faralli, carla - a filosofia contemporanea do direito

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A FILOSOFIA CONTEMPORÂNEA DO DIREITO Temas e desafios Carla Faralli Tradução CANDICE PREMAOR GULLO Revisão da tradução SILVANA COBUCCI LEITE ,1 wm/mar tinsfontes

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Filosofia do direito. Filosofia contemporânea.

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  • A FILOSOFIA CONTEMPORNEA

    DO DIREITO Temas e desafios

    Carla Faralli

    Traduo

    CANDICE PREMAOR GULLO

    Reviso da traduo

    SILVANA COBUCCI LEITE

    ,1

    wm/mar tinsf ontes

  • Esta obra foi publicada originalmente em italiano com o ttulo LA FILOSOFIA DEI DIR1TT0 CONTEMPORNEA

    por Laterza, Roma. Copyright 2997, Gius. Laterza & Figli S.p.a., Roma-Bari.

    Edio brasileira publicada por contrato com Eulama Literary Agency, Roma.

    Copyright 2006, Livraria Martins Fontes Editora Ltda., So Paulo, para a presente edio.

    I a edio 2006

    Traduo CANDJCE PREMAOR GULLO

    Reviso de traduo Silvana Cobucci Leite

    Acompanhamento editorial Luzia Aparecida dos Santos

    Revises grficas Marisa Rosa Teixeira

    Alessandra Miranda de S Dinarte Zorzanelli da Silva

    Produo grfica Geraldo Alves

    Paginao/Fotolitos Studio 3 Desenvolvimento Editorial

    Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP) (Cmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

    Faralli, Carla A filosofia contempornea do direito : temas e desafios /

    Carla FaraJli; traduo Candice Premaor Gullo ; reviso da traduo Silvana Cobucci Leite. - So Paulo : WMF Martins Fontes, 2006. - (Justia e direito)

    Ttulo original: La filosofia dei diritto contempornea. Bibliografia. ISBN 85-60156-05-4

    1. Direito - Filosofia I. Ttulo. II. Srie.

    06-6123 CDU-340.12

    ndices para catlogo sistemtico: 1. Direito : Filosofia 340.12

    Todos os direitos desta edio para o Brasil reservados Livraria Martins Fontes Editora Ltda.

    Rua Conselheiro Ramalho, 330 01325-000 So Paulo SP Brasil Tel. (11) 3241.3677 Fax (11) 3101.1042

    e~mail; [email protected] http:Hwww.martinsfontes.com.br

    NDICE

    Prlogo edio brasileira IX Introduo. A crise do positivismo jurdico 1

    I. A abertura da filosofia do direito aos valores tico-polticos 11

    II. A abertura da filosofia do direito aos fatos 27 III. Os estudos sobre o raciocnio jurdico 43 IV. Os estudos de lgica jurdica 57 V. Novas fronteiras para a filosofia do direito 67

    Notos 85 Bibliografia 109 ndice onomstico 137

    mailto:[email protected]:Hwww.martinsfontes.com.br

  • em memria de meu mestre Guido Fass

  • PRLOGO EDIO BRASILEIRA1

    Nas ltimas dcadas, a multiplicao das publica-es, em todos os campos do saber, acompanhou a frag-mentao das correntes tradicionais de pensamento. Outro multiplicador do saber foi sua internacionaliza-o, que hoje obriga todo estudioso a examinar tambm textos em idiomas estrangeiros. Disso resulta uma srie de escolas, correntes, tendncias e muitas vezes de mo-dismos que se entrecruzam e complicam tanto o acesso ao saber quanto a classificao dos fragmentos que, com freqncia crescente, chovem sobre a escrivaninha de quem estuda. A filosofia do direito no fugiu a esse des-tino comum.

    A sntese histrica de Carla Faralli, eminente estu-diosa de filosofia do direito da Universidade de Bolonha, oferece aos cultores do direito, da filosofia, das cincias sociais e humanas um mapa para se orientar entre as es-colas do pensamento jurdico-filosfico dos ltimos cin-qenta anos. Seu livro retoma e completa a vasta obra do filsofo do direito que, sempre em Bolonha, foi o mes-

    1. Traduo de Marcela Varejo, professora adjunta da Universidade Federal da Paraba e da Universidade Federal de Pernambuco; doutora em Sociologia do Direito pela Universit degli Studi di Milano, Itlia.

  • X A FILOSOFIA CONTEMPORNEA DO DIREITO

    tre de Carla Faralli: Guido Fass. O terceiro volume de Fass se interrompe, porm, por volta da metade do s-culo XX. Carla Faralli, por sua vez, parte dos anos 1960, quando um forte choque social teve o efeito de imprimir - por consonncia ou por dissonncia - um novo curso segunda parte do sculo. Tambm na filosofia do direito registraram-se correntes nascidas dos novos fermentos, ou seja, correes, especificaes ou crises das escolas de pensamento anteriores.

    Para organizar esse conjunto heterogneo de novos fermentos e de teorias clssicas, de escolas tradicionais e de experincias, por vezes at demasiado ousadas, Carla Faralli reagrupa em cinco linhas de pesquisa a produo filosfico-jurdica dos ltimos cinqenta anos. Em todas, inevitvel que, ao lado das correntes italianas, se exa-minem tambm as correntes estrangeiras que com elas se interseccionam, no mbito de uma internacionaliza-o do saber que gerou aquele invisible college nico, do qual os estudos de filosofia do direito constituem um caso exemplar.

    A primeira linha dedicada ao retorno do valor ti-co-poltico no debate jusfilosfico e remonta, assim, crise do positivismo jurdico, que fora a doutrina predo-minante sobretudo entre o final do sculo XIX e a pri-meira metade do sculo XX. A aplicao dessa renovada perspectiva tico-poltica s constituies democrticas produziu resultados fecundos.

    Se o direito j no estudado apenas do ponto de vista formal (ou seja, prescindindo de seus valores e con-tedos), inevitvel que o olhar se dirija para o direito como elemento da realidade social. Por esse motivo, a segunda linha agrupa os institucionalismos e os realismos jurdicos, em que se situam algumas das novas corren-tes, ligadas a temas que se impuseram ateno de toda

    PRLOGO EDIO BRASILEIRA XI

    a sociedade, sobretudo depois de 1968, como os Criticai Legal Studies, a anlise econmica do direito e os estudos de gnero aplicados tambm ao mbito terico do direito. Como sua anlise tem por objeto o pensamento filosfico -jurdico, Carla Faralli no examina, portanto, a sociologia do direito, dotada de uma trajetria prpria e diferente.

    A terceira linha ocupa-se do raciocnio jurdico, em particular das perspectivas abertas primeiro pelas teorias da argumentao jurdica e depois pelas teorias da inter-pretao ou hermenutica do direito: inserem-se aqui as teorias da lgica informal, da nova retrica e da tpica.

    Um passo a mais no estudo do raciocnio jurdico ilustrado pela quarta linha, constituda pelos estudos de lgica jurdica (em particular, de lgica dentica), nos quais a escola de Buenos Aires ocupa posio de primei-ro plano. Esse um dos poucos casos em que o pensamen-to sul-americano contribuiu para alimentar uma corrente universal de estudos, assumindo uma posio equivalen-te das produes anglo-americanas e europias.

    Enfim, com a quinta Unha analisam-se as novas fron-teiras a que chegou a filosofia do direito, impulsionada pela incessante inovao cientfica e tecnolgica dos l-timos decnios. Assim, aos temas tradicionais da filoso-fia do direito acrescentaram-se os problemas das inter-venes na vida humana e animal, das novas formas de pluralismo jurdico geradas pelo multiculturalismo, do uso da informtica no mundo do direito. Nesses cam-pos, a opinio do filsofo do direito cada vez mais de-cisiva para o legislador. O panorama traado por Carla Faralli encerra-se com o exame da informtica jurdica e da biotica.

    O impulso inovador at aqui descrito demonstra que a filosofia do direito no uma disciplina antiquada ou desvinculada da realidade: , muito mais, uma daquelas

  • XII A FILOSOFIA CONTEMPORNEA DO DIREITO

    pesquisas de base que do frutos a longo prazo porque identificam as linhas evolutivas da sociedade na qual es-to imersas.

    A meu ver, um dos benefcios do livro de Carla Faralli consiste exatamente em enfatizar esse aspecto inovador de uma disciplina antiga. O sintetismo de seu escrito fortalece essa reivindicao, particularmente necessria aos estudos atuais.

    De fato, precisamente de Bolonha - cidade em que se reuniram em 1999 os reitores das universidades euro-pias - partira uma reforma dos estudos universitrios que pretendia harmonizar os currculos heterogneos das universidades europias: como na Unio Europia os profissionais podem circular livremente, eles preci-sam ter um preparo homogneo. Essa reforma razovel logo se transformou num premente convite a organizar a universidade em funo das empresas, como se cou-besse a ela produzir, no a intelligentsia de uma nao, mas os funcionrios de uma indstria. Da aceitvel eco-nomia de mercado, passava-se assim a uma inaceitvel sociedade de mercado. Conseqentemente, tanto nas fa-culdades cientficas como nas dedicadas s cincias hu-manas manifestou-se a tendncia a abolir as matrias vinculadas pesquisa de base, por no serem imediata-mente passveis de utilizao no mercado de trabalho.

    Por esse motivo, o ensino da filosofia do direito, em particular, est conhecendo uma drstica reduo em toda a Unio Europia. Para reagir a essa tendncia e evitar que outras reformas repitam o mesmo erro, este livro oferece um insubstituvel testemunho, no apenas da vi-talidade intelectual, mas tambm da utilidade prtica de uma disciplina terica como a filosofia do direito.

    De fato, enquanto houver uma sociedade com orde-namento jurdico, persistir tambm a necessidade de

    PRLOGO EDIO BRASILEIRA XIII

    refletir sobre a justia, sobre a estrutura e a funo das normas jurdicas, sobre os comportamentos que devem ser incentivados ou reprimidos e, enfim, sobre o tipo e o nvel de ordem que deve reger aquela sociedade.

    MARIO G . LOSANO

    Outubro de 2005

  • INTRODUO A crise do positivismo jurdico

    O adjetivo "contemporneo" gera no mnimo incer-teza: quando na linguagem comum falamos em idade contempornea, referimo-nos poca em que vivemos, assumindo assim uma delimitao no definitiva, mas malevel. Na histria, o incio da idade contempornea fixado em datas geralmente precisas que, porm, variam nos diversos pases e culturas1. Por esse motivo, faz-se ne-cessrio indicar o momento de incio da filosofia do di-reito contempornea. Assumiremos como termo a quo o final dos anos 1960 do sculo XX, ou seja, a crise do mo-delo juspositivista na verso hartiana, em outras palavras, a poca posterior a Hart.

    Nos ltimos quarenta anos assistimos a uma disso-luo progressiva das escolas e correntes consolidadas, e em decorrncia disso j no muito til, por exemplo, a distino clssica entre jusnaturalismo, juspositivismo e realismo jurdico, que por muito tempo permitiu que nos orientssemos entre as posies dos diversos autores, mesmo que de maneira s vezes um pouco esquemtica e forada. Isso no significa que o jusnaturalismo, o jus-positivismo e o realismo jurdico tenham desaparecido: o primeiro tem um representante de relevo em John M. Finnis; ao segundo esto ligados, de diferentes maneiras,

  • 2 A FILOSOFIA CONTEMPORNEA DO DIREITO

    autores como Neil MacCormick, Ota Weinberger, Jo-seph Raz; ao terceiro esto associados os expoentes dos Criticai Legal Studies, da anlise econmica do direito, bem como de parte da teoria do direito feminista. No en-tanto, alguns autores prescindem de tais correntes teri-cas, pois no as aceitam nem as criticam, no podendo assim ser ligados a elas, mas simplesmente se ocupam de novas pesquisas.

