feliciano hacked by protowave uma lógica midiática no
TRANSCRIPT
Feliciano hacked by ProtoWave
Uma lógica midiática no hackeamento da página de Marco Feliciano
Isadora Lira 1
Resumo
Este trabalho examina a correlação de forças entre o hacktivismo e a midiatização, em
razão do hackeamento praticado na página pessoal do deputado federal Marco Feliciano
(SP-PSC), ocorrido em 7 de junho de 2015. Elegemos algumas noções de midiatização
e hacktivismo, em particular dos autores S. Hjarvard (2012), J. Ferreira (2007), A.
Fausto Neto (2008, 2012), L. Barros (2012), M. Sodré (2002), A. Samuel (2004), A.
Lemos (2002) e S. Silveira (2010). Interessa entender sob quais aspectos o site do
deputado revela-se atraente à invasão, quais são as marcas ideológicas predominantes
nessa “pichação” e a repercussão midiática que a ação consegue desencadear entre
portais de notícias conhecidos, como Folha de S. Paulo, Carta Capital e G1.
Palavras-chave: hacktivismo; midiatização; site de Marco Feliciano.
Abstract
This paper has as objective to examine the correlation of forces between hacker
activism and mediatization, due to the hacking practiced on Congressman Marco
Feliciano’s (SP–PSC) personal page on June the 7th, 2015. We choose some notions of
hacker activism and mediatization, in particular from the authors S. Hjarvard (2012), J.
Ferreira (2007), A. Fausto Neto (2008, 2012), L. Barros (2012), M. Sodré (2002), A.
Samuel (2004), A. Lemos (2002) and S. Silveira (2010). It is interesting to understand
which aspects of the Congressman’s website are attractive to invasion, what are the
predominant ideological traces in this "graffiti” and the media repercussion that this
action is able to trigger among well-known news portals such as Folha de São Paulo,
Carta Capital and G1.
Keywords: hacktivism, mediazation, Marco Feliciano’s website.
Entre bandeiras de arco-íris, cartazes, faixas, trios elétricos, plumas e paetês,
caminhavam milhares de pessoas na principal avenida do país. Na 19ª Parada pelo
1 Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Comunicação (PPGC) pela Universidade Federal da
Paraíba (UFPB). E-mail: [email protected]
Orgulho LGBT (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Transgêneros), de
São Paulo, realizada no dia 7 de junho de 2015, pessoas de diferentes gêneros,
sexualidades e credos saíram de suas casas para manifestar o apoio à causa LGBT.
Entretanto, enquanto o convite para o evento circulava nas redes sociais e as pessoas se
preparavam para a caminhada, um outro ativismo chamou a atenção para o movimento
nessa mesma data.
Conhecido por suas declarações homofóbicas, o deputado federal Marco
Feliciano (PSC-SP) teve seu site pessoal hackeado no mesmo dia 7 de junho. A página
inicial foi substituída por uma imagem de um Jesus Cristo negro, tendo como
background as cores do arco-íris, além da música de fundo, Ai Wilson Vai, de Mc
Grizante, uma paródia de I will survive, de Gloria Gaynor2 e uma mensagem dizendo:
“Marco Feliciano, você acaba de tomar no aparelho excretor. Abaixo o Preconceito”.
Naturalmente, vários portais reportaram o ocorrido e o fato estourou em redes sociais
como Facebook e Twitter.
Este trabalho pretende analisar a correlação de forças entre hackerativismo e
midiatização a partir do desse caso do hackeamento da página pessoal do deputado, a
fim de compreender esse tipo de ativismo hacker inserido na midiatização política que
vem sendo travada acerca das bandeiras de luta LGBT.
O ethos e o bios midiático
Entre a gravação de um áudio para um grupo de whatsapp e o taggeamento de
uma pessoa em uma foto postada em rede social, o que há em comum? Essas práticas,
dentre outras, denotam a chamada tecnomediação das relações, ora apontada como anjo,
ora como demônio na contemporaneidade. No livro Networked: The New Social
Operating System (2012), de L. Rainie e B. Wellman, as relações tecnomediadas são
percebidas através do aparecimento do fenômeno chamado individualismo conectado,
2 A paródia de MC Grizante fala da história de um homem que se torna gay após conhecer um homem
que é contratado para trabalhar na casa de seus pais. Gloria Gaynor é uma cantora estadunidense famosa
principalmente pela sua música I will Survive, gravada em 1978.
que possibilita a autonomia e o manuseio das redes criadas por cada indivíduo e as
mudanças consequentes da comunicação no universo de hiperconexão. Para Rainie e
Wellman, o individualismo conectado é uma espécie de sistema operacional possível
graças à chamada Revolução Tripla, que refere-se ao surgimento e aperfeiçoamento das
redes sociais (relações entre indivíduos mais diversificadas); internet (acesso e busca de
informações mais preciso e facilitado); e mobile (tecnologias comunicacionais,
tornando-se extensões do homem e permitindo o acesso a pessoas e informações em
qualquer lugar).
