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O Bairro é Dois de Julho, ou, o que está em jogo no Projeto de “Humanização” de Santa Tereza? Laila Nazem Mourad Pesquisadora do Programa de Pós-graduação em Arquitetura e Urbanismo – PPGAU/FAUFBA, Doutora em Arquitetura e Urbanismo pela UFBA. moura[email protected] Glória Cecília Figueiredo Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da Faculdade de Arquitetura da UFBA. [email protected] RESUMO O artigo trata do processo de gentrificação vivenciado no Bairro Dois de Julho a partir da iniciativa privada do Cluster Santa Tereza, associado ao Projeto de “humanização” do Bairro Santa Tereza, de responsabilidade da Prefeitura Municipal de Salvador. Trata-se de uma articulação privada com apoio público, concebida em tecido urbano pré-existente, que compreende a existência de um ambiente central economicamente desvalorizado, porém atraente, utilizada pelos empreendedores privados como oportunidade para fazer negócios. Há uma contradição, inconciliável, neste projeto, já que o seu discurso informa que se pretende instituir e “humanizar” o Bairro, mas de fato, busca-se inviabilizar a permanência dos moradores pobres e vulneráveis. Contudo moradores, usuários, associações comunitárias e movimentos sociais, com atuação no Bairro Dois de Julho, reagem, contestando a intervenção e abrindo possibilidades políticas para contra-racionalidades e para reversão desse processo de urbanização excludente. PALAVRAS-CHAVE: Gentrificação, Dois de Julho, Reabilitação de áreas centrais.

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O Bairro é Dois de Julho, ou, o que está em jogo no Projeto de “Humanização” de Santa Tereza?

Laila Nazem Mourad Pesquisadora do Programa de Pós-graduação em Arquitetura e Urbanismo – PPGAU/FAUFBA, Doutora em Arquitetura e Urbanismo pela UFBA. [email protected] Glória Cecília Figueiredo Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da Faculdade de Arquitetura da UFBA. [email protected]

RESUMO

O artigo trata do processo de gentrificação vivenciado no Bairro Dois de Julho a partir da iniciativa privada do Cluster Santa Tereza, associado ao Projeto de “humanização” do Bairro Santa Tereza, de responsabilidade da Prefeitura Municipal de Salvador. Trata-se de uma articulação privada com apoio público, concebida em tecido urbano pré-existente, que compreende a existência de um ambiente central economicamente desvalorizado, porém atraente, utilizada pelos empreendedores privados como oportunidade para fazer negócios. Há uma contradição, inconciliável, neste projeto, já que o seu discurso informa que se pretende instituir e “humanizar” o Bairro, mas de fato, busca-se inviabilizar a permanência dos moradores pobres e vulneráveis. Contudo moradores, usuários, associações comunitárias e movimentos sociais, com atuação no Bairro Dois de Julho, reagem, contestando a intervenção e abrindo possibilidades políticas para contra-racionalidades e para reversão desse processo de urbanização excludente.

PALAVRAS-CHAVE :

Gentrificação, Dois de Julho, Reabilitação de áreas centrais.

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1.0. Introdução

Duas empresas privadas, a Eurofort Patrimonial e a RFM Participações, delimitaram, pelo menos desde 2007, uma área de 15 ha para formar o Cluster Santa Tereza, abrangendo área significativa do Bairro popularmente conhecido como Dois de Julho, além de parte do Comércio. A Eurofort Patrimonial e a RFM Participações funcionam como agenciadores de grandes investidores para a proposta deles, principalmente internacionais. Estabelece-se assim, uma ação gentrificadora para instalar negócios de luxo na área, sendo que os investidores privados já adquiriram, nos últimos anos, cerca de cinquenta imóveis entre terrenos, ruínas e casarões para serem transformados em lofts, pousadas, hotéis, lojas, restaurantes e escritórios.

A ação gentrificadora, levada a cabo pelos investidores do Cluster Santa Tereza, tenta impor uma divisão do Bairro Dois de Julho, polarizando uma concentração de recursos que induzem ao acirramento da segregação e das desigualdades espaciais e urbanas. Agravando este processo de gentrificação no Centro Antigo de Salvador, em março do ano corrente (2012) a Prefeitura lança o Projeto de “humanização” do Bairro Santa Tereza, que tem exatamente a mesma poligonal que a do Cluster Santa Tereza. Isto coloca indícios claros de que o Poder Público Municipal estaria assumindo intervenções de urbanização para viabilizar a privatização do espaço pelas empresas referidas.