    Outra caracterstica do debate filosfico-jurdico con-temporneo a notvel ampliao do mbito temtico: ao lado das problemticas tradicionais - que vo da teo-ria da justia cincia jurdica, da teoria da norma teoria do ordenamento - o filsofo do direito est hoje cada vez mais empenhado em tratar de questes especficas, que o aproximam do filsofo moral, do filsofo poltico, do pro-fissional de informtica, do mdico, do socilogo.

    Uma possvel chave de leitura para facilitar a com-preenso do debate filosfico-jurdico contemporneo to especializado, fragmentado, diversificado e fluido2 iden-tificar nele, com alguma aproximao, duas diretrizes oriundas da crtica do modelo juspositivista que entrou em crise no final dos anos 1960.

    Esse modelo, com palavras muito esquemticas e pa-rafraseando Norberto Bobbio, , como se sabe, o de uma teoria formal do direito, isto , de uma teoria que estuda o direito em sua estrutura normativa, independente-mente dos valores a que serve essa estrutura e do con-tedo que ela encerra.

    Em princpio, o juspositivismo encontra suporte na teorizao dos cientistas sociais do final do sculo XIX, que sustentam a impossibilidade programtica de valo-rao da cincia social e a impossibilidade estrutural de en-contrar critrios de juzo de ordem moral para decidir em direito e em poltica. Mais tarde, na primeira metade do

    INTRODUO 3

    sculo XX, ele passa a se apoiar na filosofia analtica que, ao tratar dos valores, desenvolve uma metatica no-cog-nitivista, afirmando a impossibilidade de conhec-los objetivamente.

    O debate contemporneo questionou as duas teses em que se apoiava o positivismo jurdico, determinando a abertura da filosofia do direito, por um lado, ao mundo dos valores tico-polticos e, por outro, ao mundo dos fatos.

    Quanto ao primeiro aspecto, pode-se remeter o in-cio do ps-positivismo, com certa aproximao, s crticas de Ronald Dworkin a Herbert Hart, reunidas no volume de 1977, TakingRights Seriously3. Quanto ao segundo, s ela-boraes neo-institucionalistas de Ota Weinberger e Neil MacCormick, que resultaram no volume conjunto de 1986, An Institutional Theory ofLaw4.

    A premissa da teoria neo-institucionalista de Mac-Cormick (n. 1941) e Weinberger (n. 1919) constituda pelo reconhecimento da inadequao do juspositivismo, que emprega noes "ideais" exteriores ao mundo do "ser", perdendo de vista o fato de o direito estar profun-damente inserido na realidade.

    "O que nos propomos desenvolver" - afirmam os dois autores - " uma teoria institucionalista do direito que explique e d conta da existncia de normas, insti-tuies jurdicas e outros objetos ideais similares, e evite, por um lado, as armadilhas do idealismo, contra o qual justamente realistas e materialistas sempre protestaram, sem cair, por outro lado, na armadilha do reducionismo, risco ao qual as teorias realistas esto sempre expostas", decompondo o direito numa srie de comportamentos individuais e perdendo de vista o elemento normativo, essencial ao fenmeno jurdico5.

    Para MacCormick e Weinberger o direito situa-se no plano dos fatos, mas no dos fatos brutos, junto com "sa-

  • 4 A FILOSOFIA CONTEMPORNEA DO DIREITO

    patos, navios, lacres de cera ou couve-flor", e sim no pla-no dos "fatos institucionais". Estes ltimos constituem uma categoria especial de fatos, que tm sua prpria di-menso e dignidade ontolgica, paralela, por assim dizer, dimenso dos fatos brutos, na medida em que se origi-nam de regras constitutivas. O que distingue as normas jurdicas no vasto mbito dos fatos institucionais o fato de serem funcionais a fins particularmente relevantes para a sociedade, como a proteo da vida e da seguran-a de seus membros e a alocao dos bens, inevitavel-mente insuficientes para satisfazer todas as necessidades de cada membro da sociedade.

    Dworkin (n. 1931), por sua vez, questionando a tese hartiana da separao entre direito e moral, sustenta que no possvel reduzir os ordenamentos jurdicos a me-ras estruturas normativas e que, ao lado das regras (rules), existem os princpios (principies), que vo alm do direi-to estatudo, na medida em que se referem a fins (como o bem-estar da comunidade) ou a valores (entre os quais os direitos individuais). Eles representam "um padro que deve ser observado no por provocar ou manter uma si-tuao (econmica, poltica ou social) desejada, mas por ser uma exigncia de justia, ou de retido, ou de qual-quer outra dimenso da moral"6.

    Os principies so realidades heterogneas em relao s [regras], mas so complementares a elas no ordenamen-to jurdico: as regras so vlidas enquanto normas estabe-lecidas, e podem ser mudadas somente por fora de uma deliberao, enquanto os princpios so vlidos enquanto correspondem a exigncias morais sentidas num perodo especfico, e seu peso relativo pode mudar no decorrer do tempo. Os tribunais devem recorrer a estes ltimos para resolver os casos difceis (hard cases), aos quais no seria possvel aplicar uma regra sem cometer uma injustia7.

    INTRODUO 5

    Com o tempo, o momento interpretativo torna-se tema dominante na construo de Dworkin, que em Law's Empire8 chega a uma teoria do direito como interpreta-o e como integridade, no sentido em que o direito concebido como uma complexa atividade de interpreta-o, que todavia no deixada discricionariedade dos juzes, mas firmemente ancorada aos princpios, fruto de um preciso desenvolvimento histrico.

    Assim, com a queda da rgida distino entre direito e moral, que caracterizara o positivismo jurdico at Hart, abre-se um novo caminho para uma filosofia do direito normativa, empenhada em questes de grande reper-cusso poltica e moral, em estreita conexo com a filo-sofia poltica e a filosofia moral.

    Desde o incio dos anos 1970, por outro lado, o filso-fo estadunidense John Rawls (1921-2002) com seu A Theory of Justice9 havia relanado a tica substantiva e a poltica normativa. De fato, o objetivo dessa obra identificar, dentre os tantos ordenamentos sociais que podem ser buscados, quais so os justos, isto , aqueles que cada ci-dado escolheria se pudesse ser posto em condies de fazer uma escolha absolutamente racional, para alm dos prprios interesses e egosmos.

    Na teoria de Rawls, os princpios de justia so de-duzidos por meio de um procedimento contratual hipo-ttico, que representa uma verso nova e aprimorada do antigo contrato social. Esse procedimento parte da "po-sio original", na qual os indivduos se encontram sob um espesso "vu de ignorncia", no sentido de que no sabem nada da prpria posio futura na sociedade, des-conhecem o seu sexo, a sua idade, a sua nacionalidade, a sua condio social, as suas capacidades pessoais, as suas posses materiais etc. Em outras palavras, excluem-se to-das as consideraes que poderiam introduzir elementos de no-imparcialidade no dilogo contratual.

  • 6 A FILOSOFIA CONTEMPORNEA DO DIREITO

    As partes em questo, concebidas como essencial-mente racionais e em condies de total liberdade e igual-dade, "escolhem juntas, com um s ato coletivo, os prin-cpios que devem conferir os direitos e os deveres funda-mentais e determinar a diviso dos benefcios sociais".

    Tais princpios so, substancialmente, dois: o primei-ro, que prevalece sobre o segundo, determina que cada pessoa deve ter um direito igual ao mais abrangente sis-tema de liberdades bsicas iguais, que seja compatvel com um sistema semelhante de liberdades para todos; o segundo, que todos os principais bens sociais - liberda-de e oportunidade, renda e riqueza e as bases da auto-estima - devem ser distribudos igualitariamente, a me-nos que uma distribuio desigual de um ou mais desses bens traga vantagem aos menos privilegiados10.

    A obra de Rawls - obra de um filsofo moral e pol-tico, mas centrada num tema clssico da tradio filoso-fico-jurdica, a justia - teve um impacto muito grande sobre a filosofia do direito", abalando uma das teses fun-damentais do positivismo: a convico da impossibilidade de uma discusso racional sobre os contedos deontol-gicos ou de uma teoria cientfica de tais contedos.

    Mais ou menos no mesmo perodo, na Alemanha, o movimento de reabilitao da filosofia prtica (Rehabilitie-rung der praktischen Philosophie), representado sobretudo por Rudiger Bubner, Otfried Hffe, Karl Heinz Ilting, Manfred Riedel e Joachim Ritter, partindo da releitura de Aristteles e Kant, tambm tenta fundar uma concepo do direito e da poltica novamente normativa.

    Os grandes temas do debate contemporneo torna-ram-se, ou melhor, em alguns casos, voltaram a ser, numa perspectiva internacional, a justia, os direitos funda-mentais do homem, a imparcialidade ou neutralidade do Estado, enriquecidos por novos elementos como o direito

    INTRODUO 7

    das minorias culturais, o multiculturalismo, os direitos dos animais, o direito do ambiente, os direitos do nascituro, a eutansia etc.

    Tambm na Itlia o positivismo jurdico, desenvolvido de modo substancialmente unitrio entre os anos 1950 e 1960, atravs do fecundo encontro entre a filosofia anal-tica e a teoria pura de Kelsen, entra em crise ao final dos anos 1960 1 2.

    Em 1965 so lanados Giusnaturalismo e positivismo giurdico, de Norberto Bobbio, e Cos' il positivismo giuri-dico, de Uberto Scarpelli, duas obras consideradas a sn-tese de quinze anos de aliana entre positivismo jurdico e filosofia analtica, mas que j revelam os primeiros sin-tomas da crise13.

    Na primeira, Bobbio (1909-2004), depois de distinguir trs aspectos do positivismo jurdico - como ideologia, como teoria do direito e como modo de abordagem do estudo do direito -, declara sua adeso ao positivismo ju-rdico apenas como modo no-valorativo e cientfico de empreender o estudo do direito, concebido como fen-meno real e no ideal14. Dois anos mais tarde, num artigo intitulado "Essere e dover essere nella scienza giuridica"15, Bobbio chega a inverter as teses que ele mesmo defende-ra nos anos 1950, quando considerava descritivo o meta-direito kelseniano, e sustenta que na verdade at o mo-delo kelseniano prope um metadireito prescritivo de tipo estrutural e formal. Bobbio conclui o ensaio salientando que, na fase atual dos estudos sobre a cincia jurdica, se assiste a uma completa inverso de rota e tendncia a um metadireito mais realista, que procede, com mtodo analtico, descrevendo aquilo que os juristas efetivamen-te fazem. Esse metadireito, estudando aquilo que o di-reito , descobre que este no descritivo, mas prescritivo, ou seja, dita os comportamentos devidos e, na medida em que prescreve, no de modo algum cincia.

  • 8 A FILOSOFIA CONTEMPORNEA DO DIREITO

    Porsua vez, Scarpelli (1924-1993), em Cos' il positi-vismo giuriico, acima citado, assume um ponto de vista diferente, chegando a deslocar o modelo juspositivista "do universo da cincia para o universo das atividades polticas".

