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2019 Felipe Braga Netto

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2019

Felipe Braga Netto

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C A P Í T U L O VI

Entendendo os DANOS

1. EM BUSCA DE NOVOS MODELOS DE COMPREENSÃO?

“Um dos grandes enganos da inteligência humana é crer na unilateralidade do verdadeiro. De três indivíduos que discu-tem podem todos ter razão”

» Pontes de Miranda

Uma interessante reflexão atual da responsabilidade civil indaga em que medida a lógica decisória do século XXI será alterada pela feição dos novos da-nos. O surgimento de novas espécies de danos exige novos modelos de compre-ensão? Novas caixas conceituais? Ou podemos nos dar por satisfeitos com os an-tigos, só mudando, por assim dizer, o conteúdo da embalagem? Fala-se muito em novos danos (danos sociais, danos existenciais etc.), mas em que medida estamos diante de categorias novas, em que medida são apenas novas descrições de anti-gos fenômenos? Seja como for, se vivemos numa sociedade marcada pelo caráter instantâneo da informação, vivemos também numa sociedade de risco. A pró-pria percepção que temos dos riscos é bem diversa daquela dos séculos passados1.

1.1. A constante reavaliação de quais danos são indenizáveis

“E enquanto uma chora, outra ri; é a lei do mundo, meu rico se-nhor; é a perfeição universal. Tudo chorando seria monótono, tudo rindo cansativo”.

» Machado de Assis

1. CORSARO, Luigi. Tutela del danneggiato e responsabilità civile. Milano: Giuffrè, 2003; ZANNONI, Eduardo A . El daño en la responsabilidad civil. Buenos Aires: Astrea, 1993.

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188 NOVO MANUAL DE RESPONSABILIDADE CIVIL • Felipe Braga Netto

Não exageramos ao dizer que a responsabilidade civil, de certo modo, tra-ça um resumo cultural de uma época. Ela reflete aquilo que entendemos por dano. A difícil separação entre o que deve e o que não deve ser reparado ou compensado. O discurso humano nem sempre vê os danos do mesmo modo. As sociedades, através dos tempos, em seus ciclos evolutivos, renovam suas per-cepções acerca de quais seriam os riscos admitidos.

O conceito de dano, portanto, é histórico e relativo, sofrendo influências e modificações ao sabor do caminhar do tempo. Nesse contexto, circunstâncias sociais e valores ético-culturais definem o que determinada comunidade en-xergará como dano (o permanente desafio de distinguir danos triviais daqueles injustos). Pontes de Miranda constatou: “Certamente, a teoria da responsabili-dade tem que variar. Muda, às vezes, com o conteúdo do próprio conceito de dano. Com as necessidades gnosiológicas, econômicas e políticas da sociedade. A teoria teria que ser a do momento histórico2”. Enfim, o que antes, na linha do tempo, não era indenizável, hoje pode ser. Observamos, no século XXI, a ampliação dos danos indenizáveis. Se não podemos aplaudir todos os chamados novos danos, devemos, por outro lado, louvar a sensibilidade na proteção das situações jurídicas existenciais. Algo é certo: nas sociedades de risco há uma constante reavaliação daqueles riscos que são socialmente aceitáveis.

Quanto mais o século avança, mais as questões do direito de danos ga-nham em complexidade. O que décadas ou séculos atrás não era indenizável, hoje pode ser. O conceito de dano indenizável varia no espaço e no tempo (pen-semos no direito das famílias: alguém que defendesse, há algumas décadas, in-denização por abandono afetivo seria olhado com desconfiado estranhamento; hoje a questão, embora polêmica, é bastante conhecida). O dano injusto ganha autonomia conceitual singular em relação àquilo que seria um dano indenizável no passado – quase sempre era um dano individual e patrimonial. Atualmente indenizam-se danos extrapatrimoniais, danos difusos, chances perdidas, até o interesse das futuras gerações entra na pauta das discussões. Lidamos, hoje, pro-gressivamente, com danos complexos e não lineares. O STJ reconheceu como uma “das mais importantes tendências da responsabilidade civil o deslocamen-to do fato ilícito, como ponto central, para cada vez mais se aproximar da repa-ração do dano injusto” (STJ, REsp 1.555.202).