Contudo, por princípios e diretrizes constitucionais, legais e éticas, apenas o ente federativo municipal pode regular o ordenamento, o uso e a ocupação do espaço da cidade, pautado pelos interesses público e social, com garantia da função social da propriedade e da cidade, devendo para tanto promover o bem coletivo, a segurança e o bem-estar de todos os seus cidadãos (Arts. 30 e 182 da CF/1988; Arts. 1º e 2º da Lei 10.257/2001).

Estas atribuições do Município exigem que a Prefeitura de Salvador, na sua atuação no desenvolvimento urbano considere o conjunto de demandas e necessidades dos diferentes grupos, coletividades e segmentos sociais que compõe a cidade, sobremaneira aqueles mais vulneráveis no acesso a direitos e políticas públicas, que, portanto, devem ser necessariamente priorizados, colocada a necessária perspectiva de redução das desigualdades socioespaciais.

É neste sentido que o Planejamento Urbano deveria se viabilizar por um amplo e efetivo processo participativo e por uma Gestão democrática, materializada pela participação da população e de suas representações na formulação, execução e acompanhamento de planos, programas e projetos de desenvolvimento urbano, conforme requerido pelo Estatuto da Cidade (Art. 2º, inciso II da Lei 10.257/2001).

Porém, na contramão das disposições institucionais, legais, constitucionais e urbanísticas destacadas, o Projeto de “humanização” do Bairro Santa Tereza, de iniciativa da Prefeitura Municipal de Salvador, apresenta evidências de uma intervenção que assume, quase que unilateralmente, interesses econômicos do empresariado, em detrimento do interesse coletivo e das demandas e necessidades do conjunto de moradores e usuários do Bairro Dois de Julho.

2.0. O Bairro Dois de Julho: localização e aspectos urbanísticos

Situando o Bairro Dois de Julho nas regionalizações institucionais, tem-se que o mesmo integra o subespaço abrangido pelos limites da Região Administrativa I – Centro, definida

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pela Lei Municipal Nº 7.400/2008, que instituiu o vigente Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano do Município do Salvador (PDDU). O Dois de Julho também faz parte do Centro Antigo de Salvador, cuja delimitação foi estabelecida pelo Escritório de Referência do Centro Antigo de Salvador (ERCAS), além de estar localizado na Macroárea de Requalificação Urbana, definida no PDDU.

Mapa 1 – Mapa de Localização do Bairro Dois de Julho, inserido da Região Administrativa I do Município de Salvador.

Fonte: Mapa 09 da Lei Municipal No. 7.400/2008.

O Dois de Julho é uma área de ocupação predominantemente de segmentos de renda médias, baixas e popular, apesar de estar sendo alvo de projetos de implantação de novos empreendimentos de luxo. Conforme caracterização da Macroárea de Requalificação Urbana, onde este bairro se insere, tem-se que

A Macroárea de Requalificação Urbana compreende áreas de ocupação consolidada, com boas condições de acessibilidade e de infraestrutura, dotadas de equipamentos e serviços urbanos, em que se concentram atividades diversificadas com significativa oferta de postos de trabalho, mas que vêm apresentando tendência à perda de população e à evasão da atividade econômica, com efeitos na qualidade dos espaços e na ociosidade e desvalorização do patrimônio imobiliário existente (Art. 133 da Lei Municipal No 7.400/2008).

Em relação a inserção do Bairro Dois de Julho no Zoneamento Municipal, a mesma enquadra-se como Zona Predominantemente Residencial, sendo importante destacar que

As Zonas Predominantemente Residenciais, ZPR, são destinadas preferencialmente aos usos uni e multiresidenciais, admitindo-se outros usos desde que compatíveis com os usos residenciais, de acordo com os critérios e restrições estabelecidos pela legislação de ordenamento do uso e ocupação do solo (Art. 166, op. cit.).

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Os parâmetros urbanísticos incidentes no Bairro Dois de Julho, notadamente os índices de Coeficientes de Aproveitamento, são aqueles relativos à Categoria Zona Predominantemente Residencial 5 - ZPR5, quais sejam:

Quadro 1 - Parâmetros Urbanísticos incidentes em Vila Coração de Maria. Zona Subzona Identificação Coeficiente de

Aproveitamento

CAB CAM ZPR ZPR-5 Zona Predominantemente

Residencial 5 1,5 2,5

Fonte: Anexo 2, Quadro 1 da Lei Municipal No. 7.400/2008.