    Admitindo a impraticabilidade de um estudo mera-mente cientfico do direito, ele sustenta que o juspositivis-mo se resume na aceitao por parte do jurista do direito positivo, entendido como sistema de normas vlidas -normas de comportamento e normas de estrutura, esta-belecidas pela vontade de seres humanos -, "constitudo (ainda que no exclusivamente) de normas gerais e abs-tratas, coerente ou reconduzvel coerncia, completo porque exclusivo, coercitivo". Em outras palavras, o po-sitivismo jurdico implica, segundo Scarpelli, uma tomada de posio em favor de uma tcnica particular de forma-o de expresso da vontade poltica, a tcnica pela qual a vontade poltica se forma atravs de procedimentos re-gulados por normas positivas de estrutura e se expressa em normas gerais e abstratas.

    O juspositivismo - escreve Scarpelli - " uma face da tcnica poltica que pretende realizar o controle social mediante uma produo regulada de normas gerais e abstratas", isto , daquela tcnica poltica prpria do Es-tado moderno16.

    Nos anos seguintes - os do assim chamado ps-po-sitivismo - amadurece a virada do pensamento tanto de Bobbio como de Scarpelli nas direes indicadas pelas obras citadas acima.

    Nos anos 1970, Bobbio se aproxima de uma teoria do direito de tipo funcional, considerada a abordagem ne-cessria para adaptar a teoria do direito s transforma-es da sociedade contempornea. Como declara o pr-prio Bobbio na introduo a uma coletnea de textos da-

    INTRODUO 9

    queles anos, significativamente intitulada Dalla struttura alia funzione, a teoria formal do direito, totalmente orien-tada para a anlise da estrutura dos ordenamentos jur-dicos, negligenciou a anlise de suas funes. Mas o di-reito no um sistema fechado e independente: ele , em relao ao sistema social considerado como um todo, um subsistema que est ao lado - em parte se sobrepon-do e em parte se contrapondo - de outros subsistemas (econmico, cultural, poltico) e o que o diferencia dos outros justamente a funo. E precisamente essa des-coberta que evidencia a insuficincia da teoria estrutural e a necessidade de uma "teoria funcionalista do direito", no para se contrapor, mas para complementar a pri-meira17. A partir do final dos anos 1970, Bobbio ocupou-se predominantemente de filosofia poltica, quer por mo-tivos contingentes (a transferncia para a ctedra de Fi-losofia Poltica na nova Faculdade de Cincias Polticas de Turim), quer pela convico amadurecida de que a teoria poltica deve alimentar e integrar a teoria do direito.

    No mesmo perodo, Scarpelli dirigiu os seus estudos sobretudo para os problemas de tica e metatica jurdi-ca e geral, s vezes sob a forma de investigao de pro-blemas de semitica da linguagem prescritiva.

    A obra mais representativa dessa fase do pensa-mento de Scarpelli Htica sema verit. Trata-se de um ttulo emblemtico que resume todo o significado da fi-losofia do autor, "o tema fundamental, o fio condutor, a dificuldade e a promessa" de todas as suas pesquisas so-bre a tica, como ressalta o prprio autor no Prefcio18. Pesquisas sempre inspiradas no princpio da "Grande Di-viso" entre descritivo e prescritivo e na lei de Hume, que, como se sabe, no permite extrair preceitos de asseres e vice-versa. Da a tica sem verdade, no sentido de que as proposies prescritivas, diferentemente das assertivas,

  • 10 A FILOSOFIA CONTEMPORNEA DO DIREITO

    no so nem verdadeiras nem falsas. No podem, por-tanto, ser submetidas ao juzo de veracidade ou de falsi-dade, mas apenas a critrios de justificao.

    Nesse mesmo perodo, Scarpelli comea a se ocupar de biotica sob uma perspectiva laica, contribuindo, como veremos no ltimo captulo, para a expanso, entre os fi-lsofos do direito, das discusses que tm por objeto as problemticas inerentes a tal disciplina.

    Captulo I

    A abertura da filosofia do direito aos valores tico-polticos

    Como vimos na Introduo, a crise do positivismo jurdico levou superao da rgida distino entre direi-to e moral e conseqente abertura do debate filosfico-jurdico contemporneo aos valores tico-polticos. Essa abertura teve vrios resultados, dentre os quais os mais significativos parecem ser as chamadas teorias constitu-cionalistas ou neoconstitucionalismo1 e a nova teoria do direito natural.

    1. A identificao do constitucionalismo como teoria especfica do direito e sua distino do positivismo (ou legalismo) foi proposta por R. Alexy e R. Dreier2 no final dos anos 1980, luz do debate alemo sobre o papel da Bundesverfassungsgericht (Tribunal Constitucional Fede-ral) e a interpretao de sua jurisprudncia. Enquanto as teorias legalistas so reconduzidas ao mbito do jusposi-tivismo tradicional, a principal caracterstica das teorias constitucionalistas consiste no reconhecimento do au-mento da complexidade da estrutura normativa dos sis-temas constitucionais contemporneos, que est ligado introduo dos princpios e diferena entre estes e as regras. A abordagem constitucionalista, como dissemos, foi antecipada pela concepo do "direito como integridade",

  • 12 A FILOSOFA CONTEMPORNEA DO DIREITO

    de R. Dworkin, que pode ser vista como sua primeira e coerente formulao.

    Com base na anlise de Alexy e Dreier, pode-se ca-racterizar a abordagem constitucionalista segundo trs aspectos principais. Em primeiro lugar, essas teorias con-sideram central a dimenso da correo "moral" do direi-to e afirmam que esta no pode ser reduzida ao direito vlido, como na perspectiva positivista, apenas em termos formais. A defesa da conexo entre direito e moral ba-seia-se no processo de incluso de contedos morais no direito, expressos nos princpios e nos direitos inviolveis dos indivduos. A presena dos princpios se traduz na abertura do direito aos contedos morais e, paralelamente, determina o desenvolvimento de novas formas de deci-ses judiciais (ponderao de princpios, balancing). Em segundo lugar, e com base nessas novas formas decis-rias, ressalta-se a importncia dos processos de aplica-o do direito, em particular dos judicirios, para sua de-terminao no interior dos sistemas constitucionais. Em terceiro lugar, em relao direta com o segundo aspecto, evidencia-se a vinculao, no mbito da estrutura polti-co-constitucional, do legislador aos princpios e aos di-reitos constitucionais, bem como o papel decisivo dos juzes para sua execuo, mesmo em contraste com as decises legislativas e com a lei.

    As teorias que melhor desenvolveram esses contedos e podem ser consideradas teorias constitucionalistas do direito so as de Dworkin e Alexy.

    A reflexo de Dworkin construda em relao dire-ta com a necessidade de desenvolver novas categorias tericas para a compreenso das transformaes consti-tucionais dos sistemas jurdicos e, como j observamos, pode ser vista como a primeira abordagem neoconstitu-cionalista do direito. A exigncia de um aparato terico di-

    A ABERTURA AOS VALORES TICO-POLTICOS 13

    ferente encontra pleno desenvolvimento em sua concep-o do direito como integridade que pode ser reconstruda segundo os trs aspectos indicados acima.

    O primeiro aspecto relativo distino "qualitati-va", isto , de estrutura, entre regras e princpios que Dworkin pe na base de sua anlise. Esse dado tem, para ele, tanto uma dimenso emprica, ligada aos processos de incluso dos princpios nos sistemas jurdicos, quanto uma dimenso terica, ligada ao problema da obrigato-riedade do direito. No primeiro ponto de vista, destaca-se a progressiva relevncia dos princpios no desenvolvi-mento do direito. No segundo, a presena dos princpios nos sistemas jurdicos relacionada com a ligao entre direito e moral, que deve ser realizada na dimenso de fundao da comunidade jurdica: esta ltima legtima se expressa, atravs dos direitos conferidos aos indivduos, a exigncia moral de igual considerao e respeito aos seus membros. A presena dos princpios, portanto, cor-responde primariamente aos direitos dos indivduos e representa o ncleo moral da comunidade: esta base mo-ral o que torna o direito obrigatrio. A idia de equal con-cern and respect est no centro da conexo entre direito e moral na concepo dworkiniana e deve encontrar apli-cao nas decises polticas e de execuo do direito.

    O segundo aspecto est ligado aos processos de in-terpretao e aplicao do direito. Nesse caso, o postula-do da integridade se traduz na exigncia de que a deci-so judiciria seja coerente com os princpios e realize o postulado de igual considerao e respeito. A exigncia de coerncia, por um lado, decorrente da abertura dos princpios e de suas diversas concepes presentes numa sociedade pluralista e, por outro, deriva do possvel con-flito entre os diversos princpios postos na base da co-munidade. A integridade compreendida como coerncia

  • 14 A FILOSOFIA CONTEMPORNEA DO DIREITO

    expressa a exigncia de universalizabilidade da deciso, isto , de tratar os casos iguais de modo igual. Tal exi-gncia tem para Dworkin uma dimenso primariamente argumentativa, relativa avaliao dos diversos princ-pios aplicveis (balancing) e das exigncias do caso, e re-presenta a dimenso moral da evoluo do direito.

    O terceiro aspecto diz respeito possibilidade de uma fundamentao relativamente objetiva das decises jur-dicas e dos problemas morais. Dworkin desenvolve essa possibilidade atravs da avaliao crtica do ceticismo tico e da articulao de uma proposta moderadamente cognitivista, ligada dimenso argumentativa do discur-so jurdico e moral. Isso leva possibilidade de determi-nar uma resposta correta para as diversas questes sus-citadas pela interpretao dos princpios e dos direitos num mbito pluralista. Deve-se entender essa resposta pri-mordialmente na perspectiva de um mtodo que permi-te chegar a decises corretas e representa uma proposta que tende a superar a alternativa exclusiva entre cogniti-vismo e no-cognitivismo. A presena dos princpios e a incluso de elementos morais no direito so relaciona-das, portanto, possibilidade de se chegar a decises ba-seadas em termos racionais por meio do postulado da coerncia e da universalizabilidade das decises.

    A teoria dworkiniana sintetiza esses aspectos numa perspectiva centrada numa viso fundamentada tanto nos direitos dos indivduos (rights based)3, quanto numa concepo constitucional da democracia, no mais vista como simples deliberao da maioria, mas como sistema baseado em princpios que exprimem os direitos dos in-divduos e tm como pressuposto a idia de igualdade, entendida como equal concern an respect4.

    Robert Alexy (n. 1945), por sua vez, procura integrar os resultados da tradio analtica inglesa especialmente com a teoria da ao comunicativa de Jrgen Habermas.

    A ABERTURA AOS VALORES TICO-POLlTICOS 15

    A reflexo filosfica de Habermas (n. 1929) nasce, como se sabe, nos anos 1950, no mbito da Escola de Frankfurt, para depois se emancipar pouco a pouco at se tornar plenamente autnoma nos anos 1980.

    com a Theorie des kommunikativen Handelns que Ha-bermas teoriza aquela mudana de paradigma, a chamada virada comunicativa, que caracterizar seu pensamento subseqente, e mais especificamente a sua concepo do direito. Para poder compreender filosoficamente o mbi-to da ao humana e assumir um ponto de vista norma-tivo em relao a ele, essencial o conceito de razo co-municativa. Esta, de um lado, se contrape razo ins-trumental e, de outro, aprofunda criticamente a razo pr-tica de matriz kantiana, na medida em que no indica o que se deve fazer para obter um determinado resultado, mas mostra o caminho para identificar consensualmente quais normas podem disciplinar as aes. A comunica-o racional, qual Habermas atribui a tarefa de presidir a justificao das regras prticas da ao, deve observar certos pressupostos, como as regras formais da lgica na formulao dos argumentos, a comunidade da lngua em-pregada ou sua tradutibilidade ou, ainda, a igualdade en-tre os participantes, a sua responsabilidade moral e, no menos importante, a sua disponibilidade ao acordo5.

