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FILOSOFIA DA MODA FILOSOFIA DA MODA E OUTROS ESCRITOS E OUTROS ESCRITOS

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FILOSOFIA DA MODAFILOSOFIA DA MODAE OUTROS ESCRITOSE OUTROS ESCRITOS

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FILOSOFIA DA MODAFILOSOFIA DA MODAE OUTROS ESCRITOSE OUTROS ESCRITOS

GEORG SIMMEL

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Autor: George SimmelTradução: Artur MorãoGrafismo: Cristina Leal

Edições Texto & Grafia, Lda.Avenida Óscar Monteiro Torres, n.º55, 2.º Esq.1000-217 LisboaTelefone: 21 797 70 66Fax: 21 797 81 30E-mail: [email protected]

Impressão e acabamento:Papelmunde, SMG, Lda.1.ª ediçãoLisboa, Fevereiro de 2008ISBN 978-989-95689-2-1Depósito legal n.º 271898/08

Esta obra está protegida pela lei. Não pode ser reproduzida, no todo ou em parte, qualquer que seja o modo utilizado, sem a autorização do Editor.Qualquer transgressão à lei do Direito de Autorserá passível de procedimento judicial.FI

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É em torno da ideia de conhecimento articulado com as necessidades de aquisição de uma cultura geral consistente que se projecta a colecção “Biblioteca Universal”.

Tendo como base de trabalho uma selecção criteriosa de autores e temas – dos quais se destacarão as áreas das ciências sociais e humanas –, pretende-se que a colecção esteja aberta a todos os ramos do saber, sejam de natureza técnica, científica ou artística.

O objectivo último é que os volumes que a integram representem um efectivo contributo para a restauração de um ambiente cultural e intelectual à altura das aspirações de uma sociedade moderna, aberta e esclarecida, que o promova e alimente.

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ÍNDICE

Introdução . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 9

Origem dos textos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 19

Filosofia da moda . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 21

Psicologia do adorno . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 59

Psicologia da coqueteria . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 71

Cronologia da vida de Georg Simmel . . . . . . . . . . . . . . 89

Bibliogafia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 95

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A moda como sintoma antropológico em Georg Simmel

S erve a moda a G. Simmel para concertar e jungir núcleos fundamentais e, poderia dizer-se, quase obsessivos do seu pensamento. Primeiro, o tema da sociedade como campo de tensões e interac-

ções, de que a moda em si mesma, na sua expressão, nas suas variações, nos seus ritmos, nos seus mecanismos, na sua ambiguidade, no seu significado, no seu lugar específico dentro da realidade social, é uma manifestação privilegiada, porque sempre presente como factor de socialização e de individualização. Depois, a antropologia em que a moda assenta, da qual vive, porque expressa e encarna a natu-reza dualista e tensiva do ser humano que, mergulhado no todo social, dele procura libertar-se, isolar-se, sobressair, sem nunca todavia o poder abandonar. Por fim, a crítica da modernidade, época assinalada pela progressiva e dramática libertação do indivíduo de todas as dependências exclusivas e pessoais, que caracterizavam os tempos pré-modernos.

A moda expressa, da forma mais visível e concreta, a realidade essencialmente dialéctica e dinâmica da sociedade, feita de interconexões e liames, mas também de inevitáveis conflitos entre os indivíduos, entre as múltiplas e diferen-tes formações sociais, entre os indivíduos e os grupos ou as classes. Por isso, nada é mais estranho a Simmel do que a visão da sociedade como um todo orgânico, ao jeito de A. Comte e de H. Spencer, que realçaram a essencial continui-dade entre natureza e sociedade, sob o pressuposto de uma

INTRODUÇÃO

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analogia básica entre o processo social e o processo bioló-gico; decerto porque estavam seduzidos pelo esplendor da clássica e tradicional metáfora da “grande cadeia de ser”, que se estendia desde o mais simples fenómeno natural ao mais diferenciado organismo social; terá sido essa também a razão por que eles apresentaram a proposta de uma meto-dologia comum às ciências da natureza e ao estudo dos homens na sociedade, aliás, de harmonia com o rumo cada vez mais sensível e impositivo de um positivismo triun-fante e optimista, casado com uma esperança ingénua no poder regenerador do progresso e da ciência.