Aliás, talvez seja interessante inserir aqui algumas características que po-dem – de modo inovador – caracterizar os chamados novos danos, ou pelo me-nos alguns deles: danos sem autoria claramente configurada; danos, em regra,

2. PONTES DE MIRANDA. Tratado de Direito Privado. T. LIII. Rio de Janeiro: Borsoi, 1966, p. 57.

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189Capítulo VI • ENTENDENDO OS DANOS

irreversíveis; danos com vítimas socialmente dispersas; danos de quantificação sabidamente difícil; danos cujo limite de tolerabilidade são analisados no caso concreto; danos que aceitam, em muitas situações, inversões probatórias ou até flexibilização do nexo causal; danos que lidam com a probabilidade, não apenas com a certeza; danos em relação aos quais a licitude da atividade é irrelevante (a atividade, mesmo lícita, se danosa, obriga a indenizar); e até em certos setores – como o ambiental – podemos falar em danos intergeracionais (as vítimas desses danos muitas vezes estão dispersas não só no tecido espacial, mas também no tecido espacial-temporal, simbolizando as futuras gerações).

Enfim, estamos vivendo, no direito de danos, um tempo histórico que pa-rece não aceitar as velhas fórmulas individualistas e patrimonializantes.

1.1.1. A figura do dano injusto

“Que fique mal explicado. Não faço força para ser entendido. Quem faz sentido é soldado”.

» Mário Quintana

A figura que atualmente mais seduz os estudiosos é a do dano injusto3. Essa é, inclusive, a expressão mais atual para se referir aos danos indenizáveis. A noção de dano indenizável varia em cada povo e em cada período histórico. A expressão dano injusto introduz, de certo modo, a noção de proporcionalidade – trata-se do dano que não deve ser suportado pelo lesado, isto é, o dano a uma situação juridicamente protegida. É necessário, em nossos dias, na avaliação da indenizabilidade do dano, permear o olhar à luz do que é razoável e proporcional. Entendemos que mais do que apontar essa ou aquela figura conceitual como nova, o mais adequado é desenvolver um novo olhar para toda a matéria da responsabi-lidade civil, para todos os danos, mesmo aqueles tidos como clássicos, tradicionais. Aliás, talvez sejam esses os que mais precisem desse novo olhar.

Aliás, neste livro tão cheio de epígrafes, talvez possamos citar mais uma frase e lembrar, com Marcel Proust, que a verdadeira viagem de descobrimento consiste não em buscar cenários novos, mas em ter olhos novos.

3. Assim, “o dano injusto é figura central no estudo da responsabilidade civil do Estado na atualidade: cor-responde à junção da noção de dano com a de antijuridicidade objetiva, sob a ótica da equidade e da função social da responsabilidade civil. Trata-se do dano que não deve ser suportado pelo lesado ou, em outras palavras, é o dano a uma situação juridicamente protegida. Note-se que não há maior novidade no seu reconhecimento no contexto da responsabilidade civil do Estado. O que há de novo é a rele-vância que lhe é atribuída. E mais: o reconhecimento da imprescindibilidade da noção de injusto para a elaboração de uma teoria geral da responsabilidade civil do Estado (por ação e por omissão” (PINTO, Helena Elias. Responsabilidade civil do Estado por omissão. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, pp. 120/121).

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Ao direito dos nossos dias – sobretudo em se tratando de direitos funda-mentais – não se tolera a indiferença diante dos danos, mesmo que futuros ou potenciais. Cabe progressivamente construir uma tutela não só repressiva, mas fundamentalmente preventiva. Não é valorativa ou funcionalmente equivalente preservar determinado bem jurídico fundamental ou aceitar sua lesão em lu-gar de uma posterior e imperfeita indenização monetária. A linha de tendência hermenêutica, portanto, aponta para a proteção preventiva do bem, de todas as formas e de todos os modos possíveis. O princípio da proporcionalidade pode iluminar os contextos e orientar as soluções dos casos, nem sempre fáceis. Em relação a muitos dos danos do nosso século (pensemos, por exemplo, nos danos ambientais), podemos dizer que a complexidade que os abraça nem sempre se situa no domínio das causas visíveis. Há, em muitos casos, riscos invisíveis, que não podem ser prontamente detectados.

