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Faculdade de São Bento
Leandro Bachega
A ALIENAÇÃO DO HOMEM SOB O GOVERNO
TOTALITÁRIO NAZISTA EM HANNAH ARENDT
São Paulo
2012
Leandro Bachega
A alienação do homem sob o governo totalitário nazista em Hannah Arendt
Dissertação apresentada à Faculdade de São Bento para obtenção de título de Licenciatura em Filosofia. Orientador: Prof. Dr. José Carlos Bruni
São Paulo 2012
Folha de Aprovação
Nome: Leandro Bachega Título: A alienação do homem sob o governo totalitário nazista em Hannah Arendt
Dissertação apresentada à Faculdade de São Bento para obtenção de título de Licenciatura em Filosofia.
Aprovada em: ______ / ______ / ____________ Banca examinadora: Professor Edson Dognaldo Gil Professor Franklin Leopoldo e Silva
Ao meu filho Pedro, na esperança por uma nova geração verdadeiramente livre.
Agradecimentos
Agradeço à minha mãe por ensinar-me as primeiras letras. Ao professor e amigo Gedeon Freire de Alencar, por ter me introduzido ao amor pela Filosofia. Ao amigo Edi Carlos Borges, pelo companheirismo nas discussões filosóficas e pela sincera preocupação pelo trabalho e por mim. Ao amigo Leandro Dutra, por me ensinar a pensar com rigor e a argumentar. Aos funcionários e professores da Faculdade de São Bento durante os anos de curso, a ajuda durante o aprendizado e a ótima convivência. Aos colegas que fiz durante o tempo que passei na faculdade. Em especial agradeço aos amigos Paulo Warschauer, Jaime Santos e Yara Medeiros. Ao querido professor Rogério Nemoyane Ribeiro, pela amizade durante o período do curso. Ao meu orientador, professor José Carlos Bruni, pela simpatia e gentileza na orientação do presente trabalho, bem como pela inspiração ao estudo da política. À minha esposa, Amanda Morelli, que me incentivou nos momentos de fraqueza e que me apoiou todo o tempo.
Resumo
O presente trabalho pretende abordar a leitura de Hannah Arendt a respeito da
adesão do povo alemão à propaganda nazista, através da leitura de sua obra
Origens do Totalitarismo e, em um segundo momento, o resultado da doutrinação do
Terceiro Reich em apenas um indivíduo, Adolf Eichmann, por meio da leitura da obra
Eichmann em Jerusalém. Explorando a máquina ideológica do totalitarismo nazista,
a submissão popular verificada no engajamento nacionalista e o descaso com as
atrocidades que culminaram no holocausto, o trabalho acompanhará a politização do
preconceito, bem como o imperialismo e seu tempo como preparatórios para o
movimento totalitário, os instrumentos de manipulação do nazismo e a abdicação do
pensar por parte do povo.
Palavras-chave: antissemitismo, nazismo, totalitarismo, alienação.
Abstract
The present paper approaches the analysis by Hannah Arendt both of the
support by German people for the Nazi propaganda, through the reading of her work
The Origins of Totalitarianism and, subsequently, of the result of the Third Reich
indoctrination on only one subject, Adolf Eichmann, through the reading of Eichmann
in Jerusalem. Exploring the Nazi ideological machine, the popular resignation
[paradoxically] verified in the nationalist engagement and the neglect of the atrocities
culminating in the Holocaust, the paper follows the politicization of the anti-Semitic
prejudice, as well as Imperialism and its times as a preparation to the totalitarian
movement, the instruments of Nazi manipulation and the abdication of thinking by the
people.
Keywords: anti-Semitism, Nazism, totalitarianism, alienation.
SUMÁRIO INTRODUÇÃO ............................................................................................................ 8 CAPÍTULO 1: ANTISSEMITISMO ............................................................................. 10
1.1 Origens do antissemitismo moderno ........................................................................ 10
1.2 A manipulação .......................................................................................................... 12
1.3 Ascensão social ........................................................................................................ 13
1.4 Relações capitalistas e perda de imagem ................................................................ 16
1.5 O judeu arrivista e o caso Dreyfus ........................................................................... 18
CAPÍTULO 2: IMPERIALISMO .................................................................................. 21 2.1 A expansão imperial ................................................................................................. 21
2.2 As teorias raciais ...................................................................................................... 22
2.3 A política racial ......................................................................................................... 25
2.4 Uma massa apátrida ................................................................................................ 26
CAPÍTULO 3: TOTALITARISMO ............................................................................... 29 3.1 Isolamento e adesão popular ................................................................................... 29
3.2 A alienação totalitária ............................................................................................... 32
3.3 Propaganda totalitária .............................................................................................. 34
3.4 Organização totalitária .............................................................................................. 36
3.5 Totalitarismo no poder .............................................................................................. 39
CAPÍTULO 4: EICHMANN EM JERUSALÉM ............................................................ 47 4.1 Carreira ..................................................................................................................... 48
4.2 O homem Adolf Eichmann ........................................................................................ 50
4.3 A massa alienada ..................................................................................................... 53
CONSIDERAÇÕES FINAIS ...................................................................................... 55 BREVE BIOGRAFIA DE HANNAH ARENDT ............................................................ 57 BIBLIOGRAFIA ......................................................................................................... 58
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INTRODUÇÃO
O prefácio à primeira edição da obra Origens do Totalitarismo traz a
pergunta que acompanhará todo o livro, a saber, de que maneira um pensamento
tão pequeno e irrelevante para a política mundial como o antissemitismo se tornou
em mote para a máquina de morte nazista e da guerra em si mesma. Hannah Arendt
se mostra preocupada com a iminência de uma mentira ou preconceito ser utilizado
a qualquer momento em nome de interesses de Estados e governos, visando
conquistar a opinião pública e agir de acordo com seus planos, gerando assim o
domínio de poucos sobre muitos, limando a liberdade do homem que, segundo
Arendt, está na participação política.
Faz-se necessário, no entanto, separar o milenar conflito de religiões,
cristianismo e judaísmo, e o antissemitismo político e moderno, resultante das
conseqüências do desenrolar histórico na Europa e na posição assumida pelos
judeus em cada nação do que propriamente um ódio religioso. Em Origens do
Totalitarismo, Hannah Arendt mostra como o preconceito europeu contra os judeus
iniciado no século XVII e desenvolvido durante a fase do imperialismo por meio das
teorias raciais e da submissão de povos considerados inferiores aos europeus foi
manipulado em favor da propaganda e estratégia nazistas a fim de convencer o
povo alemão a auxiliarem sua “limpeza étnica”, bem como conquistar o aval para a
chamada “Solução Final” dos judeus e que resultou na morte de milhões de pessoas
consideradas pelo regime como subversivas, contrárias ou destinadas à morte,
segundo a visão do Terceiro Reich. Mesmo a população alemã foi alvo dos
assassinatos, por meio de um programa de saúde que visava purificar e fortalecer o
chamado povo germânico de uma descendência fraca ou doente. Era o chamado
programa “T-4”, em que crianças que apresentassem alguma deficiência, ou fossem
consideradas incapazes ou geneticamente fracas para o ideal de raça pura pelos
médicos eram abandonadas ou mortas em clínicas na Alemanha e na Áustria. De
forma semelhante, doentes mentais adultos e criminosos eram tornados estéreis e
mortos em câmaras de gás.
Acreditando que a ‘pureza racial’ necessitava do controle do estado sobre a reprodução humana, Adolf Hitler promulgou uma lei de prevenção contra ‘descendentes hereditariamente doentes’. Dentre outras disposições, a
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medida proibia os “indesejáveis” de terem filhos e obrigava a esterilização de indivíduos debilitados física ou mentalmente. A lei afetou cerca de 400.000 pessoas nos 18 meses seguintes à sua promulgação1.
Fatos como esses causam geralmente as seguintes perguntas: qual a
motivação para tamanho horror, e que tipo de pessoa seria capaz de cometer
semelhante mal? A surpresa a respeito das razões que mobilizaram milhões em prol
do nazismo está justamente na improbabilidade de se acreditar nelas, no caráter de
ineditismo da maldade encontrada nos campos de concentração. E tão espantosa
quanto a radicalidade do mal é a confirmação de que seus participantes não eram
pessoas cujo sadismo e crueldade excedesse a maldade de um provável criminoso:
a grande maioria dos simpatizantes e agentes do nazismo era formada por pessoas
absolutamente comuns, para os quais Adolf Eichmann, oficial da SS, se configura
como arquétipo.
O antissemitismo político e o imperialismo e sua pretensão de dominação
mundial tecem o pano de fundo para a chegada dos sistemas totalitários, que dentre
os listados pela obra de Hannah Arendt, nazismo e stalinismo, nos ateremos ao
primeiro, observando sua ideologia e conseqüência sobre todos aqueles que com
ele tiveram contato.
1 United States Holocaust Memorial Museum. Racismo Nazista. Disponível em: http://www.ushmm.org/outreach/ptbr/article.php?ModuleId=10007679. Acesso em: 14 de dezembro de 2011.
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CAPÍTULO 1: ANTISSEMITISMO
“A corrente subterrânea da história ocidental veio à luz e usurpou a dignidade de nossa tradição”
Hannah Arendt
1.1 Origens do antissemitismo moderno
Na tentativa de olhar para a história procurando entender a origem e os
motivos específicos e próprios do antissemitismo europeu, geralmente se recorre ao
ódio religioso entre cristãos e judeus, verificado ao longo dos séculos na Europa, ou
mais recentemente, os movimentos nacionalistas ocorridos no final do século XIX,
como fatores que reforçaram a identidade de um povo e, por conseqüência,
acabaram por questionar os direitos políticos dentro de seus territórios concedidos
aos povos estrangeiros que lá conviviam. Hannah Arendt entende de forma diferente
a questão, afirmando que, de fato, o antissemitismo crescia à medida que os
nacionalismos ruíam na Europa. Nos exemplos tratados em Origens do
Totalitarismo, Arendt aponta para a visão expansionista do nazismo e seu projeto de
governo mundial, enquanto a União Soviética ainda pregava as doutrinas
comunistas na busca de revoluções por todo o mundo.
Segundo a autora, um ponto importante na busca de compreender o
sentimento antissemita moderno está em uma definição de Tocqueville em sua obra
O Antigo Regime e a Revolução. Tocqueville ressalta a perda de importância da
nobreza após a Revolução Francesa, embora a mesma não tivesse perdido a sua
riqueza. No período em que a aristocracia desempenhava um papel na sociedade,
no caso, a manutenção do absolutismo e seus exageros, ela foi tolerada e, sua
fortuna, justificada; com a perda de prestígio após a revolução, a nobreza passou a
ser odiada por se mostrar inútil na administração pública, embora sua riqueza tenha
sido mantida. Semelhantemente, os judeus viram sua importância se esfacelar
quando, aos poucos, começaram a perder seus cargos e sua influência como
concessores de crédito aos reis da Europa ocidental.
O que faz com que homens obedeçam ou tolerem o poder e, por outro lado, odeiem aqueles que dispõem da riqueza sem o poder é a ideia de que o
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poder tem uma determinada função e certa utilidade geral. Até mesmo a exploração e a opressão podem levar a sociedade ao trabalho e ao estabelecimento de algum tipo de ordem. Só a riqueza sem o poder ou o distanciamento altivo do grupo que, embora poderoso, não exerce atividade política são considerados parasitas e revoltantes, porque nessas condições desaparecem os últimos laços que mantêm ligações entre os homens (Arendt, 2009, p. 25).
Outro ponto que Arendt chama a atenção é para a escolha nazista dos judeus
como bode expiatório a fim de justificarem problemas sociais e, por conseqüência,
sua ideologia e futuras ações contra o povo judeu. Nota-se que os judeus sofriam
todo tipo de perseguição simplesmente por serem judeus, independentemente de
serem contrários ao regime ou não, ou por apresentarem ou não crimes que
legitimassem suas prisões. A inocência individual não era suficiente para se livrar da
acusação feita sobre toda uma etnia, a saber, uma suposta conspiração de líderes
judeus para dominar todo o mundo e que tinha por base os chamados Protocolos
dos sábios de Sião.
Os protocolos são um livro que surgiu no final do século XIX, na Rússia,
muitas vezes atribuído à polícia secreta czarista. Em suas páginas lê-se uma série
de planos formalizados em uma suposta reunião secreta realizada na Suíça por
influentes judeus, e que expõem os planos judaicos para governar todo o planeta. O
livro foi refutado como fraudulento por diversas vezes, pois o grupo de líderes e a
reunião nunca foram provados; além disso, a obra foi revisada e considerada como
plágio do livro O Diálogo no Inferno entre Maquiavel e Montesquieu, publicada em
1864 pelo francês Maurice Joly, e que satirizava o governo de Napoleão III, sem
sequer citar os judeus ou quaisquer planos conspiratórios.
De qualquer forma, a fama e a veracidade do documento foram disseminadas
na Alemanha nazista a fim de que estes ganhassem apoio geral da população antes
que o Reich iniciasse seus planos contra os judeus. Hannah Arendt difere a
utilização do terror nos governos modernos, que recorrem ao terrorismo como forma
de intimidar oponentes, enquanto o totalitarismo usava do terror para a manutenção
da obediência popular.
O estabelecimento de um regime totalitário requer a apresentação do terror como instrumento necessário para a realização de uma ideologia específica, e essa ideologia deve obter a adesão de muitos, até mesmo da maioria, antes que o terror possa ser estabelecido. O que interessa ao historiador é que os judeus, antes de se tornarem as principais vítimas do terror moderno, constituíam o centro de interesse na ideologia nazista. Ora, uma
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ideologia que tem de persuadir e mobilizar as massas não pode escolher sua vítima arbitrariamente. Em outras palavras, se o número de pessoas que acreditam na veracidade de uma fraude tão evidente como os ‘Protocolos dos sábios de Sião’ é bastante elevado para dar a essa fraude o foro do dogma de todo um movimento político, a tarefa do historiador já não consiste em descobrir a fraude, pois o fato de tantos acreditarem nela é mais importante do que a circunstância (historicamente secundária) de se tratar de uma fraude (Arendt, 2009. p. 26-27).
1.2 A manipulação
Em busca de conquistar a opinião geral, os nazistas ocultavam a verdade,
transformando a mentira em instrumento necessário de persuasão. Arendt os
compara aos antigos sofistas, que tentavam convencer seus ouvintes buscando
saírem vitoriosos de debates e disputas em praça pública. Não tinham nenhum
compromisso com a verdade; porém, ao contrário dos nazistas, o convencimento
momentâneo dos ouvintes, mesmo que às custas do comprometimento da verdade,
lhes bastava. Enquanto isso, os nazistas desejavam o estabelecimento de opiniões
que resistissem ao tempo, comprometendo não somente a verdade, mas também e,
especificamente, a realidade. O que contribuiu em demasia para a persuasão das
massas foi a incapacidade destas de não apenas permanecerem acríticas ao que
acontecia, mas também em sua incredulidade sobre a possibilidade do inédito, a
saber, o assassinato em massa de seres humanos. O absurdo é tratado como tal, e
enquanto o improvável se limita ao campo da fantasia, os que a ignoram trocam a
verdade pela mentira, e o juízo pela loucura. Essa inversão dos fatos acontece ao
acreditar na “verdade” da ideologia, no caso, a verdade totalitária, que apresenta os
problemas e suas soluções de modo aparentemente coerente, dentro de uma lógica
própria e propagandeada de forma massificada. Hannah Arendt também destaca a
dificuldade das pessoas em se mostrarem contrárias a uma corrente de pensamento
que parece arrebatar a todos, cegamente, sem espaço ou iniciativa de
contrariedade. Dessa maneira, o regime totalitário não apenas limita a liberdade
física e intelectual de suas vítimas, mas também daqueles que apóiam suas
doutrinas, sem que percebam a profundidade de sua alienação e os males causados
por ela.