Esse sistema operacional está inserido no contexto de uma sociedade
midiatizada, ou seja, estruturada a partir de aparatos midiáticos. Para compreender o
espaço-tempo dessas realizações sociais cotidianas tecnomediadas na
contemporaneidade, M. Sodré (2002) fala de um ethos midiatizado:
A consciência atuante e objetiva de um grupo social - onde se manifesta a
compreensão histórica do sentido da existência, onde tem lugar as
interpretações simbólicas do mundo - e, portanto, a instância de regulação das
identidades individuais e coletivas. (SODRÉ, 2002, p.45)
Atrelado a esse ethos, Sodré sugere a existência de um quarto bios: o bios
midiático. Esse novo bios é uma forma de viver a realidade da mídia, definindo a
existência humana como uma relação de extensão da informação, onde o meio sintoniza
a mídia e o sujeito, sobre a qual repousa uma nova forma de tecnointeração (SODRÉ,
2004, apud FAUSTO NETO, 2008).
Implica de fato uma refiguração imaginosa da vida tradicional pela ‘narrativa’
do mercado capitalista. Frente a ele, é possível pensar no saber
comunicacional como uma redescrição da realidade tradicional pelo
pensamento que incorpore a nova ordem tecnológica, mas refigurando a
experiência do indivíduo em seu relacionamento com o mundo virtual,
experimentando por sua vez uma crítica da existência e buscando um sentido
ético político para o empenho ativo de reorganização do nosso estar no
mundo. (SODRÉ, 2004, p.255)
Sodré argumenta que a sociedade contemporânea está estruturada em uma lógica
midiática que dá sustentação à consciência e à construção de identidades do indivíduo e
do grupo, constituída numa nova ambiência, no que o autor chama de “cultura
vertebrada pelas tecnologias de informação” (SODRÉ apud FAUSTO NETO, 2008).
Ou seja, é algo que ultrapassa a dimensão técnica da mídia, alcançando os indivíduos e
suas identidades, seja individual ou de grupo.
É essa ambiência, fortalecendo os aparatos midiáticos enquanto dispositivos
criadores do real, propicia a discussão sobre o conceito que trabalharemos a seguir:
midiatização. Como as mídias perpassam/constroem a realidade, e que processo é esse
que se organiza ao redor deste objeto.
Midiatização
Sabe-se que o termo midiatização, embora em discussão há algumas décadas,
não tem um conceito definido. Levantamos algumas indicações para nos orientarmos. J.
Ferreira (2012) desenvolve o conceito midiatização na articulação de três polos em
relação de mútua determinação: processos sociais, processos comunicacionais e
dispositivos3. Esses polos se organizam de modo a formar algo que o autor chama de
matriz de midiatização, na qual não só cada um deles condiciona o outro, mas também
têm a possibilidade de interceder nas relações entre os demais (FERREIRA, 2012). Para
F. Krotz, a miditatização é um dos quatro metaprocessos fundamentais que configuram
a modernidade, juntamente com globalização, individualização e comercialização
(KROTZ apud BASTOS, 2012). L. Barros indica que é preciso valorizar o aspecto
humano da comunicação, colocando o ser humano como sujeito do processo, e não
como um agente passivo, porque para pensar a midiatização é preciso voltar-se para a
mediação, para se refletir a respeito das relações sociais em uma sociedade midiatizada
(BARROS, 2012). S. Hjarvard aponta que a “midiatização reflete a nova condição da
importância intensificada e em transformação da mídia na cultura e na sociedade”
(2014, p. 26). Hjarvard compreende o conceito de midiatização de forma próxima ao de
mediação de J. Barbero, com a diferença de que o primeiro indica que as mídias,
enquanto práticas institucionalizadas, adquiriram um impulso próprio, exercendo maior
influência nas demais esferas sociais.
3 Compreendido pelo autor como um conjunto de materialidades (passíveis de uma análise triádica) e, ao
mesmo tempo, como um conjunto de relações e intersecções sociais e de comunicação (2012, p. 7)
Fausto Neto (2008) identifica que, apesar do termo midiatização ter ganhado
destaque no século XXI, impulsionado principalmente pelas novas tecnologias de
comunicação, o termo já vem sendo debatido há algumas décadas. S. Hjarvard (2012)
aponta que já em 1986, o pesquisador sueco Kent Asp investigava os efeitos da
midiatização e política, percebendo o fenômeno como um processo pelo qual “um
sistema político é, em alto grau, influenciado pelas e ajustado às demandas dos meios de
comunicação de massa em sua cobertura da política” (Asp, 1986 apud Hjarvard, 2012).