Já anotamos que o conceito de risco cada vez mais se aproxima do direito. O mero risco, em muitos setores da experiência jurídica, pode funcionar como mecanismo que autoriza o dever de proteção. A palavra de ordem é evitar danos. A dimensão preventiva é fator relevante e essencial na responsabilidade civil atual. Sobretudo quando estivermos diante de danos extrapatrimoniais4.

Relevante ainda, em qualquer disciplina jurídica, é a tomada de consciên-cia, por parte do intérprete, que estamos diante do Estado dos direitos fundamen-tais. Já não podemos nos dar por satisfeitos em aceitar que o Estado se abstenha de violar tais direitos. É preciso, como veremos adiante, que além disso o Estado atue – de modo cauteloso, eficaz e proporcional – para proteger os direitos fun-damentais de violações por terceiros. Já mencionamos o tema e voltaremos a ele adiante. Aqui cabe apenas esta brevíssima palavra de contextualização.

1.2. Entre avanços e retrocessos

A cada dia surgem decisões polêmicas sobre a responsabilidade civil (que podemos concordar ou não, mas devemos conhecer). O Plenário do STF,

4. Escrevemos em outra oportunidade: “A tutela ótima, para os valores extrapatrimoniais, não é o dano moral. A reparação por dano moral, por definição, é uma tutela posterior ao dano. E não restaura, pela própria natureza das coisas, o estado anterior. A tutela ótima, para os bens não patrimoniais, é a pre-ventiva, evitando que o bem jurídico seja destroçado para (só depois) ser monetária e imperfeitamente compensado” (BRAGA NETTO, Felipe Peixoto. Responsabilidade Civil. São Paulo: Saraiva, 2008). Barbosa Moreira destaca ser “inaceitável, realmente, pôr em pé de igualdade o interesse social em ver eficazmente protegidos valores morais e espirituais – pelo menos no âmbito de um ordenamento como o nosso, em que semelhantes valores, por força de disposições expressas, gozam de especial proteção em nível constitucio-nal (v. g., art. 5º, incisos V e X), sem falar na circunstância de que a respectiva preservação, em regra, ou ope-ra incontinenti, ou já não terá eficácia prática (MOREIRA, José Carlos Barbosa. Temas de direito processual: oitava série. São Paulo: Saraiva, 2004. p. 87).

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191Capítulo VI • ENTENDENDO OS DANOS

por exemplo, para fins de repercussão geral, aprovou a seguinte tese: “Consi-derando que é dever do Estado, imposto pelo sistema normativo, manter em seus presídios os padrões mínimos de humanidade previstos no ordenamento jurídico, é de sua responsabilidade, nos termos do artigo 37, parágrafo 6º, da Constituição, a obrigação de ressarcir os danos, inclusive morais, compro-vadamente causados aos em decorrência da falta ou insuficiência das condi-ções legais de encarceramento” (STF, RE 580.252, DJE 08/09/2017). STF e STJ, tradicionalmente, reconheciam o dever de indenizar do Estado, mas quando houvesse morte do preso. A partir desse julgado, basta o cumprimento da pena privativa de liberdade em situações degradantes para que haja o dever de indenizar. O tema será discutido adiante.

Não que todas as mudanças sejam para melhor: afirmar isso não seria verdadeiro. Há, aqui e ali, mudanças legislativas e jurisprudenciais com as quais nem sempre podemos concordar. Dois exemplos (embora o primeiro, a rigor, não diga respeito à responsabilidade civil): a) o STJ, em 2017, passou a entender que a teoria do adimplemento substancial não se aplica aos contratos de alienação fiduciária (em clara modificação do entendimento anterior, que assim aceitava)5; b) o STF, também em 2017, passou a entender que o Código de Defesa do Consumidor não mais se aplica aos extravios de bagagem em voos internacionais (passando a aplicar as Convenções de Varsóvia e Mon-treal, que estabelecem indenizações tarifadas, por quilo de bagagem perdida). Um exemplo de mudança legislativa não muito feliz – e contrária à tendên-cia histórica, que é passar da responsabilidade subjetiva à objetiva, e não o contrário – aconteceu em relação aos cartórios (notários e registradores). A responsabilidade civil, que era objetiva, passou a ser subjetiva a partir da Lei n. 13.286/2016. O prazo prescricional, que era de 5, foi reduzido para 3 anos. De todo modo, o Estado responde subsidiariamente pelos danos. Voltaremos a todos esses temas adiante.

