fernando pessoa

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Fernando Pessoa ortónimo: Eu não evoluo, viajo Características temáticas: oposição sinceridade/fingimento, sentir/pensar, consciência/inconsciência; solidão interior; angústia existencial; dor de viver e dor de pensar; tentativa de superação através de evocação da infância; refúgio no sonho; intelectualização da emoção; intuição de um destino colectivo e épico para o seu País. Características de linguagem e estilo: grande sensibilidade musical (aliterações, ritmo, verso geralmente curto, predomínio da quadra e da quintilha); adjectivação expressiva; pontuação emotiva; uso frequente de frases nominais; comparações, metáforas originais, antíteses; reaproveitamento de símbolos tradicionais (água, rio, mar,...); linguagem sóbria e límpida. Alberto Caeiro: Eu não penso, sinto Características temáticas: o “Mestre” dos outros; o poeta dos sentidos – Sensacionismo (predomínio das sensações por oposição ao pensamento; poesia do “olhar”; poesia das sensações tais como são; interpretação do mundo a partir dos sentidos); relação de harmonia com a natureza (integração e comunhão com a Natureza; atenção à “eterna novidade do mundo”; deambulismo bucólico; recusa do pensamento; aceitação do mundo, da vida, da morte; poesia do presente e imediato; panteísmo naturalista). Mas também o paradoxo: contradição entre a “teoria” e a “prática” Características de linguagem e estilo: verso livre, métrica e estrofes irregulares; pobreza lexical, linguagem simples; adjectivação objectiva; frases simples e predomínio do presente do indicativo (e uso do infinito ou do gerúndio); predomínio da coordenação e do polissíndeto; nomes concretos e artigos definidos. Mas também o paradoxo: comparações e metáforas; discurso argumentativo, com causais e adversativas Ricardo Reis: Eu domino-me e abdico Características temáticas: Paganismo (crença nos deuses e na civilização grega); fatalismo (passividade, indiferença, ausência de compromisso com o Mundo; consciência da

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Page 1: Fernando Pessoa

Fernando Pessoa ortónimo: Eu não evoluo, viajo

Características temáticas: oposição sinceridade/fingimento, sentir/pensar, consciência/inconsciência; solidão interior; angústia existencial; dor de viver e dor de pensar; tentativa de superação através de evocação da infância; refúgio no sonho; intelectualização da emoção; intuição de um destino colectivo e épico para o seu País.

Características de linguagem e estilo: grande sensibilidade musical (aliterações, ritmo, verso geralmente curto, predomínio da quadra e da quintilha); adjectivação expressiva; pontuação emotiva; uso frequente de frases nominais; comparações, metáforas originais, antíteses; reaproveitamento de símbolos tradicionais (água, rio, mar,...); linguagem sóbria e límpida.

Alberto Caeiro: Eu não penso, sinto

Características temáticas: o “Mestre” dos outros; o poeta dos sentidos – Sensacionismo (predomínio das sensações por oposição ao pensamento; poesia do “olhar”; poesia das sensações tais como são; interpretação do mundo a partir dos sentidos); relação de harmonia com a natureza (integração e comunhão com a Natureza; atenção à “eterna novidade do mundo”; deambulismo bucólico; recusa do pensamento; aceitação do mundo, da vida, da morte; poesia do presente e imediato; panteísmo naturalista). Mas também o paradoxo: contradição entre a “teoria” e a “prática”

Características de linguagem e estilo: verso livre, métrica e estrofes irregulares; pobreza lexical, linguagem simples; adjectivação objectiva; frases simples e predomínio do presente do indicativo (e uso do infinito ou do gerúndio); predomínio da coordenação e do polissíndeto; nomes concretos e artigos definidos. Mas também o paradoxo: comparações e metáforas; discurso argumentativo, com causais e adversativas

Ricardo Reis: Eu domino-me e abdico

Características temáticas: Paganismo (crença nos deuses e na civilização grega); fatalismo (passividade, indiferença, ausência de compromisso com o Mundo; consciência da precariedade da vida; medo da morte); Epicurismo (busca da felicidade relativa, moderação nos prazeres, fuga à dor; “carpe diem” - vive o momento); Estoicismo (aceitação das leis do destino - a passagem do tempo e a morte - , autodisciplina face às paixões e à dor; intelectualização das emoções); culto do Belo, como forma de superar a efemeridade dos bens e a miséria da vida.

Características de linguagem e estilo: Classicismo (uso da Ode, de ideias e linguagem de inspiração clássica; predomínio da subordinação; uso frequente do gerúndio, do imperativo ou do conjuntivo; metáforas, comparações, ...; estilo construído com muito rigor; discurso moralista).

Álvaro de Campos: Eu sinto tudo e canso-me

Características temáticas: Futurismo (2ª fase): exaltação da civilização industrial e da técnica; da força, da violência, do excesso; ruptura com a lírica tradicional; atitude escandalosa. Sensacionismo: vivência excessiva das sensações, “Sentir tudo de todas as maneiras”, vontade doentia de fusão com o mundo tecnológico. Abulia (3ª fase): cansaço, tédio, pessimismo, solidão; angústia existencial e dor de pensar; fragmentação do “eu”; as saudades da infância. (o “reencontro” com o F. Pessoa Ortónimo)

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Características de linguagem e estilo: verso livre, por vezes, muito longo; onomatopeias, aliterações; grafismos expressivos; mistura de níveis de língua; estrangeirismos e neologismos; enumerações excessivas, exclamações, interjeições, apóstrofes, pontuação emotiva; metáforas ousadas, antíteses, personificações, hipérboles, anáforas,...; desvios às regras sintácticas.

Fernando Pessoa Fernando Pessoa nasceu no dia 13 de junho de 1888 na cidade de Lisboa. Levou uma vida anônima e solitária e morreu em 1935, vítima de cirrose hepática. Na poesia, porém, sua vida foi repleta de surpresas: foi o maior criador de heterônimos da Literatura, objeto de maior parte dos estudos sobre sua vida e sua obra, e, por isso, é considerado um dos maiores nomes da Literatura Universal. 

Ao contrário dos pseudônimos, os heterônimos constituem uma personalidade fictícia, sobretudo de autores. Sendo assim, Fernando Pessoa não só criou outros nomes para assinar seus textos, mas, junto deles, criou suas respectivas biografias. Essa questão resulta de características pessoais referentes à personalidade do próprio Fernando Pessoa: o desdobramento do "eu", a multiplicação de identidades e a sinceridade do fingimento, uma condição que patenteou sua criação literária. Vejamos as principais características de cada um: 

Fernando Pessoa (ortônimo) Tinha uma personalidade com conflitos não solucionados, com inibições de um comportamento sexualmente indeciso, oscilando entre o melindre e a tentação dos sentidos, decepcionado pelo seu corpo material e pelas circunstâncias de vida que o limitavam - era magro, calvo disfarçado pelo chapéu, sem sucesso amoroso, sem carreira profissional, endividado, porém com uma superação na escrita que proporcionou desdobramentos de sua personalidade. Vivia em um processo constante de busca esotérica sobre si mesmo e sobre Portugal. 

Alberto Caeiro É o próprio paganista, mestre dos outros heterônimos, pensava de forma simples, sem questionamentos. Para Caeiro, não há mistérios nas coisas. A alma isolada é inexistente, pois é algo que não se vê. Ela só passa a existir quando se une ao corpo, que é palpável e visível. Cristo existe desde que materializado - Cristo pode ser uma flor... Na poesia, tem uma estética na qual a imperfeição compõe uma obra desarmoniosa, sem preocupação com estética e rimas - é tido como poeta desleixado. A própria natureza é sempre desigual, por isso, para ele, não existe harmonia, as coisas são diferentes umas das outras. Caeiro não se prende a nada - viveu por viver. Para ele, viver é normal. 

Álvaro de Campos Tem a visão multifacetada do real e a crise de identidade é seu marco. Era solitário e depressivo. Viveu tudo na vida intensamente. Possuía a filosofia do niilismo - nada valeu a pena, tudo foi em vão. Expressava tédio por um mundo que não o aceitava, colocava-se com linguagem despida de beleza. Sua poesia era grotesca, formada em um gênero literário desqualificado, sob a finalidade de aliviar-nos a beleza. O seu esforço em conhecer a si próprio fragmenta o seu próprio eu. Mostra-se impotente frente ao real. 