Em relação ao aspecto da mobilidade, apesar da recorrente precarização da infraestrutura voltada à acessibilidade, tais como as vias para pedestres e o mobiliário urbano de suporte aos sistemas de transporte coletivo (sobretudo, paradas e estações de ônibus), bem como da insuficiência e deficiência de ciclovias e os diversos problemas de segurança relacionados à não priorização dos modos de transportes lentos, que marcam o Centro Antigo de Salvador, podemos afirmar que o Bairro Dois de Julho conta com uma localização privilegiada em termos de inserção na malha viária do Município, no Sistema de Transporte Coletivo de Passageiros e no Sistema de Transporte de Cargas. Isso permite aos seus moradores um acesso relativamente facilitado aos diversos serviços, atividades e infraestruturas disponíveis no Centro Antigo de Salvador. O Dois de Julho se articula à leste pelas Vias Coletoras Rua Carlos Gomes e Avenida Sete de Setembro e à oeste com a Avenida Lafayete Coutinho (Avenida Contorno).

Mapa 2 – Mapa de do Sistema Viário no entorno do Bairro Dois de Julho.

Fonte: Mapa 04 da Lei Municipal No. 7.400/2008.

Em relação ao Sistema Viário de Transporte Coletivo de Passageiros, os moradores e usuários do bairro acessam diversos corredores de transporte. Através do acesso às estações de terminais rodoviários urbanos de integração (principalmente Campo Grande e Lapa) movimentam-se utilizando linhas urbanas sobre pneus em corredor de média capacidade (linhas com itinerário pela Avenida Lafayete Coutinho) e em corredores de baixa capacidade (linhas com itinerários pela Rua Carlos Gomes e Avenida Sete de Setembro).

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O Bairro Dois de Julho também está inserido em área com previsão de atendimento por futura expansão da rede de corredor de transporte de alta capacidade (metrô), bem como poderá acessar com facilidade a linha sobre trilhos Fuzileiros / Paripe prevista no PDDU. Vale destacar também a vizinhança do bairro com linhas urbanas náuticas, que são corredores de transporte de baixa capacidade, destacando-se a proximidade com os atracadouros de Gamboa e do Comércio.

Cabe ainda destacar que o Bairro Dois de Julho está situado em área protegida pela Lei Municipal N° 3.289/83, que criou e institucionalizou a APCP 01 - Área de Proteção Cultural e Paisagística.

3.0. Gentrificação no Centro Antigo de Salvador: o caso do Bairro Dois de Julho

Retomando a ação do Cluster Santa Tereza associada ao Projeto de “humanização” do Bairro Santa Tereza, percebe-se nessa intervenção uma articulação privada com apoio público concebida em tecido urbano pré-existente, que compreende a existência de um ambiente central economicamente desvalorizado, porém atraente. A combinação de espaço desvalorizado e atraente tem sido utilizada pelos empreendedores privados como oportunidade para fazer negócios. Os investidores visualizam nos imóveis abandonados e em ruínas as condições favoráveis para obtenção de lucros (um capital construído ocioso, caracterizado pela baixa rentabilidade, significando uma desvalorização da riqueza construída, pública e privada).

Além disto, a área escolhida para o desenvolvimento do projeto constitui-se em bens urbanos patrimoniais (ou histórico-culturais), configuram-se em um espaço urbano único (tombado pela UNESCO como Patrimônio Mundial da Humanidade), diferentes do restante da cidade e possuem grande significado simbólico para a população local, regional, nacional e internacional. Nesse sentido, pode-se afirmar que os atributos histórico-culturais do Centro Antigo de Salvador e da Baía de Todos os Santos foram mobilizados para a construção de uma imagem capaz de alavancar uma estratégia de marketing e atrair investidores (MOURAD, 2011).

Os investidores articulam: áreas degradadas com preços fundiários e imobiliários depreciados, elementos simbólicos existentes, área predominantemente ocupados por segmentos de renda médias baixas e popular, sem nenhuma aplicação de instrumentos de salvaguarda social, facilitando a substituição da população. É possível afirmar que tais características se aproximam dos pressupostos de Hamnett, ou seja, a oferta de áreas adequadas a essa renovação; a existência de um ambiente central economicamente desvalorizado, porém atraente; o interesse de certos segmentos econômicos e populacionais pela área - elementos necessários para que a gentrificação possa acontecer (HAMNETT, 1991)

Para Hamnett, gentrificação é um fenômeno físico, econômico, social ou cultural. A gentrificação incide não apenas em uma transformação social, mas também em uma alteração física do estoque de moradias, na escala de bairros, representando, enfim, uma transformação econômica sobre os mercados fundiários e imobiliários. É essa combinação de mudanças sociais, físicas e econômicas que distingue a gentrificação como processo ou conjunto de processos específicos (op. cit., p. 61).