Mas não se depreenda daí que Simmel tenha optado, sem mais, por uma aceitação incondicional da tradição alemã das ciências do espírito (Geisteswissenschaften), acentuada e expressa teoricamente no seu tempo por Wilhelm Dilthey, W. Windelband e H. Rickert, e presente igualmente no seu amigo Max Weber e em muitos outros. Para estes, o método adequado para indagar a cultura e os fenómenos humanos, reino da liberdade na linha do idealismo germânico, era (segundo a terminologia adoptada) o ‘idiográfico’, centrado em obras singulares, nos indivíduos e em acontecimentos únicos e irrepetíveis, e não o ‘nomotético’, formulador de leis gerais e uniformes para todos os casos possíveis, como acontecia no campo das ciências naturais (Naturwissenschaf-ten), afeito à “explicação” (Erklären) mediante uma nuvem ou rede de hipóteses conjugada ainda, se possível, com uma abordagem matemática, mas estranho ao giro da “compre-ensão” (Verstehen). Este último reclamava antes a empatia e a solidariedade identificativa com o autor nas suas obras ou com os seres humanos no drama da sua existência histórica.

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INTRODUÇÃO

O nosso filósofo e sociólogo opunha-se tanto às escolas organicistas como às idealistas; a sociedade não era, para ele, um organismo coeso e unitário, de vibração homo-génea ou de intencionalidades e finalidades comuns e har-monicamente compartilhadas, nem um simples rótulo para o entrançado de opções e experiências subjectivas de vária ordem. Constituía antes um emaranhado de múltiplas e dís-pares relações entre indivíduos, numa incessante interacção de uns com outros, inseridos, por seu turno, em estruturas superindividuais mais amplas – o Estado, o clã, a cidade, a família ou o sindicato – que, afinal, não passam de cris-talizações dessa interacção, embora possam obter uma real autonomia e contrapor-se ao indivíduo como poderes estra-nhos e externos, simultaneamente tutelares e opressores. Desconfiando, pois, do esforço de conectar todos os fenó-menos numa única visão teórica – o que é impossível, dada a disparidade multiforme dos anelos, propósitos e desejos que configuram e agitam a vida dos homens –, Simmel reconhece e confessa que não é possível nem aconselhável semelhante ciência social totalizante ou holística. Tal não obsta a que o comportamento humano, enquanto compor-tamento de indivíduos, se possa elucidar em termos da sua filiação em grupos e associações ou mediante categorias típicas que desenham, de modo plausível, a trama das inte-racções que entre eles nascem e fluem. A atenção simme-liana centra-se, por isso, na construção de uma galeria de tipos sociais – “o estrangeiro”, “o mediador”, “o pobre”, “o aventureiro”, “o renegado” e, claro está, o “maníaco da moda” – que, nos seus papéis, se devem complementar com a análise das formas sociais, de que sempre são parte

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e elemento, dentro e fora das quais simultaneamente se encontram, mesmo quando a elas se possam opor. De facto, o seu comportamento e as suas atitudes ou posturas, por vezes anómalas, ambivalentes, cumprem a função de “vál-vulas de segurança”, que lhes permitem baixar o vapor e suportar o peso rígido das relações sociais. Por outro lado, eles só se entendem dentro da realidade do conflito social, que supõe a acção interdependente e se baseia mais na reci-procidade do que na imposição unilateral.

Vislumbra-se assim a concepção antropológica que sustém o edifício sociológico do nosso autor. Próximo da filosofia da vida, ele assinala nesta polaridades determinan-tes e omnipresentes. Caracteriza a vida um dualismo entra-mado de oposições entre particular e universal, igualdade e diferenciação, imitação e distinção, sujeição e auto-afir-mação, coesão e separação. Semelhante dualismo assedia já a fisiologia:

“O primeiro indício é brindado pelo fundamento fisiológico da nossa natureza: ela precisa tanto do movi-mento como do repouso, da produtividade como da recep-tividade. Retomando isto para a vida do espírito, seremos guiados, por um lado, pela tendência para o geral e, por outro, pela necessidade de captar o individual; aquela garante o repouso ao nosso espírito, a particularização per-mite-lhe mover-se de caso para caso. E não é diferente na vida do sentimento: procuramos tanto a dedicação serena aos homens e às coisas como a auto-afirmação enérgica perante ambos”.

