei com ele não. O problema foi quequando eu vim descobrir alguma coisa dele, já tinhaacontecido... Aí ele pegou o beco, porque no final das contasele era matador profissional e eu não sabia. Eu não fugi não,ele é quem foi embora, mas ele foi embora e eu entendiporque, tá entendendo? Ele foi embora pra não me complicar.Eu não tinha nada a ver com o assunto dele, foi por isso que eucaí no mundo... Porque, aquela coisa, você se sentir segura e,ao mesmo tempo, ver que o mundo acabar pra você quando

    ele vai. Eu ando pela rua e procuro ele até hoje, eu amo ele atéhoje, e isso faz muitos anos. (Flávia)

    A passionalidade, antiga qualidade delegada ao comportamentofeminino, que se contrapunha à racionalidade masculina, aliada ao “sofrer poramor”, acaba por simbolizar, junto aos outros fatores destacados, a atmosfera quecaracteriza o amor para a experiência das travestis aqui acompanhadas.Parodiando mais uma característica socialmente significada como representaçãode feminilidade, algumas ações e sentimentos que demonstram tamanha

    passionalidade ajudam a formular o ethos do amor na travestilidade.Eu amava muito ele. Porque ele era diferente. Ele escrevia nasparedes, da casa abandonada que a gente morava, palavrascarinhosas pra mim. Mas eu toquei fogo na casa quando ele foiembora. Quando ele foi embora, a solidão, o vazio, o destino,aquilo foi sufocando, eu peguei todos os colchões velhos, toqueifogo na casa e sai. [...] Tomei 60 comprimidos pra me matar. Fuiparar dentro de uma oficina de uns amigos, me joguei dentro deum buraco, me acordaram depois de três dias... Um homemcomo esse eu não encontro mais não (Flávia).

    Incisivamente as travestis buscam, através de suas narrativas amorosas,parodiar o feminino, via uma performance que torna hiperbólica suas concepçõestanto de masculinidade – apreciada na maneira pela qual significam determinadosmodelos de masculino como ideal (viril, provedor, protetor e ativo) – quanto defeminilidade, centrado nas maneiras mais tradicionais socialmente sancionadas docomportamento feminino, da mulher passional, que cuida, sofre e amaincondicionalmente.

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    A paródia travesti via amor romântico promove um trazer para si dalatência feminina, na qual a ideia de relacionamento amoroso ideal liga-se aomodelo de casamento normativo. E via compilação do amor romântico, dodestacado abandono nos relacionamentos atuais pela literatura que faz dele seutema, pode ser também uma atitude tática (De Certeau, 1994) de capturar no voo,não só o feminino, mas atuando mesmo para revelar ou forjar uma autonomia sobreeste feminino, dentro das operações afetivas específicas da atual experiência datravestilidade. Pois elas nos trazem um amor que não se explica em termosracionalizados, em contraponto a um amor que requer confluência, igualdade eexplicação lógica baseado em afinidade, congruência e motivações nãopuramente afetivas para sua execução.

    Então, eu acho que é isso. É uma diferença nossa. É uma

    maneira de amar, é um amor que não se amostra, é um amor prasi. Aquela coisa de você estar doente e a pessoa se preocupar,você saber que tá ali, você passou a noite, você tá com fome... Eele vem e chega com uma marmita. Dar aquele carinho, aquelacoisa toda. Eu acho que isso é que se diz amor, porque não éaquela coisa. E um amor, você não sabe explicar. Acontece.Como é que você vai experienciar o amor. O pessoal diz 'o amoré um coração'. Será que é só isso? Será que o amor é umcoração? A palavra amar é tão forte! 'Eu amo você! ' Em quesentido você me ama? É aquela coisa do desejo, mas desejar

    todo mundo deseja. Amar são outros quinhentos (Flávia).

    Considerações Finais

    Diante desses três atos parodísticos característicos desta experiência,podemos perceber a atmosfera de contestação política como proposta por Butler(2003) que subjaz sobre esta atmosfera acrítica, que pode as atitudes paródicasapressadamente representar. A contestação se demonstra então como

    modalidade característica desta execução performática e paródica, já que,segundo a autora, tanto a ação quanto a subversão só podem ocorrer via práticasde variação repetida e descontextualizada dos rígidos modelos da culturahegemônica. Pode-se, neste sentido, e incisivamente, ser tomada por este grupocomo instrumento de ação a servir para desnaturalização dos rígidos esquemaspelos quais os gêneros inteligíveis são significados, que como vimos se encontrammuito distantes das práticas e da multiplicidade dos sujeitos atuais.