Segundo este autor, gentrificação caracteriza-se como

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um processo de transformação da composição social dos residentes de um bairro, mais precisamente da substituição de camadas populares por camadas médias assalariadas; e se constitui em um processo de natureza múltipla: de investimento, de reabilitação e de apropriação, por essas camadas sociais, de um estoque de moradias e de bairros operários ou populares (HAMNETT, 1991, p. 55) .

O termo gentrificação foi utilizado pela primeira vez por Glass, nos anos de 1950, para explicar as transformações de antigos bairros populares e desvalorizados no centro de Londres. Segundo os antropólogos Heitor Frúgoli e Jessica Sklair esse

(...) conceito alcançou forte capacidade explicativa a partir dos trabalhos de Neil Smith (1996) e Sharon Zukin (1989), ambos centrados no contexto nova-iorquino da década de 1970 em diante, com ênfase, no primeiro autor, em práticas sociais, comportamentos econômicos e políticas públicas, e na segunda, em atividades culturais e artísticas, articuladas às de consumo e lazer. A hipótese de Smith de uma gentrificação generalizada, que se expandiria entre os planos global e local (Smith, 2006), tem sido examinada criticamente, à luz de pesquisas em outros contextos e de leituras atentas às relações entre os planos global e local (FRÚGOLI & SKLAIR, 2009, p.120).

As reflexões do geógrafo César Ricardo Simoni Santos, contribuem para entendermos quais são as lógicas desse tipo de intervenção. Santos enfatiza que “a renovação urbana, os projetos de revitalização dos centros e a gentrificação serão as formas através das quais espaços urbanos, previamente capitalistas serão reinseridos numa nova dinâmica de acumulação” (SANTOS, 2008, p.39). Ele ressalta que a experiência da reprodução capitalista no Brasil demorou a conhecer os processos de gentrificação como mecanismos altamente rentáveis – e que é somente na década de 1990, que a gentrificação, surge como poderosas forças de transformação do espaço e responde às expectativas de realização de lucros no setor imobiliário (op. cit., p.2).

Santos buscando entender como se elaboram as condições para a entrada das cidades brasileiras no circuito da gentrificação como negócio – afirma que

(...) a “revitalização”, [...] pode ser compreendida, como um revigoramento capitalista do espaço das cidades, atribuindo um novo papel ao espaço urbano nos processos de circulação e valorização do capital em âmbito mundial, assim como inventa também uma nova forma de agir sobre o espaço urbano, com um Estado comprometido com a elevação das taxas de rentabilidade pertinentes aos setores privados (op. cit., p.43).

Para Santos, o que há de novo nesse processo é o caráter relativamente dirigido dos processos de valorização e desvalorização do espaço. Esses processos de revitalização conduzem a formação de um estoque desvalorizado de ativos imobiliários, funcionando como territórios reserva (idem, p.46).

Este processo

(...) envolve um novo ciclo que se remete diretamente ao espaço urbano enquanto materialidade das infraestruturas produtivas e de circulação do capital. Ele ressalta que o eixo valorização-desvalorização-valorização, decorrente da construção-obsolescência-reconstrução de infraestruturas espaciais para a circulação capitalista, apresenta o movimento seguido de perto pelos analistas imobiliários e que dará frutos aos seus investimentos (SANTOS, 2008, p.45).

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Segundo Santos este dispositivos sevem

(...) para atrair capitais a partir de seu potencial de valorização, as cidades são reestruturadas e produzidas (“revitalizadas”). Dessa forma, vende-se a cidade, como imagem de um potencial de valorização, e é tanto maior o seu preço (e a sua procura) quanto mais real e verossímil for a sua imagem enquanto potencial de valorização (op. cit., p.44).

Para Santos assistimos

(...) atualmente, no Brasil, a uma transformação na tônica do processo de acumulação capitalista. A forma de utilização do território nesse processo é determinante e sinaliza para a versatilidade dos mecanismos de valorização. A presença de mecanismos destrutivos e aniquiladores do espaço social anterior à chegada das novas dinâmicas territoriais é inquestionável (...) (op. cit., p.47).