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Ricardo Reis Utiliza estilo refinado na forma poética, mediado pela frieza e pelo controle emocional. Oferece reflexão sobre as coisas, define a vida como passageira, vamos morrer um dia - Carpe Diem. É considerado um autor clássico por utilizar figuras mitológicas e vocabulário requintado. Para ele, o que vale é o real visto em sua superfície, apreendido pelos sentidos. Para Ricardo Reis, a religião é pagã (Cristo é só mais um Deus), a natureza é a pluralidade das coisas. O que predomina é a razão sobre a sensibilidade, o homem é impotente perante a morte, sendo incapaz de superá-la. 

Observando os três heterônimos, é fácil notar que Fernando Pessoa - autor dotado de enorme singularidade - multiplicou sua voz poética em outras vozes diferentes e as tornou reais dentro no mundo imaginário da Literatura. Como irradiador desse movimento, autodenominou-se um "drama em gente".

Autopsicografia 

O poeta é um fingidor.Finge tão completamenteQue chega a fingir que é dorA dor que deveras sente.E os que lêem o que escreve,Na dor lida sentem bem,Não as duas que ele teve,Mas só a que eles não têm.

E assim nas calhas de rodaGira, a entreter a razão,Esse comboio de cordaQue se chama coração

Pessoa, Fernando. Lírica e dramática, In: Obras de Fernando Pessoa 

Alberto caeiro

análise do poema v do "guardador de rebanhos"

O sentido do quinto poema do Guardador de Rebanhos acaba por ser o sentido intimo de todo o livro: a ausência de pensamento deve reger a maneira de pensar dos homens que se querem libertar e encontrar a natureza. 

Para Caeiro, metafisica tem um sentido extremamente restrito, muito menor do que o seu sentido original e etimológico - é tudo o que vai além da simples sensação. Toda e qualquer análise do que é visto pelos sentidos é metafisica, e é uma ilusão, porque o pensamento afasta o homem do seu destino, que é ser natural, ser apenas mais um ser vivo na natureza.

O paradoxo no entanto é inegável. Caeiro recusa o pensamento mas usa o pensamento, analisa a sua própria maneira de pensar. É uma armadilha a que Caeiro não pode

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escapar, a não ser caindo nela e libertando-se de seguida das suas presas. 

A extrema negatividade do poema serve de contraponto a esta tarefa enorme. Caeiro nega tudo o que é positivo para todos os outros homens, como que confirmando a sua personalidade única e o seu desafio original. Ele é um original entre os homens - esta é uma conclusão que nem Fernando Pessoa pode negar, perante as evidência da revolução do pensamento de Caeiro. 

Mas por detrás deste despir da metafisica, da simplicidade, escondem-se múltiplas interpretações. A menor das quais não será o objectivo egoísta do "mestre do mestre"; que inventa para si mesmo um templo e um deus menor para que se sinta livre do compromisso de viver. É Pessoa afinal que justifica a presença de Caeiro a si próprio, na medida em que Caeiro o permite viver um novo e extasiante período da sua própria vida.

análise do poema "se eu morrer novo"

O poema "Se eu morrer novo" é um poema de Alberto Caeiro, incluído nos "Poemas Inconjuntos" do poeta.  Os poemas inconjuntos são aqueles poemas que, não cabendo quer no "Guardador de Rebanhos" ou no "Pastor Amoroso" acabaram por ficar dispersos e reunidos num terceiro conjunto - por exclusão de partes - denominado precisamente poemas inconjuntos (ou seja, poemas não organizados). Estes poemas caracterizam-se por serem ligeiramente diferentes, quer em temática quer em forma, dos poemas "clássicos" de Alberto Caeiro, sobretudo quando comparados com o conjunto principal do "Guardador de Rebanhos".  Alberto Caeiro foi construído - enquanto personagem heteronímica - como alguém com fraca saúde. Ele viverá pouco tempo e morrerá doente, com a mesma doença que afligiu o pai de Pessoa. Neste poema Caeiro fala-nos da possibilidade de morrer sem publicar os seus versos e não podemos deixar de fazer um paralelo com o próprio Fernando Pessoa, no que toca a esta preocupação. Seria bem possível que Pessoa fala-se dele próprio ao escrever estes versos sob o nome de Caeiro. É pois ele que se preocupa em morrer sem publicar.  Caeiro é caracterizado como sendo o heterónimo "natural", que aceita as coisas como elas são, sem as querer compreender.  A sua atitude neste poema é particularmente estóica - e nisso aproxima-se de Ricardo Reis - pois ele parece dar a entender que, se não for publicado, é porque o destino assim o entendeu e nada haverá a lamentar. O que há aqui verdadeiramente de Caeiro é precisamente a referência ao "pensar": "não se ralem", ou seja, não pensem nisso. É a mesma mensagem que por exemplo achamos no "Guardador", quando ele recusa o pensamento das coisas face à aceitação pura delas, assim como elas são. Ele aqui também se refere a uma "coisa", embora seja algo menos concreto, menos natural.  Mesmo sem serem impressos os versos continuarão a ser também eles "naturais", embora seja também natural que eles sejam impressos - a sua natureza, a própria natureza da poesia, é ser lida por outros, como as flores nascem para florescer de cima da terra. Há nesta expressão um claro desvio ao pensamento natural de Caeiro - e nisso os "Poemas inconjuntos" podem ser vistos enquanto uma deturpação desse pensamento original. O Caeiro "original" não se deixaria enredar por este tipo de pensamento - diria apenas que os poemas seriam belos mesmo sem serem publicados, mas Caeiro, neste

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poema inconjunto não se fica por aí, vai mais longe. Descrevendo quem era a quem o pudesse não conhecer, ele chega mesmo a dizer que "uma vez amei". O Caeiro do "Guardador" nunca diria esta frase, pois para ele o amor era um intruso à visão natural e simples do mundo, que se contempla de longe mas do qual se participa de perto, sem pensar em nada. Amar é pensar e por isso, em lógica, o amor seria recusado enquanto pensamento do outro.  É possível - e muito interessante - contrapor então este poema inconjunto aos poemas do "Guardador" e ver em que medida o "Guardador" é o repositório da heterodoxia de Caeiro, do seu pensamento mais restrito e original, enquanto que os outros poemas denotam já uma certa degenerescência do seu pensamento, uma quebra de convicção, sobretudo por influência de um caso amoroso (cuja influência é por demais evidente no conjunto "Pastor Amoroso").

 

análise do poema "se depois de eu morrer"

Este poema, datado de 8 de Novembro de 1915 pertence ao conjunto de poemas de Alberto Caeiro denominado por "Poemas Inconjuntos".

Os poemas inconjuntos são aqueles poemas que, pela sua natureza, não puderam ser incluídos nem no "Guardador de Rebanhos" nem no "Pastor Amoroso", ou seja, são poemas desgarrados, sem temas específicos, que foram deixados num conjunto externo. 

No entanto por este poema inconjunto passam temas queridos a Alberto Caeiro - nomeadamente a falta de metafísica, a ausência de pensamento e uma sensação forte de não pertencer a nada, um alheamento forte da realidade e da vida. 

Diz Caeiro que a sua biografia (a sua vida) tem só duas datas: a do seu nascimento e a da sua morte. Todos os outros dias são seus. O que quer Caeiro dizer com isto?

É simples. Os dias da vida de Caeiro pertenceram-lhe, não pertenceram à humanidade, à realidade exterior. Apenas duas datas exteriores teve Caeiro - quando nasceu, porque não o podia evitar, e a morte, porque também lhe será uma data alheia que não pode controlar. No meio das duas, no que é costume dizer-se se enchem as biografias das pessoas, Caeiro não acha nada que possa pertencer a uma biografia comum, porque os seus dias não foram dias normais, de um homem com uma vida normal. 

Caeiro vive a sua vida para dentro - é uma realidade interior, vivida interiormente. No exterior não há nada de Caeiro, apenas uma calma intensa, de um homem tranquilo, sem acção. 

"Sou fácil de definir", diz ele. E na realidade é mesmo. Porque ele só viu. Viu como um "danado", ou seja, foi essencialmente um observador da realidade. E mais nada. Nada. Não amou com sentimento, nem desejou cegamente. Nem sequer ouviu só por ouvir. Compreendeu a realidade das coisas serem diferentes umas das outras - sem ligação entre si, ou seja, sem significado. Compreendeu com os olhos e nunca com o pensamento. 