O preparo das vítimas e dos carrascos não é através da ideologia em si, do racismo ou do materialismo dialético, mas através de sua lógica inerente. A
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força coercitiva dessa lógica, segundo Hannah Arendt, emana do nosso pavor à contradição. Para a mobilização das pessoas, o governante totalitário conta com a compulsão que as impele para a frente; e essa compulsão interna alimenta a tirania da lógica, contra a qual nada se pode erguer senão a grande capacidade humana de começar algo novo. A tirania da lógica começa com a submissão da mente a ela, como processo sem fim, no qual o homem se baseia para elaborar os seus pensamentos. Através dessa submissão ele renuncia à sua liberdade interior, tal como renuncia à liberdade quando se curva a uma tirania externa (Souki, 1998, p. 59).
A manipulação feita pela propaganda nazista contra os judeus, cujo símbolo
maior foi a utilização dos chamados “Protocolos de Sião”, ou seja, a crença em uma
fraude explícita que exemplifica o uso da mentira totalitária, bem como o
antissemitismo moderno, de alguma forma já bastante presente não só na
Alemanha, mas em toda a Europa no final do século XIX e início do XX, foram os
principais motivos que levaram o preconceito e o totalitarismo ao extremo, verificado
no holocausto dos campos de concentração. Enquanto o primeiro capítulo de
Origens se dedica a apresentar o antissemitismo muito como a ausência de bom
senso e sensibilidade humana, tanto em sua origem quanto no tratamento dado
pelos antissemitas, o segundo capítulo explica a formação do pensamento
antissemita moderno.
1.3 Ascensão social
No processo de formação dos Estados-nação europeus no início do século
XIX, os judeus receberam uma incoerente cidadania dos governos que haviam
defendido anteriormente a nacionalidade e homogeneidade étnica de sua própria
população como condição fundamental para a formação da nação e de sua estrutura
política. Essa cidadania conferida aos judeus era fruto da influência das leis
francesas resultantes de sua Revolução e seus princípios de igualdade entre os
homens, o que acarretaria não apenas o fim das restrições impostas anteriormente
aos judeus, mas também encerraria os seus privilégios, concedidos principalmente
aos judeus da corte, indivíduos ricos da comunidade judaica que assistiam aos
nobres e reis com seus serviços bancários. No entanto, para que os Estados
assegurassem as novas políticas de igualdade e de representação da nação como
um todo, seu poder requeria um suporte que mantivesse sua força e soberania
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protegidas; além disso, o alcance econômico dos Estados aumentou no continente,
o que acabou acarretando a sua procura pelos judeus, conhecidos fornecedores de
crédito aos reis do antigo regime monarquista. Novamente, os judeus se viam em
posição de destaque na sociedade, contrariando, desta vez, a política de igualdade
pregada e disseminada na Europa, pois era interessante aos governos tê-los por
perto, em estreita relação, e fazer deles um grupo emancipado. Os favores,
entretanto, não estavam mais limitados aos judeus-da-corte de outrora; agora, o
volume negociado e desejado pelos Estados era maior, e só poderia ser atendido
através de uma teia de relações internacionais e intereuropéias, exclusividade da
rede de contatos que os judeus possuíam, e que garantia a obtenção da soma
desejada. Isso acarretou no favorecimento não só de um grupo pequeno e limitado
de judeus envolvidos junto à corte, desfrutando de seus privilégios, mas para todos
os membros da comunidade judaica européia.
Os privilégios concedidos aos judeus foram aumentando gradativamente
desde o século XVII até ao XVIII, culminando com a cidadania conferida aos
membros da comunidade judaica. Os banqueiros judeus aceitavam financiar os
governos, pois estes não tinham apoio da burguesia, contrária a participação do
Estado nos negócios e transações financeiras, como havia sido visto no
mercantilismo dos séculos XV até o período da Revolução Francesa. Esse quadro
seria revertido, posteriormente, com a política imperialista, somada a sede de
expansão industrial e por novos mercados; aqui, os interesses tanto do governo
quanto da indústria burguesa se juntam, tornando a participação dos judeus como
fonte de recursos secundária e desnecessária; e finalmente, no século XX com
concessão definitiva de cidadania aos judeus, qualquer tipo de benefício ou favor
exclusivo foi extinto.
Ao mesmo tempo em que isso acontecia, o processo de evolução dos
Estados-nação por meio da equidade de condições garantia o direito de todos
perante a lei, mas acabou por assistir ao nascimento de uma sociedade de classes,
onde não havia igualdade nas esferas econômica e social. Este cenário aumentava
o contraste entre a situação da sociedade em geral e os judeus.
Os judeus constituíam a única exceção a essa regra geral. Não formavam uma classe nem pertenciam a qualquer das classes nos países em que viviam. Como grupo, não eram nem trabalhadores, nem gente da classe média, nem latifundiários, nem camponeses. Sua riqueza parecia fazer
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deles membros da classe média, mas não participavam do seu desenvolvimento capitalista; mal eram representados nas empresas industriais; e, se, na última fase de sua história européia, chegavam a conduzir importantes empresas, dirigiam pessoal burocrático ou intelectual e não o operariado. Em outras palavras, embora seu status fosse definido pelo fato de serem judeus, não o era por suas relações com as outras classes. A proteção especial que recebiam do Estado (quer sob antiga forma de privilégios, quer sob forma de leis especiais de emancipação, de que nenhum outro grupo necessitava e que, muitas vezes, precisava de reforço ulterior, por causa da hostilidade da sociedade) e os serviços especiais que prestavam a governos impediam, ao mesmo tempo, que submergissem no sistema de classes, e que se estabelecessem como classe (Arendt, 2009, p. 33).
Essa separação entre os judeus e as classes sociais atendia a interesses
mútuos, a saber, entre o Estado e a comunidade judaica. Enquanto aqueles
procuravam agradar sua fonte exclusiva de crédito (pois não havia interesse de
outros setores da sociedade em financiar o governo), os judeus desejavam manter
sua identidade como povo, o que seria difícil numa tentativa do Estado em assimilar
os cidadãos ao sistema de classes. Essa sobrevivência dos judeus como grupo se
deu graças aos privilégios fornecidos pelos governos, ou seja, neste momento trata-
se de um grupo definido pelo sistema político, como ressalta Hannah Arendt, cujos
direitos e deveres são diferenciados mediante o interesse imediato do Estado.
E embora estivessem sempre em meio aos centros de poder, sua
participação e interesse nas decisões políticas era praticamente nula. Eram leais aos
governos, mas transferiam seus serviços a novas lideranças trazidas por revoluções
ou eventuais trocas de poder. A imagem formada pela opinião pública em geral a
respeito dos judeus os associava aos Estados; assim, vagarosamente, o
antissemitismo começou a surgir do julgamento das classes que desafiavam o poder
estatal em busca de reforma política e social, e entendiam os judeus como a única
classe que apoiava irrestritamente os interesses do governo, corroborando seus
exageros e aflições impostos ao povo. Segundo Arendt, nada mais distante da
verdade, uma vez que os judeus nunca tiveram interesse em participar da
sociedade, e a ela se assimilar, recusando o controle das indústrias capitalistas (fato
esse que, segundo a autora, poderia ter dado um destino diferente no papel dos
judeus referente a sua participação na economia européia no final do século XIX) ou
das manobras políticas e de poder (como dito anteriormente, não buscaram maiores
direitos como cidadãos por temerem a perda da identidade, mas também não
lutaram por direitos enquanto grupo distinto).
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Nunca, portanto, souberam avaliar o antissemitismo, nunca chegaram a reconhecer o momento em que a discriminação se transformava em argumento político. Durante mais de cem anos o antissemitismo havia, lenta e gradualmente, penetrado em quase todas as camadas sociais em quase todos os países europeus, até emergir como a única questão que podia unir a opinião pública. Foi simples como ocorreu esse processo: cada classe social que entrava em conflito com o Estado virava antissemita, porque o único grupo que parecia representar o Estado, identificando-se com ele servilmente, eram os judeus (Arendt, 2009, p. 45).
Hannah Arendt ressalta que os laços familiares foram um importante meio de
sobrevivência dos judeus na Europa, uma vez que sua espiritualidade se esvaía,
assim como era um povo sem terra e eternos estranhos em pátria alheia. Esse
vínculo de sangue, fundamental para a preservação da identidade judaica, era visto
como um possível sinal e argumento para a crença de que havia, de fato, um plano
judaico para dominação política, haja vista sua participação entre os governos de
praticamente toda a Europa. A imagem ganhou força, finalmente, com a história da
família Rothschild, famosos banqueiros judeus de origem alemã que enriqueceram
após as guerras napoleônicas. Depois da guerra, os Rothschild se tornaram os
principais financiadores da reestruturação dos governos, estabelecendo um membro
da família em cada um dos principais centros financeiros da Europa.
1.4 Relações capitalistas e perda de imagem
Embora não estivessem interessados na participação e na administração de
indústrias, a atuação judaica no mercado financeiro, principalmente em atividades
bancárias, colocava os judeus nos centros dos acontecimentos financeiros e,
conseqüentemente, políticos na Europa. No final do século XIX, muitos escândalos
financeiros vieram à tona, envolvendo homens influentes dos governos europeus,
tendo como intermediários alguns banqueiros judeus. No entanto, não somente
membros do Parlamento francês ou políticos europeus de igual importância tinham
relação com as fraudes denunciadas, mas também pequenos proprietários e
artesãos de menor expressão comercial. A força das potências industriais era uma
real ameaça aos pequenos produtores, comerciantes e proprietários de pequenos
espaços de terra. Esse grupo correspondia a uma classe localizada entre a
burguesia e o proletariado, e suas ações, bem como o seu crescimento enquanto
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comerciantes e latifundiários significaria sua sobrevivência social, ou sua queda ao
nível de empregados mal remunerados das empresas burguesas.
Temerosos por seu futuro, esse grupo havia feito investimentos junto a
pequenos banqueiros judeus, uma vez que, herdeiros das associações de artesãos
e comerciantes protegidos durante séculos pelos governos, se viram desprotegidos
pelas regras liberais do capitalismo, tornando-se concorrentes dos industriais,
embora sem a força desses. Agora, com a pressão da poderosa concorrência e sem
proteção, essa “classe média inferior”, como chama Arendt, recorria aos serviços
dos banqueiros, representantes desse capitalismo que viera para colocar em risco a
segurança destes pequenos produtores. Desgostosa com a ausência de ajuda
estatal e sujeita aos banqueiros, essa pequena burguesia, juntamente com a
esquerda proletária, passou a ver os judeus não só como atores da invasão
capitalista, mas também como um grupo de influência tal junto ao Estado que
possuía participação direta nas decisões deste sobre as regras de mercado e, como
também criam os pequenos burgueses, arquitetavam um meio de ascender ao poder
político.
É neste instante que surgem na Europa os primeiros partidos antissemitas,
aliando ao seu discurso uma crítica feroz ao Estado, em face da situação da classe
trabalhadora, bem como da insegurança da pequena burguesia. Na Alemanha, a
maioria destes partidos apoiava o partido social-democrata, única chapa
oposicionista no Reichstag (Parlamento alemão), cuja política visava proteger seus
eleitores dos ricos industriais, que haviam tomado seu espaço na economia, e dos
judeus, que concediam créditos a essa massa em vias de falência, conquistando
grande apoio numérico. No entanto, as aspirações dos partidos antissemitas eram
não apenas de oposição, mas de tomada do poder, por rejeitarem as políticas
domésticas de seus respectivos Estados-nação, e visavam uma cooperação
intereuropeia, um “partido acima dos partidos”, que repensasse as formas de poder
dos governos vigentes. Além da associação desses governos com os judeus
financistas, os partidos antissemitas sabiam da extensão internacional dos judeus,
reafirmando, assim, seus planos paneuropeus de tomada do poder.
Os antissemitas estavam convencidos de que a sua pretensão de tomar o poder absoluto não era outra coisa senão aquilo que os judeus já haviam conseguido, e que o seu antissemitismo era justificado pela necessidade de eliminar os reais ocupantes dos postos de mando: os judeus. Assim, era
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necessário ingressar na luta contra os judeus para conquistar o poder político. Fingiam estar lutando contra os judeus exatamente como os trabalhadores lutavam contra a burguesia e, atacando os judeus, que apresentavam – de acordo com a ideia geral – como detentores do poder por detrás dos governos, agrediam abertamente o próprio Estado, catalisando assim todos os descontentes e frustrados (Arendt, 2009, p. 60).
1.5 O judeu arrivista e o caso Dreyfus
Por outro lado, Hannah destaca a participação cada vez maior de intelectuais
judeus em meio às sociedades aristocráticas, principalmente na Paris do final do
século XIX. Estas, desejosas por manterem-se inconfundíveis com a burguesia
crescente, buscavam no exótico aquilo que lhes destacasse e lhes desse uma
imagem tanto de liberal - quanto aos hábitos - como de avançados intelectualmente,
dotados de uma “largueza de espírito”, haja vista a freqüência cada vez maior de
judeus quanto de homossexuais. Para os aristocratas dos salões franceses, judeus e
homossexuais eram irreparáveis anomalias, a saber, o judeu como eterno traidor, e
o homossexual como preso ao vício. Eram atraentes pela vida movimentada,
incomum, diferente do tédio existencial pelo qual passava a Europa. Como sua
companhia despertava curiosidade e trazia destaque, seus males passaram a ser
vistos como uma herança genética e doença incuráveis, embora fossem toleradas
pela alta sociedade, que não lhes negava seus “crimes”, mas apenas se tornavam
indiferentes quanto a isso. Entendiam que não se poderia penalizar a quem, por sua
própria natureza, era desregrado e inclinado ao vício.
Os judeus arrivistas da sociedade francesa eram, basicamente, artistas,
intelectuais e financistas, e a tolerância aristocrática limitava-se a eles, não sendo
estendida aos judeus pobres e ordinários. Essa posição de destaque e assimilação
dos arrivistas acabou por acarretar um preconceito também destes pelos judeus
pobres, pois uma assimilação completa significaria o fim dos privilégios dos judeus
arrivistas.
É certo que o processo de assimilação de parte da população judia, ocorrido ao longo do século XIX, propiciou a melhoria das condições de vida de alguns setores, como financistas e intelectuais. Ao mesmo tempo, ele motivou o agravamento das cisões entre os próprios judeus, o que, certamente, fez deles um grupo muito mais vulnerável aos preconceitos e perseguições. Nessa época, acentuou-se a discriminação dos judeus do oriente (os Ostjuden) pelos judeus ocidentalizados e firmou-se o contraste entre o judeu arrivista, assimilado, e o judeu pária (Jardim, 2011, p. 31-32).