Ou seja, apesar dos aparatos tecnológicos estimularem a discussão a respeito da
cultura da mídia na qual estamos inseridos, a discussão em torno do conceito de
midiatização surgiu antes da popularização da internet. Fausto Neto percebe que, com a
internet e os novos dispositivos, há a “disseminação de novos protocolos técnicos em
toda extensão da organização social, e de intensificação de processos que vão
transformando tecnologias em meios de produção, circulação e recepção de discursos”
(2008).
Esse aspecto mediador das mídias, que também está atrelado a um processo de
convergência, pode induzir a discussão a uma soberania dos aparatos tecnológicos sobre
os demais aspectos que envolvem a midiatização. Falamos anteriormente sobre a matriz
de midiatização proposta por J. Ferreira como forma de compreensão desse fenômeno.
O autor propõe cautela ao nos debruçarmos sobre midiatização para não permitir que
nenhum dos polos da matriz se sobreponha aos demais.
É necessário compreender, na construção do conceito de midiatização, que
essa é produzida, induzida(s) e regulada pelo conjunto das relações e
intersecções entre processos sociais e processos de comunicação, incidindo
sobre as materialidades dos dispositivos midiáticos em seu conjunto (espaço,
tempo, agenciamentos sígnicos, técnica e tecnologia), e não apenas em uma
de suas dimensões. (FERREIRA, 2012, p.11).
O autor destaca que a midiatização não deve ser compreendida enquanto um
fenômeno que ocorre por causa dos avanços tecnológicos e que não se desenrola apenas
a partir dos dispositivos. E que, a fim de compreender esse fenômeno sob a ótica da
comunicação, é preciso direcionar o olhar para as pesquisas relacionadas às análises de
processos sociais voltadas às mídias. Assim é possível pesquisar a midiatização sem que
a comunicação seja subordinada aos processos sociais, ou presa aos paradigmas de
outros campos de conhecimento. Neste artigo, nos interessa a correlação entre a
midiatização e o hacktivismo, sendo esse último fenômeno intrinsicamente ligado às
tecnologias de informação. Por essa razão, frisamos o ponto levantado por Ferreira a
respeito da não dependência irrestrita da midiatização às novas tecnologias, mas como
esse fenômeno que se desenvolve pela tríade de processos sociais, comunicacionais e
dispositivos (2012).
Hacktivismo
Hacktivismo é, como o próprio nome sugere, o ativismo hacker. Apesar de
alguns estigmas de criminalidade atribuídos ao hacker, faz-se necessário empreender
leituras sobre a cultura hacker para atender à necessidade de encontrar um melhor
entendimento sobre o assunto. As posturas hacktivistas, por vezes no limite da
legalidade, podem ser compreendidas de modo mais amplo, permitindo alcançar ações
desde o direito à informação livre, liberdade de expressão, vigilância ou invasão de
privacidade, até práticas colaborativas e inovadoras – bem como iniciativas políticas
ativistas.
A origem do termo hacktivista é atribuída a uma troca de e-mails do coletivo
estadunidense Cult of the Dead Cow4, conceituando a ação como “uma prática de
hacking, phreaking ou de criação de tecnologias para alcançar um objetivo social ou
política” (SILVEIRA, 2010). A pesquisadora A. Samuel identifica hacktivismo como “o
uso não violento, legal ou ilegal, de ferramentas digitais para perseguir finalidades
políticas”5 (SAMUEL, 2004). A. Samuel também traz conceitos de outros
pesquisadores, como T. Jordan e P. Taylor, que classificam como “uma combinação de
protesto político com hackeamento” (JORDAN, TAYLOR, apud SAMUEL, 2004); D.
4 Grupo estadunidense de hackers e uma organização de divulgação de mídia Faça você mesmo (Do it
yoursef), fundada em 1984 em Lubbock, no estado do Texas. http://www.cultdeadcow.com 5 No original: “hacktivism is the nonviolent use of illegal or legally ambiguous digital tools in pursuit of
political ends”. Tradução minha. Disponível em: http://alexandrasamuel.com/dissertation/pdfs/Samuel-
Hacktivism-entire.pdf Acesso em: 12 de agosto de 2015.