O mesmo é dizer que Caeiro não quis pensar. Só quis ver. E isso impediu que ele tivesse uma vida como os outros tinham uma vida, pois ele é apenas um contemplador, não agiu, não interferiu com a realidade exterior. Foi uma personagem diáfana que passou pela realidade humana exterior.

A morte chegou-lhe como o sono a uma criança. 

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Esta metáfora simples simboliza a posição de Caeiro perante a vida - quer aproximar-se à inocência de uma criança (a criança nova que ele refere no Guardador de Rebanhos). As crianças, enquanto são crianças, não sabem que vivem.

Além disso apenas foi o "ùnico poeta da natureza". Uma afirmação estranha, para quem não viveu um único dia. Mas permitimos a Caeiro este erro momentâneo, se compreendermos a sua missão impossível. 

 

análise do poema "quando vier a primavera"

O poema "Quando vier a Primavera" é um poema de Alberto Caeiro, incluído nos "Poemas Inconjuntos" do poeta e publicado pela primeira vez em 1925 na revista "Athena".  Os poemas inconjuntos são aqueles poemas que, não cabendo quer no "Guardador de Rebanhos" ou no "Pastor Amoroso" acabaram por ficar dispersos e reunidos num terceiro conjunto - por exclusão de partes - denominado precisamente poemas inconjuntos (ou seja, poemas não organizados). Estes poemas caracterizam-se por serem ligeiramente diferentes, quer em temática quer em forma, dos poemas "clássicos" de Alberto Caeiro, sobretudo quando comparados com o conjunto principal do "Guardador de Rebanhos".  Relembre-se que Caeiro apenas escreveu um livro - o "Guardador de Rebanhos", sendo que o resto dos seus poemas ficaram soltos e só posteriormente foram agrupados pela sua temática (ou falta dela).  Mas olhando com maior atenção para o poema, passemos a analisá-lo estrofe a estrofe.  Quando vier a Primavera,Se eu já estiver morto,As flores florirão da mesma maneiraE as árvores não serão menos verdes que na Primavera passada.A realidade não precisa de mim. Sinto uma alegria enormeAo pensar que a minha morte não tem importância nenhuma. As primeiras duas estrofes introduzem-nos ao poema e a uma temática bem cara a Alberto Caeiro, nomeadamente a sua posição face à natureza. A maior ambição de Caeiro era deixar de pensar e ele acreditava mais que nada nessa necessidade de simplificar a vida. Deixar de pensar seria a maneira eficaz de deixar de sofrer, porque o pensamento é a busca de significados, de respostas, que nunca verdadeiramente podem ser alcançadas.  Ao descrever a chegada da Primavera e ao colocar-se, imaginariamente, já morto, o sujeito poético pretende transmitir essa mesma sensação de naturalidade. A natureza não pensa e por isso todos os seus processos são conjuntos e não individuais. No seio da natureza a ausência de um elemento não pára a evolução contínua dos restantes. É por isso que um pensamento aparentemente triste - a morte - gera uma alegria tão grande em Caeiro. Se a natureza gnora a sua morte, é porque ele faz parte da natureza e é aceite por ela como seu constituinte.  Se soubesse que amanhã morriaE a Primavera era depois de amanhã,

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Morreria contente, porque ela era depois de amanhã.Se esse é o seu tempo, quando havia ela de vir senão no seu tempo?Gosto que tudo seja real e que tudo esteja certo;E gosto porque assim seria, mesmo que eu não gostasse.Por isso, se morrer agora, morro contente,Porque tudo é real e tudo está certo. Podem rezar latim sobre o meu caixão, se quiserem.Se quiserem, podem dançar e cantar à roda dele.Não tenho preferências para quando já não puder ter preferências.O que for, quando for, é que será o que é. A aceitação do destino é um outro ponto fundamentel na visão do mundo de Alberto Caeiro. Na sua visão do mundo o homem não luta contra o destino, antes o aceita sem discussão, na sua inevitabilidade. Não aceitar o destino seria pensar na vida e não aceitá-la tal como ela é. Este objectivismo absoluto de Caeiro é por vezes difícil de compreender, mas é, também, imensamente simples.  Para finalizar basta que lembremos o poema II do "Guardador", que resume na essência aquilo que aqui dissémos:  Creio no Mundo como num malmequer,Porque o vejo. Mas não penso nelePorque pensar é não compreender...O Mundo não se fez para pensarmos nele(Pensar é estar doente dos olhos)Mas para olharmos para ele e estarmos de acordo…

 

Ricardo reis

análise da ode "sofro, lídia o medo do destino"

Nascido (literariamente) em 1897, Ricardo Reis tem de pessoa a sua disciplina mental, que falta por exemplo a Álvaro de Campos.

Segundo muitos dos críticos, Ricardo Reis é aquele, de entre os heterónimos, aquele que se aproxima mais de Pessoa-ele-próprio. Ou seja, aquele em que a forma e o conteúdo dos seus poemas mais se aproxima da verdadeira intenção de Pessoa. Pois se Campos é o modernismo em si mesmo e Caeiro é a ascese, a despersonalização completa, a Reis resta o tudo que é ainda Pessoa em si mesmo.

Reis é analítico, como Pessoa é analítico e como ele, também segue uma herança eminentemente clássica, conservadora, que não está presente nos outros heterónimos. Reis destaca-se da poesia que Pessoa escreve em nome próprio, talvez mais pelo seu poder de síntese. Reis é imbuído de um sentimento religioso, mesmo sendo adepto do paganismo, pois tem um panteão de deuses, que mesmo dentro da natureza, podem aceitar Cristo. É porventura essa também a crença de Pessoa, que se considera um "cristão gnóstico", oposto às igrejas organizadas. Reis é como Pessoa, favorável à monarquia, favorável a uma visão de nobre sobre a vida que nos oprime, no que isso tem de inglês, de indiferente.

Ás Odes de Ricardo Reis, vários críticos têm achado semelhanças nas Odes do poeta clássico Horácio. No que ambas têm de avisos nobres, no que ambas transmitem de uma visão da vida permeada pela calma e pela filosofia prática.

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Se bem que é verdade que há semelhanças, Pessoa-Reis não é como Horácio, defensor de vida dentro dos mesmos moldes. Pois que Horácio defende uma visão epicurista da vida, em que se devem degustar os pequenos prazeres do momento e não as promessas eternas do futuro, enquanto Pessoa-Reis defende precisamente a renúncia do amor. Aqui acha-se uma qualidade essencial de Pessoa: a de sempre filtrar as suas influências (como indicou António Quadros). Pois que se ele recebe Horácio, não o copia, mas filtra-o por outros olhos.

Parece-me que, numa análise mais próxima, esta incapacidade de amar, ou a descrença no amor, é uma coisa muito própria de Pessoa, relacionada com a sua infância e também com a sua idade adulta. Ele um homem sempre desiludido com a "traição" da mãe, que, adulto, desconfia do amor de outras mulheres, afastando-se delas, mas sempre desejando o que não pretende alcançar.

Passando em concreto à análise da Ode que me pede:

É um diálogo do poeta com Lídia.

Há que notar uma coisa muito importante - destacada pelo iminente critico Pessoano Angel Crespo - que é o facto de tanto Lídia como o seu interlocutor são "crianças grandes", que nunca se tocam nem se beijam.

Parece-me que Pessoa dialoga consigo mesmo, projectando o seu medo e desilusão numa figura feminina, que encarna simultaneamente a figura da sua mãe e da sua amante.

Os seguintes temas estão nesta Ode: 1) o medo do futuro para além da segurança da infância ("Sofro, Lídia, do medo do destino); 2) o ideal de "uma vida passiva e silenciosa" (Angel Crespo) ("Deixem-me os deuses minha vida sempre sem renovar); 3) a infância como idade ideal, para os espíritos puros (como ele e Lídia, ambos simbolicamente crianças) (Ficando eu quase sempre o mesmo/Indo para a velhice como um dia entre no anoitecer).

Estes temas, que encontramos em Reis, são temas Pessoanos, mas de um Pessoa genuíno, um Pessoa verdadeiro, por detrás das suas máscaras e realidades alternativas. São os temas da sua poesia sincera, usando palavras de Gaspar Simões, seu primeiro biógrafo.