Cotejando com as reflexões dos diversos autores e com o urbanista João Sette Whitaker Ferreira, podemos entender que vivenciamos uma ação gentrificadora no Bairro Dois de Julho, através do Projeto de “humanização” do Bairro Santa Tereza, de responsabilidade da Prefeitura de Salvador, associado à iniciativa privada do Cluster Santa Tereza. Esta ação se insere na lógica de:

(...) uma intervenção de renovação onde o “Mercado e Estado, vêm se associando cada vez mais, para promover um “urbanismo de mercado”, incluindo as cidades à lógica da economia financeirizada e globalizada, incorporando, inclusive, as áreas obsoletas e abandonadas de grande interesse imobiliário. Deixa-se a regulação estatal do espaço público para dar livre curso à ação dos empreendedores privados, em grandes empreendimentos de “revitalização”. Com fortes investimentos públicos, muitas vezes legitimados por algum grande projeto cultural, tais propostas de intervenção têm a marca da “gentrificação”, a saber, a invariável expulsão dos moradores originais – geralmente pobres que aceitaram viver em áreas obsoletas e abandonadas – e sua substituição por moradores de um novo e mais alto perfil econômico (FERREIRA:2010).

3.1. O Projeto de “humanização” do Bairro Santa Tereza: Interesses Privados no Lugar do Interesse Público

De início, o Projeto de “humanização” do Bairro Santa Tereza, se lança com um notável desrespeito e não reconhecimento da vida e das ricas memórias, histórias e culturas da ativa população que forma o Bairro Dois de Julho. A utilização pela Prefeitura de Salvador da nomenclatura “Bairro Santa Tereza”, por si só, indica a supressão da representação coletiva e simbólica do Bairro Dois de Julho, amplamente reconhecida pela sua população. Em apresentação oficial da Prefeitura, exposta a um público internacional, antes mesmo de qualquer debate com a população de Salvador1, o Projeto de “humanização” do Bairro Santa Tereza é assim justificado:

1 A PMS apresentou o Projeto de “humanização” do Bairro Santa Tereza durante o XX Congresso do Centro Ibero americano de Desenvolvimento Estratégico Urbano – CIDEU , ocorrido de 13 a 16 de Março de 2012 em Barcelona).

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A proposta de “humanização” do Bairro constitui mais uma das iniciativas da administração do prefeito João Henrique, no sentido de revitalizar as áreas centrais da cidade, relevantes para a memória do município.

No bojo do projeto sobressai a proposta de dotar essa grande área de identidade e auto-estima, dando-lhe alma e corpo de um verdadeiro bairro , uma vez que os seus atuais moradores e usuários não possuem qualquer referência desse conceito2 (PMS, 2012, grifos nossos).

Há uma contradição, inconciliável, neste projeto já que o seu discurso informa que se pretende instituir e “humanizar” o Bairro, mas de fato, o que a Prefeitura faz, associada ao Cluster Santa Tereza, é promover uma ação de gentrificação, inviabilizando a permanência dos moradores pobres e vulneráveis.

A constituição de um bairro remete a um espaço de vivência cotidiana, de proximidade, de relações sociais de vizinhança, de diversidade social e de usos e ocupações do espaço3. Neste sentido, o Dois de Julho - onde vivem trabalhadores de diferentes ocupações, artistas, estudantes, intelectuais, boêmios, pobres, diferenciado por manter a única Feira ao ar livre do Centro Antigo, pelos seus ambulantes e comércio popular variadíssimo, com manifestações culturais e políticas, com seus bares frequentados por distintas gerações, suas cores e cheiros, suas crianças brincando nas ruas, largos e descendo as ladeiras que ligam o bairro à Baia de Todos os Santos – talvez seja o mais Bairro entre os Bairros da Salvador atual. Em realidade, a gentrificação, encarnada no Projeto de “humanização”, associado ao Cluster Santa Tereza, é que ameaça o Bairro Dois de Julho.

Na contramão de disposições institucionais, legais, constitucionais e urbanísticas que garantem os direitos sociais e o direito à cidade, o Projeto de “humanização” do Bairro Santa Tereza, de iniciativa da Prefeitura Municipal de Salvador, apresenta fortes indícios de uma intervenção que assume explicitamente interesses econômicos das empresas Eurofort Patrimonial e RFM Participações, em detrimento do interesse coletivo e das demandas e necessidades do conjunto de moradores e usuários do Centro Antigo, especialmente do Bairro Dois de Julho.

Em 2007 as duas empresas comentadas formularam o projeto privado Cluster Santa Tereza, com delimitação de 15 ha de área considerável de tecido urbano pré-existente, e ancorado na lógica empresarial e no desenvolvimento do mercado imobiliário de alto padrão.