    Em sua obra de 1992, Faktizitt und Geltung, o filso-fo de Frankfurt aplicou essas premissas ao mundo do di-reito6. O princpio de validade do direito um princpio discursivo, segundo o qual "merecem ser vlidas apenas as normas que poderiam encontrar a aprovao de todos os potenciais interessados na medida em que eles parti-cipam em geral de discursos racionais". Para Habermas, "no prprio corao do direito positivo" se introduz a mo-ral, uma moral procedimental, que se despojou de todos (>s seus contedos determinados, sublimando-se em um

  • 16 A FILOSOFIA CONTEMPORNEA DO DIREITO

    procedimento de justificao vlido para possveis con-tedos normativos. Pode-se falar, assim, de um direito justo sem mencionar este ou aquele contedo moral. Em outras palavras, o que se torna normativo para julgar a legitimidade do direito no este ou aquele princpio moral alheio a ele, mas a possibilidade de apresentar dis-cursivamente pretenses de legitimao com referncia ao fenmeno jurdico.

    Assim, o eixo de toda a reflexo vem a ser o carter argumentativo dos procedimentos de verificao da acei-tabilidade das normas jurdicas.

    Baseando-se em Habermas, Alexy desenvolve em sua primeira obra, Theorie der juristischen Argumentation7, a chamada Sonderfallthese, isto , considera o discurso jur-dico um caso particular do discurso prtico geral, do qual se diferencia porque "com afirmaes e decises jurdi-cas no se pretende a retido absoluta, mas apenas que estas sejam corretas luz dos pressupostos do ordena-mento jurdico vigente". O relacionamento entre os dois discursos envolve o problema mais amplo da relao entre direito e moral, que Alexy aborda em Begriffund Geltung des Rechts8, posicionando-se contra a tese juspositivista da separao (Trennungsthese).

    Nessa obra, Alexy defende a tese da conexo "con-ceituai e normativamente necessria" entre direito e mo-ral (Verbindungsthese), recorrendo a vrios argumentos, dentre os quais fundamental o dos princpios. Desen-volvendo e aprimorando a elaborao dwokiniana, Alexy define os princpios como uma espcie de normas que apresentam caractersticas e comportamentos diferentes das regras. Os princpios tm um contedo relativamen-te mais geral, mais abstrato, mais vago e mais genrico que o das regras. Eles podem ser definidos como "pre-ceitos de otimizao", vale dizer, como diretivas realizveis

    A ABERTURA AOS VALORES TICO-POLTICOS 17

    apenas em parte e em medida varivel, que no prescre-vem condutas especficas, mas remetem a valores que devero ser efetivados na maior medida possvel.

    Assim, o enunciado de um princpio no implica a obrigao de que os destinatrios se adequem totalmen-te a ele, realizando uma atividade especfica, mas equi-vale a estabelecer uma razo que, prima facie, suporta qualquer comportamento que contribui para a efetiva-o daquele princpio. Isso significa que a esfera da apli-cabilidade dos princpios relativamente indeterminada. Alm disso, os princpios so suscetveis de expanso e de compresso: para saber qual o alcance efetivo de um princpio preciso no apenas observar seu teor literal, mas tambm o contedo dos outros princpios concor-rentes potencialmente aplicveis, se existentes, bem como as circunstncias do caso concreto. A esse propsito, Alexy afirma que os princpios se caracterizam mais pela di-menso do "peso" que pela dimenso da validade. O pro-cedimento necessrio para determinar o "peso" de cada princpio constitui-se de um teste de ponderao (baan-cing), para o qual imprescindvel a considerao de al-guns elementos concretos, no predeterminveis em abs-trato. Desse modo, o resultado das tcnicas de pondera-o aparentemente no pode ser estabelecido de maneira geral, nem tampouco ser previsto.

    Sendo assim, devem-se considerar os princpios como argumentos concorrentes pro ou contra uma determina-da deciso, que se inserem num esquema mais amplo de raciocnio.

    As constituies que integram o modelo de Estado constitucional se diferenciam do modelo de Estado de di-reito justamente porque encerram princpios em que se expressam decises valorativas que se impem ao legis-lador, na medida em que "princpios e valores so a mes-

  • 18 A FILOSOFIA CONTEMPORNEA DO DIREITO

    ma coisa". Sobre esse ponto, em particular, manifesta-se sua divergncia com Habermas, que recrimina Alexy por sugerir "a subordinao do direito moral, que ten-denciosa, por no estar ainda de todo liberada de cono-taes jusnaturalistas"9.

    No plo oposto ao da concepo de direito de Ha-bermas e de Alexy - caracterizada, como vimos, ainda que de maneira diversa, por uma abertura estrutural ao mundo externo das razes no-jurdicas (pragmticas, tico-polticas, morais) - situa-se a concepo do soci-logo Niklas Luhmann (1927-1998), cuja obra possui im-portantes aspectos filosfico-tericos.

    O estudioso de Bielefeld enfrenta, pelo menos a par-tir do incio dos anos 1980, as problemticas jurdicas luz da teoria geral dos sistemas autopoiticos. Concebe a sociedade como "um sistema social abrangente", no in-terior do qual se encontra uma srie de sistemas parciais ou subsistemas (por exemplo, o do direito, da moral, da economia, da religio etc.), cuja funo reduzir a con-tingncia e a complexidade social. Cada subsistema autnomo e opera segundo um cdigo prprio especfi-co que, no caso do direito, direito/no-direito. O direito, portanto, de acordo com o seu prprio cdigo, diferencia as aes em lcitas e ilcitas, mas isso no implica nenhu-ma valorao moral, ou seja, se so boas ou ms aes. "A fonte da validade do direito o prprio sistema do di-reito" - conclui Luhmann -; "nossa sociedade diversifi-cada deve recusar-se a ser integrada do ponto de vista moral".10 Da a contraposio a Alexy, da qual partimos, e a polmica com Habermas.

    Prxima, em muitos de seus aspectos, das teorias constitucionalistas de Dworkin e Alexy est a concepo filosfico-jurdica do argentino Carlos Santiago Nino (1943-1993).

    A ABERTURA AOS VALORES TICO-POLTICOS 19

    So dois, em especial, os aspectos que vinculam sua reflexo dos dois maiores tericos do neoconstitucio-nalismo: de um lado, a crtica ao positivismo jurdico e, de outro, a tese da conexo entre direito e moral. Do pri-meiro ponto de vista, Nino critica o positivismo recor-rendo ao que chama de "teorema fundamental da filoso-fia do direito". Este pode ser sintetizado na afirmao de que as normas jurdicas no esto em condies de cons-tituir razes suficientes para a justificao de aes ou decises (dos juzes, por exemplo) se no tm um funda-mento moral. Por esse motivo, o direito positivo s pode ser considerado obrigatrio se respaldado em princpios ou razes morais. A elaborao desse teorema est rela-cionada s insuficincias do positivismo: a considerao do direito como fato ou como comando s consegue for-necer uma explicao da obrigatoriedade incidindo na lei de Hume e negligenciando a dimenso "de contedo" do direito.

    Do segundo ponto de vista, Nino adota a tese do "caso especial" de Alexy e desenvolve a idia da conexo entre direito e moral especialmente "nos mbitos da jus-tificao e da interpretao do direito". A possibilidade de fundamentao moral do direito encontra expresso sobretudo na deciso do legislador democrtico e tem uma dimenso "procedimental" e "discursiva". Para Nino, o direito produzido democraticamente, enquanto fruto de um procedimento que se aproxima do discurso prtico (visto como livre discusso), pode ser considerado obri-gatrio por fornecer "razes segundo as quais as normas prescritas pela autoridade democrtica derivam de prin-cpios morais vlidos e constituem argumentos que jus-tificam decises". Nino desenvolve uma concepo "de-liberativa" e no simplesmente "agregativa" da democra-cia, vendo-a como um procedimento orientado para a construo das decises com base num debate racional11.

  • 20 A FILOSOFIA CONTEMPORNEA DO DIREITO

    Na Itlia, as temticas do neoconstitucionalismo s agora aparecem no debate filosfico-jurdico. Luigi Ferra-joli observou que a cultura jurdica italiana demorou mui-to a perceber as transformaes que a entrada em vigor da Constituio provocou em todo o paradigma do direito12.

    Encontramos alguma abertura nas obras do ltimo perodo de Uberto Scarpelli, que, declarando-se "um par-tidrio da lei e defensor do positivismo jurdico um tanto arrependido", sustenta a necessidade de identificar prin-cpios capazes de guiar a legislao e defende a criao de um aparelho judicirio capaz de, com base nesses prin-cpios, que se identificam com os princpios constitucio-nais positivos, garantir uma atividade de interpretao do direito que desempenhe uma funo unificadora si-milar desempenhada no passado pelos cdigos e pela lei, pois esta parece no oferecer mais aquelas garantias de racionalidade e tutela dos direitos fundamentais que a transformaram no principal instrumento do moderno Estado de direito13.

    No "novo paradigma constitucional" inserem-se so-bretudo as obras de Luigi Ferrajoli (n. 1940), a partir de Diritto e ragione. Teoria dei garantismo penale14. Nessa obra o autor delineia um sistema penal garantista fundado em dois princpios: o princpio do convencionalismo pe-nal (segundo o qual no pode haver casos jurdicos penais no expressamente previstos pela lei) e o do cognitivis-mo processual (que pressupe a ocorrncia de hipteses acusatrias que podem ser comprovadas ou falsificadas em virtude de seu carter assertivo). Esses princpios se opem respectivamente ao substancialismo penal e ao decisionismo processual, que caracterizam os sistemas autoritrios.

    Para limitar "o poder de disposio" do juiz, que se d quando este justifica suas decises com valores de cunho

    A ABERTURA AOS VALORES TICO-POLTICOS 21

    tico-poltico, o autor enuncia dez axiomas que configu-ram um direito penal mnimo, a saber, maximamente dis-ciplinado e regulado, de modo a garantir a esfera de li-berdade do cidado contra manifestaes de poder arbi-trrias e imprevisveis. Ao contrrio, o sistema de direito penal mximo minimamente regulado e disciplinado, deixando amplos e arbitrrios espaos de discricionarie-dade, que so colmados com decises gravemente lesi-vas liberdade dos cidados.

    Nas obras mais recentes de Ferrajoli outros temas se somaram ao tema do garantismo penal, tais como a sobe-rania, a cidadania e sobretudo os direitos fundamentais15.

    2. A abertura da filosofia do direito aos valores tico-polticos conduziu tambm a outra etapa da milenar his-tria do jusnaturalismo, a nova teoria do direito natural.