É Pessoa ele próprio que atravessa estas palavras sentidas. "Sofro, Lídia o medo do destino", porque não queria o futuro, por medo de não poder regressar ao passado feliz que conhecera. "A leve pedra que um momento ergue/As lisas rodas do meu carro, aterra/ meu coração", ou seja, o movimento que o faz avançar, arruína-lhe as esperanças que ele constrói, sempre irrealizáveis, idealizadas, e por isso o movimento é doloroso, parte-lhe o coração esperar pelo melhor. "Tudo quanto me ameaça de mudar-me", tudo quanto seja novo, melhor ou pior, tudo o que seja mudança. "Para melhor que seja, odeio e fujo./Deixem-me os deuses minha vida sempre sem renovar", porque o que nunca muda, é o que é certo, o que se pode controlar e conhecer, e o desconhecido é sempre pior para quem tem medo de conhecer, por se ter protegido, fechando-se a ele. "Meus dias, mas que um passe outro passe/ficando eu sempre quase o mesmo; indo/para a velhice como um dia/Entra no anoitecer", ou seja, que a vida passe por mim, sem que eu passe pela vida, pois se eu me deixar assim, só símbolo, distante, eu não sofrerei mais, eu pelo menos não vou correr o risco de sofrer na vida a desilusão que já senti e que tanto me marcou nela.

 

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análise do poema "não tenhas nada nas mãos"

Reis é o clássico entre os heterónimos de Fernando Pessoa. Trata-se claramente do heterónimo com a personalidade mais vincadamente analitica e formal, é o que escreve em melhor Português e é aquele que mais insiste em referências clássicas, sobretudo Gregas.

Amante do exacto, médico de profissão e frio racionalista, Reis incorpora aquela parte de Pessoa que olha friamente para a realidade e não se emociona com ela. Reis olha simplesmente, como Caeiro, e embora não aceite a realidade sem emoção como Caeiro a aceita, Reis consegue tirar a emoção da realidade, tornando-se também deste modo objectivo.

De certo modo é Caeiro o oposto de Reis. Se Caeiro aceita simplesmente, ingenuamente, Reis analisa demasiado, torna tudo em simbolo. 

Quanto ao poema que refere, vamos passar à sua análise de seguida: 

Não tenhas nada nas mãos Nem uma memória na alma, Que quando te puseremNas mãos o óbolo último,

Ao abrirem-te as mãos Nada te cairá. 

Reis fala do momento da morte. É aquando da morte que Reis diz que não deveremos ter nada nas mãos, nem uma memória na alma. Passa aqui uma ideia cara a Reis, que é o estoicismo - a resistência do homem ao sofrimento. A morte, o momento que todos temem deve - segundo Reis - ser encarado a frio, sem nenhum apoio, "sem nada nas mãos". Tão vazio (e sozinho) deve o homem encarar esta última etapa que mesmo o óbolo (a moeda que se costumava colocar nos mortos para pagar a passagem do Hades, o rio dos Infernos na antiguidade clássica) desapareceria, abertas as mãos. 

Que trono te querem dar Que Átropos to não tire? Que louros que não fanem Nos arbítrios de Minos? 

Átropos era a parca que cortava o fio da vida. Ou seja, decidia a morte. Reis diz-nos "Que trono te querem dar / Que Átropos to não tire?", ou seja, que coisas podes ter em vida, que posições, emprego, dinheiro, status social, que a morte não te tire? Tudo é vão e acaba com a morte, acaba quando Átropos decide cortar o fio da vida. O mesmo com os louros, com as glórias (lembre-se que os atletas eram loureados, presenteados com folhas de louro pelas suas vitórias desportivas). Minos era um dos juizes dos mortos, na mitologia grega.

Que horas que te não tornem Da estatura da sombra Que serás quando fores Na noite e ao fim da estrada. 

A morte é afinal essa sombra em que se torna o homem, desaparecido - uma lembrança - mera sombra, oposição ao sol. A noite e o fim da estrada são representações simbólicas da morte, o apagamento do ser e o fim da vida. 

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Colhe as flores mas larga-as, Das mãos mal as olhaste. Senta-te ao sol. Abdica E sê rei de ti próprio.

Eis o estoicismo de Reis em todo o seu esplendor. Porque tudo se perde, devemos aprender a renunciar e ver nisso um acto nobre da nossa parte. Se renunciarmos, nada vamos perder quando morrermos e se tudo acabamos por perder, melhor é renunciarmos já. Apenas em nós próprios podemos afinal possuir, e possuir afinal só aquela nobreza simples de nos conhecermos - o lema grego altivo "nosce te ipsum", conhece-te a ti mesmo, e, acrescentamos nós, não queiras conhecer nem possuir nada além de ti." 

Se desejar consultar aspectos mais literários da análise deste poema, pode recorrer a este link: 

análise da ode "segue o teu destino"

Ricardo Reis é, de todos os heterónimos de Pessoa, aquele em que o poeta colocou a sua parte mais fria e estóica, de clássico grego, rigoroso e formal. É certo que a poesia de Reis apela ao momento, à vivência da vida sem ilusões e nisto expressa um certo epicurismo, mas é um epicurismo vazio, porque não incita à busca do prazer, antes à renúncia de tudo.

Renúncia é quanto a mim a palavra chave para resumir Reis. Mas renúncia nobre, de maneira altiva, como uma decisão solene e não como uma pena humilhante. Um pouco à maneira de Soares no livro do desassossego. Será esta renúncia que trará mais tarde a Ataraxia, a tranquilidade. 

Dos clássicos gregos, sobretudo de Horácio, Reis aproveita o culto dos deuses múltiplos, o culto do belo e a intelectualização da morte. 

Estilisticamente observa-se a submissão do conteúdo à forma, com o uso de verso decassílabo alternados com hexasassilábicos, um verso branco (sem rima) que usa frequentemente o gerúndio e o imperativo como modos verbais.

Na ode em análise, o uso do imperativo dá um tom geral de comando moral, de ensinamento, tão ao gosto dos clássicos, sobretudo dos gregos. É como se o poeta, chegando a conclusões, as fizesse perdurar no tempo ensinando-as aos seus discípulos. 

Á sua maneira, Reis despreza o conhecimento das coisas, como Caeiro, mas não o faz ver de maneira tão evidente, camuflando-o na inevitabilidade do destino. As duas primeiras estrofes são sinal disso mesmo. Reis aconselha que se viva a vida sem pensar, porque nós nunca vamos mudar na essência do que somos, apenas a nossa interpretação da Natureza - é uma afirmação de grande importância, mas que passa despercebida no tom moral utilizado. Não é uma conclusão, a não ser quando a ouvimos dentro de nós e a percebemos.

Como Caeiro (e Pessoa ele mesmo), Reis procura apenas fugir da dor. Por isso ele recomenda: vive só e deixa a dor nas aras como ex-votos aos deuses. Veja-se o paradoxo - deixar a dor aos deuses como tributo! Seria uma desconsideração, uma afronta, não fosse essa dor tudo o que os homens pensam ter de precioso - a sua vida normal, o oposto da solidão. Reis quer estar só e deixar de sofrer. Portanto ele conclui que a sua dor vem de estar com os outros. A sua dor vem da sua vida exterior. É essa vida que ele dá em sacrifício do altar dos deuses. 

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Isso confirma-se no que ele diz de seguida: vê de longe a vida / nunca a interrogues. A resposta está além dos deuses - ou seja, é absurda, existe para além do divino, e existe apenas porque nós pensamos nela. 

Antes devemos "imitar o Olimpo no nosso coração". Ou seja, ser deuses por dentro, ser mestres do nosso intimo. Não nos pensarmos dar-nos-á acesso a uma tranquilidade que desconhecemos. Deixaremos de sofrer. 

E Reis diz isto tudo de maneira formal e sóbria, quase fria. Usa repetição de sons vocálicos (ama, segue, etc...) e uso de aliterações ("só nós somos sempre"). A comparação surge momentaneamente (como ex-votos) e largos eufemismos escondem respostas demasiado dolorosas para serem dadas sem preparação.