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Em seu livro Rahel Varnhagen, Hannah Arendt descreve a vida de uma judia
alemã, casada com um aristocrata alemão e convertida ao cristianismo. Rahel era
conhecida da sociedade alemã por reunir intelectuais em um salão literário
promovido por ela. Sua conversão, seu casamento e o envolvimento com artistas e
aristocratas da sociedade refletem a tentativa dos judeus de sua época em se
tornarem “exceções”, ou seja, tolerados a despeito de sua origem judaica. Outros
dois exemplos de judeus arrivistas descritos por Arendt em Origens do Totalitarismo
são Benjamin Disraeli e Marcel Proust. Disraeli era um político inglês, desejoso pelo
poder e por destaque, tornou-se primeiro-ministro e amigo próximo da rainha Vitória.
Realizou benfeitorias aos judeus da Inglaterra, que não tinha em seus territórios as
massas de judeus pobres, como os países do continente europeu. Marcel Proust foi
um escritor francês, considerado o maior escritor da França do século XX. Oriundo
de família rica e freqüentador dos salões de Paris, Proust era não somente judeu,
mas também homossexual, e ilustrava a situação dos judeus assimilados entre a
aristocracia em algumas de suas principais obras.
A posição de destaque dos judeus assimilados entre a sociedade francesa
gerava uma falsa segurança, pois o parecer a respeito de seus “vícios” e “crimes”
poderia ser revisto a qualquer momento, como de fato aconteceu. Arendt chama a
atenção para o fato de que estes mesmos aristocratas que conviviam com os judeus
em aparente amizade foram, mais tarde, seus perseguidores e verdugos. Esta
fragilidade é escancarada no caso Dreyfus, judeu arrivista, pertence ao corpo de
oficiais do exército francês (conhecido reduto da aristocracia) e que, no entanto, não
apenas falhou em seu processo de assimilação e arrivismo, como também foi vítima
de falsa acusação, o que ocasionou sua prisão, tendo o processo se arrastado
durante anos e sem conclusão ainda nos dias de hoje.
Alfred Dreyfus era um militar do Estado-Maior francês. Foi acusado e
sentenciado em 1894 à prisão perpétua pelo crime de traição, por ter auxiliado o
governo alemão em espionagem contra a França. Entretanto, seu julgamento foi
realizado em portas fechadas, tendo sido divulgada apenas a carta supostamente
escrita por Dreyfus (chamada à época de borderau), e que seria a prova cabal de
sua culpa. Seus apoiadores, o coronel Picquard e Émile Zola, sofreram perseguições
diante da defesa pública que faziam em favor da inocência de Dreyfus, enquanto
Charles-Ferdinand Walsin Esterhazy, oficial francês e verdadeiro autor do borderau,
20
era preso pelo crime de peculato (Walsin Esterhazy, mais tarde, confessaria a
autoria da carta por ordem de um superior, tendo imitado a letra de Dreyfus). Após
diversas petições de revisão do processo, Dreyfus foi indultado, em 1894, pelo
presidente da República, embora não tenha sido absolvido por meio de um novo
processo civil ou militar, e sim pelo Tribunal de Apelação que, segundo as leis
francesas, não possuía poderes para absolvição de um réu. O caso acabou
ganhando bastante repercussão, tendo sido comentado e discutido por todo o
mundo.
Nesse contexto é que se iniciou o interesse da burguesia, movida por seus
interesses capitalistas e, portanto, expansionistas, pela busca de mercados que
extrapolassem as fronteiras do Estado-nação, por meio de quem conseguiriam levar
seus investimentos e produção para outras nações. Esta classe que sempre foi
marcada pelo desprezo político, agora via o Estado como meio para a realização de
seus projetos econômicos. Nascia agora o período imperialista, ou neocolonialista, e
com ele o pensamento de superioridade das raças européias sobre as demais. O
pensamento racista já existia antes do século XIX, mas pela primeira vez o racismo
é instrumentalizado como ideologia política.
21
CAPÍTULO 2: IMPERIALISMO
“A um infindável acúmulo de propriedade teve que corresponder um infindável
acúmulo de força”
Eduardo Jardim
2.1 A expansão imperial
Segundo Hannah Arendt, o período histórico denominado imperialismo pôde,
com raros paralelos, ser identificado com bastante precisão em seu início e fim, pois
em 1884 o processo expansionista europeu teve seu começo. O imperialismo surgiu
da união do colonialismo em terras distantes com o crescimento industrial verificado
no final do século XIX, cujo mercado doméstico das nações já não atendia o
planejamento de produção e consumo em massa dos produtos industrializados.
Durante a ocupação europeia nos países colonizados, localizados principalmente na
África e Ásia, a violência e o preconceito racial, protegidos pela compreensão
científica da diferenciação de raças, foram comuns e rotineiros.
A Inglaterra, pioneira entre as nações na corrida pela produção industrial,
apoiara independência das colônias estabelecidas no século XVI, principalmente sul-
americanas, no intuito de romper com a relação mercantilista conservadora, e
ampliar suas exportações por meio de operações econômicas liberais. No entanto,
apesar da livre negociação entre os países, o excedente da produção trazia temores
aos produtores europeus, e estes buscaram em um novo colonialismo a solução de
seus problemas. Não bastasse, a qualidade de vida dos operários, que trabalhavam
e viviam em condições precárias, gerando diversos protestos, bem como a pressão
crescente de ideologias como o socialismo e o anarquismo, que se tornavam
populares entre o proletariado; o escoamento da mão-de-obra excedente surgiu
como uma possibilidade de melhora na vida da massa trabalhadora.
O domínio sobre os povos africanos e asiáticos foi acompanhado pela ideia
de superioridade dos brancos europeus sobre as demais raças, nativas dessas
terras distantes. Conforma Arendt (2009, p. 188), o hitlerismo conquistou enorme
atração internacional porque o racismo não era estranho aos países europeus, mas
ao contrário, todos partilhavam da mesma opinião a respeito. O que se viu nos
22
continentes colonizados foi uma violenta dominação, exclusão e submissão por parte
dos europeus sobre suas colônias, dos quais Hannah Arendt cita como exemplo o
governo do rei belga Leopoldo II, que transformou o Congo em sua colônia privada,
explorando a borracha através da escravização e tortura dos nativos. Segundo
Hochschild (2002), morreram dez milhões de congoleses após o domínio do político
belga, além da sistemática mutilação de outros milhares de homens, mulheres e
crianças.
Para Hannah Arendt, a política de expansão territorial fomentada pela
burguesia industrial e o racismo teorizado e instrumentalizado nas colônias,
verificados durante o período imperialista, serviram como base para os futuros
governos totalitários, que reproduziriam semelhantes horrores no continente
europeu.
2.2 As teorias raciais
Quando o nazismo ascendeu ao poder, este despertou um fascínio não
velado de boa parte da comunidade européia, bem como a aceitação de suas ideias
por conta de um pensamento que era comum a todos os outros países, mas tornado
em bandeira pela nação alemã, a saber, o racismo e a crença na raça pura ariana.
De fato, o racismo era entendido pelo Reich como arma na aceitação e propagação
dos valores nazistas. Afinal, os conceitos qualitativos que diferenciavam uma raça de
outra, quer científicos ou históricos, não eram novidade na Europa, e haviam sido
utilizados anteriormente por grande parte das nações desde o século XVIII até o
início do neocolonialismo e sua manutenção.
O imperialismo na África é o fator adicional que contribui para a possibilidade do pensar totalitarista. Arendt considera o imperialismo como um estágio preparatório para o surgimento do totalitarismo na Europa, visto que ele defende a conquista do mundo mediante a justificação do pensar racista (Fry, 2009, p. 28).
As teorias francesas de liberdade, igualdade e fraternidade não eram bem
vistas na Inglaterra, onde havia uma grande desigualdade social. Ao contrário,
defendiam os valores e os direitos dos ingleses, adquiridos por seus antepassados e
que garantiam a liberdade de sua nação, compreendida pelo elo entre todo o povo
23
inglês (e não somente a uma aristocracia) e sua terra. No entanto, com a abolição da
escravatura, os ingleses passaram a conviver com as comunidades negras sem que
tivessem uma política ou ideologia semelhante aos lemas franceses de igualdade
dos homens. Este impasse deu campo para diversas teorias raciais, como no
exemplo do poligenismo, que defendia a diferença entre as mais diversas raças,
evitando assim os casamentos mistos e discriminando filhos de origem mista. Outra
forte influência sobre o pensamento inglês veio do darwinismo e suas teorias sobre a
aptidão natural que privilegia determinados indivíduos; estendida ao campo político,
justificaria o domínio de uma etnia forte sobre outras, mais fracas e atrasadas. Esta
aplicação logo ruiu com as incertezas inglesas sobre suas colônias (como no caso
dos Estados Unidos), mas permaneceu em sua compreensão orgânica, da aptidão e
seleção natural que distinguia os ingleses como povo destacado e evoluído dentre
todos os outros. A teoria caiu bem para a burguesia, cujo poder crescia e que,
embora não fosse oriunda da aristocracia, liderava os interesses imperialistas, e
viam sua ascensão como fonte de uma hierarquia natural. É no período do final do
século XIX que surgem as teorias sobre a eugenia, diretamente influenciadas pelo
darwinismo, sugerindo uma seleção artificial através de casamentos seletivos entre
indivíduos considerados mais inteligentes ou isentos de imperfeições físicas, a
chamada eugenia positiva.
No entanto, Arendt destaca o início do pensamento racial e distinção de raças
nas obras do conde de Boulainvilliers e de Gobineau, ambos franceses. Preocupado
com a iminente revolta do chamado “Terceiro Estado”, e também contrário à
monarquia, interessada em sua representatividade da nação como um todo, o conde
de Boulainvilliers tenta resgatar as raízes do povo francês, apontando sua origem
em duas etnias distintas, a saber, os gauleses, que há muito habitavam os territórios
franceses, e os seus invasores, de origem germânica. Assim, Boulainvilliers associa
o povo francês aos gauleses, derrotados e sujeitados aos germânicos, cuja
descendência deu origem a nobreza francesa, e corrobora a sujeição do povo em
geral aos nobres sobre o direito de conquista do povo vencedor. De fato, mesmo
após a queda da monarquia na Revolução Francesa, ocorreu um contínuo apoio às
teorias de que não só a nobreza francesa descendia dos antigos povos germânicos,
mas também toda a nobreza européia, o que levou a França à vanguarda do
pensamento de superioridade ariana.
24
Em 1853 foi publicada a obra Essai sur l'inégalité des races humaines (Ensaio
sobre a desigualdade das raças humanas) do francês Arthur de Gobineau, e que
apontava para a soberania natural da raça ariana em comparação às demais etnias,
bem como a inevitável decadência da espécie humana por conta da crescente
mistura de raças. A obra foi bem aceita no período de sua publicação, embora
destoasse do otimismo que tomava conta do ocidente no século XIX; e mesmo no
século XX, exatamente em 1923, houve um artigo da revista Europe, citado por
Arendt, que destaca a apreciação das novas gerações pelas ideias gobinistas.
Gobineau era um nobre francês, embora tenha sua linhagem e seu título de
nobreza colocado sob suspeita de fraude. Era avesso a manifestações nacionalistas
e a democracia e sua proposta de tornar todos iguais (em especial na França após a
Revolução), preferindo identificar-se com uma aristocracia ariana, e por isso jurou
lealdade aos ingleses e alemães. Eram de igual parecer outros escritores
contemporâneos a Gobineau, seguindo um padrão “antinacional e pró-germânico”
(Fry, 2009, p. 205).
Em contrapartida, a Alemanha teve sua ideologia racista despertada somente
após a derrota do exército prussiano às forças de Napoleão Bonaparte; na tentativa
de unir o povo contra o invasor estrangeiro, bem como unificar seus diversos
Estados, os alemães destacaram seus elos culturais e sanguíneos, acentuando suas
características étnicas comuns.
Hannah Arendt destaca ainda a influência dos românticos alemães a respeito
da “personalidade inata”, entendida como uma maneira de ser, individualista e
excêntrica, própria da aristocracia, e que servia a esta como um diferencial contra a
burguesia. No entanto, com a ascensão dos comerciantes burgueses, diversos
intelectuais passaram a identificar a “personalidade inata” não como exclusiva da
nobreza, que possuía títulos que lhes eram concedidos, e sim um privilégio natural
adquirido por nascimento.
Essa insistência na origem tribal comum como essência da nacionalidade, formulada pelos nacionalistas alemães durante e após a guerra de 1814, e a ênfase que os românticos davam à personalidade inata e à nobreza natural prepararam a Alemanha intelectualmente para pensar em termos racistas. [...] essas tendências [...] fundidas numa só, constituíram a própria base do racismo como ideologia plenamente desenvolvida (Arendt, 2009, p. 200).
25
2.3 A política racial
Segundo Arendt, a maior influência que o nazismo (e também do
bolchevismo) sofreu foi exatamente dos movimentos pangermânicos e pan-eslavos
(verificados na Alemanha, na Áustria-Hungria, bem como na Rússia), surgidos
exatamente nas nações onde, anos mais tarde, se desenvolveriam os chamados
governos totalitários. Esses movimentos se caracterizavam pela defesa da união de
indivíduos de mesma origem racial (germânicos e eslavos, respectivamente)
espalhados por diversas nações sob um Estado específico. Diferentemente dos
países europeus situados no oeste do continente, que dominavam colônias ultramar,
as nações do centro e leste europeus entenderam que sua expansão deveria ser
terrestre, conquistando os territórios vizinhos, unindo assim os povos de origem
étnica semelhante. É nesses movimentos que, pela primeira vez, é identificado o
antissemitismo como fruto de uma ideologia, e não como resultado de discordâncias
políticas ou sociais.
Embora os Estados-nação tivessem os princípios de representação, não
somente de uma parte de sua sociedade, mas de toda ela, além de sua soberania,
houve, contudo, uma crescente consciência de identidade étnica ligada ao território
e a sua história passou a exercer pressão sobre a soberania do Estado, exigindo
deste que privilegiasse os direitos e demandas dos cidadãos “nacionais”, e não
daqueles que não fossem oriundos de suas famílias e etnias (na Alemanha,
cunharam-se os termos Reichsbürger, ou “cidadãos completos”, descendentes de
alemães, e Volksbürger, cidadãos naturalizados alemães, mas sem direitos políticos
por conta de sua origem familiar). Primavam pelo povo, em detrimento ao Estado:
este deveria sujeitar seus interesses à vontade de um grupo seleto, e não pautado
pela heterogeneidade de povos e ansiedades.
Esses nacionalismos tribais alegavam não somente sua superioridade racial,
como defendiam sua origem divina e seu caráter de povo escolhido por Deus. Seu
destino estava, portanto, predestinado, e o caráter eletivo de sua raça os
desobrigava de compromissos e responsabilidades com quaisquer outras origens
étnicas, ou seja, pelo resto da humanidade em geral.
Georg von Schoenerer foi o principal idealista do movimento pangermânico.