Denning, que define hacktivismo como “o casamento entre o hacking e ativismo. Cobre
operações que usam técnicas de hacking contra sites, com a intenção de interromper as
operações normais, mas sem causar danos graves (DENNING, apud SAMUEL, 2004)6;
Vegh classifica como “[h]acktivismo é uma ação política realizada online, ou uma
campanha, realizada por atores não-estatais, como forma de expressar desaprovação em
relação a algo ou para chamar a atenção para alguma causa defendida pelos
hacktivistas” (VEGH, apud SAMUEL, 2004)7.
O pesquisador brasileiro S. Silveira aponta para o crescimento do hacktivismo
nos primeiros dez anos do século XXI, indicando movimentos em prol da transparência
de dados públicos como hacktividades, a exemplo do Transparência HackDay, realizado
em outubro de 2009, em São Paulo, até criações de machinimas8 políticos. (SILVEIRA,
2010). S. Silveira também investiga orientações políticas dos hacktivistas, muitas vezes
se aproximando de ideais ou anarquistas ou neoliberais.
A. Samuel categorizou tipos de hacktivistas no que se refere a tipos de
atividades e orientações políticas. Enquanto ações, a pesquisadora identifica oito tipos:
desfiguração do site, que consiste na substituição da página inicial do site hackeado por
outra, com a mensagem pretendida; sabotagem; redirecionamento do site; negação de
serviço9, que se trata da sobrecarga de uma determinada página, simulando o acesso de
um número enorme de computadores; o roubo de informações; a paródia de sites; o
virtual sit-in, que é uma espécie de negação de serviço, mas realizado por várias
pessoas; e, por último, o desenvolvimento de softwares.
Different forms of hacktivism reference different political cultures, represent
diferente political orientations, and lend themselves to different kinds of
political statements (SAMUEL, 2004, p.8)
6 No original: “the marriage of hacking and activism. It covers operations that use hacking techniques
against a target’s Internet site with the intent of disrupting normal operations but not causing serious
damage.” Tradução livre.
7 No original: “[h]acktivism is a politically motivated single incident online action, or a campaign
thereof, taken by non-state actors in retaliation to express disapproval or to call attentionto an issue
advocated by the activists.” Tradução livre.
8 Machinima é a união das palavras inglesas “machine” e “animation”. Trata-se de uma das práticas
recombinantes que caracterizam a cibercultura.
9 Denial-of-service (DoS)
A partir disso, A. Samuel identifica três perfis de hacktivistas: os crackers
políticos, que exercem o hacktivismo com uma orientação “fora da lei”, que tende a
praticar mais negação de serviços, redirecionamentos, sabotagem, invasões e roubo de
informações; programadores políticos, que atuam de forma mais “transgressora” do que
propriamente ilegal, permanecendo na zona juridicamente ambígua da política de
desenvolvimento de softwares; e, por último, os hackers performáticos, que é composto
por um grupo de pessoas que visam mais o lado artístico, estético ou propriamente
ativista, “artistas”, atuando mais nas paródias de sites e nos virtual sit-ins.
Na sociedade midiatizada e informatizada, são muitas as possibilidades de ação
para o hacktivista. Considerando o domínio da técnica das tecnologias da informação
além do caráter social e simbólico hacker, o hacktivista transita na matriz de
midiatização (proposta por Ferreira), quando propõe outros fluxos comunicacionais
através de suas ações.
Marco Feliciano
Reeleito deputado federal pelo Partido Social Cristão (PSC) em 201410, Marco
Feliciano é um pastor neopentecostal da Catedral do Avivamento, uma igreja ligada à
Assembleia de Deus. Além de político e pastor, Feliciano também é empresário11 e
autor de 18 livros, além da produção de seus DVDs com mensagens de autoajuda.
Com esse currículo, Feliciano também é responsável por uma série de
declarações de teor racista e homofóbico no seu perfil da rede social Twitter, tais como:
“Africanos descendem de ancestral amaldiçoado por Noé. Isso é fato. O motivo da
maldição é a polemica (sic). Não sejam irresponsáveis twitters. [...] A maldição que Noé
lança sobre seu neto, canaã, respinga sobre continente africano, daí a fome, pestes,
10 Marco Feliciano foi o terceiro deputado mais votado no estado de São Paulo. Eleito em 2010 com 212
mil votos e reeleito com quase 400 mil em 2014.
11 Informação do site oficial de Marco Feliciano, embora não especifique no que consiste sua atividade
enquanto empresário.
doenças, guerras étnicas!”12 (2011); ou também "A podridão dos sentimentos dos
homoafetivos levam (sic) ao ódio, ao crime, à rejeição. Amamos os homossexuais, mas
abominamos suas práticas promíscuas" (2011).