5. Os argumentos para justificar a mudança de entendimento foram pouco consistentes, em nossa opi-nião. Traduzem interpretação de espantoso literalismo. São eles: a) o Decreto-Lei n. 911/1969 não traz qualquer restrição à busca e apreensão do bem (nem seria de se esperar que o fizesse, dizemos nós); b) seria incongruente inviabilizar a busca e apreensão do bem, “quando a lei especial de regência ex-pressamente condiciona a possibilidade de o bem ficar com o devedor fiduciário ao pagamento da in-tegralidade da dívida pendente” (STJ, REsp 1.622.555). No mesmo julgado o STJ frisou que “a aplicação da teoria do adimplemento substancial, para obstar a utilização da ação de busca e apreensão, nesse contexto, é um incentivo ao inadimplemento das últimas parcelas contratuais”. Convém lembrar que na realidade brasileira – em que o desemprego atinge mais de 13 milhões de pessoas, em números de 2017 – a imensa maioria dos cidadãos não deixa de pagar certas parcelas das dívidas por dolo, mas, ao contrário, por absoluta falta capacidade financeira para fazê-lo.

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2. DANO MORAL: ENTENDENDO AS DIMENSÕES EXTRAPATRIMO-NIAIS DAS LESÕES

“É difícil fazer cara de quem não fez nada, quando os fatos in-dicam o contrário”.

» Mark Twain

Definir o que seja o dano moral não é fácil. É a jurisprudência quem, topi-camente, em análises concretas, define as agressões que perfazem danos morais. Esse, aliás, é um daqueles temas para cujo estudo a análise da jurisprudência se faz, talvez, mais importante do que a da doutrina. Aliás, em tema de responsabi-lidade civil, algumas das evoluções históricas mais importantes – como a veda-ção do abuso de direito, ou mesmo a responsabilidade civil do Estado – tiveram amparo inicial na jurisprudência, e só mais tarde na doutrina e nas leis. Anota, a propósito, Gustavo Tepedino: “A julgar pela jurisprudência do STJ dos últimos anos, estamos diante de rara confluência, da doutrina com a jurisprudência, para a construção do direito civil contemporâneo”6.

2.1. Um olhar histórico para o dano moral na experiência brasileira

O dano moral tem assento na Constituição da República. Ela a ele se re-fere no art. 5º, incisos V (“é assegurado o direito de resposta, proporcional ao agravo, além da indenização por dano material, moral ou à imagem”) e X (“são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, asse-gurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação”). Também existem referências no plano da legislação infraconstitu-cional. O CDC, no art. 6º, VI (“São direitos básicos do consumidor: a efetiva prevenção e reparação de danos patrimoniais e morais, individuais, coletivos e difusos”); o Código Civil, no art. 186 (“Aquele que, por ação ou omissão volun-tária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito”).

Não existe, no Brasil, conceito legal de dano moral. Alguns projetos de lei, em tramitação no Congresso Nacional, buscam defini-lo, nem sempre com feli-cidade. Cabe, aliás, lembrar o sábio brocardo romano (omnis definitio periculosa est). O legislador, em princípio, não deve se ocupar com as definições, deixan-do-as à doutrina. Cremos que podemos usar, na experiência jurídica brasileira, de modo indistinto, as expressões danos extrapatrimoniais ou danos morais. A

6. TEPEDINO, Gustavo. Editorial, RTDC, vol.3. jul/set, 2000.

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193Capítulo VI • ENTENDENDO OS DANOS

Constituição Federal de 1988, no art. 5º, incisos V e X, bem como o art. 186 do Código Civil, emprega a expressão danos morais para se referir a todas as espécies de danos não patrimoniais. A expressão danos morais, embora possa estar sujeita a críticas – algumas corretas e razoáveis –, incorporou-se à tradição jurídica brasileira, além de contar com referência constitucional. Dano moral dialoga com dignidade humana de modo conceitualmente forte.