2 PREFEITURA MUNICIPAL DE SALVADOR (PMS) / SECRETARIA MUNICIPAL DE DESENVOLVIMENTO URBANO, HABITAÇÃO E MEIO AMBIENTE (SEDHAM). Santa Tereza: “humanização” do Bairro. Apresentação da PMS no XX CIDEU. Barcelona, 2012. 3 A conceituação de Bairro que adotamos como referência não se confunde nem se limita aos limites de regionalizações administrativas. Aqui nos aproximamos de compreensões que remetem a constituição do bairro a um espaço de vivência cotidiana e de relações sociais de vizinhança. Neste sentido destacamos a clássica referência ao conceito de unidade de vizinhança, formulada pelo sociólogo norte-americano Clarence Perry. Para esse autor a unidade de vizinhança estava relacionada a dotação e localização de equipamentos de educação primária, áreas de lazer e lojas locais, acessadas a pé em deslocamentos relacionados a posição da moradia (HALL, 2007, pp. 145-146). Outra referência importante é o entendimento proposto pelo Professor Ângelo SERPA, no qual “o bairro é visto como linguagem e discurso (...) pois seus limites variam e são percebidos de modo diferenciados pelos moradores, que ‘constroem seus bairros’ como base para estratégias cotidianas de ação individual e coletiva” (SERPA, 2007).

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Mapa 3: Poligonal de Intervenção do Cluster Santa Tereza

Não bastasse tal afronta ao Estado de Direito, agravou a situação o fato do Poder executivo Municipal se omitir, neste caso, de suas responsabilidades subordinando-se a estes interesses marcadamente privados. Isto é facilmente constatável e flagrante pelo fato do Projeto de “humanização” do Bairro Santa Tereza, lançado este ano e de responsabilidade da Prefeitura de Salvador, ter majoritariamente a mesma abrangência territorial e delimitação que o projeto do Cluster Santa Tereza, conforme pode ser observado no Mapa 2.

Mapa 4: Poligonal Santa Tereza, integrante da “Proposta de “humanização” de Bairros” da Prefeitura Municipal de Salvador (PMS).

Fonte: PMS. SEDHAM, 2012 .

A Prefeitura de Salvador, já no início do ano de 2008, elaborou um plano de bairro, abrangendo a área do Bairro Dois de Julho, contida na delimitação do Cluster Santa Tereza e

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entorno. Neste plano, a Prefeitura apresentou um mapa de intervenções ressaltando vários projetos em andamento, entre eles:

� Reurbanização da encosta (setor mais pobre) entre a Rua Visconde de Mauá e Avenida Lafayete Coutinho no trecho que se estende entre a Bahia Marina, o Amado restaurante, e o Trapiche Adelaide;

� Na bifurcação entre a Rua Carlos Gomes com a Rua Sodré e a Praça Castro Alves, em frente ao Cine Glauber Rocha, a prefeitura elaborou um projeto de estacionamento (319 vagas), com previsão de custo na ordem de R$14.000.000,00.

� Estudos pontuais de espaços de convivência e projetos para o Largo Dois de Julho e para a Praça Cayru;

� Proposta de requalificação da Avenida Sete de Setembro que, segundo documento da Fundação Mario Leal, pressupõe, principalmente: a ampliação dos passeios que passam de 3,00 para 5,00m de largura; novo mobiliário urbano; valorização da iluminação pública, transformações das redes aéreas existentes em redes subterrâneas; o ordenamento dos engenhos publicitários das fachadas dos estabelecimentos comerciais; construção de edifícios-garagem na rua Carlos Gomes; relocação de ambulantes e implantação do sistema VLT na Avenida Sete de Setembro;

� Projeto urbanístico de requalificação da Rua Chile entre a Praça Castro Alves até a Praça da Sé, circunscrevendo a Rua do Tesouro, Rua da Ajuda e a Rua José Gonçalves.

A prefeitura justificava, com o plano acima, o seu interesse na melhoria da qualidade da vida urbana, no desenvolvimento do turismo, na dinamização do comércio, revela a intenção de reorganizar a mobilidade, ordenar os espaços públicos e melhorar o ambiente, mas não adota instrumentos de proteção e inserção das populações frágeis, nem qualquer medida de retenção à especulação imobiliária.