Marco Feliciano ainda tentou justificar declarações problemáticas13, o que não
foi o suficiente para o procurador-geral da República, Roberto Gurgel, que instaurou um
inquérito por discriminação no Supremo Tribunal Federal. Entretanto, os ministros do
STF absolveram o deputado, argumentando que a punição por homofobia só seria
possível caso a lei tipificasse o crime de homofobia, como propunha o Projeto de Lei
122 (que, inclusive, após passar oito anos esperando ser aprovado pelo Senado, foi
arquivado em janeiro de 2015). Além destas declarações, Feliciano já estrelava um
vídeo icônico no portal Youtube no qual ele, em um de seus cultos, pede a senha do
cartão de crédito de um de seus fiéis14. No meio de todas essas polêmicas, Feliciano foi
eleito presidente da Comissão de Direitos Humanos e Minorias (CDHM), no dia 7 de
março de 2013. A repercussão midiática foi intensa, gerando movimentos de
personalidades segurando papéis com os dizeres Feliciano não me representa, ou a
utilização da hashtag #forafeliciano no Twitter ou Instagram. Outra manifestação
realizada nas redes foi o meme Beijos para Feliciano, na qual os usuários postavam
fotos beijando pessoas do mesmo sexo, como forma de provocação a Feliciano.
No meio dessas manifestações nas redes sociais, sob a presidência de Feliciano
na CDHM, foi aprovada no dia 18 de junho de 2013 o projeto de lei vulgarmente
conhecido por “cura gay”. De autoria do deputado João Campos (PSDB - GO), o
projeto sustava dois trechos da resolução instituída em 1999 pelo Conselho Federal de
Psicologia (CFP), sendo um deles o que determinava que “os psicólogos não
colaborarão com eventos e serviços que proponham tratamento e cura das
homossexualidades”.
12O Ministério Público Federal (MPF) abriu uma acusação contra Feliciano no Supremo Tribunal Federal
pelo crime de induzir ou incitar discriminação ou preconceito de raça, cor e religião. Apesar de reprovar a
conduta de Feliciano, a ação acabou por ser arquivada pela maioria dos ministros do Supremo, que
entendeu que não há como tipificar as mensagens como crime.
13 Em entrevista ao programa Agora é Tarde, da emissora de televisão Bandeirantes, Feliciano disse estar
sendo utilizado como bode expiatório, que não era racista, argumentando que já tinha até feito trabalhos
na África.
14 Disponível em: http://migre.me/qTrdc
Site pessoal
Ao acessar o site de Feliciano15 é possível avistar uma imagem que ocupa quase a
tela toda: no lado esquerdo uma foto do deputado até o busto, usando terno e exibindo
um meio sorriso, embora não dê para ver, aparentemente está com os braços cruzados;
ao lado direito está escrito: Pastor Marco Feliciano Deputado Federal Em defesa da
família brasileira. Na barra superior, as opções para navegação da página: home,
biografia, agenda, notícias, discursos e fotos. Ainda na página inicial, descendo a barra
de rolagem, estão os últimos três discursos em destaque. Abaixo, há um banner que tem
escrito: Conheça todos os projetos do Dep. Pastor Marco Feliciano, mas não está
linkado com nenhuma outra página. Ao continuar descendo a barra de rolagem, na
espera de ver tais projetos, pode-se encontrar as notícias relevantes do portal (que não
têm necessariamente relação com religião ou congresso), e, por fim, e-mail e telefone
para contato.
A página não é atualizada com frequência. Durante o período observado (20 de
junho a 20 de julho de 2015), só foram acrescentados dois discursos (Duvivier, por que
não te calas?; e Contenda entre católicos e evangélicos) e uma notícia (Campeonato
Europeu de Football). Todas postadas no dia 24 de junho. No total, são 27 discursos, 35
notícias, 1 vídeo e 6 fotos. Todas as fotos têm a mensagem Feliciano me representa, em
oposição à campanha
viralizada em 2013.
Hacked by ProtoWave
15 Disponível em: www.marcofeliciano2010.com.br
Na manhã do dia 7 de junho de 2015, a página de Marco Feliciano foi hackeada
pelo grupo ProtoWave16, responsável pelo hackeamento de páginas da Polícia Militar e
da Anvisa. A ação consistiu na substituição da página inicial pela imagem a seguir.
Figura 1 – Hacked by ProtoWave17
Podemos identificar na figura 1 os seguintes elementos:
1. As cores de background fazem referência ao arco-íris, símbolo da bandeira
LGBT.
2. Acima da imagem está escrito: Hacked by ProtoWave. Trata-se da assinatura do
grupo que cometeu a ação.