Era contrário ao governo da Áustria-Hungria tanto pelo entrave que este
26
representava para a unificação alemã, como também pela aliança entre judeus
financistas e a casa dos Habsburgo, família de nobres que haviam reinado sobre o
Império Austro-húngaro. Além disso, a Áustria-Hungria possuía em seus domínios
territórios e povos de origem eslava, outro obstáculo para os sentimentos puristas e
planos de exclusão racial dos germânicos.
Para Arendt, a transformação dos judeus nos principais inimigos dos
movimentos pangermânico e pan-eslavo estava em sua própria consciência de povo
escolhido, sem que habitassem ou governassem um Estado específico, mas
espalhado por diversas nações, sem que perdessem suas origens e tradições; como
o projeto dos movimentos de nacionalismo tribal era exatamente a realidade dos
judeus, ou seja, sua autocompreensão de povo eleito e a distribuição de seus
indivíduos pelos diversos cantos do mundo, foram então considerados um obstáculo
para a promoção e cumprimento dos movimentos unificadores. Em última análise, o
antissemitismo seria fruto da inveja dos povos germânicos e eslavos, por
identificarem, de fato, a providência divina sobre o destino do povo judaico.
2.4 Uma massa apátrida
Após a Primeira Grande Guerra, os novos desenhos territoriais formados para
as recém-criadas nações aumentaram, significativamente, o número de pessoas
apátridas, por conta de já não se identificarem com os governos estabelecidos nem
com a população predominante destes novos domínios, haja vista a aglutinação de
diversos povos sob um só Estado. Devido a crise econômica dos países, arrasados
pela Guerra, bem como as políticas nacionalistas e de restrições migratórias,
criaram-se obstáculos para a cidadania das massas refugiadas, bem como a
garantia de seus direitos, ou mesmo a garantia dos Direitos do Homem para estas
chamadas “minorias”, apesar da criação da Liga das Nações, composta de homens
dos governos europeus e responsável pela causa dos refugiados e apátridas, e dos
Tratados das Minorias, leis internacionais de exceção (promovidas pela Liga)
destinadas a lhes proporcionar proteção jurídica e bem estar mínimos.
O fato de os apátridas serem assistidos por leis externas às do país onde
estavam configura, segundo Arendt, em claro sinal de que as nações, muito mais do
que as constituições ou os direitos humanos, estavam de fato tomando o poder e
27
decidindo a respeito do curso sociopolítico que seus Estados deveriam então
assumir. “[...] havia sido consumada a transformação do Estado de instrumento da
lei em instrumento da nação; a nação havia conquistado o Estado, e o interesse
nacional chegou a ter prioridade sobre a lei [...]" (Arendt, 2009, p. 308-309).
Embora houvesse tentativas dos países que abrigavam as massas apátridas
em naturalizá-las ou repatriá-las para seus Estados de origem, o que nem sempre
era possível por conta dos riscos relativos à repatriação (situação de exilados
políticos, dilema dos países democráticos em entregar estrangeiros naturais de
países sob governos de ditaduras, rejeição do país de origem em recebê-los de
volta, ou mesmo a recusa dos apátridas em retornar para sua terra natal); por outro
lado, o processo de naturalização não obteve sucesso devido a enorme quantidade
de pedidos, além da já citada política voltada aos cidadãos nascidos debaixo da
mesma origem racial e oriundos do Estado.
No caso dos judeus, um dos dois principais grupos (o outro grupo era formado
por alemães que viviam fora da Alemanha) do chamado “Congresso dos Grupos
Nacionais (associação internacional composta de representantes de apátridas e
minorias)”, teve sua influência diminuída após, em 1933, face o apoio das demais
minorias à Alemanha e, conseqüentemente, ao antissemitismo. Posteriormente, os
nazistas privariam os judeus de nacionalidade não alemã de sua cidadania antes de
serem deportados, enquanto os judeus de nacionalidade alemã perdiam sua
cidadania no momento em que eram deportados, agravando ainda mais sua
situação como refugiados, mas também demonstrando a resposta de Hitler tanto
para o imbróglio com os apátridas quanto para questão judaica:
A solução de Hitler para o problema judaico – primeiro, reduzir os judeus alemães a uma minoria não-reconhecida na Alemanha; depois, expulsá-los como apátridas; e, finalmente, reagrupá-los em todos os lugares em que passassem a residir para enviá-los aos campos de extermínio – era uma eloqüente demonstração para o resto do mundo de como realmente ‘liquidar’ todos os problemas relativos às minorias e apátridas (Arendt, 2009, p. 323).
À semelhança dos apátridas e das minorias, os judeus começavam a se ver
despojados de sua terra natal, suas casas, seus laços e origens, bem como privados
de direitos e proteção de um governo específico e, por fim, destituídos de liberdade,
da manifestação de opiniões a respeito de si mesmos, ou a respeito da escolha que
28
fizeram por eles em não mais pertencer à sua terra natal. Enfim, destituídos da ação,
de exercer seus direitos políticos como homens e cidadãos, tornam-se apenas seres
humanos à mercê ou da solidariedade dos povos, ou das decisões dos Estados aos
quais não pertencem. Em Arendt, a privação do poder de agir e criar inerente à
condição humana consiste em maior crime que a ausência de garantias de seus
direitos. É precisamente esta a situação que será verificada nos campos de
concentração nazistas, onde judeus e demais refugiados tiveram roubados não
somente sua cidadania e direitos, como também as suas próprias personalidades.
29
CAPÍTULO 3: TOTALITARISMO
“O objetivo da educação totalitária nunca foi insuflar convicções, mas destruir a
capacidade de adquiri-las”
Hannah Arendt
3.1 Isolamento e adesão popular
A terceira e última parte do livro Origens do Totalitarismo começa
evidenciando o apoio das massas alemãs ao regime nazista. Embora geralmente se
credite a aprovação alemã ao partido nacional-socialista como resultado do
engenhoso processo da propaganda do regime, Arendt cita que em pesquisa de
opinião pública realizada durante a Guerra, verificou-se que o povo sabia bastante a
respeito da deportação dos judeus, bem como sobre a invasão contra a União
Soviética. Mesmo durante a chegada da Wehrmacht (forças armadas da Alemanha)
à Ucrânia, por exemplo, o exército alemão contou com o apoio de muitos
ucranianos, alimentado pela esperança de livrarem-se do domínio soviético. Este
apoio se estendeu à perseguição dos judeus situados na Ucrânia pelo próprio povo
ucraniano, embora estes fossem abandonados logo em seguida pelos nazistas.
Internamente, as decisões do Führer contavam com forte aprovação nacional,
mesmo aquelas que, naturalmente, deveriam levantar contrariedade por parte da
opinião pública (como o assassinato de Röhm, amigo pessoal de Hitler, mas
perseguido dentro do partido por conta de sua assumida homossexualidade: Arendt
acredita que cerca de 90% do povo alemão foi sincero apoiador do regime). De fato,
diferentemente de outros partidos e países que canalizavam seus interesses a
determinadas classes sociais (como os partidos liberais e a burguesia, ou os
partidos comunistas e os trabalhadores proletários), o nazismo objetivava a adesão
do maior número de pessoas possível; na verdade, esta prática é própria dos
governos totalitários, que vêem nas multidões matéria supérflua para a conclusão de
seus projetos.
Uma das explicações fornecidas pela obra Origens do Totalitarismo para esta
aprovação popular está ligada à sua indiferença quanto aos assuntos políticos em
geral, cedendo a terceiros o poder de decisão e os apoiando diante tanto da
30
convicção de líderes partidários quanto da confusão de discursos proferidos em
tempos de inquietação e insegurança em relação ao futuro, como era o caso da
Alemanha pós-guerra. Por outro lado, o partido nazista via as massas como
números, necessários para levar a cabo os seus planos. Seriam necessários
homens para o exército, bem como trabalhadores para suprir e abastecer as frentes
de batalha. Posteriormente, no entanto, mesmo o povo alemão seria vítima dos
ideais governistas, como, por exemplo, a implementação do programa “T-4”,
orientada pelos ideais do nazismo e posta em prática com consentimento médico, e
que consistia em uma espécie de limpeza étnica, quando o partido passou a isolar e
executar doentes físicos ou mentais2.
Segundo Arendt, o partido nazista recrutava para sua membresia pessoas
que jamais haviam participado de qualquer movimento político ou ideológico. Na
verdade, eram pessoas consideradas indiferentes e que, por conta de sua apatia,
podiam ser mais facilmente doutrinadas pelos ideais do nazismo; sem experiência
ou conhecimento político, e onde havia facilidade de aceitação à propaganda
ideológica e inexistia uma crítica ponderada nos argumentos de oposição.
Entretanto, o desinteresse e fácil adesão das massas não explica completamente a
origem dos regimes totalitários, mas também a falência do Estado-nação e a
abertura para que outros elementos e pensamentos europeus tomassem corpo,
como foi o caso das nacionalidades tribais e seu racismo implícito.
Muito deste desinteresse era resultado do impacto e da influência da
sociedade de consumo, extremamente competitiva e proveniente da burguesia
capitalista. Por muito tempo, bastou à burguesia ser somente uma classe abastada,
desvinculada dos poderes políticos e decisórios da nação; entretanto, com seu
programa de expansão imperialista, o Estado passou a ser um instrumento político
para o cumprimento de seus próprios interesses. Por outro lado, os indivíduos
explorados pelo poder do capital e dele dependentes foram engolidos pelos ideais
de sucesso e competição, fundamentais para a sobrevivência profissional. O
resultado foi uma massa desinteressada na vida pública pela exigência voraz de
atenção solicitada pela vida privada, individualista e preocupada somente com seus
próprios interesses.
2 O programa é ricamente ilustrado no filme ARQUITETURA da Destruição. Direção: Peter Cohen. Versátil, 2006. 1 DVD (121 min), NTSC, color. Título original: Undergångens arkitektur.
31
A sociedade competitiva de consumo criada pela burguesia gerou apatia, e até mesmo hostilidade, em relação à vida pública, não apenas entre as camadas sociais exploradas e excluídas da participação ativa no governo do país, mas acima de tudo entre a sua própria classe. (...) Tanto a antiga apatia como a nova exigência de direção monopolística e ditatorial resultavam de uma filosofia para a qual o sucesso ou o fracasso do indivíduo em acirrada competição era o supremo objetivo, de tal modo que o exercício dos deveres e responsabilidades do cidadão era tido como perda desnecessária do seu tempo e energia (Arendt, 2009, p. 363).
Outro fator importante é a ausência de classes na Alemanha após a Primeira
Guerra, forjada pelo desemprego unido ao crescimento populacional, tornando o
povo em uma massa, desinteressada pela política e sem uma agenda definida, ou
uma bandeira que simbolizasse seus interesses. Essa homogeneidade tirou dos
partidos os grupos ou classes aos quais representava, diminuindo sua função. Ao
mesmo tempo, os membros das antigas classes perdiam completamente a confiança
na representatividade dos partidos, assim como a dificuldade destes em recrutar
novos membros e simpatizantes dentre as novas gerações.
As massas não se unem pela consciência de um interesse comum e falta-lhes aquela específica articulação de classes que se expressa em objetivos determinados, limitados e atingíveis. O termo massa só se aplica quando lidamos com pessoas que, simplesmente devido ao seu número, ou à sua indiferença, ou a uma mistura de ambos, não se podem integrar numa organização baseada no interesse comum, seja partidário político, organização profissional ou sindicato de trabalhadores. Potencialmente, as massas existem em qualquer país e constituem a maioria das pessoas neutras e politicamente indiferentes, que nunca se filiam a um partido e raramente exercem o poder de voto (Arendt, 2009, p. 361).
Com a crise econômica, conseqüência tanto por conta do conflito quanto das
duras imposições fixadas à Alemanha, bem como o sentimento de humilhação
trazido pelo Tratado de Versalhes, a República de Weimar, constituída em 1919,
sofria grandes críticas e acusações por ter aceitado os termos do Tratado (embora
este tenha sido redigido apenas pelas nações vitoriosas, e imposto aos alemães). A
Alemanha foi declarada culpada pela Guerra, perdeu suas colônias africanas e o
domínio sobre a região da Alsácia (com setor industrial têxtil e metalurgia
extremamente desenvolvidos) e Lorena (rica em depósitos de minério de ferro), além
de ter cedido sua marinha mercantil e restrições para a formação de suas forças
armadas. Por conseguinte, o país mergulhou em dívidas, severa inflação e
desemprego maciço.
32
(...) eram necessários mais de 1 milhão de marcos para comprar 1 dólar americano, contra a proporção de 4,2 marcos por dólar que vigorava antes da guerra. O salário de um dia não era suficiente para comprar um pedaço de pão. O número de desempregados crescia muito: 1,5 milhão em 1924, 5 a 6 milhões em 19323.
3.2 A alienação totalitária
A recém-formada república democrática foi vítima de constantes reveses
econômicos, o que gerava saudosismo do antigo império, além de uma perene
insegurança, o que pode ser visto na busca por membros da SS e da SA entre ex-
combatentes na Primeira Guerra e jovens desempregados oriundos das Freikorps,
unidades paramilitares de extrema direita; já a formação das massas criava
indivíduos sem interesses pessoais, isolados e desesperançados; homens que
haviam perdido o interesse em si mesmos e não manifestavam preocupações a
respeito dos mais corriqueiros cuidados que normalmente permeiam a vida humana
– indiferentes até mesmo diante da morte. A ausência das classes acarretou no
isolamento dos indivíduos, não dedicados a uma tarefa ou atividade que lhes
dessem identidade, ou uma associação tal pela qual pudessem fazer se sentir
importantes ou participantes de uma obra qualquer. Ao governo totalitário
interessava que quaisquer laços entre homens, mesmo laços não-políticos, fossem
desfeitos e extinguidos: em outras palavras, ao totalitarismo interessava tão somente
a dedicação do povo aos ideais políticos do governo, limando todo e qualquer
interesse autônomo e individual, excluindo da vida humana sua dedicação e amor ao
que sempre lhe havia sido próprio. Na verdade, o totalitarismo é definido como um
sistema organizacional, composto por uma massa individualizada, amorfa e
atomizada de indivíduos, isolados do convívio e relações próximas, por medo de
serem considerados contrários ao regime ou suspeitos de traição. Seu único contato
com o mundo exterior se dá através do líder, que lhes comunica a realidade
explicada sob sua fantasia – e uma vez desconexas de um mundo efetivo, agem em
nome da ideologia, pois para todos não existem verdades além desta; o totalitarismo
exige total e irrestrita lealdade por parte de todas as pessoas, orientadas pela
doutrina dos líderes, que visa expandir-se e envolver toda a humanidade. No caso
3 “A crise econômica aguda foi acompanhada de altos índices de desemprego. Entre 1932 e 1933, 44% da força de trabalho alemã estava desempregada, período que Eric Hobsbawn considera o pior momento da Depressão”. (D’Alessio e Capelato, 2004, p. 21-23).