3.2. Projetos Privados ameaçam a permanência e os direitos sociais da população moradora e usuária do Centro Antigo de Salvador

De fato, o Projeto de “humanização” de Santa Tereza, desumaniza, fortalecendo a concepção excludente do urbanismo corporativo praticado pelas empresas Eurofort Patrimonial, RFM Participações e outros investidores, agenciados pelas mesmas. A natureza desta concepção já detonou vários processos de segregação, gentrificação e expulsão de populações vulneráveis, moradoras e usuárias do Bairro Dois de Julho e entorno, tais como4:

� O fato da poligonal do Cluster Santa Tereza estabelecer uma divisão do Bairro 2 e Julho, polarizando uma concentração de recursos que induzem ao acirramento da segregação e das desigualdades espaciais e urbanas;

4 Cf. MOURAD (2011), bem como, Relato dos Moradores em reunião realizada no dia 18/06/2012 no Clube Fantoches no Bairro Dois de Julho, da qual participaram as autoras do presente artigo.

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� A ação gentrificadora pela qual teve início o projeto do Cluster Santa Tereza. 14 (quatorze) casas, situadas próximas ao Museu de Arte Sacra, da Vila pertencente à Arquidiocese de Salvador, foram vendidas, ainda que estivessem habitadas. O objetivo era a construção, nesse local, de um hotel de luxo da grife TXAI;

� Tentativa de despejo pelos proprietários de imóveis ocupados por inquilinos de baixa e média rendas, para viabilizar a venda de tais imóveis para destinação de empreendimentos de luxo e de alta lucratividade. Exemplo emblemático é a ameaça de despejo sofrida pelos moradores da Vila Coração de Maria. A Irmandade São Pedro dos Clérigos, suposta proprietária dos imóveis da Vila, tem ameaçado as sete famílias moradoras - incluindo a senhora Anita Ferreira Sales, de 84 anos, inquilina que assume a conservação do imóvel há 43 anos - com uma ação de reintegração de posse. A Vila Coração de Maria, localizada na Rua Democratas do Dois de Julho está numa posição estratégica, contigua ao empreendimento Clock Marina Residence, que integra a proposta do Cluster Santa Tereza;

� Aprovação e licenciamento pela Prefeitura Municipal de Salvador de atividades incompatíveis com equipamentos públicos pré existentes, que oferecem serviços públicos essenciais aos moradores e usuários do Bairro Dois de Julho e outras áreas adjacentes do Centro Antigo de Salvador. Exemplo grave refere-se à Escola Permínio Leite, de ensino fundamental, que atende as crianças de famílias pobres do Dois de Julho, Gamboa e outras localidades do entorno, e que tem suas atividades ameaçadas pelo impacto causado pela construção do empreendimento hoteleiro de luxo Clock Marina Residence, situado em lotes contíguos ao colégio que funciona há décadas. A desativação da escola, em último caso, implicaria que a Prefeitura destinaria a apropriação da área exclusivamente para o turismo de luxo, em detrimento de demandas essenciais como a educação básica da população local;

� Aumento do preço dos aluguéis pelos proprietários especuladores que desejam ampliar suas rendas imobiliárias, substituindo os atuais inquilinos, majoritariamente de média e baixa renda, por outros de segmentos de alta renda.

Neste sentido há diversos instrumentos jurídicos e urbanísticos que deveriam ser mobilizados pela Prefeitura Municipal para conter a danosa ação especulativa e salvaguardar os moradores, usuários e ocupações existentes. As demandas destes grupos, por direitos sociais, podem ser associadas a uma postura de proteção do patrimônio histórico material e imaterial, através do desenvolvimento de usos e atividades de interesse social com conservação e manutenção dos bens imobiliários onde estes usos são desenvolvidos.

Destaca-se que o Bairro Dois de Julho, está inserido, nos termos do Urbanismo oficial, na Macroárea de Requalificação Urbana, que compreende o Centro Antigo de Salvador e entorno. Esta macroárea é caracterizada por possuir capacidade instalada de suporte e redes de infraestrutura, contudo com fortes demandas de manutenção e qualificação. Ao lado da insuficiência de manutenção e qualificação desse espaço, a baixa presença da produção imobiliária, por agentes estatais, sinaliza para uma reduzida apropriação da capacidade instalada de suporte e das redes de infraestrutura para usos públicos.

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Em um outro sentido, voltado à ativação da possibilidade de um maior protagonismo público neste espaço, enfatiza-se a importância da demarcação e implementação de Zonas Especiais de Interesse Social (ZEIS) para proteger, qualificar e assegurar a inserção das coletividades vulneráveis que vivem no bairro, a exemplo das ocupações da Vila Coração de Maria, do Beco da Califórnia, Encosta da Rua Visconde de Mauá, dos diversos Cortiços, das Residências coletivas estudantis etc.