    Através da proliferação da reflexão que envolve os atos de

    performatividade parodística, mostrando tanto os aspectos dissonantes, quepodem ser geridos nas atitudes de corporalidade dos sujeitos sociais, bem como aabertura de cisões nos significantes de gênero, nos levam a identificar que:

    No Lugar de uma identificação original a servir como causadeterminante, a identidade de gênero pode ser reconcebidacomo uma história pessoal/cultural de significados recebidos,sujeitos a um conjunto de práticas imitativas, que se referemlateralmente a outras imitações e que, em conjunto constroema ilusão de um eu de gênero primário e interno marcado pelo

    gênero, ou parodiam o mecanismo dessa construção (Butler,2003, p.197).

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    NOTAS1 Fala do sequestrador da travesti do filmeTirésia, do diretor Bertrand Bonello, 2003.2 A riqueza, que a autora nos fala, habita justamente no ato de parodiar algo que é tomado como natural.Parafraseando o comportamento e as práticas dirigidas socioculturalmente ao feminino em um corpoanatomicamente simbolizado como masculino, demonstra a estrutura manufaturada e contingente pelasquais são modeladas as atitudes de gênero. Isto, pois, se “[...] a verdade interna do gênero é uma fabricação,e se o gênero verdadeiro é uma fantasia instituída e inscrita sobre a superfície dos corpos, então parece queos gêneros não podem ser nem verdadeiros nem falsos, mas somente produzidos como efeitos da verdadede um discurso sobre a identidade primária e estável [...] A noção de uma identidade original ou primária dogênero é frequentemente parodiada nas práticas culturais do travestismo e na estilização sexual dasidentidadesbutch/femme”  (Butler, 2003, p.195-196).3 O termo “experiência queer ” está sendo utilizado para agrupar sujeitos que compartilham uma condiçãosocial ou um expediente em comum, em que mesmo possuindo histórias bastante particulares e bastanteadversas entre si no que tange a outros marcadores como classe, cor e profissão, compartilham o fato deperformativizarem suas vidas fora do discurso hegemônico de corpo, sexualidade e gênero, assumindo a

    experiência de atuarem fora das normas socialmente postuladas que se refere ao que Butler chama deheteronormatividade compulsória.4 Jornal do Commercio e Diário de Pernambuco.5 Nome pelo qual são chamadas as travestis que aplicam o silicone industrial.6 No sentido restrito dos dicionários da língua portuguesa, os significados de corpo parecem conter umaformatação instrumental, se configurando como complexo de ossos, carne e órgãos, matéria seca designificados, antônimo de alma. (Ver Houaiss, p.2001).7  “A vida já não pode mais simplesmente ser pensada como resultado de uma reprodução. A vida agora passaa ser produzida. A idéia de um alfabeto da vida nos remete a um espaço literário aberto. Não se trata apenas de

    ler as palavras que já existem, mas da possibilidade de criar novas, sintaxes” (Ferreira, 2000, p.223-224).8  Estou chamando aqui de práticas travestidas, as técnicas corporais específicas deste grupo, que sãocontornadas de um saber muito próprio sobre este corpo autoconstruído, o qual traveste de outros sentidostanto práticas dirigidas para corpos femininos como dos instrumentos tecnológicos disponíveis. São, assim,'travestidas', dentro de uma dupla qualificação, tanto por serem específicas e distintivas deste grupo, quantopor sua característica intrínseca de travestir de outros sentidos os usos formais destes instrumentos e práticas.9Esse, como alguns outros nomes, foram modificados diante do pedido explicito das colaboradoras.10  Para aprofundar sobre a atmosfera de extensão de vida relacionado ao imaginário contemporâneo,formulado dentro do discurso médico oficial, que cerca da idéia de “vida saudável”, ver: Marshall & Katz(2002).11 Segundo Kaufmann (2005), os aspectos de subjetivação assumem formas tão múltiplas, que não é possívelanalisar o sujeito como uma parte separada dos contextos e imaginários sócio-culturais que o cercam, e quemesmo trabalhando através da teoria dos Si Mesmo Possíveis, sendo esta uma das “modalidades maisavançadas de subjetivação”, os agenciamentos de subjetividade ainda se encontram constrangidos pelosself-schemas, que resultam da “trajetória social, da história das pessoas”. Portanto, mesmo conscientes doalto grau de subjetivação alcançado pela atuação dos nossos si mesmos possíveis, ele ainda irá operardentro de nossa matriz de apreciação sócio-cultural. Contudo, mesmo sobre estes termos este conceito cabede maneira pertinente aqui, pois: “Os si mesmo possíveis [...] exigem esforço e assunção de riscos. A estecusto, eles autorizam um trabalho de reforma de si mesmo verdadeiramente inovador, nos limites dorealizável, em que o presente consegue momentaneamente colocar entre parênteses o peso do passado.Eles representam uma das modalidades mais conseguidas da subjecividade em obra na invenção de si