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INTRODUÇÃO

A vida é, pois, a oscilação entre estes dois pólos, entre a unidade do todo e o ser-para-si de cada elemento do mundo, entre hereditariedade e variabilidade, entre a ordem social e o destino individual. Aqui entronca naturalmente a moda, concretização da tendência para a imitação, mas – de modo paradoxal – daquilo que quase sempre é impessoal e quase nunca nasce da criatividade individual, antes não passa de uma reacção reflexa perante a angústia de perma-necer sozinho no seu agir e a dor da responsabilidade.

“Ela é imitação de um modelo dado e satisfaz assim a necessidade de apoio social, conduz o indivíduo ao tri-lho que todos percorrem, fornece um universal, que faz do comportamento de cada indivíduo um simples exemplo. E satisfaz igualmente a necessidade de distinção, a tendência para a diferenciação, para mudar e se separar. E este último aspecto consegue-o, por um lado, pela mudança dos con-teúdos, que marca individualmente a moda de hoje em face da de ontem e da de amanhã, consegue-o ainda de modo mais enérgico, já que as modas são sempre modas de classe, porque as modas da classe superior se distinguem das da inferior e são abandonadas no instante em que esta última delas se começa a apropriar. Por isso, a moda nada mais é do que uma forma particular entre muitas formas de vida, graças à qual a tendência para a igualização social se une à tendência para a diferença e a diversidade individuais num agir unitário.”

E insinua-se assim o tema da modernidade, de que Simmel é igualmente um dos grandes intérpretes ou

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hermeneutas, embora sob um ângulo parcialmente trá-gico, e ao qual dedicou numerosos e cintilantes ensaios. É verdade que a idade moderna compõe um complexíssimo novelo cultural passível, como foi e assim continuará a ser, das mais contrastadas interpretações; perante ela e a nossa actualidade social e histórica, o nosso filósofo hesita, pois, entre o progressivismo liberal e o pessimismo cul-tural. Sublinha com força a libertação cada vez ampla do indivíduo dos vínculos exclusivos e das múltiplas depen-dências no seio dos anteriores círculos sociais, que eram poucos e relativamente restritos. De facto, nas sociedades pré-modernas, as associações, como por exemplo as guildas ou corporações medievais, não tinham apenas uma fun-ção específica, em vista um propósito claramente articu-lado; abarcavam a vida inteira do indivíduo, num plexo de subordinações e lealdades; exigiam a personalidade inteira e um forte sentido identitário, expresso por vezes em sinais externos muito visíveis.

A tribo com os seus clãs, as linhagens ou outros gru-pos exigiam a participação directa, e os círculos sociais não admitiam entre si profundas intersecções, cruzamen-tos ou sobreposições. Tudo muda com os tempos moder-nos: multiplicam-se progressivamente as esferas sociais, um indivíduo pode ser membro de muitos círculos bem definidos que se concatenam e co-implicam à maneira de círculos concêntricos, nenhum destes controla já a sua personalidade total. Em vez da simples inclusão num âmbito singular que decretava e determinava a existência pessoal e demarcava o horizonte do seu agir ou pensar, o indivíduo descobre-se cada vez mais na encruzilhada ou

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INTRODUÇÃO

na intersecção de muitos círculos com fidelidades diver-sas e, por vezes, antagónicas. Cessa o nexo entre lugar, parentesco e filiação religiosa que, por seu turno, se torna cada vez mais distinta de outras preocupações e cresce em individualização. Desponta, por conseguinte, uma maior consciência ou um sentimento mais vivo de libertação. O individualismo nasce precisamente desta compenetração de círculos sociais, cujos imperativos e exigências se fazem sentir e se mesclam na consciência do indivíduo. Diminui também a pressão ou a dominação dos outros (por ex. do patrão sobre o trabalhador) e torna-se inevitável a transi-ção da homogeneidade para a heterogeneidade, da unifor-midade para a individualização, da fidelidade à tradição para a participação num mundo cheio de novas e inéditas possibilidades. Do estatuto desliza-se para o contrato, da solidariedade mecânica do grupo restrito e fechado para a solidariedade orgânica entre associações de fins e valores divergentes que obrigam à escolha e à contaminação, da rigidez do costume para um cenário de inúmeros empe-nhamentos e acordos que fomentam a emergência da uni-cidade e da autonomia individual.