33
alemão, o governo totalitário foi precedido por um movimento totalitário, que criou
artificialmente as condições e situações para a aplicação de seu domínio psicológico
sobre todos, invertendo a lógica política do governo ao exigir total dedicação do
povo aos interesses do Estado, e não o contrário. Diante de absoluto isolamento e
completa dissociação com os laços sociais, o único sentido vital que se lhes oferece
é, justamente, a propaganda e a doutrinação do partido totalitário.
Wilm Hosenfeld [...] tinha sido membro entusiástico do movimento da juventude Wandervogel, advogando a ideia de pertencer a uma ‘associação racialmente alemã e de sangue puro’. Depois, como membro da SA, ele escreveu: ‘quando você veste o uniforme da SA, não é mais dono de si. Passa a fazer parte de uma comunidade maior’. No comício do partido nazista em 1936, ele comentou: ‘mais uma vez me vejo dominado pelo sentimento de uma grande comunidade’ (Kitchen, 2009, p. 40).
A ideologia totalitária surgiu para as massas como o único meio de
abandonarem sua apatia; uma fuga que se apresentava, por mais inverossímil que
fosse, às suas existências privadas de sentido e esperança. Segundo Arendt, após
os choques e refutações ideológicos verificados no século XIX, em que diversas
teorias foram levantadas e refutadas, era possível acreditar em propostas absurdas,
uma vez que antigas verdades haviam se tornado banais e supérfluas.
Enquanto as massas se apegavam ao pensamento totalitário do nazismo,
outras duas camadas da sociedade, a saber, a elite e a ralé, estavam unidas na
origem do movimento nazista. A ralé continha pessoas de todas as classes, atuava
nos bastidores por não acreditar no Parlamento, que não a representava, além de
desprezar a sociedade, da qual também estava excluída. Esta repulsa pela política e
pela sociedade era compartilhada pela elite; cansada do estilo de vida burguês de
moralidade dúbia e hipócrita, a elite ansiava pela renovação social, inspirada pela
geração que havia lutado na Primeira Guerra e via no conflito um meio de
purificação, e partilhava do espírito das vanguardas, que visava um novo homem
despido de qualquer falsidade. Por estes motivos, a elite não se importava, e de fato
apreciava, quando a ralé e seus líderes impunham à força sua representatividade
sobre a sociedade em geral, mesmo que de forma violenta. Convicta de que a
história oficial dos fatos não merecia crédito por ignorar a participação dos
subprivilegiados e oprimidos, entendiam as elites que os esquecidos tinham,
finalmente, sua chance de escreverem a história (fato este que, segundo Arendt,
fascinava a ralé: a possibilidade da fama), mesmo que isso fosse promovido por
34
meio de fraudes grotescas a respeito das mais diversas áreas do campo intelectual,
do apreço à literatura clandestina e enviesada em lugar da historiografia acadêmica,
como o uso e a instrumentalização dos “Protocolos dos Sábios de Sião”, por
exemplo.
3.3 Propaganda totalitária
Embora a ralé e a elite tenham sido atraídas e aderido ao movimento
totalitário, as massas deveriam ser conquistadas por meio de propaganda, pois
mesmo que a Alemanha estivesse enfrentando diversos problemas no período entre
guerras, ainda assim tratava-se de um país de conhecida erudição, sob um governo
constitucional e que garantia a liberdade de opinião de seus cidadãos. Ocorreu que,
característica dos movimentos totalitários, quanto maior era a pressão externa a
respeito do que acontecia dentro do país, mais vigorosa era a propaganda dirigida
ao povo. O papel da propaganda estava diretamente ligado à alienação quanto ao
que sucedia no mundo exterior, e mesmo no mundo real, pois as informações
divulgadas eram baseadas em mentiras e omissões dos verdadeiros fatos. Ao
contrário, defendiam a ideia de que a própria natureza impunha com força o mover
da história, pregada como profecia quanto ao papel da raça ariana na história e seu
inevitável destino de conquista, cujos mistérios eram conhecidos do Führer, e
defendida através de comprovação cientifica quanto as ideias acreditadas pelo
movimento, como no caso das teorias médicas apresentadas pelo nazismo e que
justificaram a prática e política da eugenia e da pureza racial. Outra forma de
tornarem suas predições verdadeiras era forjar o fato predito, como a imputação da
iminente guerra aos financistas judeus, e a conseqüente aniquilação destes por
conta disso, ou no caso soviético, em que o anúncio do fim do desemprego veio
acompanhado do fim de todos os direitos aos desempregados. Tais realidades
tramadas pelos movimentos, anunciadas pelos líderes e tornadas em uma realidade
cotidiana confirmavam sua exclusividade sobre o conhecimento dos fatos e das leis
históricas que, segundo eles, regiam a natureza e a história.
Antes de tomarem o poder e criarem um mundo à imagem da sua doutrina, os movimentos totalitários invocam esse falso mundo de coerências, que é mais adequado às necessidades da mente humana do que a própria
35
realidade; nele, através de pura imaginação, as massas desarraigadas podem sentir-se à vontade e evitar os eternos golpes que a vida e as experiências verdadeiras inflingem aos seres humanos e às suas expectativas. A força da propaganda totalitária [...] reside na sua capacidade de isolar as pessoas do mundo real (Arendt, 2009, p. 402).
Por conta de um passado carregado de dificuldades então ainda presentes,
bem como a resultante atomização e individualismo gerados, as massas optaram
por acreditar em um mundo extremamente coerente, embora fictício, da propaganda
totalitária, do que enfrentar a dura realidade em que se encontravam, fruto do
resquício de amor próprio que ainda possuíam. Deste universo inventado pelo
nazismo, Arendt cita a suposta conspiração judaica mundial como o maior dos ardis
utilizado como doutrinação das massas através da propaganda. O antissemitismo
gerado da crença entre uma associação judaica com as autoridades governamentais
que, segundo a ralé, eram meros fantoches dos judeus, já era bastante comum na
Europa, apesar da assimilação dos judeus pela sociedade após a Primeira Guerra.
Entretanto, quando os nazistas passaram a selecionar os membros do partido
estudando suas genealogias, a fim de garantirem a pureza racial de seus membros e
evitarem a descendência judaica entre os seus, ou o estabelecimento de leis como
as de Nuremberg, geravam entre as pessoas um sentimento de pertencimento.
Estas políticas não somente davam aos Protocolos de Sião e a teoria nazista a
respeito da conspiração judaica um ar de verdade, mas também conferia identidade
àqueles que pertenciam a uma massa amorfa, que agora poderiam se autodefinir,
pautados na máxima de Hitler de que “o maior contraste do ariano é o judeu”,
encontrada em seu livro, Mein Kampf, e citada por Arendt. A mentira quanto a uma
organização mundial judaica já atuante no controle das nações consistiu na base
para uma contrapartida alemã, afirmando a Volksgemeinschaft, ou “comunidade
nacional”, formada por alemães e justificada pela superioridade ariana sobre todos
os povos, ideia que justificaria todas as outras ações que viriam a seguir.
36
3.4 Organização totalitária
Embora a ideologia nazista tenha emprestado muito dos preconceitos do
passado na formulação de seu mundo fictício, suas formas de organização eram
totalmente originais, e foram elas que sustentaram a impressão deste mundo como
verdadeiro. Arendt destaca a criação de organizações de vanguarda no período
anterior à tomada de poder, e que diferenciavam os simpatizantes dos membros do
partido. Enquanto o partido abrigava aqueles que demonstravam maior entusiasmo
e fanatismo pelo movimento, as organizações de vanguarda eram formadas por
simpatizantes. Clubes e associações de profissionais liberais nazistas foram criados
como cópias das já existentes, de modo que, para cada grupo de médicos ou
professores, havia sua cópia “paraprofissional” formada por admiradores do
nazismo, trazendo a imagem de que todas as esferas da sociedade estavam
representadas por seus adeptos; quando tomaram o poder, os nazistas
simplesmente substituíram as antigas associações por suas próprias.
No contato com estes grupos, os membros do partido isolavam-se da
realidade por entenderem que mesmo as pessoas comuns aderiam às ideias as
quais eles tanto defendiam com obstinação, isolando-os das inverdades destas,
entendendo-se como pioneiros de um grande movimento homogêneo; por outro
lado, o primeiro contato daqueles que ainda não participavam do movimento
acontecia por meio das organizações de vanguarda, cuja adesão não era
considerada fanática, pois estas eram formadas de pessoas comuns, simples
simpatizantes de um movimento político crescente, dando a este a aparência de
normalidade. Desta forma, as organizações enganavam e serviam como fachada
aos que estavam de fora quanto a radicalidade do movimento, enquanto, ao mesmo
tempo, iludia os mais fiéis seguidores do partido.
Por outro lado, uma freqüente transformação ocorria no seio do partido,
quando os níveis de comando eram substituídos ou rebaixados de acordo com sua
perda ou aumento de fidelidade, em constante movimentação de organizações e
lideranças. Arendt cita como exemplo a SA (tropas de assalto paramilitares) como
primeiro braço do movimento a rivalizar em militância com o partido; em seguida,
oriunda da SA, surgiu a SS, mas que logo em seguida foi separada daquela. Depois,
sob o comando de Himmler (comandante geral das Tropas de Proteção), a SS foi
37
subdividida em outras ramificações e organismos. Chamada de “hierarquia flutuante”
por Arendt, estas mudanças nos centros de poder visavam o perene controle e
fiscalização sobre todos, mesmo nos mais altos postos de comando. A natureza
militar do nazismo justificava, e mesmo facilitava, a origem de ordens superiores e
seu cumprimento sem que fossem questionadas; por outro lado, a mutação dos
focos de liderança gerava temor quanto a posição de cada um no movimento, o que
forçava seus adeptos a preferirem continuar a fazer parte dele, ao invés de se
tornarem seus opositores. Esta constante movimentação também se dava
fisicamente. As unidades não permaneciam em seus distritos de origem, e eram
transferidas com freqüência. No caso da SS, era gerida como uma gangue, temida
pela população pelos assassinatos que cometia. Estes crimes cometidos por estas
organizações eram assumidos pela liderança, e geravam cumplicidade dos que os
cometiam, bem como o sentimento de que este tipo de atitude era normal, pois todas
as ações visavam o benefício do movimento: na verdade, este sentimento dava
maior segurança aos que se entendiam pertencentes a ele do que os que não se
sabiam aceitos.
Acima de toda a organização estava o Líder, no caso, o Führer (líder) Adolf
Hitler, envolto em mistério por ter sua vida privada protegida e não divulgada,
sempre visto junto a um círculo íntimo e fechado de líderes do partido, e cuja grande
qualidade administrativa consistia na capacidade de manter todo o aparelho nazista
em constante ambiente de intrigas e movimentação de pessoal. E, uma vez
estabelecido o domínio nazista, sua vontade passou a ser lei, e sua imagem e
pessoa, a razão de ser de todo o movimento. Sua leitura do mundo e da situação
política era o que o povo obtinha como informação, mas também como opinião; por
outro lado, dentro do partido, suas ordens eram inquestionáveis, e rapidamente
alcançavam todas as alas e segmentos do movimento. O líder se considerava
responsável por quaisquer crimes cometidos por seus comandados, alegando serem
necessários para o destino final de sua visão da história, ao mesmo tempo em que,
protegidos pela vontade do Führer, membros do partido e militares do nazismo eram
capazes dos mais horrendos crimes, sem que se sentissem culpados por isso (fato
este que, mais tarde, Hannah Arendt trabalhará em sua obra Eichmann em
Jerusalém, e que será tratada mais adiante): qualquer explicação que se queira a
38
respeito do que estava sendo feito deveria ser feita diretamente ao líder (embora
isso fosse impossível), pois seus comandados simplesmente obedeciam às ordens.
Junto a esta subserviência havia um tipo de culto ao líder, cuja imagem
representava todo o movimento, e cujas aparições e discursos eram feitos junto a
uma grande estrutura, excêntrica e impressionante pelo tamanho e organização da
massa e do exército diante do Führer e sua fala, que a todos impressionava e
convencia. Todo este aparato tornava pequena cada individualidade, assustada
diante da grandiosidade do movimento, que em cerimônias como as verificadas no
filme O Triunfo da Vontade, de Lief Riefenstahl, mostrava sua força e poder.
Segundo Arendt, o nazismo emprestava das sociedades secretas a sua forma, pois
era envolto em mistérios, liderança centralizada, reuniões semelhantes a
ajuntamentos religiosos e ideais conspirativos; as diferenças estavam no fato de que
os propósitos nazistas nunca ocultaram seus planos (deportação de não arianos e
extermínio de “raças inferiores”) e que, diferentemente das sociedades secretas, a
adesão ao partido não estava limitada a um pequeno grupo, e sim aberta a todos.
Desta forma, identifica-se no totalitarismo tanto o seu perfil de sociedade secreta, no
tocante a sua estrutura e forma de agir, quanto de uma seita extremista, tornando os
homens dispostos a matar e a morrer pela ideologia.
Arendt destaca, no entanto, certa combinação entre cinismo e credulidade em
meio aos adeptos do movimento. Credulidade por que acreditavam sem reservas
nas palavras que lhes eram dirigidas pela propaganda nazista, certa de que todos
acreditariam em suas mensagens, mesmo que trouxessem as piores notícias, ou
que disseminassem mentiras; contudo, uma vez descoberta a mentira, o povo agia
com cinismo, alegando saber que a mentira não passava de uma inteligente
estratégia política. E mesmo a propaganda nazista referente a um “Reich de mil
anos” e de conseqüências que seriam verificáveis em longo prazo; sua veracidade e
cumprimento se tornavam, assim, inacessíveis e incapazes de se submeter à prova
histórica. Os níveis de credulidade e cinismo, no entanto, eram diferentes entre os
simpatizantes do partido e o alto escalão. Enquanto aqueles apresentavam maior
simpatia e apoio ao movimento, os líderes agiam com cinismo justamente por
conhecerem a mentira desde o seu nascedouro, a saber, como ordem do Führer:
Eram testemunhas não só das inverdades transformadas em política pelo líder, mas
já haviam visto a habilidade de Hitler em mentir mesmo antes da tomada de poder, e
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assim iludir opinião pública e autoridades diversas. Mesmo que não acreditassem no
que Hitler dizia, sua capacidade de enganar, ganhar apoio popular e mobilizar as
massas tornava seu círculo próximo em seu grande admirador.
3.5 Totalitarismo no poder
Uma vez que o regime totalitário toma o poder, se vê diante da realidade de
que sua política expansionista e sua pretensão de domínio mundial estão, a
princípio, iniciando-se em apenas um país, limitado por suas fronteiras e pela
suposta consideração a respeito da soberania das demais nações. Para que os
objetivos não cessassem após a conquista da máquina do governo, o movimento
implementou uma espécie de “revolução permanente” (termo cunhado por Trotski,
mas de diferente aplicação no caso bolchevista), levado a cabo pelos nazistas
através de incessante seleção racial, pois sua sobrevivência dependia da
manutenção do mundo tal qual fora inventado pela ideologia. A subida ao poder
estabeleceu uma base de onde a conquista global se iniciaria, enquanto os campos
de concentração serviam de experimentos para o que se pretendia com os povos
conquistados, ao mesmo tempo em que sua polícia garantia que toda a farsa fosse
mantida como realidade. De todos os organismos totalitários, a polícia é a que detém
a maior simpatia dos líderes, e é o grande instrumento de terror, primeiramente
procurando supostos ou efetivos inimigos do regime e mobilizando a população
nesta tarefa (criando assim uma atmosfera de completo medo e desconfiança entre
pessoas próximas), para, em seguida a subida ao poder, estabelecer o domínio total:
eliminados os inimigos “suspeitos”, perseguiam-se os adversários “objetivos”, como
os judeus, por exemplo. É o caráter de investigação e análise de informações
secretas que dá à polícia seu status de amedrontamento e importância; sua
intimidade e relação com os círculos ligados ao líder máximo a torna tanto
conhecedora quanto executora das decisões tomadas pelo alto escalão.