    J no segundo ps-guerra, as teses neojusnaturalis-tas haviam tido grande repercusso sobretudo na Alema-nha (entre outros com Gustav Radbruch) e na Itlia. A partir dos anos 1960, um renovado interesse pelo direito natural manifestou-se tambm no meio anglo-saxo, em conseqncia da polmica entre Herbert Hart e Lord De-vlin e da publicao de The Morality ofLaw de Lon Fuller.

    A polmica Hart-Devlin foi desencadeada pelo Wol-fenden Report, relativo questo da convenincia e opor-tunidade da represso do homossexualismo e da prosti-tuio na Inglaterra.

    A Comisso se manifestara negativamente, susten-tando, com respaldo em John Stuart Mili, o princpio que afirma, quanto aos comportamentos no-ofensivos ao prximo (as self regaring actions, segundo a definio de Mill): "deve permanecer um reino da moralidade e da imoralidade privadas, que, em termos breves e crus, no da conta do direito" e, conseqentemente, que o direi-to s pode interferir em atos que causem danos a terceiros.

  • 22 A FILOSOFIA CONTEMPORNEA DO DIREITO

    Hart assumira a defesa desse princpio, suscitando a reao polmica de Lord Devlin, que objetou que uma moral compartilhada - da qual, a seu ver, as regras que condenam o homossexualismo e a prostituio devem ser consideradas parte - um componente irrenuncivel da organizao social, pois representa um aspecto es-sencial da estrutura de uma sociedade e determina sua identidade enquanto tal. Conseqentemente, a socieda-de tem a faculdade de se defender para evitar a prpria destruio, interferindo em atos que destruam suas re-gras morais fundamentais (disintegration thesis)16.

    As posies de Hart e Devlin so emblemticas de duas ideologias opostas: o liberalismo e o moralismo ju-rdico. Muito esquematicamente, o liberalismo sustenta que, salvo os casos de harm to other (isto , dano aos ou-tros), cada um deveria ser livre para escolher os prprios valores e fins, compatveis com uma igual liberdade do mesmo tipo para todos, enquanto o moralismo jurdico considera a conservao da moralidade da sociedade um valor digno de ser defendido pelo instrumento coercitivo do direito. O moralismo jurdico contemporneo (ou per-feccionismo jurdico, como tambm se costuma defini-lo) vale-se de duas estratgias argumentativas fundamen-tais, referindo-se ou a valores afirmados como "verdade tica objetiva", ou a valores interpretados como simples moral compartilhada.

    A primeira linha argumentativa encontrada em ex-poentes do jusnaturalismo contemporneo, como John Finnis, de quem se falar em breve, os quais sustentam a possibilidade de determinar cognitivamente a moralida-de ou a imoralidade de determinadas prticas. A segunda, por sua vez, recorrente na contempornea constelao do pensamento comunitrio (vejam-se Alasdair Maclnty-re, Michael J. Sandel, Michael Walzer), segundo a qual

    A ABERTURA AOS VALORES TICO-POLTICOS 23

    a opinio predominante, por motivos histricos e culturais, que determina a moralidade ou a imoralidade de algu-mas prticas especficas numa dada comunidade, exami-nada isoladamente.

    Outra contribuio importante para a discusso ini-ciada por Hart e Lord Devlin veio de Lon Fuller (1902-1978) que, em sua obra mais conhecida, The Morality of Law17, distingue entre uma moral externa ao direito e uma moral interna ao direito, esta ltima constituda por uma srie de princpios inerentes ao mundo jurdico, aos quais cada direito positivo deveria adequar-se. Tais prin-cpios - como, por exemplo, os de que o direito consti-tudo por normas gerais, cognoscveis, no-retroativas, no-conflitantes etc. - no tm natureza substancial, mas procedimental, uma vez que indicam os procedimentos que o direito deve seguir para atingir o objetivo de "sub-meter a conduta humana ao governo das normas".

    Um ano aps a publicao da obra de Fuller, que teve enorme repercusso, foi publicado um ensaio de Ger-main Grisez relativo ao primeiro princpio da razo pr-lica (bonum faciendum et malum vitandum)18, que assinala 0 incio da chamada teoria neoclssica do direito natural, caracterizada pela retomada da filosofia aristotlica e, sobretudo, de Santo Toms de Aquino.

    O principal texto da abordagem neoclssica da dou-1 rina do direito natural Natural Law and Natural Rights ile John Finnis19.

    O pressuposto da anlise de Finnis (n. 1940) a idia ila impossibilidade de deduzir prescries teis no m-bito da ao humana a partir de asseres de natureza descritiva, ou seja, a inteno de justificar a validade do direito natural sem violar a lei de Hume. O caminho es- i ilhido parte da identificao de sete bens fundamentais, ii (dedutveis e indemonstrveis, que so chamados a pre-

  • 24 A FILOSOFIA CONTEMPORNEA DO DIREITO

    sidir toda valorao moralmente relevante da conduta dos homens. Esses bens ajudam a definir - e este um conceito fundamental de toda a doutrina de Finnis - o "autntico florescimento humano". O conhecimento, a vida, o lazer, a experincia esttica, a amizade, a religio e a racionalidade prtica so os valores fundamentais, di-ferentes entre si e de igual importncia. O ideal finnisia-no de florescimento humano como finalidade moral da ao corresponde a uma existncia conduzida segundo um plano de vida que saiba valorizar esses bens funda-mentais - em modos diversos entre si e mltiplos, e que, portanto, respeite a variedade das escolhas individuais. As-sim, delineia-se para Finnis a necessidade de tornar pra-ticamente perseguvel um objetivo como esse; em outros termos, compreende-se o papel central que assume em sua reflexo a noo de bem comum correspondente idia de flourishing. E necessria uma organizao social jurdica e politicamente capaz de garantir a obteno des-se fim e, de maneira mais geral, a realizao em comum de projetos de vida que respeitem os bens fundamentais, expressos de modos diferentes mas irredutveis entre si. assim que Finnis chega valorizao de uma moral pblica, assegurada pela ordem poltica.

    Ele afirma que existem normas morais inderrogveis, definidas como "absolutos morais", cuja validade no admite excees, como as normas contra a morte de se-res humanos inocentes - logo, contra o aborto - , contra o suicdio, o adultrio, a fornicao, a contracepo, os atos homossexuais. Essas normas se sustentam, segun-do Finnis, numa slida tradio que tem "bases obriga-trias" tanto na f como na razo. O suicdio, por exem-plo, um caso paradigmtico de ao que sempre erra-da, por ser uma escolha contra um valor fundamental, a vida. Tambm a condenao do aborto deriva do fato de

    A ABERTURA AOS VALORES TICO-POLTICOS 25

    que o valor da vida no deve ser diretamente atacado: nenhum argumento pode justificar um ato contra a vida, e o direito pode, ou melhor, deve proibir os atos que vo contra esses valores20. Finnis se distancia da perspectiva liberal21, que assume uma postura neutra em relao pluralidade de representaes individuais do bem, para defender o ideal perfeccionista de uma vida boa, vlido para cada um. Essa noo complexa de bem comum para Finnis constitutiva do direito, pois representa o critrio a partir do qual possvel legitimar o direito positivo e, mais genericamente, o fenmeno jurdico como um todo.

  • Captulo II

    A abertura da filosofia do direito aos fatos

    A abertura da filosofia do direito contempornea aos fatos manifestou-se especialmente nas teorias neo-insti-tucionalistas e em alguns desdobramentos do realismo.

    1. O neo-institucionalismo de Neil MacCormick e Ota Weinberger, mencionado na Introduo, pode ser con-siderado, segundo a definio dos prprios autores, "um desenvolvimento do normativismo em sentido realista". Ele retoma o institucionalismo clssico de Maurice Hau-riou e de Santi Romano, que, como se sabe, se insere na revolta contra o formalismo ocorrida, seja na Europa, seja na Amrica, entre o final do sculo XIX e o incio do s-culo XX. Tanto o velho quanto o novo institucionalismo se apresentam, portanto, como reaes ao positivismo ju-rdico: o primeiro, ao positivismo da "jurisprudncia dos conceitos"; o segundo, tradio kelseniano-hartiana.

    A proposta de MacCormick e Weinberger de uma teoria que v "alm do juspositivismo e do jusnaturalis-mo" e conjugue normativismo e realismo pode ser con-siderada o resultado coerente dos componentes do pen-samento dos dois autores: o normativismo, no plano terico-jurdico, e o neo-emprismo, no plano da filoso-fia geral.

  • 28 A FILOSOFIA CONTEMPORNEA DO DIREITO

    Com efeito, do ponto de vista jurdico, Weinberger re-toma a tradio da Reine Rechtslehre das escolas de Brunn e Viena, representadas eminentemente por F. Weyr e H. Kelsen, enquanto MacCormick se respalda em Hart e na filosofia jurdica analtica britnica. Sob o segundo as-pecto, a formao de Weinberger foi influenciada pelas correntes do neopositivismo lgico, e em MacCormick se percebe a tradio analtica inglesa de Oxford e Cam-bridge. Ademais, ambos se declaram em dvida com John Searle, de quem tomam emprestada, entre outras, a no-o de "fato institucional".

    Partindo, portanto, destas premissas - normativis-mo no mbito terico-jurdico e neo-empirismo no m-bito filosfico geral - , MacCormick e Weinberger che-gam a uma concepo realista que os leva a reconhecer, questionando as concepes jusnaturalistas e a tradio juspositivista kelseniana, que as normas no so realida-des ontologicamente diferentes da realidade dos fatos empricos, uma vez que se defina "como real tudo aquilo que tem existncia no tempo".

    O neo-institucionalismo de MacCormick e Weinber-ger apresenta interessantes analogias com alguns des-dobramentos do realismo de matriz escandinava, parti-cularmente na Itlia.

    A crise do positivismo jurdico a que aludimos favo-receu a difuso e a consolidao do realismo na Itlia. Na verdade, j a partir dos anos 1950, Luigi Bagolini chama-ra a ateno para essa corrente filosfica1, mas foi com Giovanni Tarello (1934-1987) que efetivamente se iniciou o aprofundamento desse modo de conceber o direito. Par-tindo do estudo do realismo americano2, Tarello, como veremos, chega a uma concepo do direito como um conjunto de normas que os intrpretes extraem dos enun-ciados normativos.

    A ABERTURA AOS FATOS 29

    Apesar da importncia do realismo americano, na Itlia foi o realismo escandinavo que deu origem a elabo-raes originais. Entre os principais estudiosos dessa cor-rente, encontram-se Silvana Castignone, Riccardo Guas-tini e Enrico Pattaro.

    A influncia da doutrina realista, juntamente com o enfoque empirista amadurecido atravs de estudos pre-cedentes de Hume, levou Silvana Castignone (n. 1931) a acentuar a anlise da linguagem jurdica e poltica, ba-seada no exemplo das operaes de "terapia lingstica" efetuadas pelos escandinavos a fim de denunciar aque-les resduos metafsicos que ainda se aninham na lin-guagem jurdica e nos levam a mistificar a realidade.

    Em seus estudos, Castignone analisa as importantes conseqncias dessa metodologia no plano dos concei-tos jurdicos, mas, adotando um ponto de vista crtico, tambm traz luz seus inevitveis limites derivados do fato de tal enfoque estar mais voltado para "desconstruir" que para reconstruir, e tenta super-los3.