Tudo isto, porém, tem um preço. O indivíduo vê-se confrontado com uma multiplicidade de objectos cultu-rais, desde a religião à moralidade, dos costumes à ciência, da arte aos sistemas económicos, e no seio de um mundo cada vez mais marcado pelo pluralismo, pela diferença, pelo contraste entre estilos de vida. Interioriza, sem dúvida, tais objectos, mas estes surgem cada vez mais aos seus olhos como “alteridades”, como poderes extrínsecos que também o ameaçam e podem alienar; não consegue subvertê-los,

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porque a sua riqueza humana singular se conquista justa-mente através da absorção dos valores culturais exteriores. Além disso, o homem moderno sente-se rodeado por um mundo de objectos que constrangem, acirram e controlam as suas necessidades e os seus desejos. Efeito de semelhante situação será, então, transformar-se ele próprio em pere-grino e vagabundo, em flanêur, sempre in itinere, a caminho ou em debandada, sem fins ou objectivos seguros. A sua vida corre o perigo de se esgotar na paixão do movimento, numa trajectória indefinida, própria de alguém que aprecia “os caminhos sem metas e as metas sem caminhos”, como Simmel refere no seu belo ensaio sobre Rodin.

Como vemos, embora ele alinhe pela mundividên-cia da concepção liberal progressiva, típica dos pensadores franceses e ingleses que, com a sua fé na perfectibilidade humana, o influenciaram, ressoam igualmente no seu vere-dicto acerca da cultura moderna sombrios acordes deriva-dos da visão metafísica de Schiller ou de Nietzsche. Paira assim, insolúvel, sobre o seu horizonte mental e filosófico uma contradição, que o leva a anunciar novas prisões em que os indivíduos permanecem enredados e como que con-gelados nas suas funções sociais.

E ressalta igualmente o significado da moda: como forma de vida, como marca das distinções de classe, como jogo da incessante imitação de uma classe por outra, como meio da inserção dos indivíduos num grupo ou numa cor-rente, traduz justamente essa efervescência sem rumo, por-que é indiferente aos conteúdos, inclusive da beleza ou do conveniente; é simples variação, mero arreio, desprovida de motivação, entregue apenas à vertigem do movimento

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INTRODUÇÃO

e do momento, da novidade injustificada, porque vive do capricho e da extravagância. Encarnação da nervosa vida moderna, vive do transitório, do fugitivo, do contingente; persiste destruindo, mas é simultaneamente recuperação lúdica de formas do passado e invenção de gestos futuros também condenados à evanescência.

“A moda, com o seu jogo entre a tendência para uma expansão universal e a aniquilação do seu próprio sentido que comporta justamente essa expansão, possui o atrac-tivo singular do limite, o atractivo simultâneo do começo e do fim, da novidade e, ao mesmo tempo, da caducidade”. Porque movimento autónomo, com poder objectivo, ali-menta-se das suas próprias forças e, por isso, altera-se, metamorfoseia-se e recorre a novos disfarces fora da inter-venção dos indivíduos, sobre os quais plana numa sobre-individualidade indiferente, que constitui precisamente a sua essência. Surge assim como um eterno retorno, sósia da aventura, ávida de experiências e de sensações, mas fora do contexto da vida, a ela estranha e dela distraída.

Nesta indiferença ontológica consiste a sua ‘tragé-dia’: votada à caducidade, é irmã da morte, como vislum-brou o grande poeta italiano Giacomo Leopardi (“Dialogo della moda e della morte”, Operette morali), e o seu reino é o infinito ilimitado, o ápeiron, a ausência de medida ou de modus, em cuja circulação e vórtice imergem, despontam e se aniquilam os perfis, os conteúdos, os rostos. Surge, por isso, não só como emblema da modernidade inquieta e impaciente, mas também como sintoma da contradição profunda e de muitos níveis que caracteriza e define a estrutura dos seres humanos.

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* * *

A presente tradução do tratado Philosophie der Mode pretende ser fiel ao estilo do autor e baseia-se na sua edi-ção em livro de 1905, que Simmel republicou mais tarde, em 1919, sob o título Die Mode, com alterações bastante reduzidas e integrado no conjunto de estudos editado sob a designação de Philosophische Kultur, Leipzig, Alfred Kröner Verlag, 1919; este ensaio, um dos mais notáveis em toda a produção simmeliana, constitui, por sua vez, uma amplia-ção ou remodelação muito pronunciada de um artigo sociológico mais antigo, intitulado Zur Psychologie der Mode de 1895.