    mesmo” (p.70).12 Maneiras como as travestis emicamente designam os pêlos do rosto, que não chegam a se transformar embarba, devido a intensa vigilância. Adquire assim o aspecto dos pequenos espinhos que brotam do chuchudevido intervenção constante através de inúmeras técnicas.13 Para De Certeau (1994), ao centralizar uma análise nos “modos de proceder da criatividade cotidiana” , épreciso ter em mente que quando tratamos de cultura popular, ela opera de maneira combinatória e utilitária,se revelando como “[...] uma maneira de pensar investida numa maneira de agir, uma arte de combinarindissociável de uma arte de utilizar.”(op. cit: 42 )14 Como vemos em: Silva (1993); Denizart (1997); BenedettI (2005); Pelúcio (2005; 2006).15

     Anuncio retirado da seção de acompanhantes (Classilíder) do jornal, Diário de Pernambuco. 2 de novembrode 2007.16 Via discurso promulgado nos classificados de “acompanhantes” dos dois principais jornais do Estado dePernambuco.17 Categoria bastante utilizada entre as travestis para se referirem a beleza.18  Todas as adjetivações, assim como as que seguirão foram retiradas dos classificados do Jornal doCommercio e Diário de Pernambuco de janeiro de 2007 a fevereiro de 2008.19 Características que, segundo a reflexão de Campbell (2001) sobre o mesmo tipo atuação midiática,acreditamos nos definir mais claramente.

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    20 Este termo encontra-se dentro da semântica do erotismo, como a prática de beijar o ânus.21 Linguagem própria do universo de anúncios para abreviar as práticas sexuais divididas entre passivos eativos.22 “Não tenho cabeça pra pista mais não. Eu gostava em São Paulo. Porque em São Paulo ganha dinheiro.Aqui não ganha dinheiro. Namorado na pista? Aparecer, aparecia... Aparece. Só que na pista não pode seapaixonar. Tem que olhar e pensar no bolso do homem. Não pensar em amor, nem beijinho, entendeu? Só pordinheiro. Se num tiver dinheiro tira calça, tira o sapato, me dá a carteira, me dá o anel. Mesmo eu carente”(Sheila Magda, 37 anos, travesti).23 Historicamente a prostituição se configura não como um fenômeno aceito, mas um “[...] incômodo tolerado,pois funcionaria como uma espécie de válvula de escape para o incontrolável desejo sexual do macho derealizar suas mais recônditas fantasias e necessidades fora do casamento. Dessa maneira, torna-se possívelpreservar a figura da esposa, como mulher imaculada – com a qual sexo vincula-se a reprodução -, e a da'moça de família'. Culturalmente, tanto no campo simbólico quanto no imaginário social, a prostitutadesempenha papéis inconcebíveis para a 'mulher de família” (Araújo, 2006, p.66).24

     Como coloca Juliano (2005) questionando-se sobre as polêmicas e estereótipos que envolvem o trabalhosexual feminino, atualmente, percebe que “Sin embargo muchas de las mujeres que trabajan en este campo,consideran que es simplesmente uma actividad laboral entre otras posibles[...]” (Juliano, 2005, p.81)25 “Travesti não tem que se prostituir, mas às vezes somos levadas a isso pela falta de opção no mercado detrabalho” (Carol, 36 anos, travesti).26 O conceito de abjeção é trazido por Butler (2001, p.155), através da evidência de que os corpos que não seencontram dentro do aspecto de inteligibilidade social destinada aos gêneros encontram-se fora do “domíniodos sujeitos”, sendo empurrados para as “zonas 'inóspitas' e 'inabitáveis' da vida social”.27 O sacar deste recurso lingüístico, entre as travestis também foi sentido na etnografia de Rogério Araújo(2006), sendo esta, como também observada nesta pesquisa, uma prática bastante executada na