3. No centro da figura há uma imagem representando Jesus Cristo, entretanto, o
rosto foi substituído pelo semblante do personagem Carlton Banks, da série The
Fresh Prince of Bel-Air, interpretado pelo ator Alfonso Ribeiro18.
4. Na mão direita da representação de Jesus, está a cabeça de M. Feliciano. Em sua
mão direita está um frasco de perfume do Boticário19.
16 O nome do grupo faz alusão ao Proto, de protocolo de transferência de hipertexto e Wave (em inglês:
onda). Ou seja, algo como uma onda que “cobre” a rede. 17 Retirada daqui: http://goo.gl/xrX2gm 18 A imagem de Carlton é um meme que circula nos fóruns há anos. De acordo com a página Know your
Meme, os primeiros registros do meme foram por volta de 2008 ou 2009, na qual as imagens do Carlton
eram utilizadas como spam. 19 A marca de perfume O Boticário veiculou uma propaganda para a data comemorativa do dia dos
namorados com casais homoafetivos, o que gerou uma repercussão nas redes sociais elogiando a atitude
5. No canto direito, ainda na imagem central, há o ícone d’O Boticário sendo
iluminado pelo coração de Cristo, como se recebesse uma bênção - ou, quem
sabe, um patrocínio.
6. Abaixo da imagem está a seguinte mensagem: “Marco Feliciano, você acabou de
tomar no aparelho excretor Abaixo (sic)o preconceito”. A mensagem faz
referência à declaração do então presidenciável Levy Fidelix (PRTB). No debate
realizado no dia 2 de outubro de 2014, na Rede Record, Fidelix disse que
“aparelho excretor não reproduz”, quando questionado a respeito de sua opinião
sobre casais homoafetivos.
Seguindo a tipologia proposta por A. Samuel, a ação hacktivista foi do tipo
desfiguração de site, e o grupo ProtoWave pode ser categorizado como de
programadores políticos. Embora possa ser confundida com o hacktivismo
performático. Levamos em consideração o tipo de hacktividade (desfiguração de site) e
porque o ProtoWave tende a escolher páginas de governo ou de políticos, além de suas
ações se aproximarem de discussões políticas, mesmo que com teor duvidoso. O grupo
utilizou vários símbolos na ação, indo da cultura LGBT até a cibercultura. A ação
hacktivista analisada faz menção a alguns fenômenos fortemente midiatizados como: a)
uma alusão à bandeira LGBT20; b) a marca O Boticário, que teve forte repercussão
midiática com sua publicidade em celebração ao dia dos namorados; c) a imagem de
Jesus Cristo com o rosto do personagem Carlton Banks, associando um forte elemento
da cibercultura, o meme, ao inseri-lo na imagem, ao mesmo tempo que relaciona às
declarações racistas de Feliciano; e d) a expressão pejorativa proferida por Levy Fidelix
no debate com presidenciáveis, realizado em outubro de 2014.
Podemos perceber que, embora Feliciano não estivesse envolvido em nenhuma
polêmica recente relacionada à causa LGBT, sua imagem permanece atrelada à
homofobia. Para dar impacto à ação, o grupo escolheu o dia da maior Parada LGBT do
país.
pró-LGBT. Mas nem todos viram a propaganda com bons olhos. A vereadora Eliza Virgínia (PSDB -
João Pessoa), por exemplo, propôs um boicote à marca.
20 Na imagem da ação hacktivista faltam algumas cores para completar a bandeira oficial do movimento
LGBT.
De fato, funcionou e vários portais noticiaram o hackeamento, tais como Folha
de S. Paulo, G1, UOL e Terra. Em resposta, Feliciano postou em sua conta no Twitter
que: “O q + esperar deste País? A imprensa divulgando 1 crime e apoiando,
incentivando a trolagem? Parabéns a @UOLNoticias @folha @portaljovempan”.
Feliciano também postou: “Parabéns tbem aos hackers-gays financiados por ONGs que
se alimentam dos cofres públicos, por destilarem sua intolerância e seu preconceito”. E
mencionou que não tinha ligação alguma com a marca Boticário. “A intolerância dessa
patrulhada é tão grande q mal perceberam q nunca toquei no assunto BOTICÁRIO. Ñ
falei nada, Ñ RT nada, ñ postei Nada!”.
As matérias da Folha de S. Paulo e do G1 traziam a Figura 1, contextualizando
os símbolos escolhidos pelo grupo hacker, além das retaliações do Feliciano em seu
perfil no twitter. Embora o site tenha sido recuperado no próprio dia 7, o deputado não
publicou nenhum texto ou discurso em sua página. A única postagem referente à parada
LGBT fazia menção à performance da atriz Viviany Beleboni21.