As rubricas contidas no parêntesis recto, no início de alguns parágrafos, não aparecem no original alemão; desti-nam-se tão-só a assinalar pontos nevrálgicos da reflexão de Simmel, para orientação do leitor nos veios do seu compli-cado discurso. Quem estiver interessado em conhecer todas as vertentes da sua ampla produção e do seu pensamento dispõe agora, se dominar a língua alemão, da totalidade das suas obras no electro-sítio do Instituto Sociológico da Universidade de Zurique: http://socio.ch/sim/.

Propõe-se ainda uma cronologia da vida de G. Sim-mel e, no fim do volume, a lista das suas obras e um con-junto de referências bibliográficas auxiliares.

Artur Morão

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Filosofia da modaIn: «Reihe Moderne Zeitfragen», dir. de Hans Land-berg, Nº 11, Berlim, Pan-Verlag (1905), 41 pgs.

Psicologia do adornoIn: Der Morgen. Wochenschrift für deutsche Kultur, fundado e publicado por Werner Sombart juntamente com Richard Strauß, Georg Brandes e Richard Muther, com o colaboração de Hugo von Hofmannstahl, 2, Nº 15 de 10 de Abril 1908, pp. 454-459, Berlim.

Psicologia da coqueteria In: Der Tag. Moderne illustrierte Zeitung, Nº 344, Mor-genblatt 11 Maio 1909, Illustrierter Teil, Nº 109, p. 1-3 e Nº 347, Morgenblatt 12 Maio 1909, Illus-trierter Teil, Nº 110, p. 1-3 (Berlim).

ORIGEM DOS TEXTOS

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[A vida como dualismo]

O modo como nos é dado interpretar as manifes-tações da vida permite-nos, em cada ponto da existência, sentir uma multiplicidade de forças; e de tal maneira que cada uma delas tenta ir

além da manifestação real, limita a sua infinidade em rela-ção às outras e transforma-a em simples tensão e anelo. O homem é, de facto, desde o início, um ser dualista; e isto de nenhum modo impede a homogeneidade do seu fazer, antes ele ostenta justamente, como resultado da sua multi-plicidade de elementos, uma poderosa unidade. Uma mani-festação a que faltasse semelhante ramificação de forças radicais seria para nós pobre e vazia. Só porque cada ener-gia íntima impele para lá da medida da sua exteriorização visível é que a vida ganha aquela riqueza de possibilidades inexauríveis, que completa a sua realidade fragmentária; só assim as suas manifestações deixam pressentir forças mais profundas, tensões mais insolúveis, luta e paz de tipo mais vasto do que deixa adivinhar o seu dado imediato.

Este dualismo não se pode descrever directamente, mas apenas sentir nas oposições singulares, que são típicas da nossa existência, como sua forma derradeira, configu-radora. O primeiro indício é fornecido pelo fundamento fisiológico da nossa natureza: ela precisa do movimento e do repouso, da produtividade e da receptividade. Também na vida do espírito somos guiados, por um lado, pela ten-dência para o geral e, por outro, pela necessidade de captar

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o individual; aquela garante o repouso ao nosso espírito, a particularização permite-lhe mover-se de caso para caso. E não é diferente na vida do sentimento: procuramos tanto a dedicação serena aos homens e às coisas como a auto-afir-mação enérgica perante ambos. A história inteira da socie-dade pode desenrolar-se na luta, no compromisso, nas con-ciliações lentamente adquiridas e depressa perdidas, que surgem entre a fusão com o nosso grupo social e o esforço individual por dela sair.

Embora a oscilação da nossa alma entre estes dois pólos se possa materializar no antagonismo da doutrina da unidade do todo e do dogma da incomparabilidade, do ser-para-si de cada elemento do mundo, embora eles se digladiem praticamente como os opostos partidários do socialismo e do individualismo, é sempre uma só e a mesma forma fundamental da dualidade que, por fim, se revela na imagem biológica como o antagonismo entre hereditarie-dade e variabilidade – a primeira como portadora do geral, da unidade, da igualdade consolidada de formas e conteú-dos da vida, a outra como a mobilidade, a multiplicidade de elementos particulares, o desdobramento inquieto de um conteúdo de vida individual que gera outro. Cada essen-cial forma de vida na história do nosso género representa, na sua área, uma forma particular de unir o interesse pela duração, pela unidade e pela igualdade com o interesse pela mudança, pelo particular, pelo único.