    Diferentemente de Castignone, que concentrou seus estudos sobretudo em Hgerstrm, Lundstedt e Olive-crona, Riccardo Guastini (n. 1946) estudou especialmen-te Alf Ross e acabou influenciado por ele sob diversos aspectos (no que se refere, por exemplo, interpretao, como veremos)4. Nos trabalhos de Guastini no faltam, todavia, crticas a Ross. Em particular, ele no comparti-lha a tese de que o direito redutvel a um conjunto de diretrizes dirigidas aos tribunais (isso no verdadeiro, por exemplo, para o direito constitucional, setor para o qual Guastini contribuiu com importantes estudos, so-bretudo em relao a fontes)5.

    Enrico Pattaro (n. 1941) apresenta o jusrealismo como . i transposio da filosofia analtica e, mais em geral, do neo-empirismo para o campo jurdico. Ele desenvolve

  • 30 A FILOSOFIA CONTEMPORNEA DO DIREITO

    uma concepo peculiar, que define como "realismo nor-mativista", centrada no reconhecimento de que o direito uma realidade ontologicamente no diferente da reali-dade dos fatos empricos, mas no pode ser reduzido a estes.

    O direito uma realidade cultural, social e emprica complexa, de que fazem parte entidades lingsticas (de-finidas como "diretrizes", evocando Ross) e extralings-ticas (fenmenos psquicos como as crenas e os compor-tamentos). Em sntese, para Pattaro uma norma a cren-a de que uma fatispcie abstrata, ou seja, um esquema de comportamento, objetivamente obrigatria. Conseqen-temente, a resposta pergunta "o que o direito?" po-der vir no da teoria do direito formalista, mas daquelas disciplinas lingstico-sociolgicas em sentido lato, que se ocupam da linguagem e do comportamento: da se-mitica sociologia da linguagem, da antropologia so-ciologia jurdica6.

    E possvel confrontar o neo-institucionalismo e o rea-lismo normativista com referncia aos aspectos ontol-gico, metatico e jurdico-terico.

    Sob o aspecto ontolgico, o realismo normativista adota uma concepo monista da realidade que inclui o direito na realidade emprica, considerando-o um fen-meno da psicologia social.

    MacCormick e Weinberger compartilham a perspec-tiva monista, mas se distanciam dos realistas normativistas na maneira de conceber o "direito como fato": eles afir-mam que o direito certamente um fato, mas no um fato de psicologia social, e sim um "fato institucional". Essa expresso, como vimos, se refere a entidades que dependem ao menos em parte "da vontade, das conven-es ou do desgnio do homem" e, portanto, so distintas dos fatos empricos, dos simples acontecimentos naturais,

    A ABERTURA AOS FATOS 31

    de realidades independentes da atividade de atribuio de significado por parte dos homens7.

    A instituio representa, assim, uma poro de ser que no pode ser concebido da mesma forma que o ser dos corpos fsicos ou, ainda, dos organismos vivos: trata-se de uma realidade tipicamente humana, cultural, que normativamente fundada e possibilitada pela formula-o de normas ou regras e adquire significado em relao a estas8.

    Sob o aspecto metatico, o realismo normativista divisionista, isto , admite a distino entre ser e dever ser, entendida como irredutibilidade lgica dos discursos descritivos a discursos prescritivos e vice-versa. Tambm Weinberger, partindo de posies decididamente no-cognitivistas, sem dvida divisionista, enquanto a po-sio de MacCormick nesse ponto menos decidida e tem contornos menos precisos.

    Finalmente, sob o aspecto jurdico-terico, o realis-mo normativista deontologista, isto , entende que a idia de dever essencial ao fenmeno jurdico. Mac-Cormick e Weinberger pensam o mesmo: para ambos um aspecto irredutvel do direito o fato de que este guia as aes. Em particular, em Weinberger a concepo ins-titucionalista do direito se situa no interior de uma teoria de ao particular, formalista e finalista. De fato, ele sus-tenta que cada instituio tem por base um ncleo fun-damental de informaes prticas (normas, objetivos e preferncias).

    2. No realismo americano, de vrias formas e com enfoques diferentes, so retomados alguns movimentos iniciados sobretudo nos Estados Unidos, como os Criti-cai Legal Studies (de agora em diante, CLS), a anlise eco-nmica do direito e a teoria do direito feminista.

  • 32 A FILOSOFIA CONTEMPORNEA DO DIREITO

    2.1. O movimento dos CLS desenvolveu-se entre os anos 1970 e 1980, tendo como centro a faculdade de di-reito de Harvard e como momento inicial o livro de Ro-berto Mangabeira Unger, Knowledge and Politics, urna cr-tica radical quele liberalismo que prescinde das relaes entre os indivduos em nome de um conceito de huma-nidade abstrata9.

    O movimento, todavia, no tem como ponto de re-ferncia apenas Roberto Unger (n. 1947), mas um nume-roso grupo de juristas (entre os quais Robert W. Gordon, Morton J. Horwitz, Duncan Kennedy, Mark Tushnet), aproximados pela crtica s teorias jurdicas liberais e pela pretenso destas de serem politicamente neutras.

    Retomando as teorias marxistas, o realismo ameri-cano e o desconstrutivismo de Derrida, os expoentes dos CLS sustentam que o direito, bem longe de ser racional, coerente e justo, como o representa o pensamento libe-ral, arbitrrio, incoerente e profundamente injusto. Os direitos e as liberdades, apresentadas como essenciais realizao do indivduo, so na verdade funcionais aos fins polticos e econmicos do liberalismo. Um exemplo tpi-co o conceito de liberdade contratual: apresentado re-toricamente como um direito, ele na verdade serve ape-nas aos fins do mercado e aos interesses do capitalismo. A uma anlise atenta, o prprio princpio do stare decisis - segundo o qual os juzes, devido obrigatoriedade do precedente, agiriam no plano jurdico e no poltico - re-vela-se um simples mascaramento da natureza poltica de suas decises.

    A crtica s teorias liberais realizada atravs de trs mtodos de anlise especiais: o trashing, a desconstruo e a anlise histrica.

    O primeiro mtodo, o trashing (literalmente a ope-rao de "desbastar"), corresponde ao processo que leva

    A ABERTURA AOS FATOS 33

    revelao, isto , ao desmascaramento da mensagem po-liticamente orientada encerrada no discurso jurdico. Um dos expoentes dos CLS, Robert Gordon, sustenta que o trashing permite mostrar as contradies do discurso ju-rdico e a ideologia que nele se esconde, revelando assim a tendncia ideolgica por trs das estruturas jurdicas, que so sempre historicamente condicionadas10. As con-cepes liberais, ao contrrio, respaldam-se na idia de que existe uma humanidade abstrata e desencarnada, separada das relaes concretas e do tecido econmico, poltico e cultural.

    Uma vez revelada a natureza ideolgica do sistema jurdico, aplica-se o segundo mtodo, a desconstruo. Desconstruir o paradigma liberal e fazer emergir a "es-trutura profunda" do liberalismo significa trazer luz as suas contradies internas, a partir daquela, mais impor-tante e abrangente que todas as outras, entre indivduo e comunidade, ou melhor, entre individualismo e altrus-mo. Essa contradio tem origem em dois modelos anti-nmicos - o modelo hobbesiano do homo homini lupus, e o do homem que entra "naturalmente" em sociedade -, ambos presentes na tradio liberal que, com o tempo, privilegiou o primeiro, deixando o outro em segundo pla-no. A desconstruo tem, portanto, a tarefa de revelar os elementos reprimidos ou removidos que o discurso jur-dico, como qualquer outro discurso, esconde e de rein-troduzi-los com finalidade crtica11.

    A melhor maneira de revelar que um discurso jurdico artificial e ideolgico reconstruir sua histria. A an-lise histrica ou genealgica - que representa o terceiro mtodo de que se valem os expoentes dos CLS - demons-tra que as idias jurdicas so historicamente dadas, isto , se justificam no contexto social especfico em que nas-cem e se exprimem.

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  • 34 A FILOSOFIA CONTEMPORNEA DO DIREITO

    No campo das pesquisas histricas se sobressai o j citado Robert Gordon, que enfatiza a relao entre direito e sociedade e o conceito de mudana histrica no direito e nas idias jurdicas. Nesse sentido, o objeto da crtica de Gordon a doutrina sociolgica do funcionalismo que, como se sabe, explica a relao entre direito e sociedade prescindindo da dimenso histrica. Essa doutrina teria levado concepo tpica da cincia jurdica liberal que, prescindindo das relaes concretas entre os indivduos e das ligaes entre o direito e os outros aspectos da so-ciedade, v as normas jurdicas no como so (ou seja, contingentes), mas como regras absolutas e universais12.

    Atravs de Gordon, os CLS se abrem sociologia cr-tica do direito, analisando como o direito vivido na esfe-ra social concreta. Nesse mbito, outro expoente dos CLS, Duncan Kennedy, afirmou que o elemento prioritrio do direito no a norma ou a regra, e sim o padro (standard), isto , a deciso concretamente condicionada. Com efei-to, enquanto o apelo regra reconhece o status quo, isto , consagra a situao existente e leva, por assim dizer, ao conservadorismo, o apelo aos fatos concretos abre cami-nho para a mudana social. Em outras palavras, enquanto a regra do direito expresso do individualismo que es-trutura a modernidade, o padro fundamenta-se na comu-nidade e nos valores compartilhados e possibilita a me-diao entre individualismo e altrusmo, que, como disse-mos, constitui a antinomia fundamental do liberalismo13.

    Atravs da crtica s teorias liberais, os expoentes dos CLS chegam a formular propostas "alternativas" ao sis-tema capitalista, como a de Unger, que apela revoluo cultural do eu, isto , do sujeito individual concreto. Ao indivduo desencarnado do liberalismo, ao homem racio-nal da modernidade, que instrumento do capitalismo, Unger ope a pessoa concreta e passional, o sujeito indi-

    A ABERTURA AOS FATOS 35

    vidual que se torna condio necessria da transforma-o das estruturas sociais existentes14.

    2.2. Em posies opostas no plano poltico encon-tram-se os expoentes da anlise econmica do direito, que, por um lado, reconhecem o utilitarismo de Bentham e Mill como seu ancestral distante e, por outro, se apre-sentam como descendentes diretos do pragmatismo ju-rdico americano, representado sobretudo pela "engenha-ria social" de Roscoe Pound e pelos realistas, nos quais reprovam, porm, a ausncia de um bom mtodo de an-lise econmica.

    A partir dessas premissas, Richard Posner (n. 1939) -professor da Universidade de Chicago, juiz federal e prin-cipal expoente do movimento, entre cujos precursores es-to Ronald Coase e Guido Calabresi15 - prope uma teoria jurdica que combina uma tica normativa liberal, uma fi-losofia pragmtica e um mtodo de anlise econmica.

    No que diz respeito ao primeiro aspecto, a teoria com-partilha o princpio da mxima liberdade para cada um compatvel com uma igual liberdade para todos; o prin-cpio, derivado de Mill, segundo o qual no cabe ao Es-tado punir ou reprimir as idias pessoais ou os compor-tamentos que no causem dano a terceiros; assim como o favorecimento da igualdade de oportunidades e das me-didas econmicas que o Estado deve tomar para garanti-la.

    Em relao ao segundo aspecto, a teoria assume a pos-tura instrumentalista, afirmando a necessidade de evitar o recurso a noes metafsicas e abstratas para enfrentar problemas jurdicos, e de privilegiar a anlise das poss-veis solues com base nas conseqncias previsveis e nos possveis efeitos que elas tm a curto e longo prazo.