O portal da revista Carta Capital publicou no dia 10 de junho uma entrevista
realizada com o grupo responsável pelo hackeamento. Um dos autores da ação se
identifica como Prestus Hood, e, segundo ele, “Da mesma forma que uns são contra a
homofobia, como foi o caso do ataque ao Feliciano, cada um de nós tem seus próprios
ideais e agimos individualmente”. A motivação para o hackeamento não foi uma defesa
à causa LGBT (aspecto que pode ser percebido pelo teor duvidoso da mensagem e da
escolha da música que fazia trilha para a ação), mas, sim, mostrar que havia uma falha
de segurança no portal, sem danificar o mesmo.
Um hacker, que mereça esse nome, jamais destrói nenhuma informação dos
sítios invadidos, eles realizam as invasões seja para alertar contra a (não)
segurança do provedor, seja para ganhar destaque no cenário, seja para
publicar alguma mensagem ou realizar algum protesto, jamais apagam
nenhum arquivo. No caso dos crackers, o objetivo é justamente o contrário.
(LEMOS, SEARA, PÉRSIO, 2001, p.35).
21 Na postagem, o deputado questiona a performance da atriz, que fez uma representação da crucificação,
indicando o elevado índice de mortes da população LGBT.
O grupo também se preocupou em deixar a sua marca registrada na ação,
característica apontada em ações hackers.
O hacker busca o reconhecimento social, o que torna o seu principal
instrumento de valoração do próprio trabalho. Quanto maior é o seu
reconhecimento social, maior é o seu acúmulo de capital humano, o que
obviamente é traduzido em ofertas crescentes de oportunidades de trabalho.
(ANTOUN, MALINI, 2013, p. 30-31).
De acordo com a tipologia proposta por Lemos, Seara e Pérsio (2001) acerca das
formas de discurso mais relevantes utilizadas pelos hackers brasileiros, podemos
observar que a ação do grupo ProtoWave se enquadra no âmbito das ações políticas
despojadas, envolvidas com a construção de situações humorísticas. No caso em
questão, a iniciativa hacker aparenta problematizar politicamente a homofobia e sua
representatividade na imagem do deputado de forma genérica, caracterizando
manifestações de protesto onde estariam presentes ambiguidades em termos do real
objeto contestado. Neste sentido, a intervenção se apropria de ferramentas
midiatizadoras através de um descompromisso com formas clássicas de política, na qual
hora reflete engajamento, ora mero divertimento.
Assim, o hacktivismo medeia as discussões sobre a homofobia com um caráter
dúbio, trazendo o humor de conotações indefinidas para o questionamento de
preconceitos em torno da sexualidade (embora hajam questionamentos sobre o teor da
mensagem). Sob esta perspectiva, a apropriação dos processos midiáticos, os quais
constituem a inteligibilidade social, envolvidas na presente iniciativa hack estariam
dando a seriedade necessária ao debate acerca da luta contra os preconceitos associados
à causa LGBT no Brasil, legitimadas em nível parlamentar na pessoa de Feliciano?
Embora com teor questionável, a proposta hacktivista atingiu seu objetivo
(visibilidade), inclinando-se menos para uma ação política e mais para um deboche
grafiteiro.
Considerações
A ação analisada atende às características atribuídas ao hacktivismo e se insere
no contexto trabalhado como midiatização. Sob a tipologia de hacktivismo proposta por
A. Samuel, a ação se enquadra enquanto desfiguração de site, sendo o grupo
responsável categorizado enquanto programadores políticos. Ao passo que a ação se
insere em um contexto de midiatização, ao ser
reverberada por múltiplos veículos de comunicação, tais como: Carta Capital, Folha de
S. Paulo, portal Terra e G1. Além do próprio perfil pessoal do deputado Feliciano no
Twitter. Identificamos o caráter midiatizado não somente pela repercussão midiática,
mas também pelos símbolos propostos na hacktividade em si, que sugerem a imagem de
Feliciano atrelada a outros eventos midiáticos anteriores. De suas declarações em sua
conta no Twitter às explicações esfarrapadas em programas de televisão, como o Agora
é tarde.
Assumindo a compreensão de uma sociedade midiatizada, na qual as mídias
perpassam as mais diversas esferas societárias, percebemos que, tanto os hacktivistas
podem se valer de alguma vantagem técnica sobre a utilização dos dispositivos, como,
por vezes, as ações hacktivistas buscam atender à uma lógica midiática. Afinal, de
acordo com a entrevista publicada na Carta Capital, uma das principais motivações do
grupo era a visibilidade.