[Moda e imitação]No interior da materialização social destes opostos,

uma das vertentes dos mesmos é sustentada sobretudo pela

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tendência psicológica para a imitação. A imitação poderia designar-se como uma transmissão psicológica, como a transição da vida do grupo para a vida individual. O seu fascínio consiste, antes de mais, em que ela nos possibilita um fazer apropriado e significativo mesmo onde, no plano, nada de pessoal e criativo emerge. Ela poderia denominar-se como o filho da reflexão e da irreflexão.

Proporciona ao indivíduo o sossego de não perma-necer sozinho no seu agir, mas apoia-se nos exercícios habituais da mesma actividade como num firme alicerce, que alivia o acto presente da dificuldade de se suster a si próprio. Onde imitamos, deslocamos não só a exigência da energia produtiva de nós para o outro, mas também ao mesmo tempo a responsabilidade por este agir: ela liberta assim o indivíduo da dor da escolha e deixa-o, sem mais, aparecer como um produto do grupo, como um receptáculo de conteúdos sociais. O impulso imitativo enquanto prin-cípio caracteriza um estádio evolutivo, no qual está vivo o desejo de actividade pessoal conveniente, mas falta ainda a capacidade de a esta fornecer conteúdos individuais.

O progresso para lá deste estádio consiste em que, fora do dado, do passado, do transmitido, o futuro deter-mina o pensamento, a acção e o sentimento: o homem teleológico é o pólo oposto do imitador. Assim a imita-ção em todas as suas manifestações, para as quais ela é um factor configurador, corresponde a uma das orientações básicas do nosso ser, àquela que se satisfaz com a fusão do indivíduo na generalidade, que acentua o permanente na mudança. Mas onde a mudança se busca, pelo contrá-rio, no permanente, a diferenciação individual, o separar-se

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da generalidade, a imitação é o princípio negador e inibi-dor. E porque o anseio de se arrimar ao dado, de fazer o igual e de ser como os outros é o inimigo irreconciliável da ânsia que quer avançar para novas e específicas formas de vida, a vida social surgirá então como o lugar de batalha, onde cada palmo é disputado por ambos, e as instituições sociais como conciliações – nunca duradouras – em que o seu antagonismo persistente toma a forma externa de uma cooperação.

As condições vitais da moda como uma manifestação constante na história da nossa espécie podem assim descre-ver-se. Ela é imitação de um modelo dado e satisfaz assim a necessidade de apoio social, conduz o indivíduo ao tri-lho que todos percorrem, fornece um universal, que faz do comportamento de cada indivíduo um simples exemplo. E satisfaz igualmente a necessidade de distinção, a tendência para a diferenciação, para mudar e se separar. E este último aspecto consegue-o, por um lado, pela mudança dos con-teúdos, que marca individualmente a moda de hoje em face da de ontem e da de amanhã, consegue-o ainda de modo mais enérgico, já que as modas são sempre modas de classe, porque as modas da classe superior se distinguem das da inferior e são abandonadas no instante em que esta última delas se começa a apropriar. Por isso, a moda nada mais é do que uma forma particular entre muitas formas de vida, graças à qual a tendência para a igualização social se une à tendência para a diferença e a diversidade individuais num agir unitário. Se indagássemos a história das modas, que até agora só foi pesquisada na evolução dos seus conteú-dos, segundo o seu significado para a forma do processo

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social, então ela seria a história das tentativas de adaptar, cada vez mais perfeitamente, a satisfação destas duas ten-dências contrárias ao estado da respectiva cultura indivi-dual e social. Nesta natureza básica da moda ordenam-se os traços psicológicos individuais que nela observamos.

Ela é, como eu dizia, um produto da divisão de classes e comporta-se como muitas outras configurações, sobretudo como a honra, cuja dupla função é formar um círculo social fechado e, ao mesmo tempo, isolá-lo dos outros. Assim como a moldura de um quadro dá à obra de arte o carácter de um todo unitário, em si concentrado, de um mundo para si e, ao mesmo tempo, actuando para o exterior, corta todas as relações com o ambiente espacial, assim como a energia unitária de tais formas não é para nós expressável a não ser enquanto a decompomos na dupla acção para dentro e para fora – assim também a honra extrai o seu carácter, e sobre-tudo os seus direitos morais – direitos que, com muita fre-quência, são percebidos como injustiça pelo ponto de vista dos que estão fora da classe – do facto de o indivíduo na sua honra representar e preservar simultaneamente a honra do seu círculo social, do seu estado.