    No que se refere ao terceiro aspecto, os fundamen-tos do mtodo de anlise econmica so a identificao

  • 36 A FILOSOFIA CONTEMPORNEA DO DIREITO

    dos efeitos e o uso, no mbito jurdico, de importantes instrumentos extrados da microeconomia (economismo jurdico).

    O ponto de partida da anlise econmica do direito a pressuposio de que, analisando-se as aes dos ju-zes, se descobre que o que eles fizeram, mesmo que in-conscientemente, foi elaborar normas para maximizar a riqueza. "Muitas das doutrinas e das instituies do sis-tema jurdico" - escreve Posner em Economic Analysis of Law - "podem ser compreendidas e explicadas melhor como esforos para promover a eficiente alocao de ri-quezas."16 Tambm em sua obra mais recente, The Pro-blems ofjurisprudence, que segundo alguns crticos marca a passagem a uma concepo mais ctica, Posner sus-tenta: "no h dvida de que a maior parte dos juzes (e dos advogados) pensa que o fato que guia as decises da common law deveria ser um senso intuitivo de justia ou de racionalidade ou um utilitarismo casual. Mas todas es-sas coisas podem coincidir, e um juiz, posto contra a pare-de, provavelmente admitiria que aquilo que ele chamava de utilitarismo era o que estou chamando de maximizao da riqueza"17.

    Reconhecidas todas essas premissas, Posner prope que, ao abordar os problemas jurdicos, se levem em con-ta os efeitos das solues propostas - a curto e a longo prazo, seja para os indivduos, seja para o sistema - atra-vs de pesquisas empricas sobre os custos/benefcios e do critrio de racionalidade meios/fins.

    Em primeiro lugar, portanto, o intrprete dever iden-tificar todos os possveis significados atribudos a uma dada disposio. Numa segunda fase ele dever antecipar as conseqncias de todas as interpretaes encontradas. Enfim, em uma terceira e ltima fase, dever escolher a soluo que, como um todo, comporta os maiores bene-

    A ABERTURA AOS FATOS 37

    fcios. "A essncia da deciso interpretativa consiste em considerar as conseqncias de solues alternativas - es-creve Posner. - No existem interpretaes 'logicamente' corretas, a interpretao no um processo lgico."1 8

    , portanto, necessrio que o juiz no esteja muito estritamente obrigado a julgar em conformidade com os precedentes, mas seja livre para julgar de uma maneira nova cada vez que, a partir dos clculos custos/benefcios, se evidencie que uma deciso inovadora traria maiores vantagens. Alis, apontar novas solues, capazes de me-lhorar o direito existente com base em precisas escolhas de valor, deveria ser um dos objetivos do jurista pragm-tico. Por isso Posner prope que se considere o direito no tanto como um conjunto de regras dadas ou como uma srie de solues pr-fabricadas, mas como um con-junto de atividades dos juzes e advogados, destinadas a resolver casos jurdicos reais, e de solues efetivas da-das a problemas jurdicos concretos.

    2.3. A reflexo feminista sobre temas jurdicos mui-to ampla e variada, quer com referncia s premissas, quer com referncia s concluses.

    No plano histrico, a primeira fase do pensamento feminista - que pode ser definida como fase da igualdade -caracteriza-se pela luta pela paridade e pela exigncia de um tratamento igualitrio capaz de eliminar as discrimi-naes entre mulheres e homens e de afirmar a igualdade entre os sexos. A partir do final dos anos 1970, seguiu-se uma segunda fase, dita da diferena, marcada pela rejei-o lgica, que obriga as mulheres a competir nos mol-des e valores tipicamente masculinos, e pela reivindicao da especificidade das caractersticas femininas, sem criar contudo um sujeito feminino abstrato, mas valorizando tambm a diferena de classe, de cultura, de religio e de raa entre as mulheres19.

  • 38 A FILOSOFIA CONTEMPORNEA DO DIREITO

    No plano jurdico, esse percurso do movimento fe-minista traduziu-se, na primeira fase, na demanda de tra-tamento igualitrio, atravs de reformas inclinadas a elimi-nar formalmente a discriminao entre homens e mulhe-res. Na segunda fase, consistiu na demanda de tratamento especial, com o objetivo de realizar, atravs da valorizao das diferenas, uma igualdade substancial entre homens e mulheres.

    Enfim, no campo da teoria do direito20, as perspecti-vas abertas pela reflexo feminista so mltiplas e vo do reconhecimento do papel do direito enquanto instrumen-to capaz de trazer benefcios s mulheres, passando pela crtica do carter sexuado das normas jurdicas - cons-trudas com base em modelos, categorias e valores pre-dominantemente masculinos e, portanto, incapazes de refletir a viso e os interesses das mulheres - at um ce-ticismo radical quanto ao papel emancipador do direito ou a sua capacidade de transformar a condio feminina, na convico de que os interesses das mulheres seriam mais bem protegidos por uma diminuio da regulamen-tao jurdica.

    A sociloga inglesa Carol Smart identificou trs fa-ses das posies feministas em relao ao direito, que po-dem ser resumidas em trs slogans: o direito sexista, o direito masculino, o direito sexuado21.

    A primeira fase caracteriza-se pela crtica ao direito vigente, que se apresenta como objetivo, racional, impar-cial, mas na verdade discrimina as mulheres. Na segun-da fase prevalece a denncia do direito como intrinseca-mente masculino e, na terceira, a reivindicao de um direito das mulheres.

    As trs fases de Smart tambm podem ser qualifica-das, segundo Minda, como feminismo liberal, feminismo cultural e feminismo radical22.

    A ABERTURA AOS FATOS 39

    Enquanto as feministas liberais pem no centro do debate o problema da igualdade/diferena, as feministas culturais, reelaborando as teorias da psicloga Carol Gil-ligan (n. 1936), enfatizam a diversidade, a "voz diferente" das mulheres em relao aos homens. Gilligan sustenta que "existe um modo tipicamente feminino de enfrentar os dilemas morais e jurdicos, um modo que foi ignorado ou subestimado na doutrina e nos estudos jurdicos". Para ela, a moralidade feminina essencialmente a do cuida-do (morality of core) e da responsabilidade e se diferencia da masculina, caracterizada pelos conceitos de justia, de igualdade, de eqidade etc. Assim, enquanto o homem faz as suas escolhas com base em tais princpios, a mu-lher respalda suas decises no reconhecimento das dife-rentes necessidades de cada um e no respeito e na com-preenso destas23.

    Esse aspecto da feminilidade foi valorizado tambm no mbito jurdico, na busca por caminhos alternativos aos consolidados institucionalmente. A tica do cuidado inspirou, por exemplo, posies feministas de apoio mediao familiar, entendida como uma modalidade mais flexvel de resoluo de problemas e conflitos familiares.

    A corrente do chamado "feminismo radical", por fim, tem como expoente mais conhecida Catharine MacKin-non (n. 1940). Muito prxima do movimento dos CLS, com o qual compartilha a crtica ao pensamento liberal, ela sustenta, de um lado, a falta de fundamento da idia da universalidade e neutralidade do direito e, de outro, o seu carter sexuado e funcional s perspectivas masculi-nas24. Por isso, MacKinnon prope uma teoria jurdica cr-tica, que coloque em discusso os fundamentos, os m-todos e as categorias da cincia jurdica oficial, e reivin-dica um novo direito, um direito das mulheres25.

    O movimento feminista, desenvolvido sobretudo nos Estados Unidos, tem uma interessante "filiao" na Eu-

  • 40 A FILOSOFIA CONTEMPORNEA DO DIREITO

    ropa: a escola escandinava de Women's Law, representa-da em especial por Tove Stang Dahl (n. 1938), professora dessa disciplina na Universidade de Oslo.

    Dahl parte do pressuposto de que "o direito no masculino por estrutura e vocao", e sim por ser histo-ricamente elaborado por homens. Valendo-se, portanto, dos instrumentos crticos da sociologia do direito e de pesquisas empricas qualitativas e quantitativas, ela se ocupa da promoo de um direito que d conta da diver-sidade dos gneros e se esforce para "compreender a po-sio jurdica das mulheres, em particular com o objetivo de melhorar a posio na sociedade"26.

    No final dos anos 1980, nos Estados Unidos, desen-volveu-se tambm uma corrente terica da diferena ra-cial enraizada na "experincia concreta, na histria, na cul-tura e na tradio intelectual das pessoas de cor", e que tem entre seus expoentes mais representativos Derrick Bell, Richard Delgado e Patricia Williams27.

    Ao lado das feministas que, como vimos, tentam propor uma teoria jurdica caracterizada pela conscincia de gnero e pelo reconhecimento dos valores tipicamen-te femininos, esses estudiosos desenvolvem a sua crtica teoria do direito tradicional com base na conscincia de raa e propem uma teoria que permita a compreenso concreta dos problemas raciais.

    Eles denunciam que a doutrina e a prtica dos direi-tos civis, baseadas numa viso meritocrtica e "cega cor", refletem na verdade uma perspectiva que examina os problemas raciais do ponto de vista da cultura branca, perpetuando assim as injustias sociais devidas s dife-renas raciais.

    Os tericos da diferena racial, assumindo tambm muitas instncias do multiculturalismo, do qual falare-mos no ltimo captulo, afirmam a necessidade de novas

    A ABERTURA AOS FATOS 41

    leis de proteo dos valores da diferena no s racial, mas tambm cultural em geral, pois s um direito racial-mente consciente pode fazer com que os diversos gru-pos raciais vivam juntos numa sociedade multicultural.

    Essas teorias freqentemente se cruzaram, na reali-dade americana, com as teorias feministas, produzindo uma crtica feminista negra. Como diz Minda, as feminis-tas negras declaram ter dificuldade em aceitar completa-mente os discursos das feministas brancas ou dos teri-cos da diferena racial negra: "o carter de interseco de sua identidade exige que as estudiosas feministas negras de rea jurdica formulem, elas mesmas, os seus prprios relatos da complexa situao provocada pela combinao das foras do racismo e do sexismo em suas vidas"28.

  • Captulo III Os estudos sobre o raciocnio jurdico

    Desde os anos 1950, como se sabe, manifestam-se numerosas crticas ao modelo lgico do raciocnio jurdi-co prprio do antigo positivismo. Tais crticas ressaltam a inadequao e a insuficincia da metodologia lgico-for-malista e sublinham a necessidade de elaborar novos instrumentos de pesquisa da argumentao prtica, em geral, e jurdica, em particular.

    Os nomes mais representativos nesse debate so Stephen E. Toulmin, Theodor Viehweg e Chaim Perelman, autores que levaram formulao de propostas tericas alternativas, tais como a lgica informal, a tpica jurdica e a nova retrica. Essas propostas acabaram se unindo s propostas formuladas no mbito da hermenutica jur-dica e dos estudos de orientao analtica sobre a estru-tura e o uso da linguagem prescritiva.

    Durante toda a dcada de 1960, at o incio da dcada de 1970, assistiu-se evoluo e definio terica das correntes antilogicistas da argumentao jurdica, mas tambm reao a essas crticas no mbito das aborda-gens lgicas, no sentido de uma reflexo interna sobre os pressupostos tericos da lgica clssica, assim como de uma tentativa de ampliao do campo de aplicao desta ltima.