É um discurso rigoroso e preparado, de um orador-poeta, que tomou uma decisão sobre a sua própria vida, mesmo que a continue a viver. Lembremos que Reis era médico, culto, viajado. A sua dor cessou, cremos, apenas no seu interior.

análise do poema "para ser grande sê inteiro"

Ricardo Reis é - nas palavras do Pessoano Prado Coelho - entre os heterónimos o "amante do exacto", aquele que prega os ensinamentos firmes e nobres que vêm pela herança clássica do homem, desde os romanos e os gregos. 

Reis é assim, como Caeiro, aquele que aceita a vida sem pensar, mas Reis, oposto de Caeiro, sente em si mesmo a opressão da Natureza e da vida. Se Caeiro aceita ingenuamente a realidade, Reis ressente-se com ela e gera em si mesmo um sofrimento com a perda que escolhe ser a sua. 

Caeiro acredita num Deus fora de si que é um Deus disforme, feito Natureza, enquanto Reis confia em deuses incertos e vagos, simbolos rasos de uma crença pouco uniforme, à maneira dos clássicos, em que os deuses informam nos medos e nas desconfianças dos homens. 

O poema que refere é curioso neste mesmo sentido. Foi Reis que disse: "não sejamos / Inteiros numa fé talvez sem causa". "Não sejamos inteiros numa fé". 

Reis, se defende não haver uma fé em que o "homem seja inteiro", defende por outro lado que o homem "seja inteiro sem a fé". É um principio basilar da filosofia de Reis que o homem encontre no seu sofrimento a sua nobreza, ou seja, que aceita a dor da vida de maneira inteira, que seja inteiro nesse sofrimento, mesmo que não seja inteiro numa fé. É mesmo por não ser inteiro numa fé que o homem deve ser forte em ser inteiro na realidade, como é. 

"Para ser grande, sê inteiro", diz Reis. O homem, porque aceita a realidade, deve ter uma atitude nobre mesmo perante o sofrimento que vem com essa aceitação.

"Nada teu exagera ou exclui". Reis defende que o homem abdique de tudo, mas que não abdique de si próprio. Apenas aquilo que é ilusório deve ser extirpado da experiência humana, porque traz o homem apenas a humilhação. Entre essas coisas estão a religião e o amor. 

Ataraxia - calma de espírito, resignação - e em Reis sobretudo: indiferença. Este é a palavra chave para resumir a atitude de Reis-Pessoa, e também de Pessoa-Reis, perante a vida. 

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"Sê todo em cada coisa". Ou seja, acha em cada coisa a tua inteira felicidade, porque a felicidade, se está nos objectos, não está na realidade. E é no campo estrito dos objectos, e não da vida, que o homem expressa a sua personalidade. Trata-se enfim de uma visão estóica, de um sofrimento e de uma resignação que encontra apenas um campo muito limitado de liberdade humana. 

Mas toda esta atitude é, curiosamente, nobre. Nobre porque em Reis o homem aceita o seu destino como um gladiador aceita a sua morte na arena. É nobre porque nessa aceitação há uma compreensão obliqua do que se aceita. Reis sabe que vai sofrer ao aceitar o sofrimento desta maneira, que não é a maneira ingénua de Caeiro, mas ao aceitar esse sofrimento afasta-se dos outros homens, torna-se superior a eles pela sua atitude. 

A poesia de Caeiro é uma poesia de segundos. Cada momento é toda uma vida, porque em cada momento se exprime uma liberdade renegada, um alcançar de um objecto, uma finalidade. Isto porque a realidade já não existe, porque há apenas renúncia e resignação.

Quando Caeiro refere o brilho da lua no lago e nos diz que no lago toda a lua vive, mesmo só no reflexo, dá-nos um símbolo para a compreensão completa do seu pensamento, tal como foi explanado anteriormente. 

É na "altura" que a lua vive e não na proximidade. O reflexo dá-nos uma noção do afastamento da realidade que a lua tem com a água onde se reflecte. Quem a vê no reflexo, vê-a por inteiro, mas não conhece a sua essência. No entanto ali está toda a lua. Tal como o homem, ao se dar, pode dar o seu reflexo à realidade, à sociedade, sem que ninguém o conheça no seu intimo. Apenas o seu reflexo. 

Esta atitude, este "viver pelo reflexo", "na altura", é uma atitude nobre e estóica de Reis. Uma atitude de afastamento e nobreza, que caracteriza toda a sua poesia".

 

Alvaro de campos

análise do poema "o que há em mim é sobretudo cansaço"

Pessoa diz, na célebre carta em que relata a origem dos heterónimos, o seguinte: O difícil para mim é escrever a prosa de Reis – ainda inédita – ou de Campos. A simulação é mais fácil, até porque é mais espontânea em verso.)"

O assunto da simulação, vasto em Pessoa, encontra em Álvaro de Campos uma encruzilhada. Porque para Pessoa, escrever a Prosa de Campos é "difícil". Porquê? Porque em Campos, encontramos temas sensíveis a Pessoa e que Pessoa deslocaliza, pelo menos emocionalmente, para a caneta do seu heterónimo engenheiro naval. Esses temas são nomeadamente, os relativos à infância, à memória da sua mãe e das viagens para a África do Sul.

Como nasce Campos? Pessoa diz na mesma carta: "E, de repente, e em derivação oposta à de Ricardo Reis, surgiu-me impetuosamente um novo individuo. Num jacto, e à máquina de escrever, sem interrupção nem emenda, surgiu a Ode Triunfal de Álvaro de Campos – a Ode com esse nome e o homem com o nome que tem.". Ou seja, Campos

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surge em oposição a Reis, o que Reis tem de exacto, Campos tem de maleável, o que Reis apresenta de rigoroso, Campos demonstra irracional.

Poeta sensacionista por excelência, escandaloso e moderno, Campos descreve um mundo em mudança, por efeito retardado (pelo menos em Portugal) da revolução industrial. Mas há, mesmo em Campos, 3 fases distintas (Prado Coelho). A do Opiário (1914); a das grandes Odes (1914-16) e a fase pessoal, que termina com a própria morte de Pessoa (1916-35).

Choca em contraste que o poeta poderoso, à Whitman, que exorta delirante a máquina, que fala do peito as proezas da Energia e do Progresso, surja por vezes tão assumidamente deixado ao tédio, que quase abúlico, fica morto de entusiasmo e capturado pelo niilismo. Prado Coelho diz-nos que "Campos sentiu como Whitman para deixar de sentir como Campos" (in Diversidade e Unidade em Fernando Pessoa). Tão semelhante se torna a Pessoa, que Pessoa o traz consigo para a vida do dia-a-dia, falando por exemplo dele a Ophélia de Campos, como se pela sua própria voz.

Campos é a parte desligada da realidade emocional de Pessoa. Nele Pessoa escreve mais despreocupado do que se escrevesse em nome próprio, e sente segurança para se deitar ao lamentos de uma vida de sofrimento. Campos é menos sereno, é mais intranquilo, mais solto, energético mesmo quando deitado ao tédio, do que Pessoa-ele mesmo.

O poema de que pede uma análise é um poema típico de abulia de Campos, é um texto filho da herança do grande texto em prosa Passagem das Horas (1916). O tom heróico, Whitmaniano, deixa de se ouvir, para Campos se deixar dominar por Pessoa, num tom mortal e lento, litanias nocturnas, textos deixados à confissão, sem filtros racionais.

A consciência que Caeiro quer não enfrentar, Campos perde-a pelo exagero (Eduardo Lourenço). A noite "materna" invade-o. Porque assombrado pela memória da mãe, da infância perdida, a sua sinceridade acha apenas cansaço, quando ele se vê perto da morte, sem esperança de um regresso impossível à felicidade infantil. A noite é, em sentido literal, a sua própria mãe, que o abandona, mas nunca deixa de o dominar.

Analisando o poema:

"O que há em mim é sobretudo cansaço/ Não disto nem daquilo, /Nem sequer de tudo ou de nada:

Cansaço assim mesmo, ele mesmo, /Cansaço." Ele fala do cansaço assumido como coisa em si mesma, sem já ser condição. Este tédio, que perpassa também na obra de Bernardo Soares, soa muito a desapontamento, a conclusões falhadas, objectivos não atingidos.

"A subtileza das sensações inúteis, /As paixões violentas por coisa nenhuma, /Os amores intensos por o suposto alguém. /Essas coisas todas - /Essas e o que faz falta nelas eternamente -; /Tudo isso faz um cansaço, /Este cansaço, /Cansaço." É um discurso contra a acção, contra a vontade, que no mundo não é operante, mas destinada ao fracasso. Campos elenca coisas que todos perseguem - as sensações, as paixões, o amor - e diz que todas elas falham em significado.