Outro fato merece ser apontado nesse trabalho. Durante a elaboração do presente
artigo, uma nova invasão ao site do deputado Marco Feliciano foi registrada, no dia 16
de julho de 2015. A ação foi realizada pelo grupo ASORHackTeam (associado à rede
Anonymous), na qual a página foi reprogramada para a exibição de um texto publicado
sobre um fundo de cor preta. O conteúdo da mensagem fez referência ao conceito de
laicidade e como sua deturpação estaria sendo praticada pela bancada evangélica.
Apesar da hacktividade ter sido realizada no dia em que foi divulgada a notícia que a
Câmara dos deputados pretendia votar a PEC 9922, a repercussão desta notícia não teve
o impacto que às relacionadas à causa LGBT. Inclusive, cabe aqui uma reflexão sobre
porque o grupo preferiu realizar a ação na página de Feliciano, e não na do deputado
22 A Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 99, de autoria do deputado João Campos (PSDB-GO),
permitiria que associações como a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) e convenções de
denominações evangélicas também tenham condição de questionar o Supremo Tribunal Federal.
responsável pela PEC, João Campos (PSDB – GO), que é membro muito ativo da
bancada evangélica e um antagonista da causa LGBT23, não foi ele o político escolhido
como alvo das ações hacktivistas. Será que teria a ver com sua imagem pouco
midiatizada ou por não ser tão atuante em redes sociais como o Marco Feliciano e, por
isso, não haver tanta reverberação de suas declarações? São indagações para posteriori.
Referências
BRAGA, José Luiz. Circuitos versus campos sociais. In: MATOS, Maria Ângela;
JANOTTI JUNIOR, Jeder; JACKS, Nilda Aparecida. Mediação e midiatização: Livro
Compós 2012. Salvador/Brasília: UFBA, COMPÓS, 2012. P. 31-52.
BASTOS, Marco Toledo. Medium, media, mediação e midiatização: a perspectiva
germânica. In: MATOS, Maria Ângela; JANOTTI JUNIOR, Jeder; JACKS, Nilda
Aparecida. Mediação e midiatização: Livro Compós 2012. Salvador/Brasília: UFBA,
COMPÓS, 2012. P. 53-78.
BARROS, Laura. Anonymousbrasil. ago. 2013. Disponível em:
<http://www.anonymousbrasil.com/coluna/o-hacktivismo-no-desenvolvimento-da-
internet>. Acesso em: 13 mar. 2014.
FERREIRA, Jairo. Midiatização: dispositivos, processos sociais e de comunicação,
Compós 2012.
HJARDARD, Stig. Midiatização: teorizando a mídia como agente de mudança social e
cultural. Revista MATRIZes: Ano 5 – nº 2 jan./jun. 2012 - São Paulo - Brasil.
LEMOS, André. Cibercultura: tecnologia e vida social na cultura contemporânea.
Porto Alegre: Sulina, 2002.
LEMOS, André, PÉRSIO, Wilson e SEARA, Simone. Hackers no Brasil, 2002.
MALINI, Fábio e ANTOUN, Henrique. A internet e a rua: ciberativismo e mobilização
nas redes sociais. Porto Alegre: Sulina, 2013
MALINI, Fábio. O valor no capitalismo cognitivo e a cultura hacker. Liinc em
Revista, Rio de Janeiro/RJ, vol. 5, n. 2, p. 191-2052, 2009.
MATTOS, Ângela; VILLAÇA, Ricardo. Interações midiatizadas: desafios e
perspectivas para a construção de um capital teórico. In: Revista Comunicação
Midiática, v.7. Belo Horizonte, 2012.
MATUOKO, Ingrid. Conheça os hackers que invadiram o site de Feliciano.
Disponível em: http://goo.gl/KXoQ0W
23 João também é autor da proposta da cura gay e da PEC 99.
Acesso em: 10 de agosto de 2015
NETO, Antônio Fausto. Fragmentos de uma «analítica» da midiatização. Revista
MATRIZes: São Paulo, abr. 2008, n 2 abril, p. 89-105.
Página de Marco Feliciano é hackeada. Disponível em: http://goo.gl/xrX2gm
Acesso em: 10 de agosto de 2015.
RAINIE, Lee, WELLMAN, Barry. Networked: The new social operating system.
Cambridge: MIT Press, 2012.
SODRÉ, Muniz. Antropológica do espelho: uma teoria da comunicação linear e em
rede. Vozes, 2002.
SILVEIRA, Sérgio Amadeu. Ciberativismo, cultura hacker e individualismo
colaborativo. Revista USP: São Paulo, jun./ago. 2010, n. 86, p. 28-39.