A moda significa, pois, por um lado, a anexação do igualitariamente posto, a unidade de um círculo por ela caracterizado, e assim o fechamento deste grupo perante os que se encontram mais abaixo, a caracterização destes como não pertencendo àquele. Unir e diferenciar são as duas funções básicas que aqui se unem de modo insepará-vel, das quais uma, embora constitua ou porque constitui a oposição lógica à outra, é a condição da sua realização.

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[Arbitrariedade da moda]Que a moda seja, pois, um mero produto das necessi-

dades sociais talvez não se demonstre de modo mais forte do que pelo facto de, numa relação teleológica objectiva, estética ou outra, inúmeras vezes se não encontrar o mínimo fundamento para as suas configurações. Embora em geral o nosso vestuário, por ex., se ajuste objectivamente às nos-sas necessidades, não impera qualquer vestígio de conve-niência nas decisões com que a moda as forma: se hão-de usar-se saias compridas ou curtas, penteados pontiagudos ou largos, gravatas coloridas ou pretas. Coisas tão odio-sas e adversas são, por vezes, modernas, como se a moda quisesse mostrar o seu poder justamente porque tomamos sobre nós, por causa dela, o mais horroroso; a casualidade com que ela, umas vezes, ordena o conveniente, outras o abstruso, e uma terceira vez o totalmente indiferente do ponto vista objectivo e estético, mostra precisamente a sua plena indiferença em face das normas objectivas da vida, com que justamente se refere a outras motivações, isto é, as formalmente sociais, como as únicas que restam.

Pode ela decerto, de vez em quando, alojar conteúdos objectivamente fundados, mas, como moda, actua quando a independência perante qualquer outra motivação se faz sentir de modo positivo, da mesma forma que o nosso agir por dever só se impõe, como totalmente moral, quando o seu conteúdo externo e o seu fim a tal não nos deter-minam, mas apenas o facto de ele ser justamente dever. Por isso, o domínio da moda é sobretudo intolerável nos recintos em que apenas devem imperar decisões objecti-vas: religiosidade, interesses científicos, e até socialismo e

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individualismo, tornaram-se decerto coisas de moda; mas os motivos por que se deveriam acatar estes conteúdos vitais estão em absoluta contradição com a plena insubs-tancialidade nas mudanças da moda.

[Moda e classes]Quando as formas sociais, o vestuário, os juízos esté-

ticos, o grande estilo em que o homem se expressa, se con-cebem em contínua remodelação através da moda, então esta, ou seja, a moda recente, compete em tudo apenas às camadas superiores. Logo que as classes inferiores come-çam a apropriar-se da moda, ultrapassando assim a fronteira instituída pelas superiores e rompendo, destas, a homoge-neidade da co-pertença assim simbolizada, as classes supe-riores desviam-se desta moda e viram-se para outra, graças à qual de novo se diferenciam das grandes massas, e na qual o jogo mais uma vez se inicia. Pois, naturalmente, as classes inferiores olham para cima e procuram subir e conseguem isto sobretudo nas áreas que estão sujeitas à moda, porque estas são, de longe, as mais acessíveis à imitação externa. O mesmo processo se desenrola – nem sempre de modo tão evidente como, porventura, entre as senhoras e as criadas – entre as diversas camadas das classes mais altas. Pode observar-se de muitas formas que quanto mais se aproxi-mam os círculos tanto mais desatinada é a caça da imitação pelos de baixo e a fuga para a novidade pelos de cima; a actual economia financeira acelerará e tornará assaz visível este processo, porque os objectos da moda, tais como as exterioridades da vida, são muito particularmente acessí-veis à simples posse do dinheiro, e neles se estabelece, por

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isso, de modo mais fácil a paridade com o estrato superior do que em todas as áreas que exigem uma prova individual, que não se pode comprar com dinheiro.