Há algumas décadas, no Brasil, o dano moral não era indenizável. Evoluiu--se, depois, para aceitar sua reparação, desde que acompanhado de um dano material. Contudo, certos julgados, ainda antes da Constituição de 1988, ad-mitiam o dano moral puro (desacompanhado de um dano material), mas no cálculo da indenização, como veremos, revelava-se, claramente, que se estava indenizando prejuízos materiais, e não morais. Tal posição era bem reveladora da opção, então reinante, de prestigiar o patrimônio em detrimento da pessoa.

Em relação ao dano moral, o STF, até meados dos anos 60, dizia, de modo peremptório, que “não é admissível que os sofrimentos morais deem lugar à reparação pecuniária, se deles não decorre nenhum dano material” (STF, RE 11.786). Ou seja, não se compensavam, no Brasil, os danos morais; apenas os danos patrimoniais seriam indenizáveis. Pontes de Miranda, em 1927, com a genialidade que o distinguia, escreveu: “Não compreendemos como se possa sustentar a absoluta irreparabilidade do dano moral. Nos próprios danos à pro-priedade, há elemento imaterial, que se não confunde com o valor material do dano. Que mal-entendida justiça é essa que dá valor ao dano imaterial ligado ao material e não dá ao dano imaterial sozinho? Além disso, o mais vulgarizado fundamento para se não conceder a reparação do dano imaterial é o de que não seria completo o ressarcimento. Mas não é justo, como bem ponderava Josef Kohler, que nada se dê, somente por não se poder dar o exato”7.

A objeção clássica à reparação dos danos morais era a ausência de equiva-lência possível entre o sofrimento e o dinheiro. Não é possível medir a dor – di-ziam os autores do século passado. Portanto – cinicamente completavam – não é possível indenizá-la8. O curioso é que essa objeção clássica, de aparente caráter

7. MIRANDA, Pontes de. Das obrigações por atos ilícitos. Rio de Janeiro: Borsoi, 1927, t. I, p. 182.8. Pontes de Miranda defendia, no início do século passado, “a ressarcibilidade do dano não-patrimonial,

a despeito de haver opiniões que reputam repugnantes a razão, ou ao sentimento, ressarcir-se em di-nheiro o que consistiu em dano à honra, ou à integridade física”. Continuava o genial jurista: “Mais contra a razão ou o sentimento seria ter-se como irressarcível o que tão fundo feriu o ser humano, que há de considerar o interesse moral e intelectual acima do interesse econômico, porque se trata de ser humano. A reparação pecuniária é um dos caminhos; se não se tomou esse caminho, pré-elimina-se a tutela dos interesses mais relevantes. Não só no campo do direito penal se há de reagir contra a ofensa à honra, à integridade física e moral, à reputação e à tranquilidade psíquica” (PONTES DE MIRANDA. Tratado de Di-reito Privado. T LIII. Rio de Janeiro: Borsoi, 1966, p. 219/220). Barbosa Moreira, escrevendo décadas depois

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ético, conduzia, na prática, a injustiças e perplexidades. Um animal morto – um boi, um cavalo – recebia, em tese, uma indenização maior do que uma pessoa morta, pois, em relação à pessoa, o Código Civil de 1916 restringia a reparação às despesas do luto e do funeral.

Se os pais tivessem um filho menor morto em acidente causado por ou-trem receberiam apenas, como indenização, as despesas do luto e do funeral. Isso prevaleceu no Brasil até meados dos anos 60. O leading case – o divisor de águas que sinalizou a mudança de rumo – aconteceu no Supremo num julgado da relatoria do Ministro Aliomar Baleeiro. Nele, o Supremo deu provimento a um recurso extraordinário e reconheceu que o dano moral é, sim, indenizá-vel. No caso concreto, a ação foi proposta pelos pais, em razão do falecimento de duas crianças – de 9 e 6 anos – vitimadas por um acidente cuja culpa foi atribuída à empresa de ônibus. Os tribunais inferiores reconheceram a culpa da empresa, mas, como não havia dano material – as crianças naturalmente não trabalhavam –, não concedeu indenização, pois o dano moral puro, isto é, o dano moral desacompanhado de um dano material, não seria, segundo os padrões mentais da época, indenizável. O STF deu provimento ao recurso, e concedeu, nesse julgado, a indenização pelo dano moral. Porém, o avanço foi relativo, porque o Supremo determinou que a indenização fosse calculada com base naquilo que os pais gastaram até ali com a criação e a educação dos filhos.