É curioso notar que, no começo, o nazismo conquistou a simpatia de outras
nações, e já em 1936 não havia mais nenhum foco de resistência interna contra o
partido. Essas vitórias políticas não garantiram o fim do uso de terror e violência,
mas, ao contrário, mantinham sua estratégia quanto aos judeus e supostos inimigos
do regime (como a promulgação das Leis de Nuremberg, em 1935, por exemplo). O
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movimento nazista mostrou seu total desrespeito às leis internacionais, coerente
com sua doutrina de expansão, e também às suas próprias leis, criando um Estado
gerido de maneira informal, com normas que eram aprovadas e, logo depois,
reformuladas ou ignoradas. Arendt cita as palavras de um dos juízes dos
Julgamentos de Nuremberg, que reconhecia então a convivência de dois governos
na Alemanha “[...] A forma da República Alemã foi mantida durante certo tempo e
constituía o governo extensivo e visível. Mas a verdadeira autoridade estatal estava
fora e acima da lei, e repousava [...] no Partido Nazista” (Arendt, 2009, p. 445).
Mesmo os líderes, muitas vezes, não sabiam sua respectiva hierarquia de
autoridade: esperava-se que os membros ativos do movimento soubessem
interpretar inclusive comandos codificados ou insinuados. Como meio de ocultar o
partido como verdadeira fonte de controle, os nazistas duplicavam diversos órgãos
da máquina administrativa, de forma que para cada nível administrativo do Estado,
havia duas unidades responsáveis por ele, sendo uma anterior a tomada do poder,
já pertencente ao Estado e destituída de seus antigos poderes, e outra nova,
comandada por líderes do partido; para o governo totalitário, quanto mais oculto
estiver determinado setor, mais poderoso seria. Arendt cita a fundação de um
instituto em Munique para o estudo da causa judaica e a criação de uma biblioteca
com os tesouros tomados dos judeus, e que foi sucedido por outro instituto, criado
com a mesma finalidade, em Frankfurt, tornando obsoleto o seu antecessor.
Entretanto, assim que todo o material e arquivo judaicos foram reunidos, nenhuma
das duas instituições os recebeu, pois foram mandados para Berlim e entregues a
uma divisão da Gestapo (polícia secreta nazista), também encarregada pelo estudo
da causa judaica, e chefiada por Adolf Eichmann (tenente-coronal da Gestapo
encarregado pela logística de deportação dos judeus para os campos de
concentração): as duas organizações em Munique e Frankfurt haviam sido usadas
como fachada para a verdadeira fonte de autoridade.
O habitante do Terceiro Reich de Hitler não apenas vivia sob a simultânea e freqüentemente contraditória autoridade de poderes rivais, tais como a administração estatal, o partido, a SA e a SS, como também nunca sabia ao certo, e nunca se lhe dizia explicitamente, qual autoridade deveria considerar acima de todas as outras (Arendt, 2009, p. 449).
O mistério a respeito da origem das ordens, somado à troca contínua de
poder e a substituição das lideranças, visava não apenas limitar a liberdade de todos
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os membros do movimento, continuamente fiscalizados e espionados, como também
restringir completamente qualquer espontaneidade ou ato livre dos homens,
confrontados não com uma liderança hierárquica (cuja existência, na verdade,
inexistia por conta da perene troca de órgãos administrativos), e sim com a
mensagem direta do Führer, que escolhia e selecionava as unidades e grupos para
determinadas tarefas.
Com a proximidade do fim da guerra, porém, algumas das organizações e
ordens já não eram como antes. Somados a multiplicação de órgãos e cargos
estavam os custos que os mesmos acarretavam – a fidelidade de muitos era
comprada por meio de cargos. Também os campos de concentração e o extermínio
de pessoas que eram trabalhadores em regime de escravidão só aumentavam os
gastos e diminuíam a capacidade de produção. Houve alertas da Wehrmacht
(Forças Armadas Alemãs no período do nazismo) ao partido quanto ao descaso
deste a respeito de iniciar uma guerra sem considerar os investimentos e outros
setores do Estado. Até mesmo muitos dos altos funcionários nazistas demoraram a
compreender que a chamada “Solução Final” dos judeus tinha primazia nos planos
do nazismo, e que deveria ser levado a cabo, independentemente de quão oneroso
fosse. Ao final, o exclusivo poder sobre os assassinatos de judeus que pertencia à
SS foi deixado de lado, e qualquer soldado poderia cumprir e executar esta ordem.
Outro projeto, dentre os mais importantes do nazismo, era a purificação da
raça. Mas, segundo Arendt, não a seleção dentre o povo alemão, mas uma nova
raça oriunda da SS, cujos membros eram selecionados meticulosamente por
Himmler e que deveriam apresentar características físicas coerentes com o ideal de
indivíduo ariano especificado pelo partido, além de não possuir em sua árvore
genealógica ascendência judaica ou de outras etnias consideradas inferiores. O
lema “o direito é aquilo que é bom para o povo alemão”, outrora usado como slogan
da propaganda de massa, foi substituído pela máxima “o direito é aquilo que é bom
para o movimento”. Os discursos de Hitler em nome da antiga revolta alemã contra
as restrições e imposições de Versalhes, e de o que o nazismo almejava
reconquistar os territórios perdidos pela Alemanha, como compensação e pena pela
derrota na Primeira Guerra, para dar-se por satisfeito eram, na verdade, o uso da
mentira como instrumento político. O pacto de não-agressão junto a União Soviética
e a opinião contrária à conquista de povos estrangeiros são exemplos da dicotomia
42
feita entre o chanceler do Reich, homem público e carismático representante das
massas, e o líder do movimento, certo de seus planos e ardis que careciam da
dominação do povo e da máquina estatal. Ao contrário, uma vez que os países ao
leste foram ocupados, os nazistas introduziram leis que puniam os cidadãos destas
nações que se mostrassem contrários ao governo do Terceiro Reich, o que mostra a
megalomania do movimento que considerava todo o mundo como território a ser
ocupado e subjugado por seu poder legislativo. E mesmo os programas de saúde
específicos para os alemães apontavam não para planos governamentais, mas para
além destes, o cumprimento de programas raciais e expansionistas do movimento. É
aqui que a proposta de Hannah Arendt a respeito de um estudo que pensasse o
totalitarismo não como uma mera ditadura, e sim como um novo sistema de governo,
não ligado ao poder apenas, mas a doutrinas ideológicas e seu ineditismo no campo
político e na história da humanidade.
A verdade é que os líderes totalitários, embora estejam convencidos de que devem seguir consistentemente a ficção e as normas do mundo fictício estabelecidas durante a luta pelo poder, só aos poucos descobrem toda a implicação desse mundo irreal e de suas normas. A fé na onipotência humana e a convicção de que tudo pode ser feito através da organização leva-os a experiências com que a imaginação humana pode ter sonhado, mas que a atividade humana nunca realizou (Arendt, 2009, p. 486).
A experiência e aplicação absoluta do totalitarismo se viram nos campos de
concentração. Se dentro da Alemanha o povo encontrava-se alienado, crente em
sua salvação e absorto pelas palavras e promessas do nazismo, do lado de fora, as
nações custavam a acreditar que algo de monstruoso pudesse estar realmente
acontecendo. A originalidade dos campos de extermínio, no tocante ao seu grau de
malignidade e desgraça humanas jamais vistas antes, impediu que todos, alemães
ou não, acreditassem que o mal em seu máximo grau (ou no grau mais elevado já
provado pelo homem) pudesse ser provável. Quando Arendt diz que “os homens
normais não sabem que tudo é possível”, ela aponta para a dificuldade da razão dos
homens comuns que se negam a aceitar a loucura e o absurdo como reais,
tornando-se assim cúmplices de todo o sistema.
Essa atmosfera de loucura e irrealidade, criada pela aparente ausência de propósitos, é a verdadeira cortina de ferro que esconde dos olhos do mundo todas as formas de campo de concentração. Vistos de fora, os campos e o que neles acontece só podem ser descritos com imagens extraterrenas,
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como se a vida fosse neles separada das finalidades deste mundo (Arendt, 2009, p. 496).
E mesmo os próprios prisioneiros tinham grande dificuldade em realmente
acreditar que tudo o que viam e viviam era, de fato, real, e que tudo não passava de
algo ilusório, um equívoco ou um mero pesadelo. A explicação dos sobreviventes
lhes parecia inacreditável justamente porque se assemelhavam a histórias de
pessoas que vieram de um estado de morte em que sua compreensão de si mesmo
e do mundo em que viviam ficaram, de repente, em suspenso; ao trazer a narrativa
do que lhes havia ocorrido, os relatos pareciam ter surgido, tanto a eles quanto aos
seus ouvintes, de uma realidade além da nossa.
O domínio total do nazismo se deu nos campos de concentração. Tudo o que
há de espontâneo, livre e próprio da personalidade de cada pessoa foi reduzido a
uma mesma gama esperada de reações de todos os prisioneiros, como uma
multidão de igual identidade, cujos horrores testemunhados os paralisava, tornando-
os cobaias de uma experiência macabra, cujas ações eram esperadas quando
sujeitados a determinados estímulos, como nos experimentos de Pavlov com os
cães, embora desta vez fossem utilizados seres humanos, mas cuja pessoalidade
era obviamente considerada semelhante e tornada descaracterizada como a de
meros animais. Milhares de pessoas eram transportadas por meio de trens,
apertadas em vagões de gado, e quando chegavam aos campos, tinham seus
pertences tomados, seus cabelos raspados, eram vestidos com uniformes de
prisioneiros e posteriormente seguiam para os trabalhos forçados; todos os seus
direitos jurídicos haviam sido eliminados. Em seguida, tinham sua moralidade
extinta, uma turba de homens solitários, esquecidos por tudo (direitos políticos,
participação e iniciativa no campo social) e por todos (seus destinos eram incertos
para familiares), sem nenhuma esperança de salvação. Os prisioneiros eram
tratados como se já estivessem mortos, e cujo destino não interessava a mais
ninguém; viviam um “prolongado processo de morte”, e quando ela chegava por
meio de fuzilamentos ou câmaras de gás, suas vítimas seguiam as instruções de
seus carrascos sem demonstrar a menor resistência. Por fim, até a morte lhes era
roubada, tendo seus corpos cremados junto aos de outros inúmeros desconhecidos,
não dando aos parentes o direito de uma cerimônia fúnebre digna.
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Os campos de concentração também chamam a atenção por serem onerosos
e praticamente imprestáveis enquanto núcleos de produção, sendo verdadeiramente
rentáveis somente para seus supervisores e responsáveis. Sua função era o controle
absoluto sobre seus prisioneiros e o extermínio dos mesmos através do treinamento
dos membros da SS. Nos campos acontecia a transformação de meros militares em
cumpridores cabais da vontade totalitária, homens transformados pela ideologia em
carrascos, perfeitos membros daquilo que se esperava de um verdadeiro ariano em
conformidade com as políticas e pensamentos da SS. A irrealidade era tal a ponto
de que tanto os prisioneiros quanto os guardas apresentavam semelhante alienação,
cada qual previsto para o papel que desempenhava naquelas fábricas de morte.
Arendt cita a obra de David Rousset, Les Jours de Notre Mort,em que o escritor,
sobrevivente de um campo de concentração, conta que “tanto a vítima como o
carrasco são ignóbeis; a lição dos campos é a irmandade da abjeção”. Homens
comuns, que nunca haviam participado de uma guerra ou apresentado um histórico
violento eram dirigidos para agirem com frieza em seus trabalhos de campo; muitos
eram meros policiais, destacados para as operações de extermínio, as quais
consideravam piores do que a luta no front. Embora os projetos para melhorar a
aparelhagem de execuções, realizado por médicos e engenheiros, visasse poupar
os homens da SS dos traumas de seus assassinatos, Arendt cita o elogio feito por
uma testemunha de uma execução, louvando o idealismo dos membros da SS
traduzido em centenas de mortos sem nenhum remorso.
O fato de que todos os homens, vítimas ou carrascos, puderam se tornar
alienados nos e por meio dos campos de concentração aponta para a conclusão e
intenção final do governo totalitário, ou seja, a superfluidade humana. Os homens já
não possuem valor enquanto indivíduos livres e espontâneos: seus destinos
dependem da concepção de mundo da ideologia do movimento, quer sejam
contrários a ele, quer não. Tampouco têm suas individualidades e dignidade
consideradas, pois são tornados, por conta da superfluidade, em coisas. Diz Arendt
que “enquanto todos os homens não se tornam igualmente supérfluos – e isso só se
consegue nos campos de concentração –, o ideal do domínio totalitário não é
atingido” (Arendt, 2009, p. 508). Em suma, mais do que transformar a sociedade e
seus processos políticos, o totalitarismo deseja a transformação da natureza
humana: se esta é fundamental para a criação do novo e necessária para a
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participação livre na construção da história dos homens, o totalitarismo será
contrário a ela justamente por se entender exclusivo intérprete e executor do
caminhar histórico, sendo que, nos campos de concentração, toda liberdade e
potência criadora do homem se reduz à cega submissão. Este ineditismo do
totalitarismo, segundo Hannah Arendt, aponta para a impossibilidade jurídica de
julgamento dos resultados do nazismo por conta de sua natureza incomum:
Tentamos compreender certos elementos da experiência atual ou passada que simplesmente ultrapassam os nossos poderes de compreensão. Tentamos classificar como criminoso um ato que esta categoria jamais poderia incluir. Porque, no fundo, qual o significado do conceito de homicídio quando nos defrontamos com a produção de cadáveres em massa? (Arendt, 2009, p. 491).
Outro caráter que Hannah Arendt chama a atenção é para o surgimento do
“mal radical”, a malignidade humana que alcança desgraças jamais imaginadas ou
vistas durante a história, e representada no descaso dos líderes e membros do
totalitarismo a respeito de suas próprias vidas:
[...] os regimes totalitários descobriram, sem o saber, que existem crimes que os homens não podem punir nem perdoar. Ao tornar-se possível, o impossível passou a ser o mal absoluto, impunível e imperdoável, que já não podia ser compreendido nem explicado pelos motivos malignos do egoísmo, da ganância, da cobiça, do ressentimento, do desejo do poder e da covardia; e que, portanto, a ira não podia vingar, o amor não podia suportar, a amizade não podia perdoar. Do mesmo modo como as vítimas nas fábricas de morte ou nos poços do esquecimento já não são ‘humanas’ aos olhos de seus carrascos, também essa novíssima espécie de criminosos situa-se além dos limites da própria solidariedade do pecado humano (Arendt, 2009, p. 510).