Em que medida este momento da segregação – a par do momento imitativo – constitui a essência da moda mostram-no as suas manifestações onde a estrutura social não possui nenhumas camadas sobrepostas; então, é des-sas camadas postas lado a lado que ela, muitas vezes, se apodera. Conta-se de alguns povos primitivos que grupos muito vizinhos e vivendo em condições exactamente idên-ticas instituem, por vezes, modas fortemente discriminan-tes, pelas quais cada grupo assinala tanto o isolamento para dentro como a diferença para fora.

[A moda e o estrangeiro]Por outro lado, a moda é importada do exterior com

particular predilecção e é muito mais apreciada dentro de um círculo, se ela não tiver surgido no seu seio; já o profeta Sofonias fala, indignado, da ostentação com a indumen-tária estrangeira. Na realidade, a origem exótica da moda parece favorecer com especial intensidade a fusão dos cír-culos em que ela se aplica; justamente por vir de fora, sus-cita aquela forma particular e significativa de socialização, que se inicia através da comum referência a um ponto situ-ado no exterior. Por vezes, é como se aparentemente os elementos sociais, tal como os eixos dos olhos, convergis-sem melhor para um ponto que não se encontra demasiado perto. Assim, entre os povos primitivos, o dinheiro, por-tanto o valor económico sem mais, o objecto do interesse geral mais extremo, consiste muitas vezes em sinais que se

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importam de fora; por isso, em várias regiões (nas ilhas Salomão, em Ibo no Níger) existe uma espécie de indústria para elaborar, a partir de conchas ou de outra coisa, sinais pecuniários que circulam como dinheiro, não no lugar de fabrico, mas nas regiões vizinhas, para onde são exportados – tal como as modas são produzidas em Paris com o sim-ples fito de se tornarem modas em qualquer outro lugar. Também em Paris a moda ostenta a mais ampla tensão e reconciliação dos seus elementos dualistas. O individua-lismo, a adaptação ao assentar-bem pessoal, é muito mais profundo do que na Alemanha; mas persiste aí com força um certo enquadramento mais amplo do estilo geral, da moda vigente, de modo que a aparência individual nunca sai do universal, antes dele se destaca.

Quando falta mesmo só uma das duas tendências sociais que se devem reunir para a formação da moda – a necessidade de união, por um lado, e a necessidade de sepa-ração, por outro – ela não chegará a constituir-se, acabará o seu reino. Por isso, as classes inferiores têm muito poucas e raras modas específicas; e as modas dos povos primitivos são, por isso, também muito mais estáveis do que as nos-sas. Falta nas últimas, em virtude da sua estrutura social, o perigo da mistura e da confusão que induz as classes dos povos civilizados a diferenciar-se pela indumentária, pela conduta, pelo gosto, etc.

[O vestuário novo]É precisamente através destas diferenciações que os

sectores de grupos interessados na separação se mantêm unidos: o modo de andar, a cadência, o ritmo dos gestos

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são, sem dúvida, essencialmente determinados pelo vestu-ário; homens vestidos de modo semelhante comportam-se de modo relativamente semelhante.

Para a vida moderna, com a sua cisão individualista, isto tem um valor de todo especial. E, entre os povos pri-mitivos, a moda será também menor, ou seja, mais estável, porque a necessidade da novidade das impressões e das for-mas de vida, abstraindo inteiramente do seu efeito social, é neles muito menor. A mudança da moda mostra a medida do embotamento da sensibilidade; quanto mais nervosa for uma época, tanto mais depressa se alteram as suas modas, porque a necessidade de estímulos diferenciadores, um dos sustentáculos essenciais de toda a moda, caminha de braço dado com o esgotamento das energias nervosas. Esta é já por si uma razão por que as classes superiores constituem o lugar genuíno da moda.

Em relação aos motivos puramente sociais que a ori-ginam, dois povos primitivos muito chegados entre si for-necem exemplos muito comprovativos para o seu objectivo de inclusão e de exclusão. Os cafres possuem uma hierar-quia social ricamente articulada e, no meio deles, encon-tra-se uma mudança bastante rápida da moda, embora o vestuário e o adorno se achem sujeitos a certas limitações legais; em contrapartida, os bosquímanos, nos quais não teve em geral lugar uma formação de classes, não elabora-ram nenhuma moda, ou seja, não há neles nenhum interesse fixo pela mudança de vestuário e ornamento. Estas razões negativas impediram, de vez em quando, justamente nos pináculos da cultura, mas agora com plena consciência, a formação da moda. Em Florença, por volta do ano 1390,

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