Ou seja, o que se estava indenizando, na verdade, não era a dor da per-da dos filhos, ou dimensões extrapatrimoniais outras, mas os gastos materiais para a criação deles até a data da morte. Uma indenização claramente material, travestida de indenização por dano moral: “Morte de menor que caiu do trem onde viajava. Na indenização concedida aos pais, pelo prejuízo presumível de-corrente da morte do filho melhor, está incluído o ressarcimento de dano moral resultante do mesmo fato” (STF, RE 85.127).

Houve avanço? Em termos práticos sim, porém ainda sob um sol cujos raios eram patrimoniais. O filho era um patrimônio cuja perda deveria ser re-parada por aquilo que de prejuízo trouxe, materialmente falando, para os pais. Com efeito, depois de algum tempo veio a Súmula nº 491 do STF, que estabe-leceu ser indenizável o acidente que cause a morte de filho menor, ainda que

– ainda sob a égide do Código Civil de 1916 – argumentava: “Há que se abandonar em definitivo, e sem reservas, a doutrina, profundamente reacionária, da não reparabilidade do dano moral, que, aliás, nem se compreende como possa ter criado tão fortes raízes no pensamento jurídico brasileiro, quando a sim-ples leitura sem preconceitos do art. 159, primeira parte, do Código Civil é suficiente para evidenciar a incompatibilidade entre ela e o nosso Direito Positivo: a norma, com efeito, refere-se a ‘prejuízo’ e a ‘dano’, sem qualificá-los, e, portanto, sem restringir a sua própria incidência ao terreno patrimonial” (BARBOSA MOREIRA, José Carlos. Direito Aplicado – Acórdãos e votos. Rio de Janeiro: Forense, 1987, p. 275).

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195Capítulo VI • ENTENDENDO OS DANOS

não exerça atividade remunerada (Súmula nº 491: “É indenizável o acidente que cause a morte de filho menor, ainda que não exerça trabalho remunerado”). Com essa súmula, passou-se a incluir nas verbas indenizatórias, não apenas os gastos passados, mas também os presumíveis ganhos futuros frustrados. Ou seja, perpetuava-se a subversão axiológica, com a prevalência da lógica econômica so-bre a existencial, na medida em que a morte do ente querido era reduzida a uma presunção de perda de renda pelo núcleo familiar.

Mudança de fato houve, e profunda, com a Constituição de 1988, que pre-viu explicitamente a indenizabilidade do dano moral no art. 5º, incisos V e X, esvaziando os espaços para recusas hesitantes. Embora assente, na experiência jurídica brasileira, a existência do dano moral, continuam, contudo, as polêmi-cas acerca de sua caracterização: acabarão um dia? Não há obviamente aqui uma equação matemática que indique quais fatos estão dentro e quais fatos estão fora da compensação moral (sem falar na proverbial dificuldade de quantificação). Digamos, em péssima paráfrase, que o dano moral é ele e suas circunstâncias.

2.2. Entre danos ressarcíveis (materiais) e danos compensáveis (mo-rais)

“Depois de todas as tempestades e naufrágios o que fica de mim em mim é cada vez mais essencial e verdadeiro”.