    experiência da travestilidade. Segundo o autor, o perfil dos clientes das travestis, é ou de homens mais velhose casados, ou de jovens com a aparência física mais atraente para elas e “ com esse tipo de cliente, a travesti,'faz o vício', isto é, ela cobra um valor bem inferior ao cobrado habitualmente, ou até mesmo faz o programasem cobrar nada” (p.41).28 Flávia me conta, em conversa, que às vezes vai pro ponto só pra namorar , termo de carga simbólica, queremete para além de encontros episódicos, certo envolvimento afetivo-emocional, não puramente utilitário, justificada pela semântica específica que cerca o termo fazer o vício  dentro do universo dos códigoscomunicacionais próprios da travestilidade: “Às vezes nem rola dinheiro, mulher. Mas como não sou apegadaa isso e quando vejo um homem assim que me agrada, nem ligo, faço mesmo, realizo!” (Flávia).29 É necessário considerar “que a existência e a permanência da prostituição podem ser decorrentes de uma

    conjunção de fatores sociais econômicos, culturais e biográficos, diferentemente combinados, o queinviabiliza a construção de um modelo explicativo monocausal, rígido e estático para seu entendimento”(Araújo, 2006, p. 64).30 Como nos conta Giddens (1993), refletindo sobre as mudanças sociais que ocasionaram a emergência deum amor romântico, centrado fundamentalmente na tomada burguesa, cuja formação do casal monogâmicoe heterossexual, contornado pela divisão das tarefas, foi essencial para os ideais de controle social destaclasse emergente. Sobre este objetivo, “o amor romântico era essencialmente um amor feminilizado. [...] coma divisão das esferas de ação a promoção do amor tornou-se preponderantemente tarefa das mulheres. Asidéias sobre o amor romântico estavam claramente associadas à subordinação da mulher ao lar e ao seurelativo isolamento do mundo exterior.” ( p.54)31 Isto, pois na concepção moderna de família, pautada nos ideais individualistas, esta que já foihistoricamente uma instituição fundamentalmente hierárquica, parece ter adquirido simbologias de um lugarpermeado por amor e cuidado depois da tomada burguesa. Sendo, portanto o amor romântico fruto doprocesso de modernização, este cuidado sem porquês também está presentes nas emoções que permeiamos modelos familiares. É algo esperado da própria concepção moderna de família.32 “Porque quando eu viajei daqui, eu viajei em 81, foi quando eu peguei a estrada, por que fui expulsa de casa.Mas aí foi quando eu me apaixonei por esse cara. Aí foi aquela coisa. Uma vez eu barroei  com ele sozinho. Enessa barroação, conversa vai, conversa vem, conversando da vida, aí apareceu... Bateu aquele clima, umasconversas doces e delicadas. Foi o primeiro relacionamento. Foi quando bateu...Foi tanto que eu meapaixonei. Eu acho que o problema da carência familiar que eu tinha, vivendo sozinha... Aí aparece umapessoa, lhe dá carinho, lhe dá amor, lhe dá todo cuidado, pronto, né?”( Flávia).33

     Onde se revela um “Sade clandestino, aquele que observa as convulsões dos sentimentos, em vez dosdesregramentos dos sentidos”. (Fiorillo, In: Sade; 2007, p.5).34 “Não gosto de transar com veado , nem com bicha machuda, que vira de costas pra mim, faço isso por queminha profissão exige.Mas gosto mesmo de homem...de homem de verdade” ( Joelma, 23 anos, travesti).35 “Eu gostei do outro, que foi o que realmente eu me relacionei, passei três anos com ele. A gente passou trêsanos juntos. Se curtindo passei três anos e quatro meses com ele, ele era muito ciumento, gostava muito demim. Quando saia tinha que ter hora de chegar, quando nem esperava ele ligava, me controlou totalmente.Na época, ele trabalhava na padaria da tia dele. Ele me tirou da batalha, não queria que eu me prostituísse, foibem difícil pra mim, porque ele ganhava pouco e na época eu ganhava dinheiro na pista, mas eu gostava dele,então parei e foi porque ele quis, não queria ver a mulher dele com outros” (Ana Clara, 36 anos, travesti).

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    36 Como observado por Bauman (2004), que vê como características centrais do amor sua peculiaridade depromover sentimentos de incerteza, ambivalência que ocasiona em sofrimentos e angústias inevitáveis.37 “Olhe, minha história mesmo de amor, é muito louca, mas pra mim foi linda, porque eu senti aquela coisa... eacreditei... Porque, quando eu conheci ele pela primeira vez, ele me assaltou, me roubou. Levou todo dinheiro

    que eu tinha, uma loucura... Fui atrás dele, não sabia onde ele morava, sai louca pelo meio da rua, logo cedo,oito horas da manhã.Foi uma confusão danada.Mas depois a gente se resolveu[...] Aí pronto... Quandomenos esperei ele tava morando comigo” ( Ana Clara)

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