Arendt destaca que a tradição filosófica nunca reconheceu um mal radical;
embora Kant tenha considerado o mal com esta natureza em sua obra A religião
dentro dos limites da simples razão, ele o explicava como uma opção pelo que é
imoral, ao invés de considerar e escolher a lei moral, enquanto Arendt o entende
como a crença na superfluidade e, conseqüentemente, na descartabilidade dos
homens.
Hannah Arendt conclui a obra Origens do Totalitarismo apontando para o
perigo do isolamento humano e seus efeitos políticos. Embora os regimes totalitários
reforcem, utilizem e perenizem este isolamento em seu favor, não são os
responsáveis por sua origem. A massificação verificada na Revolução Industrial, o
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trabalho como única atividade e preocupação humana e sua conseqüente ausência
como ator político tornaram os homens em uma turba de solitários, cujo poder
político se dá na atuação com seu próximo e no consenso com este, ou seja, nas
relações interpessoais e na liberdade garantida por lei, que limita e estabelece as
regras das relações. Em suma, a liberdade política garante a liberdade de um
começo, inerente à condição humana; cada homem representa o início de algo –
pensamento, participação, ação – reconhecido e garantido por meio do livre contato
entre os homens.
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CAPÍTULO 4: EICHMANN EM JERUSALÉM
Em maio de 1960, Otto Adolf Eichmann, alemão e um dos principais
organizadores do transporte e deportação de judeus para os campos de
concentração, onde seria posta em prática a chamada “Solução Final” nazista para o
povo judaico, foi preso em Buenos Aires (para onde havia fugido após a derrota na
Alemanha na Segunda Guerra, munido de documentos falsos da Cruz Vermelha
Internacional, e vivido com uma identidade falsa) por meio de uma operação do
Mossad (serviço secreto do Estado de Israel) e levado a Jerusalém para ser julgado
por crimes contra a humanidade.
O julgamento de Adolf Eichmann foi iniciado em abril de 1961. A revista The
New Yorker enviou Hannah Arendt a Israel para fazer a cobertura do processo. Em
1963, a filósofa lançaria seu livro Eichmann em Jerusalém, relatando suas
impressões sobre toda a investigação que condenou Adolf Eichmann à morte (a
única pena capital da história do Estado de Israel) por enforcamento; o livro,
inicialmente, tinha a pretensão de ser uma cobertura jornalística.
Antes das sessões em Jerusalém, esperava-se encontrar em Eichmann um
homem cuja maldade pudesse justificar a ideia que se fazia de um oficial nazista.
Para surpresa de todos, o acusado mostrou-se um homem comum, sem traços de
sadismo, com uma vida familiar normal, e até mesmo exemplar. Não apresentava
um intelecto privilegiado; ao contrário, sua história revela um homem muitas vezes
vacilante, com pouca instrução e de conhecimento geral limitado. É justamente desta
normalidade que surge a assombrada questão: como poderia tal homem ser capaz
de cometer e consentir com os crimes nazistas contra os judeus? Eis o percurso que
Hannah Arendt fará a respeito do homem Eichmann e de seu destino.
Além disso, Eichmann acabará por representar o arquétipo do homem
debaixo do governo totalitário. Sua forma de pensar será fundamental para entender
como sistemas totalitários puderam alcançar o poder e ludibriar as massas, tendo
forte apoio destas.
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4.1 Carreira
Adolf Eichmann nasceu em 1906 em Solingen, cidade localizada na face
oeste da Alemanha. Seu pai era proprietário de uma mineradora, e matriculou o filho
na escola secundária e em um curso vocacional para engenharia, não tendo
Eichmann concluído seus estudos em nenhum deles (embora tenha sempre se
identificado como engenheiro de construção em seus documentos oficiais).
Trabalhou por dois anos com o pai em sua mineradora, e posteriormente como
vendedor de uma companhia austríaca. Dois anos depois, com a ajuda de um
parente distante, conseguiu uma vaga de vendedor viajante na Companhia de Óleo
a Vácuo de Viena, por meio do contato com um empresário judeu na
Tchecoslováquia, (Eichmann, anos depois, ajudaria a família do empresário a
emigrar para a Suíça) onde permaneceu por cinco anos, até ser demitido, em 1932,
ano em que viria se filiar ao Partido Nacional Socialista (nazista), por sugestão de
um amigo, Ernst Kaltenbrunner, que também se tornaria oficial nazista (embora de
patente superior à de Eichmann). O fato de titubear entre a filiação ao partido e a
adesão a uma Loja Maçônica mostra a falta de perspectiva e direção em que
Eichmann se encontrava: alertado por Kaltenbrunner sobre a impossibilidade de
conciliar o Partido e a maçonaria, acabou optando por aquele.
De toda forma, não entrou para o Partido por convicção nem jamais se deixou convencer por ele – sempre que lhe pediam para dar suas razões, repetia os mesmos clichês envergonhados sobre o Tratado de Versalhes e o desemprego; antes, conforme declarou no tribunal, ‘foi como ser engolido pelo Partido contra todas as expectativas e sem decisão prévia. Aconteceu muito depressa e repentinamente’. Ele não tinha tempo, e muito menos vontade de se informar adequadamente, jamais conheceu o programa do Partido, nunca leu Mein Kampf (Arendt, 1999, p. 45-46).
Em 1934, decidiu candidatar-se a uma vaga no Serviço de Segurança
Reichführer, a SS, em Berlim. Começou em um departamento de pesquisa sobre a
maçonaria, sendo depois transferido para um recém-criado departamento sobre os
judeus. Informou-se sobre assuntos judaicos, sendo considerado posteriormente
como um “perito”; a leitura da obra O Estado Judaico, de Theodor Herzl,
impressionou-lhe de tal forma que passou a trabalhar na ideia de uma deportação
dos judeus para uma região onde pudessem desfrutar de alguma autonomia (como
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em Madagascar, por exemplo – mas este seu plano nunca foi realmente considerado
pelas autoridades nazistas). Eichmann visitou a Palestina em 1937, a fim de verificar
a possibilidade de emigrar os judeus alemães para o Oriente Médio, embora não
tenha sido permitida a sua entrada na região, administrada pelos ingleses na época.
Em 1938, Eichmann foi enviado para Viena, a fim de organizar uma emigração
forçada dos judeus da Áustria. Ele desenvolveu um projeto que facilitava aos judeus
adquirir seus passaportes para serem deportados, embora, durante o processo,
tivessem seus bens e dinheiro confiscados por cada etapa pela qual passavam para
adquirirem seus documentos. Em seguida, negociou com organizações judaicas
estrangeiras para financiarem a saída e recepção dos judeus da Alemanha, que
eram deportados com pouquíssimo dinheiro e sem nenhuma cidadania, para guetos
ou campos de concentração e trabalhos forçados no leste europeu; em 1941,
Eichmann foi informado por seu superior, Reinhard Heydrich, de que Hitler havia
ordenado o extermínio físico dos judeus, e logo passaria em revista aos campos de
extermínio para discutir questões a respeito do transporte de prisioneiros e a
capacidade de execução dos campos.
Em 1942, Eichmann participa da Conferência de Wannsee, reunião em que
as ordens de Hitler a respeito do extermínio físico dos judeus – a chamada “Solução
Final” – foi discutida em seus termos administrativos e legais pela liderança nazista,
como transporte de pessoas, preenchimento de relatórios por parte dos judeus
declarando seus bens para que, posteriormente, o Reich se apoderasse dos
mesmos, bem como detalhes sobre a forma de assassinato. Por sua experiência na
Áustria, Eichmann havia sido chamado à conferência para também planejar esta
nova etapa da deportação de judeus. Depois disso, Eichmann foi transferido para
Budapeste, onde ficou encarregado de transportar todos os judeus húngaros para os
campos (o governo húngaro, declaradamente antissemita, apoiou os nazistas na
esperança de conquistar territórios de países vizinhos, e mandar para lá todos
judeus de seu país). Segundo Hannah Arendt, “em menos de dois meses, 147 trens,
levando 434.351 pessoas em vagões de carga lacrados, cem pessoas por vagão,
deixaram o país, e as câmaras de gás de Auschwitz mal conseguiram dar conta
dessa multidão” (Arendt, 2009, p. 158).
Perto do final da guerra e da iminente derrota alemã, Himmler ordenou
(contrariamente à vontade de Hitler) que os campos de extermínio fossem
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desmontados, e deu ordens a seus subordinados de que tratassem bem os judeus,
na esperança de negociar com os aliados um possível tratado de paz. Eichmann,
que havia ordenado uma marcha de judeus de Budapeste até a fronteira com a
Áustria (o sistema de transporte havia sido bombardeado) recebeu a ordem
diretamente de Himmler, mas seu senso de “dever” o orientava a seguir com as
ordens da Solução Final, mesmo contrariando as diretrizes de Himmler, pois o
extermínio dos judeus era a vontade (com peso de lei) do Führer. Quando,
finalmente, o Exército Vermelho chegou à Hungria, Eichmann voltou a Berlim, sendo
retirado do setor de “assuntos judeus” para outro, de “luta contra as igrejas”. Com a
chegada das tropas aliadas, a falência do nazismo e a morte de Hitler, Eichmann
passou a viajar com documentos falsos, até chegar a Argentina em 1950, vivendo
com identidade falsa; dez anos depois, em Buenos Aires, foi raptado pelo Mossad e
levado a julgamento em Jerusalém.
4.2 O homem Adolf Eichmann
Adolf Eichmann tinha uma fama que o precedia. Porém, durante as sessões
em Jerusalém, o homem que havia sido conivente e cúmplice de horrendos crimes,
agora surpreendia a todos com sua pessoa ordinária, absolutamente comum e
isenta de quaisquer traços que pudessem taxá-lo como um homem sádico, perverso
e de irresoluto ódio aos judeus. Eichmann foi observado por psicólogos durante a
prisão em Israel e considerado absolutamente normal, com uma vida familiar
inclusive “desejável”, e de ideias “positivas”, segundo as palavras de um capelão que
o visitara em sua cela. Hannah Arendt o descreve como um homem pouco
inteligente, cuja memória o traía quando questionado sobre algum fato levantado
pelo tribunal, e de afirmações bastante contraditórias. Não bastasse, disparava
frases prontas e clichês – “sua incapacidade de falar estava intimamente relacionada
a sua incapacidade de pensar” - diz Arendt a respeito de Eichmann; sua
incapacidade de colocar-se no lugar do outro, ou seja, de tentar compreender o
mundo a partir de outro ponto de vista, o impedia inclusive de compreender o que os
juízes lhes perguntavam. Defendia-se por nunca ter matado um judeu sequer, mas
gabava-se por ser um fiel cumpridor de ordens (ordens estas que eram,
basicamente, o envio de judeus para guetos e campos de concentração, onde
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seriam executados), fato este que destacava sua alienação perante o mundo
exterior, sendo incapaz de pensar por si mesmo ou fazer uma crítica aos crimes
explícitos que assistiu e consentiu enquanto oficial da SS. E esta era a sua defesa:
não poderia ser incriminado por ter cumprido ordens; sentia sua consciência pesar
somente quando não fazia o que lhe ordenavam: uma vez que as palavras de Hitler
tinham força de lei, não poderiam ser desobedecidas.
Eichmann era admirador confesso de Hitler, pois admirava o fato de o Führer
ter começado como cabo de esquadra do exército alemão e terminado como líder de
uma nação; esta admiração destaca um forte traço da personalidade de Eichmann, a
saber, a sua ambição e o seu desejo pelo sucesso. Oriundo da classe média,
considerado o membro déclassé de sua família, constantemente embaraçava-se por
não ter alcançado melhor posição social ou hierárquica na SS. Não havia
completado os estudos, trabalhara nos últimos anos como vendedor viajante e,
quando estava desempregado e fracassado, viu na carreira que o nazismo oferecia
uma forma de recomeçar sua vida. Mesmo durante interrogatório à polícia em
Jerusalém, Eichmann desculpava-se por não ter alcançado melhor patente na SS,
chamava Himmler todo o tempo por seu posto (Reichführer SS) e se sentia
incomodado com documentos e relatos feitos por pessoas de postos hierárquicos
superiores ao seu, dando a entender que ele próprio seria capaz de melhor produto
e, conseqüentemente, merecedor de melhor posição. Para ele, a Conferência de
Wannsee havia sido mais importante por colocá-lo junto a grandes autoridades do
Reich do que necessariamente pelo que havia sido discutido e planejado durante a
reunião. Mesmo assim, sempre fora tratado pela elite da SS como membro de uma
classe social inferior, o que constantemente lembrava com tristeza, ou mesmo
situações vexatórias e constrangedoras em que havia se envolvido em reuniões
sociais, embora não demonstrasse o mesmo sentimento quando era contrastado
com sua participação na Solução Final.
Esta incapacidade de julgar os seus atos, tampouco os de qualquer pessoa
aponta para a alienação de Eichmann e a completa suspensão de sua consciência.
Se os clichês e frases prontas satisfaziam suas ponderações e, em sua opinião,
atendiam às perguntas feitas durante o julgamento, e se sua memória era rápida em
trazer à tona acontecimentos ligados ao seu curso na SS, mas deficiente para
lembrá-lo de tomadas de decisão colocadas em questão pelo tribunal, e por fim,
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incapaz de condoer-se com o terror do qual fez parte, e não demonstrar nenhum
traço de arrependimento ou culpa, é o que associa Eichmann ao conceito de
banalidade do mal. Seu distanciamento da realidade o apresenta como sujeito de
massa, já doutrinado e alinhado ao pensamento dos homens que “não se importam
se eles próprios estão vivos ou mortos, se jamais viveram ou se nunca nasceram”
(Arendt, 2009, p. 510). E isso é confirmado por Eichmann, quando justificou sua
completa submissão às ordens como kadavergehorsam, ou “obediência cadavérica”,
de um soldado que não questiona seus superiores. A sua leitura sobre si mesmo
apontava para um cidadão respeitador das leis de seu país, e inclusive leitor e
praticante da filosofia kantiana e seus imperativos categóricos morais que, segundo
o próprio Eichmann, seriam substituídos em seu proceder quando se envolveu com
a Solução Final, e passou a não ser mais senhor de seus atos. Não obstante,
quando perguntado pelos juízes se não havia sido desrespeitador das regras ao
ajudar um primo e um casal de judeus em Viena, alegara ter confessado esses
deslizes aos seus superiores.
Essa atitude intransigente em relação ao desempenho de seus deveres assassinos condenou-o mais do que qualquer outra coisa aos olhos dos juízes, o que era compreensível, mas a seus próprios olhos era exatamente ela que o justificava (Arendt, 1999, p. 154).