"Há sem dúvida quem ame o infinito, /Há sem dúvida quem deseje o impossível, /Há sem dúvida quem não queira nada - /Três tipos de idealistas, e eu nenhum deles: /Porque eu amo infinitamente o finito, /Porque eu desejo impossivelmente o possível, /Porque eu quero tudo, ou um pouco mais, se puder ser, /Ou até se não puder ser..." Aqui Campos ironiza com aqueles que pretendem ter maiores pretensões do que aquelas que ele acha possível. Há quem ame o infinito - os amamtes do conhecimento, os filósofos e os

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religiosos; há quem deseje o impossivel - os sonhadores, os ambiciosos; há quem não queira nada - os pessimistas, os humildes. Todos eles - segundo Campos - erram, por serem idealistas. Ele ama infinitamente o finito - ou seja, quer tudo no nada, quer a compreensão subtil do desconhecido - quer o paradoxo, inatingível, mas contínuo na sua loucura.

"E o resultado? /Para eles a vida vivida ou sonhada, /Para eles o sonho sonhado ou vivido, /Para eles a média entre tudo e nada, isto é, isto... /Para mim só um grande, um profundo, /E, ah com que felicidade infecundo, cansaço, /Um supremíssimo cansaço. /Íssimo, íssimo. íssimo, /Cansaço...". O resultado - Campos anuncia-o, pondo-se acima de todos aqueles que critica - é para os outros a vida. Mas para Campos, a vida não chega, em parte porque ele próprio nunca se sente satisfeito - não tem a riqueza, a fama, a mãe, a infância, sobretudo a tranquilidade e a paz de espirito para trabalhar. Por isso ele, quando se diz insatisfeito, revela-se invejoso da vida alheia.

Campos-Pessoa está cansado por não ter atingido o que para os outros é tão fácil, porque os outros não duvidam, são empreendedores, mesmo quando nada desejam. Deixam.se à vida, serenos ou irados, mas completos, humanos, que vivem e que morrem sem perguntas. Campos-Pessoa não é um ser assim, pois em si mesmo rumina uma intensa intranquilidade, que ele justifica como cansaço, não-agir, em razão de não aceitar o seu fracasso no mundo."

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Apêndice (análise complementar, enviada posteriormente)

Eu dividiria o poema em 4 partes: 1) Explicação das sensação de cansaço, 2) A racionalização/explicação da sensação de cansaço, 3) Comparação e 4) Conclusão. 

Concordo que o poema é da "3.ª Fase", a fase pessoal (Jacinto Prado Coelho) ou "Fase Pessimista", como aparentemente está no programa do 12.º ano de Português. Tenha só em atenção que a 3.ª fase é posterior não só ao futurismo mas ao sensacionismo (a vivência exagerada das emoções) da 2.ª fase. Ele de facto "lutou que nem um desgraçado", embora possa soar melhor se disser que ele "ficou desiludido com os seus esforços e energia despendidos na exortação do sonho". 

Eu teria cuidado a comparar Caeiro com Campos. Com efeito, Caeiro não sofre do cansaço, como Campos, porque Caeiro é "contente", "satisfeito", vê beleza em não compreender. Caeiro aceita a derrota de não pensar, enquanto Campos se desilude com ela. O cansaço não é de algum modo igual em ambos os heterónimos. A palavra chave em Caeiro é "Ataraxia" (tranquilidade) enquanto que em Campos será "Intranquilidade". 

Concordo que o exagero traz o cansaço, porque a energia se dilui na realidade que não o satisfaz.

Na comparação é que se encontra a semelhança a Caeiro - o Afastamento dos outros. Caeiro também se afasta, dizendo que os outros pensam desnecessariamente as coisas, quando as devem só viver sem pensar. Campos e Caeiro têm essa característica, do afastamento. 

Na conclusão, a palavra "isto...", julgo que ele se refere à vida. Relembro-lhe que o cansaço de que ele fala, é o cansaço de não atingir o sonho que ele desenhou para si mesmo. O "isto..." que ele vê nos outros, é, para ele, um "isto..." insuficiente. O adjectivo infecundo faz todo o sentido. Veja que ele está com ódio de não ter

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conseguido, por isso dá-se (quase masoquistamente) por contente por ter fracassado. É uma maneira de ele justificar o seu cansaço, assumindo de tal modo a derrota, que lhe parece um sucesso fracassar assim, de modo tão magnífico e total. Parece estranho, mas era assim que pensava Pessoa, no seu íntimo, pelo que me é dado analisar e por comparação pela minha própria experiência de vida.

O poema é de facto paradoxal, porque é um lamento. A dor muita das vezes não não faz sentido, quando a analisamos.

 

análise do poema "arre, que tanto é muito pouco"

Onde muitos vêem apenas um Campos existem, na realidade, uma variedade de Campos. Isto porque Álvaro de Campos evolui como poeta, mais ou menos ao lado de Fernando Pessoa-ele mesmo.

Marcam-se três fases distintas na escrita de Campos. Uma que se inicia com o Opiário, outra a das grandes Odes, e finalmente uma fase terminal, pessoal e abúlica. Vê-se então que Campos passa de um sensacionismo fantástico, um modernismo explosivo, de exaltação da indústria e das máquinas, para um Campos vencido na vida, rendido a um tédio imenso que o afoga em mágoa.

Este poema que me refere é curioso porque entremeado nas duas últimas fases. Observamos que Campos, se parece revoltar-se, parece usar o tom heróico de Whitman que usara nas grandes Odes - a Triunfal e a Maritima - aqui decai já ligeiramente para a análise pessoal. Ele fala já de si mesmo e não do mundo exterior e o seu tom, embora exaltado, é de uma grande mágoa pessoa, é um tom de desilusão e ele apenas se serve da voz alta para reforçar a realidade de uma dor interior.

 Tocante é a maneira como o poema, que começa por invocar a impessoalidade do Portugal deixado às bestas, se transforma num relato poético do interior daquele que acusa. Se Portugal está mal, pior ainda está o poeta - a sua situação transfigura-se na massa maior do país, mas, na sua pessoalidade, assume um grau horrivelmente mais poderoso.

"Amor, glória, dinheiro são prisões", diz Campos.

Mas esta frase não pode ser de alguém que exalta o poder e a nobreza de se alcançar alguma coisa na vida. Afinal o que é a liberdade que Campos tanto quer?

A sua liberdade é já uma liberdade na loucura, na solidão extrema que partilha com o seu irmão Fernando Pessoa. A realidade é que Campos se deixou das ilusões da juventude modernista - Campos é neste poema Campos desiludido, rendido às evidências de uma vida que o prende e o oprime com as suas regras - o amor, a glória e o dinheiro.

Campos quer antes a loucura, a grande liberdade: "Nada de paredes - ser o grande entendimento - Eu e o universo". Então ser como os gnósticos que procuravam a verdade no contacto directo com Deus, mesmo correndo o risco da loucura imediata. Ao menos é um risco pela liberdade total, pela redenção.

Deixar o espectro do guarda-fato pelo esplendor do infinito - eis o objectivo astral de Campos. Ou seja, deixar a vida pela loucura, o quotidiano sem sabor pelo risco enorme do Universo vazio.

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É triste o seu desespero, que nos toca ao coração. É um homem perdido: "Graças a Deus que estou doido! Que tudo quanto dei me voltou em lixo". Mas é um homem perdido que se acha. Porque na loucura, para ele, "como na bebedeira, Isto é uma solução". Uma solução.

Quando ficar louco é ter uma solução para o desespero, nada mais se pode oferecer em comparação. E é uma solução gutural, de intestinos, como ele próprio diz, é uma solução extrema, de instinto, sem regresso possível.

Campos que fizera poesia transcendental e lírica e nada nelas achou de solução parecida a esta. Agora sente que a náusea a tudo é a resposta a tudo. Comer o Universo e vomitá-lo, como quem recusa a própria existência, como quem recusa a própria vida como coisa real. Uma atitude horrivel, mas com um fim, "E assim como sou não tenho nem fim nem vida...".

"Ser indiferente!", "Ser alheio até a si mesmo!", "Ser esquecido de que se existe!".