  • 44 A FILOSOFIA CONTEMPORNEA DO DIREITO

    Dessas premissas partem os estudos contemporneos sobre o raciocnio jurdico, cujos principais autores pro-vm de regies geogrficas e culturas diversas, mas tm em comum uma abordagem hermenutica e ps-analti-ca em sentido lato. Alm dos j citados Alexy e Dworkin, refiro-me a Aulis Aarnio e Aleksander Peczenik nos pa-ses escandinavos, a Neil MacCormick na Gr-Bretanha, a Jerzy Wrblewski na Polnia, bem como a alguns ex-poentes da escola ps-analtica italiana.

    O ponto de partida das teorizaes de Aarnio e Pec-zenik a teoria da argumentao jurdica de Alexy, deli-neada, como j mencionamos, na obra de 1978, Theorie der juristischen Argumentation. No por acaso os nomes desses trs estudiosos aparecem juntos, como autores do The Foundation of Legal Reasoning, geralmente considera-do o manifesto da teoria da argumentao jurdica1.

    A teoria da argumentao jurdica de Alexy, como vimos, consiste em uma doutrina procedimental do dis-curso prtico racional geral. A finalidade dessa proposta uma adequada representao dos procedimentos atra-vs dos quais as escolhas jurdicas so justificadas. Nessa viso, os processos justificativos, sejam jurdicos, sejam prtico-gerais, so entendidos como atividades dialgi-cas das quais participam sujeitos que tm interesses di-ferentes. Assim, o pensador alemo insiste na estrutura discursiva da experincia prtica geral e da compreenso jurdica em particular.

    Por ser discursivo, o processo de compreenso obe-dece a normas especficas e modalidades determinadas, que regulam todas as formas do discurso e da argumen-tao prtica. O jurista alemo identifica, assim, um "c-digo" da razo prtica, constitudo de vinte e oito regras e seis formas de argumento, ao qual aquele que discorre deve necessariamente se adequar para poder justificar sua prpria argumentao.

    OS ESTUDOS SOBRE O RACIOCNIO JURDICO 45

    Esse cdigo da razo prtica constitui o contexto mais geral em que se desenvolve a atividade de justificao jurdica. Na perspectiva de Alexy esta constitui, portanto, um caso especfico do raciocnio prtico. Sendo assim, se de um lado a argumentao jurdica ocorre respeitando as regras da justificao prtica e no pode violar as nor-mas fundamentais da razo prtica, de outro, ela apresen-ta algumas caractersticas especficas, que a diferenciam da justificao prtica geral. Essas caractersticas espec-ficas so determinadas pela existncia de condies par-ticulares, a que se submetem as atividades de argumenta-o em todos os sistemas jurdicos (condies relacionadas, por exemplo, existncia de procedimentos legislativos de produo do direito, aos precedentes e dogmtica jur-dica, que limitam a liberdade de argumentao dos pro-fissionais jurdicos).

    Desse modo, Alexy afirma que uma argumentao correta se, ao ser realizada, respeita determinadas regras racionalmente justificadas. Reconhecer a existncia de al-gumas normas procedimentais que condicionam a argu-mentao e a interpretao jurdica significa, portanto, poder dispor de uma estrutura indispensvel para julgar se uma deciso correta e no-arbitrria. Todavia, isso no equivale a possuir um instrumento suficiente para ga-rantir a possibilidade de conhecer antecipadamente a de-ciso interpretativa que resultar daquela argumentao. Para o pensador alemo, os processos jurdicos de inter-pretao e aplicao do direito podem ser considerados racionais mesmo se no so inteiramente predetermina-dos e s podem ser submetidos a uma verificao suces-siva, fundada no respeito s regras do discurso racional prtico geral e jurdico.

    A reflexo de Aulis Aarnio (n. 1937) parte da definio de dogmtica jurdica dada pelo pensador escandinavo.

  • 46 A FILOSOFIA CONTEMPORNEA DO DIREITO

    Ele a define como a anlise dos contedos das normas jurdicas vlidas realizada pelos juristas2. Evidentemente, essa anlise implica a necessidade de formular uma srie de proposies normativas, de natureza interpretativa, relativas aos contedos do direito vigente. Nessa pers-pectiva, portanto, o ncleo da atividade dogmtica con-siste na formulao de juzos interpretativos: assim, a te-mtica da interpretao deve ocupar uma posio central na reflexo do terico do direito.

    No mbito da reflexo sobre a interpretao a ques-to mais importante o problema de avaliar se possvel enunciar proposies interpretativas corretas. Para tanto, preciso perguntar se a interpretao, enquanto atividade de determinao de significados (mais do que de descri-o destes), consiste num conjunto de procedimentos ao qual se pode atribuir a verdade ou, ao menos, a retido.

    Para Aarnio, a possibilidade de considerar a interpre-tao do direito como uma atividade qual se pode atri-buir retido fundamental, uma vez que s possvel garantir o valor da certeza do direito nos casos em que a interpretao pode ser justificada ou considerada corre-ta. Por sua vez, a certeza do direito considerada no s uma exigncia geralmente percebida nas sociedades oci-dentais contemporneas, mas tambm um valor irrenun-civel no contexto destas. Com base nisso, pode-se con-cluir que a garantia da certeza (e, portanto, a possibilidade de emitir juzos de correo sobre as decises interpreta-tivas) se torna uma precondio da prpria legitimidade do poder.

    Todavia, segundo Aarnio, poderia haver a um moti-vo aparentemente fundado para se duvidar da possibili-dade de considerar a interpretao uma atividade qual podem ser atribudas a verdade ou a retido. Isso com base no argumento de que no possvel identificar uma

    OS ESTUDOS SOBRE O RACIOCNIO JURDICO 47

    nica resposta correta para cada questo interpretativa individualmente. Na verdade, Aarnio considera que uma mesma disposio normativa, em virtude do carter plu-ralista e complexo das sociedades ocidentais contempo-rneas, pode efetivamente receber interpretaes dife-rentes, sem que alguma possa ser considerada legitima-mente mais correta que as demais do ponto de vista subs-tancial. No entanto, segundo o pensador escandinavo, essa tese ctica no nos permite concluir que a interpre-tao uma atividade arbitrria e no suscetvel de ser julgada correta ou no.

    De fato, na perspectiva de Aarnio a correo da in-terpretao no depende da possibilidade de determinar a existncia de uma nica resposta correta, e sim da pos-sibilidade de justificar racionalmente as decises inter-pretativas. Ainda que s vezes essas decises no sejam as nicas possveis, o processo interpretativo pode ser con-siderado no-arbitrrio (e, portanto, correto) se respeita determinados critrios ou cnones gerais predetermi-nados, com base nos quais pode ser justificado. Segundo esse ponto de vista, a prpria justificao garante que a deciso interpretativa apropriada e, assim, que a ativi-dade de interpretao em si mesma de carter no-ar-bitrrio. De fato, a possibilidade de justificar as decises com base em critrios prefixados suficiente para excluir a absoluta subjetividade das interpretaes e, desta ma-neira, para limitar a multiplicao descontrolada dos sig-nificados jurdicos. Em tal viso, portanto, h uma estreita conexo entre teoria da cincia jurdica, teoria da inter-pretao e teoria da justificao jurdica3.

    A teoria da justificao jurdica proposta por Aarnio procura sintetizar trs tradies de pensamento: a da nova retrica de Perelman, aquela segundo Wittgenstein e a de Habermas. Essa teoria parte do pressuposto de que a ra-

  • 48 A FILOSOFIA CONTEMPORNEA DO DIREITO

    cionalidade lgica (que consiste no respeito s regras da lgica formal) no esgota o campo da racionalidade apli-cvel ao direito. Ao lado da razo lgico-formal est tam-bm a razo dialtica. justamente esta ltima que de-sempenha o papel mais importante para a justificao dos juzos interpretativos. A idia de racionalidade dial-tica remete conformidade com uma srie de parme-tros, entre os quais ocupa uma posio particular o critrio de congruncia (coherence). De fato, para que uma deci-so possa ser considerada justificada, ela deve demons-trar, em primeiro lugar, que congruente com o direito preexistente e que est em harmonia com as disposies jurdicas gerais e com as decises interpretativas prece-dentes que pertencem ao mesmo sistema jurdico. No entanto, embora o teste de congruncia seja necess-rio, ele no suficiente para garantir a plena justificao da deciso interpretativa. Da a necessidade de recorrer a outros requisitos que podem ser sintetizados no requisi-to mais abrangente da razoabilidade ou aceitabilidade substancial da soluo proposta. Com esse termo, Aarnio entende a necessidade de que as solues jurdicas par-ticulares sejam conformes imagem de mundo prpria de certa forma de vida, isto , aos valores de justia subs-tancial prprios de determinada sociedade. As noes de "imagem do mundo" e de "forma de vida" remontam a Wittgenstein. Elas remetem possibilidade de encon-trar no interior de uma sociedade uma estrutura comum do pensar e do agir humano, um conjunto de convices e valores compartilhados. Assim, na perspectiva de Aarnio, uma soluo interpretativa pode ser considerada justifi-cada, em ltima anlise, quando possvel demonstrar que ela compatvel com e, em certa medida, determi-nada pelo sistema axiolgico compartilhado, ao menos em suas linhas fundamentais, por certa comunidade de falantes (auditrio ideal particular).

    OS ESTUDOS SOBRE 0 RACIOCNIO JURDICO 49

    Aleksander Peczenik (1937-2005) parte de uma con-cepo do direito como fenmeno constitudo no s de regras em sentido estrito, mas tambm de princpios, fins, valores e ideais contidos em documentos normativos produzidos por sujeitos diferenciados em virtude de suas funes e de seu tipo de poder. Conseqentemente, o direito no uma entidade j dada e disponvel, que o ope-rador do direito encontra "pr-fabricada", pronta para o uso. Ele antes uma construo do operador, que deve encontrar, em relao ao caso concreto, a combinao correta entre fatores diversos. Desse modo, Peczenik ne-cessariamente acaba por afirmar o carter onipresente dos procedimentos argumentativos no direito. Com efeito, atravs da atividade de argumentao que os diversos componentes jurdicos podem ser identificados e combi-nados entre si, com relao ao caso concreto. Portanto, uma forma mais ou menos articulada de raciocnio jur-dico est implcita em cada uma das principais ativida-des do jurista.

    Essas atividades, segundo Peczenik, podem ser re-sumidas em duas tipologias fundamentais: a enunciao de juzos de validade (por sua vez ulteriormente distin-guveis, dependendo do objeto, em juzos referentes validade, e portanto identificao, do sistema jurdico, e em juzos referentes validade de cada norma no inte-rior de um ordenamento jurdico vlido) e a enunciao de juzos interpretativos. Tanto as determinaes do di-reito vlido quanto as decises relativas interpretao correta exigem um raciocnio cuja natureza no exclu-sivamente lgico-dedutiva. De fato, Peczenik afirma que, tanto para estabelecer a validade quanto no mbito da atividade interpretativa, so indispensveis algumas trans-formaes, alguns "saltos" (jumps). Com essa expresso, o autor pretende se referir ao fato de que as passagens ar-

  • 50 A FILOSOFIA CONTEA4PORNEA DO DIREITO

    gumentativas necessrias para extrair concluses jurdicas vlidas ou para atribuir a um texto o contedo de signifi-cado correto no so logicamente contnuas, mas exigem um salto lgico, vale dizer, a realizao de operaes em parte valorativas e no justifi