A comparar-se com Pôncio Pilatos, descrevendo que assistira aos grandes
líderes do Terceiro Reich tomar as decisões sobre os caminhos que a Solução Final
tomaria, estando ele próprio isento disso, Eichmann insistia em que não poderia ser
acusado por ter matado ou ordenado a execução de homens e mulheres nos
campos de concentração, pois o que fizera desde o começo foi o cumprimento de
ordens, e apelava para a virtude que havia nisso. Eichmann tornara-se
completamente inconsciente de seus atos, e é aí que reside a banalidade do mal, ou
seja, por que ocorre sem que tenha intenção maligna, de forma trivial, fruto de um
completo lapso do juízo. Para Hannah Arendt, o mais assustador em meio a todo o
processo é justamente o fato de não só Adolf Eichmann, mas todos os que atuaram
de alguma forma em prol do holocausto, serem pessoas absolutamente normais,
sem traços ou algo que as destacassem como portadoras de um espírito assassino
e cruel. E por isso, o livro Eichmann em Jerusalém ajudou a autora a “compreender
o processo mental em jogo naqueles que se transformaram de cidadãos comuns em
53
pessoas que participaram ativamente no assassinato em massa de outros cidadãos”
(Fry, 2009, p. 45), dos quais Eichmann representa um tipo.
4.3 A massa alienada
Uma das defesas de Eichmann a respeito de sua inocência era de que a
observação das leis de seu país e o cumprimento de seu dever é o que o levara ao
tribunal. Ele “contou que o fator mais potente para acalmar a sua consciência foi o
simples fato de não ver ninguém, absolutamente ninguém, efetivamente contrário à
Solução Final” (Arendt, 1999, p. 133). Esta era a sua realidade, e esta era a
realidade de seus semelhantes. Se em Origens do Totalitarismo, Hannah Arendt cita
o bloqueio que a ideologia totalitária causara na população, que aceitava o Führer
como único porta-voz do que ocorria no exterior, Eichmann confirma esta visão,
alegando que “nenhuma voz se levantara no mundo exterior para despertar sua
consciência, e que era tarefa da acusação provar que não era assim, que havia
vozes que ele poderia ter ouvido” (Arendt, 1999, p. 142). Esta posição ilustra a
marca do totalitarismo em privar as pessoas de sua participação política e o pleno
desempenho de suas faculdades, apresentando suas opiniões dentro de um sistema
que proteja o livre acesso à informação, bem como assegure a liberdade de seus
cidadãos. Ao trazer e impor suas crenças raciais e políticas para dentro da
Alemanha, disseminando-as por meio de mentiras e do terror, todos os que se
encontravam debaixo desta realidade tenderam a perder seus vínculos com a
realidade, e quando o crime passou a ser lei (e no caso de Eichmann, possibilidade
de promoção e sucesso profissional), as massas enganadas seguiram a ordem de
um mundo fictício que lhes era apresentado como real e coerente.
[...] os regimes totalitários não produzem necessariamente monstros. O que eles freqüentemente engendram seriam pessoas incapazes de pensar por si mesmas e incapazes de compreender a imoralidade de suas ações, visto que tudo o que faziam era sancionado pela lei e apoiado pelo regime vigente (Fry, 2009, p. 45).
Em busca de um monstro, Eichmann ofereceu sua personalidade de homem
de massa próprio de seu tempo, desconexo da participação política e alienado sobre
o mundo ao seu redor. A ele bastava verificar que a imensa maioria seguira as
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palavras de Hitler, e que isso era suficiente para justificar que estava no caminho
certo. O niilismo que Eichmann apresenta antes de entrar para a SS em relação a
vida e a si mesmo, e sua única e constante preocupação com sua sobrevivência
profissional e carreira o colocam no mesmo patamar de seus concidadãos.
Por outro lado, isso não isenta Eichmann ou aqueles que participaram de uma
forma ou de outra do extermínio e assassinatos da Segunda Guerra. Hannah Arendt
discorda de uma interpretação que chame a todos de culpados, pois segundo ela, a
culpa universal isenta os verdadeiros culpados; Arendt também rechaça a
interpretação de sua tese que entende um “Eichmann em potencial” dentro de cada
um, bastando apenas ser colocado nas mesmas situações totalitárias para emergir:
Eichmann era totalmente responsável por seus atos, pela insensibilidade em
perceber o mal ao seu redor e de não abdicar de suas funções em nome de um
dever kantiano que ele alegava conhecer, bem como da população que, embora
tenha protestado contra as execuções do programa T-4, não teve o mesmo ânimo
para denunciar, ou mesmo se espantar diante de semelhante horror que era repetido
nos campos de extermínio.
[...] pois ele e o mundo em que viveu marcharam um dia em perfeita harmonia. E a sociedade alemã de 80 milhões de pessoas se protegeu contra a realidade e os fatos exatamente da mesma maneira, com os mesmos auto-engano, mentira e estupidez que agora se viam impregnados na mentalidade de Eichmann (Arendt, 1999, p. 65).
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CONSIDERAÇÕES FINAIS
Embora o tempo presente não reconheça um governo totalitário em vigência,
algumas das características encontradas na época do nazismo podem ser
verificadas hoje. A celebração da democracia no ocidente oculta profundo
desinteresse popular a respeito de sua participação política e da importância do
indivíduo como agente transformador da sociedade. Quando a abnegação não é
fruto da descrença no sistema político como incapaz de representar e trabalhar em
prol do coletivo, resulta do entendimento que o discurso político ficou vazio, dando
lugar à propaganda e seu poder de convencimento da maioria.
Outra marca da população europeia no início do século XX e que hoje se
repete é a massa cuja única preocupação se resume no trabalho e que, segundo
Hannah Arendt, ocasiona o isolamento do indivíduo, que “já não é reconhecido como
homo faber4, mas tratado como animal laborans cujo necessário ‘metabolismo com a
natureza’ não é do interesse de ninguém” (Arendt, 2009, p. 527). Se não há a
preocupação e engajamento políticos (e, por conseqüência, sua interação com as
demais pessoas), e se não existe o aproveitamento do espaço público e o
desenvolvimento de outras esferas que são próprias da vida humana, então o
homem entende seu trabalho como sua atividade exclusiva, que exige toda a sua
dedicação e esforço, e que lhe rouba a participação e a compreensão de sua
realidade, enquanto cidadão e enquanto ser humano.
O isolamento dos homens é campo fértil para o surgimento de preconceitos
enquanto fruto da ignorância. O completo desconhecimento do outro pode permitir
que qualquer informação se materialize em conceito e restringirá tanto a evolução da
opinião (uma vez que o isolamento, unido à ignorância, impedirá o homem de
conhecer o outro e submeter seu pensamento a opiniões contrárias) quanto do
conhecimento pleno de um assunto específico. Antes de se juntar a SS, Eichmann
pensava em unir-se a uma loja maçônica, embora desconhecesse o significado da
palavra “maçom”; Em recente pesquisa, jovens alemães mostraram completo
4 Enquanto o homo faber significa a atividade de criação e trabalho humanos que permanece como obra de suas mãos, o animal laborans representa o labor, ou seja, a atividade primeira do homem em busca de sua sobrevivência, ligada ao que os gregos chamavam de “”, ou vida biológica. O tema é desenvolvido por Hannah Arendt em sua obra A Condição Humana.
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desconhecimento dos acontecimentos ocorridos durante a Segunda Guerra5,
demonstrando assim a vulnerabilidade de suas convicções, bem como a
susceptibilidade a possíveis inverdades. Se a ideologia totalitária representa o que
há de mais extremo quanto à promoção de mentiras em verdades, e de ignorância
em conhecimento, a filosofia lhe faz frente, oferecendo a insegurança do constante
aprendizado, mas também a liberdade de pensamento que caracteriza o homem
como ele próprio se reconhece.
O perigo de trocar a necessária insegurança do pensamento filosófico pela explicação total da ideologia e por sua Weltanschauung não é tanto o risco de ser iludido por alguma suposição geralmente vulgar e sempre destituída de crítica quanto o de trocar a liberdade inerente da capacidade humana de pensar pela camisa-de-força da lógica, que pode subjugar o homem quase tão violentamente quanto uma força externa (Arendt, 2009, p. 522).
Esta mesma liberdade de pensamento dá ao homem a autonomia para ser
livre, bem como a responsabilidade por seus atos. Embora pareça óbvia, a princípio,
a proposta de Hannah Arendt deve tornar-se imperativo de voz constante para os
homens: “O que proponho, portanto, é muito simples: trata-se apenas de pensar o
que estamos fazendo” (Arendt, 2010, p. 6).
5 Disponível em: http://www.dailymail.co.uk/news/article-2166557/Half-GERMAN-schoolchildren-know-Third-Reich-dictatorship--East-Germany-Communist.html. Acessado em: 09 de julho de 2012.
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BREVE BIOGRAFIA DE HANNA ARENDT
Hannah Arendt nasceu em 1906, na cidade de Hanover, na Alemanha. Seus
pais eram oriundos de famílias judias, cultas, liberais, e de boa situação financeira. O
primeiro contato com os clássicos gregos e latinos que ela teve foi através da
biblioteca de seu pai.
Seus pais eram ateus e, portanto, não praticavam o judaísmo. Arendt diz que
descobriu sua identidade judaica através dos comentários antissemitas das crianças,
na rua, embora seu avô fosse frequentador da sinagoga e membro de uma
associação de judeus alemães. Também jovem, viu de perto os terrores da guerra,
os mortos e feridos do campo de batalha. E é em meio a guerra que Hannah Arendt
acompanhará sua mãe no entusiasmo e paixão pelas obras e discursos da polonesa
Rosa Luxemburgo, cujo exemplo influenciou a filósofa. De acordo com Adler (2007,
p.31-32) “os rompimentos internos e a marginalização da qual essa última foi vítima
no seio da socialdemocracia habitarão por muito tempo a visão política de Hannah,
que via nela a figura moral de uma esquerda não corrompida [...]”.
Aos dezoito anos, Hannah Arendt sai de Königsberg e vai para Marburg, onde
inicia seus estudos do grego, latim e teologia cristã. Faz amizade com outros jovens
que, posteriormente, se destacarão como ela no meio intelectual alemão: Hans
Jonas, Walter Benjamin, Gershom Scholem. É também nesse período que entrará
em contato com a obra e a pessoa de Martin Heidegger (com quem teve um caso
amoroso). A influência de Heidegger sobre Arendt se dá principalmente na obra A
condição humana, onde a filósofa trabalha a alienação do homem moderno diante
do mundo, e em sua concepção da história, o uso do exemplo grego para afirmar a
possibilidade do político e do Ser. Depois, na faculdade de Heidelberg, Hannah
Arendt conhece Karl Jaspers, que seria seu orientador em sua tese O conceito de
amor em Santo Agostinho, e seu amigo até o fim da vida do filósofo. A tese de
doutorado foi defendida em 1928, e o filósofo cristão continuará a acompanhar o
pensamento de Arendt, principalmente sob a perspectiva da originalidade de cada
indivíduo e de sua capacidade de criar algo absolutamente original em uma
existência que lhe garanta a liberdade. Já a influência de Jaspers sobre a filósofa se
dá em sua defesa da irrestrita comunicabilidade entre os homens como garantia de
sua liberdade política. Arendt alertará para a tentação filosófica de propor uma
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verdade e, dessa forma, desde Platão até Heidegger, impor um sistema tal que
abrevie ou restrinja a ativa participação pública (LAFER, 2003).
Nos anos seguintes, o nazismo toma o poder na Alemanha e Hannah Arendt
pressente e vivencia a crescente dificuldade que a comunidade judaica sofreria na
Europa. É presa em 1933, com um conjunto de documentos antissemitas que ela
usaria como panfleto contra o regime. Após sua liberação, foge para a
Tchecoslováquia, depois Suíça, e depois França onde em Paris, já morava seu
primeiro marido, Günther Stern. Logo começa a trabalhar em uma organização
sionista, contrária a assimilação dos judeus pelas sociedades europeias. Em 1940,
os franceses recolhem todos os refugiados alemães que vivem na França e Hannah
é levada para um campo de internação em Gurs, de onde fugirá mais tarde,
aproveitando o caos gerado pela invasão das tropas alemãs na França. Se refugia
em Montauban, no sul do país, onde se reencontra com seu segundo marido,
Heinrich Blücher, e conseguem um visto norte-americano. Fogem para Lisboa, onde
embarcam em um cargueiro rumo aos Estados Unidos, onde chegam em 1941,
sendo ajudados por instituições judaicas e de apoio aos refugiados.
Hannah permaneceria sem documentos por dez anos. Neste período, escreve
para periódicos sionistas, frequenta círculos de intelectuais alemães refugiados nos
Estados Unidos, e trabalha em diversas organizações judaicas. Em 1951, com sua
cidadania norte-americana liberada, publica Origens do Totalitarismo, obra em que
trabalhara nos últimos anos, movida pelo sofrimento que passara quando ainda
estava na Europa, bem como pelo choque das notícias que chegavam à América a
respeito dos campos de concentração e da morte sistemática de judeus.
Em 1953, Hannah Arendt começa sua carreira acadêmica, tornando-se
professora no Brooklyn College. Passou posteriormente pela prestigiada faculdade
de Princeton (sendo a primeira mulher professora da instituição); entre 1963 e 1967
foi professora da universidade de Chicago e, de 1967 a 1975, trabalhou na New
School for Social Research, quando veio a falecer.
Sua obra foi marcada pela teoria política, como em Origens do Totalitarismo,
Sobre a Revolução e A Promessa da Política, por exemplo. Publicou uma série de
reportagens a respeito do julgamento de Adolf Eichmann em forma de livro, intitulado
Eichmann em Jerusalém. Em A Condição Humana, Arendt trabalha as experiências
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primeiras da vida humana, e a profunda transformação que essas condições
sofreram diante dos modernos processos de produção e de trabalho.
Sua obra continua demonstrando relevância em nosso tempo, na
compreensão da situação de uma massa crescente de apátridas e refugiados,
vítimas de guerras civis ou de outras vicissitudes políticas; o temor diante da
possibilidade totalitária, do preconceito em todas as suas faces e, principalmente, no
incentivo à vida política por parte de todos os indivíduos, situação sine qua non para
a plena experiência da condição humana em sua totalidade e plenitude, bem como
a participação política de cada pessoa como agente transformador de sua
sociedade.
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BIBLIOGRAFIA
ADLER, Laure. Nos passos de Hannah Arendt. Rio de Janeiro: Record, 2007.
ARENDT, Hannah. Eichmann em Jerusalém. São Paulo: Companhia das Letras,
1999.
__________. A condição humana. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010.
__________. Origens do Totalitarismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.
D’ALESSIO, Marcia Mansor e CAPELATO, Maria Helena. Nazismo: política, cultura
e holocausto. São Paulo: Atual, 2004.
FRY, Karin A. Compreender Hannah Arendt. Petrópolis: Vozes, 2010.
GEARY, Dick. Hitler e o nazismo. São Paulo: Paz e Terra, 2010.
HOCHSCHILD, Adam. O Fantasma do Rei Leopoldo. Uma história de voracidade,
terror e heroísmo na África colonial. Lisboa: Editorial Caminho, 2002.
JARDIM, Eduardo. Hannah Arendt: pensadora da crise e de um novo início. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 2011.
KITCHEN, Martin. O Terceiro Reich: carisma e comunidade. São Paulo: Madras,
2009.
LAFER, Celso. Hannah Arendt: pensamento, persuasão e poder. São Paulo: Paz e
Terra, 2003.
SOUKI, Nádia. Hannah Arendt e a banalidade do mal. Belo Horizonte: Editora
UFMG, 1998.