Numa linha e sem que Campos o ouse pensar: ser imune à dor da vida.

 análise do poema "ode marítima"

A Ode Marítima é um dos poemas mais marcantes do heterónimo Álvaro de Campos, lado a lado com a Ode Triunfal. É nestas duas odes (poemas com estrofes regulares em versos decassilábicos, alternadas ou não com hexassílabos, recorrendo ao verso branco sem rima) que Campos melhor expressa as suas ideias de força e agressividade, tão marcantes no seu período futurista e sensacionista.

Em Junho de 1915 este poema foi publicado no segundo número da revista Orpheu. Pessoa tinha feito publicar no número um o poema “Ode Triunfal”. Portanto é de supor que ele quisesse nesse período apresentar Campos como um futurista, como alguém imbuído nessa força magistral que era a revolução industrial, no poder crescente da tecnologia, que desde o inicio do século, e sob premonição de Nietzsche, crescia de poder e ameaçava mesmo eclipsar as religiões.

1914-15 é, usando as palavras do iminente pessoano António Quadros, “o período em que Pessoa descobre todas as suas potencialidades”. 8 de Março de 1914 é o seu dia triunfal, onde aparece precisamente a “Ode Triunfal” de Álvaro de Campos. Portanto há que pelo menos distinguir as duas Odes pela sua nascença – a “tirunfal” apareceu de jacto, instintivamente, a “marítima” foi mais pensada, como reacção.

Basta lê-las lado a lado para perceber isto mesmo. A “Ode Marítima” é muito mais escura e debruçada sobre si mesma. Não há já nele o mesmo entusiasmo da “Ode Triunfal”, porque talvez esse entusiasmo fosse ele mesmo à partida falso, fingido. Parece-nos que a primeira das Odes é uma falsa partida de Campos, uma imitação de Whitman, que pelo entusiasmo ganha autoria de um português. Mas por pouco tempo – Campos logo se decepciona desse tipo de futurismo, que não é pensado, que não é triste. A “Ode Marítima” é por isso, em diversos aspectos, tudo aquilo que a “Ode Triunfal” deveria ter sido desde o início – é mais decadente, mais soturna, mais negra e intencional. È já fim de estrada, mesmo que o inicio tenha sido há tão pouco. Mas é compreensível que o rasgo futurista durasse pouco, como um relâmpago. Na “Ode Marítima” Campos enterra já o futurismo, ou pelo menos descobre-lhe a essência.

Há certamente ainda os ruídos sonoros dos marinheiros que chamam, os barulhos que procuram na memória o eco nos sons metálicos das máquinas. Mas são barulhos fracos, sem vontade. Tudo é mortiço, sem vigor. Tudo vai decair progressivamente para a que

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será a última ode – a “Ode Marcial”, já plena de tédio e morte, parada e religiosamente ritual, como um olhar fixo que dói no horizonte.

Há quem veja (Eduardo Lourenço) nas duas Odes também os laivos da própria sexualidade de Pessoa, mas isso será de importância secundária. O que realmente importa denotar é a tristeza imanente da segunda ode em contraposição com a primeira.

Na minha opinião a “Ode Marítima” é a ode órfã. Não é verdadeiramente (e originalmente) futurista – essa é a “Ode Triunfal”, nem é a obra de Campos onde melhor perpassa o sensacionismo – essa é sem dúvida a espantosa “Passagem das Horas”.

Portanto, sendo órfã, tem aquele sentido lateral da existência. Perdida é certo, mas achada em si mesma, retorcida para dentro, não explodindo para fora. Um longo grito interior que contempla todo o desespero e toda a raiva. Não por isso um poema alto, sinfónico, mas um poema silencioso, contido, em que todos os barulhos são barulhos de mecanismos interiores, mecanismo de relógio, por detrás da alma, que fazem funcionar sem se sentirem e que levam ao horror de os sentirmos quase parar de funcionar, quando não respiramos”.

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José Gil, um conhecido Pessoano e filósofo, já desaparecido, dizia que Campos era dos heterónimos o "poeta do quotidiano metafísico". Quer ele dizer que Campos, na mínima coisa, inventa um poema sobre a vida e sobre a morte, do pequeno pormenor inventa razões para analisar toda a realidade e mesmo o que está para além da realidade. 

A Ode Marítima é um excelente exemplo. Vejamos logo o inicio. Da visão distante do paquete negro, só um ponto indistinto no horizonte, ignorado pela maior parte dos homens, Campos começa a construir uma majestosa ode em que se insinuam todos os temas importantes da sua "filosofia". 

O primeiro será a saudade. Campos é o lado de Pessoa que recorda as viagens - é também a sua parte inglesa, que fala em voz baixa das memórias de miúdo, do sentimento de não pertencer e de andar sempre em viagem (real e espiritual). 

"Os paquetes que entram de manhã na barra..." - aqui começa Campos a interiorizar o significado daquela visão distante, do paquete que não é nada ainda mas já é tudo na sua emoção, na sua memória. É o ponto de partida da viagem na memória.

Não lhe interessa verdadeiramente o paquete, que aliás são todos os paquetes, mas o seu símbolo. Como o cais é saudade de pedra, o paquete é saudade de não viajar. Quem lá anda, está distante dele, como ele se sente distante dos outros - o negro do horizonte distante simboliza a sua própria perda de identidade perante a sua infância dissolvida no infinito da sua memória. 

José Gil destaca também a Ode Marítima como ponto onde Pessoa experimenta por momentos o que depois vive completamente em Bernardo Soares no Livro do Desassossego - o apagar do sentir, a dissolução do eu perante a esmagadora análise da realidade. 

No entanto é um poema rápido, agitado, cheio de emoção. O descontrolo emocional de Campos é regulado pela menção do "volante", que aparece onze vezes no poema. A velocidade cresce lentamente, para atingir um clímax ("tudo canta a gritar"), para depois decrescer. 

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Vejamos como o inicio lento e mortal dá lugar a uma apoteose de sinais interiores, como se pudéssemos imaginar a aproximação do paquete, a tornar-se enorme e tudo isso assustasse o corpo que delira e treme com a dimensão do navio assustador, cada vez mais perto do cais. A proximidade do navio é a proximidade das memórias e da realidade - que levam a que Campos se dissolva cada vez mais em delírio quanto mais as sente próximas e ameaçadoras. Tudo o que ameaça afinal é o regresso a quem ele era - e isso Campos não pode permitir. 

"Toma-me pouco a pouco o delírio..."

"Ah seja como for, seja por onde for, partir..." - aqui começa o ritmo a aumentar.

Até que tudo ao seu redor é de uma energia descontrolada - em que Campos é um meio, um condutor, de todos os significados eléctricos do Universo confuso. "Cada vez mais depressa, cada vez mais...".

Não quer Campos a calma dos significados. Lembre-mos que ele quer "sentir tudo de todas as maneiras". Para ele sentir assim é compreender. "não estar parado nem a andar, / Não estar deitado nem de pé...".

O que José Gil chama de "consciência" é este encontrar da alma múltipla, que eu chamaria de dissolução. Ser tudo é ser ninguém, ser tudo é sobretudo não ser eu próprio - é ser outro, sem dor, sem realidade, sem assumpção da memória. 

"Uma sinfonia de sensação incompatíveis e análogas". 

Incompatíveis e análogas! Como se os opostos se reunissem num entender obtuso de tudo o que não faz sentido. É a confusão das sensações - o sensacionismo puro de Campos - que traz a revelação de uma verdade múltipla e inicial. 

Mas depois cai-lhe a raiva momentânea - fala de tortura do corpo, de coisas reais, de coisas cruéis. José Gil defende que aqui é o corpo que, perdida a divisão ser interior / ser exterior, pensa e sente, já sem recurso à mente nem à razão. Por isso Campos pede tortura, quer matar e violar. "Que fosse meu corpo e meu sangue, compusesse meu ser em vermelho...".

A alma torna-se de carne. Campos sonha com a pele, imagina com o corpo. Numa confusão de cores, num delirio acordado, numa amálgama de filosofias. 

É o grito de Jim Barns que marca essa transição - de sentir com alma para sentir com o corpo. Sendo talvez este o momento essencial do poema. 

No entanto, tão rápido como caíra Campos no seu delírio sensacionista, sai dele com um arrepio de frio. Vêm-lhe a realidade, como se assumisse no seu corpo o que outros deixam que lhes venham do divino. Campos encarna Campos para terminar o caos controlado das suas sensações múltiplas: "Um calafrio arrepia-me (...) / Tremo com frio da alma repassando-me o corpo". 