» Caio Fernando Abreu

Não temos no Brasil um conceito legislativo de dano, nem temos a tipolo-gia fechada que caracteriza a matéria em alguns países, como a Alemanha. Nos-so modelo é aberto, flexível, com as vantagens e desvantagens que um sistema assim traz (mais vantagens que desvantagens, em nossa opinião). Se ficarmos apenas no Código Civil, temos duas cláusulas gerais sobre a indenizabilidade dos danos: a) o art. 186, que traz a cláusula geral do dever de indenizar com cul-pa9; b) o parágrafo único do art. 927, com a teoria do risco, que traz a cláusula

9. Trata-se, por certo, da mais conhecida cláusula geral do direito privado brasileiro, a cláusula geral da responsabilidade civil subjetiva (Código Civil de 2002, art. 186; Código Civil de 1916, art. 159). De toda sorte, e apesar críticas possíveis ao dispositivo – no sentido de pretender esgotar o conceito de ilícito civil (não esgota) – é certo que o art. 186 do Código Civil é superior a outros modelos legislativos, como por exemplo o alemão. Aliás, o próprio BGB, tido como uma codificação tecnicamente escor-reita, inseriu o ilícito civil na parte especial, no direito das obrigações, e não na parte geral, como fez o Código Civil brasileiro. Outrossim, o BGB optou (§ 823) por uma descrição tarifada dos bens jurídicos que, violados, ensejariam ilícitos, numa técnica inferior àquela adotada pelo Código Civil brasileiro, que se valeu de cláusulas gerais (arts. 186 e 187). A propósito, por incrível que possa parecer a um obser-vador estrangeiro, no ordenamento alemão não se indenizam danos de caráter exclusivamente patri-monial (reine Vermögensschäden). Apenas o que eles chamam de “bens jurídicos absolutos” (absolute

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geral do dever de indenizar sem culpa (além das hipóteses específicas da legisla-ção). Temos ainda o art. 187, que consagra o abuso de direito, que tanto pode ter como sanção uma indenização (hipótese em que exige o dano), como pode ter outra sanção (hipótese em que não necessariamente exige o dano, como por exemplo na decretação de nulidade de determinada cláusula em contrato de adesão).

Dano moral é dano extrapatrimonial, isto é, dano que atinge a esfera jurí-dica da vítima nas dimensões extrapatrimoniais. A reparação, contudo, em se tratando de dano moral, será patrimonial, o que não deixa de ser conceitual-mente contraditório. Acerca da natureza jurídica do dano moral, talvez possa-mos começar afirmando que a indenização pelos danos morais é chamada de indenização compensatória, pois não busca restaurar – o que seria impossível – o estado de coisas anterior ao dano, busca apenas compensar, embora muitas vezes de modo insatisfatório, a lesão sofrida.

Dizemos isso porque a indenização relativa ao dano material é ressarcitória ou reparatória. Faz voltar o estágio anterior ao dano. Pensemos no mais clássico dos exemplos: uma pequena colisão entre veículos, com danos apenas materiais. É possível voltar à situação existente anteriormente ao dano, seja através da dis-ponibilização, pelo motorista culpado, de peças e serviços que façam voltam a situação anterior, seja indenizando a vítima através do equivalente monetário.

Essa volta ao estado anterior (status quo ante), no entanto, é impossível nos danos morais. Se o carro, em virtude de defeito no sistema de freios, não faz uma curva, e o consumidor, em razão do acidente, perde a visão, como fazer voltar a situação anterior? Em casos como esse, a indenização será compensa-tória, pois terá lugar para compensar a dor da vítima, a perda de um projeto de vida, da honra, enfim, qualquer dano suficientemente grave que possa ser tido, à luz das circunstâncias, como dano moral.

Argumentou, a propósito, o ministro Sálvio de Figueiredo Teixeira: “O dano moral, tido como lesão à personalidade, à honra da pessoa, mostra-se às vezes de difícil constatação, por atingir os seus reflexos parte muito íntima do indivíduo – o seu interior. Foi visando, então, a uma ampla reparação que o sistema jurídico chegou à conclusão de não cogitar da prova do prejuízo para demonstrar a violação do moral humano” (STJ, REsp. 121.757). Afirmou, nesse

Rechtsgüter), que foram mencionados em modelo casuístico na lei (propriedade, integridade física, e liberdade pessoal). Há, é verdade, uma tímida cláusula de abertura, que menciona “demais bens jurídi-cos” (sonstige Rechte). Porém a jurisprudência alemã sempre interpretou de modo restrito esse conceito jurídico indeterminado.