"Ah, que alegria de sair dos sonhos de vez / Eis outra vez o mundo real..."

"Já não me importa o paquete que entrava. Ainda está longe", diz Campos. Sim. O paquete não chegou a entrar no cais - foi ele que o fez entrar pela imaginação e que fez voar a sua alma e o seu corpo num só ao encontro de todos os símbolos e sensações que o paquete e o mar faziam acordar em si mesmo. Num delirante momento de sonho acordado, num magnifico exercício de descoberta do mistério pela linguagem poética. 

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Ode Marítima, prova máxima do poder da imaginação do homem, mas também prova máxima de quão efémero é esse poder - pois depois de tudo, depois da exaltação, da fúria, da descoberta e de ser tudo, há o regresso frio do corpo e a saída humilhante do sonho para a realidade de todos o dias - a realidade real, o lado de fora do sonho. 

A realidade comercial da vida.

  fernando pessoa (ortónimo)

análise do poema "qualquer música"

O poema "Qualquer Música" é um poema ortónimo de Fernando Pessoa, ou seja, um poema escrito em seu próprio nome, sem data mas publicado pela primeira vez na revista Presença, em Março de 1928.  Se bem que o tema do poema parece ser a música, na verdade mais parece que a temática andará ao redor da ausência de dor que a música traz. A música, neste poema, é vista como uma forma do sujeito poético se esquecer de tudo em sua volta, e, em última instância, da sua própria vida. Nesse particular, ele nem é especialmente cuidadoso com o tipo de música que pede - diz mesmo repetidamente "qualquer música".  Essa repetição inicial no início de cada estrofe - figura de estilo denominada de anáfora - serve precisamente para reforçar que a música em si não desempenha aqui um grande papel, senão enquanto elemento que distrai o sujeito poético do drama da própria vida. Mas analisemos mais em pormenor cada uma das estrofes: Qualquer música, ah, qualquer,Logo que me tire da almaEsta incerteza que querQualquer impossível calma! A estrofe introdutória diz-nos que o sujeito poético quer sair da "impossível calma" que gera a incerteza na sua alma. De maneira mais simples, vemos que é o silêncio que incomoda Pessoa - o silêncio que o faria pensar na incerteza. Se não houver silêncio, se houver uma música qualquer, ele não terá de pensar e estará distraído dessa preocupação. Por isso ele pede uma música qualquer, é-lhe indiferente qual ela possa ser. Desde que haja música, um barulho qualquer, que aniquile o silêncio e o faça deixar de pensar.  Qualquer música — guitarra,Viola, harmónio, realejo...Um canto que se desgarra...Um sonho em que nada vejo... Essa despreocupação em relação ao tipo de música é confirmada na estrofe seguinte: "Qualquer música - guitarra, / Viola, harmónio, realejo... / Um canto que se desgarra...". Tudo isso lhe serviria como "um sonho em que nada vejo", ou seja, como a entrada para um estado diferente do estado de preocupação e incerteza que é comum no silêncio.  Qualquer coisa que não vida!Jota, fado, a confusãoDa última dança vivida...Que eu não sinta o coração! 

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Na terceira estrofe a anáfora quebra-se e em vez de "música", o poeta diz "coisa que não vida".  Confirma o que dizíamos anteriormente, que o pedir música era pedir alguma coisa que não fosse o silêncio - silêncio que corresponde à necessidade doentia de pensar na vida, de se preocupar com a vida. Temos de compreender a que ponto Pessoa era alguém extremamente atormentado pelo seu presente e pelo seu passado. Vivia sozinho e não tinha amigos íntimos, sentindo-se profundamente fracassado em todos os seus objectivos. Era um génio poético, sim, mas também alguém profundamente sozinho e infeliz, que lidava muito mal com a solidão (afinal que lida bem com ela...).  Prefere tudo ao silêncio, o que é o mesmo que dizer que prefere tudo à vida. A vida que lhe pesava. Que o fazia sofrer.  Nesta última estrofe ele pede "Jota, fado, a confusão / Da última dança vivida...". A Jota poderá ser uma referência a uma dança popular Espanhola, embora a mesma palavra possa ter o significado de "nada". Seja como for, tudo é preferível a "sentir o coração".

 

análise do poema "cai chuva. é noite"

O poema que se inicia com "Cai chuva. É noite", é um poema ortónimo de Fernando Pessoa datado de 18/9/1920.  O período em causa - Setembro de 1920 - é bastante curioso na vida de Pessoa, pois ele nesta altura encontrava-se a namorar com Ophélia Queiroz e, no entanto, estaria a embarcar simultaneamente numa das piores alturas da sua vida a nível psicológico. Tanto era assim que, no fim deste ano, ele pensou seriamente em internar-se num manicómio, embora nunca o tenha realmente feito. Mas basta o que dissemos para compreender um pouco o seu estado de espírito.  A temática do poema em questão, como o de tantos poemas ortónimos, é a auto-análise, a auto-reflexão. O sujeito poético, reflectindo sobre a sua vida, fala-nos dos seus desejos e das suas desilusões. Mas analisemos o poema estrofe a estrofe para o percebermos melhor.  Cai chuva. É noite. Uma pequena brisa        Substitui o calor.P'ra ser feliz tanta coisa é precisa.        Este luzir é melhor. Chove e é de noite. Pessoa escrevia frequentemente de noite, porque sofria de imensas insónias e porque era também um período de maior tranquilidade. Ele podia ficar num dos escritórios em que trabalhava até mais tarde e, usando as máquinas de escrever emprestadas, escrevia a maior parte dos seus grandes poemas. A noite também era, simbolicamente, o oposto do dia. Enquanto o dia significava a complexidade da vida, de ter de se relacionar com os outros e ter obrigações, a noite significava uma grande liberdade, a inexistência de obrigações ou sequer de uma vida. Por isso ele diz: "P'ra ser feliz tanta coisa é precisa". Ele prefere o "luzir" da lua (frio em brisa) à noite ao do sol de dia (calor). Há aqui também um grande simbolismo no calor do dia (calor da vida e da companhia dos outros, do amor e da amizade) e no frio da noite (a solidão e a liberdade total).  O que é a vida? O espaço é alguém para mim.        Sonhando sou eu só.A luzir, em quem não tem fim        E, sem querer, tem dó.

Page 21: Fernando Pessoa

 É claro desde a primeira estrofe que o sujeito poético tenderá a favorecer a noite e a solidão. Ele reforça esse sentimento na segunda estrofe: "O que é a vida? O espaço é alguém para mim", diz ele, recusando a vida (o dia) em favor da solidão (da noite). De noite apenas ele existe, pode estar liberto nos seus sonhos que não falham, como falham de dia.  Extensa, leve, inútil passageira,        Ao roçar por mim trazUma ilusão de sonho, em cuja esteira        A minha vida jaz. Barco indelével pelo espaço da alma,        Luz da candeia alémDa eterna ausência da ansiada calma,        Final do inútil bem. As duas estrofes seguintes seguem a mesma lógica da segunda estrofe - a brisa, fio condutor de todo o poema - lembra, "extensa, leve, inútil passageira", uma "ilusão de sonho". Para ele a brisa lembra-lhe a essência fixa mas leve da sua vida, que na realidade não existe. O que existe para ele é o sonho, os seus desejos, os seus objectivos que nunca se cumprem realmente. Ele deseja ser feliz, mas sabe que a sua vida nunca será feliz. Lembra-lhe a existência de uma coisa que é sempre distante - a "luz da candeia além" - que, apontando a um fim, também assinala uma meta que ele não consegue atingir.  Que se quer, e, se veio, se desconhece        Que, se for, seriaO tédio de o haver... E a chuva cresce        Na noite agora fria

 A ansiedade e a frustração crescem até à estrofe final. O sujeito poético, de forma muito complexa e enredada mas simultaneamente sintética, dá-nos a entender que o tal barco que o levaria ao seu objectivo nunca se conhece e se existisse, haveria então o "tédio de o haver". O mesmo é dizer que o sujeito poético se encontra numa posição irresolúvel, onde nem a vida nem a ausência da vida o contentam e ele não pode ter uma maneira de ser feliz, seja de que forma for.