Dentro da mesma perspectiva, enfatiza-se a importância da proteção e recuperação do patrimônio histórico e cultural, dado que o Bairro Dois de Julho se insere em uma APCP. Para tanto, aponta-se para a importância da articulação da recuperação de imóveis protegidos com a habilitação dos mesmos para usos de interesse social, tais como residenciais e institucionais, através da oferta de moradia, equipamentos coletivos e redes públicas de proteção social.

4.0. A População reage: O Movimento Nosso Bairro é Dois de Julho!

Frente aos impactos e inseguranças gerados pelo Projeto de “humanização” do Bairro Santa Tereza e pelo Cluster Santa Tereza, moradores, usuários, coletivos, entidades comunitárias e movimentos sociais, atuantes no Bairro Dois de Julho estão reagindo.

Foi constituída uma articulação que tem empreendido diversas ações coletivas em defesa dos moradores e usuários do bairro, denominada “Movimento Nosso Bairro é Dois de Julho!”. A articulação teve início no dia 18 de junho, no Clube Fantoches, situado no bairro. Neste dia a Prefeitura Municipal de Salvador, através da Fundação Mário Leal, órgão vinculado à sua Secretaria Municipal de Desenvolvimento Urbano, Habitação e Meio Ambiente (SEDHAM) e responsável pela elaboração do projeto em discussão, agendou uma reunião para apresentar o mesmo aos moradores. No entanto, os representantes da Prefeitura não compareceram. A despeito disto, moradores, usuários e amigos do Bairro Dois de Julho que se fizeram presentes no local, decidiram aproveitar o encontro e fazer uma reunião entre eles, para discutir as questões relacionadas ao projeto.

A partir deste encontro, foram agenciados outros eventos e ações, tais como: novas reuniões; assembleias de moradores no Coreto do Largo Dois de Julho; manifestações políticas de rua, como a ocorrida no Desfile cívico do dia 2 de Julho; criação de fórum virtual de debate na internet, em página do Movimento na rede social Facebook; produção de vídeos; solicitação de audiências públicas com órgãos públicos, como a realizada no dia 12 de Julho na Câmara de Vereadores pela Subcomissão Especial de Desenvolvimento Urbano da Assembleia Legislativa do Estado, em conjunto com a Comissão de Reparação da Câmara; a visita ao bairro com a presença do Relator Nacional do Direito Humano à Cidade da Plataforma Brasileira de Direitos Humanos Econômicos, Sociais, Culturais e Ambientais - DHESCA, Leandro Franklin Gorsdorf, na qual os moradores apresentaram denúncias de violação de direitos humanos e sociais etc.

Em todos estes eventos e ações a falta de participação dos moradores na elaboração e implementação do Projeto da Prefeitura no Bairro Dois de Julho foi duramente criticada, bem como foram denunciados os efeitos negativos vivenciados pelos mesmos acerca do processo de gentrificação do Cluster Santa Tereza. De acordo com a moradora Cacilda Povoas

(...) apesar do Projeto de “humanização” do Bairro de Santa Tereza já ter sido apresentado fora do Brasil, em Madrid e Barcelona, os moradores da área desconhecem o que a Prefeitura

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pretende fazer no lugar onde eles moram e trabalham. De acordo com ela, muitos dos moradores, residem há vários anos nesta área, que de fato precisa de atenção da Prefeitura (ALBA, 2012, p. 10).

Segundo a historiadora, e também moradora do Dois de Julho, Wlamyra Albuquerque

(...) o que a Prefeitura está apresentando é uma peça publicitária, apesar de estar sendo denominado como um projeto. Ele entende que esse projeto visa delimitar uma área do Centro Antigo da Cidade, que é patrimônio protegido, reservando-se tal área aos grandes empreendimentos imobiliários. A historiadora também questiona se os antigos moradores serão “varridos” do novo bairro, se serão empurrados para outras áreas da cidade, tal qual aconteceu no caso do Pelourinho. Ela questiona qual é a proposta da Prefeitura para estas pessoas, que não está posta no suposto projeto (op. cit., p. 13).

Ícaro Vilaça, membro do Movimento Desocupa, relata que

(...) apesar de ter achado a situação absurda, foi ao “lançamento” supra referido na Associação Comercial. Para ele tal evento não tratava da cidade, mas sim de negócios. Ícaro Vilaça considera sintomático o fato da ausência de representante da Prefeitura na Audiência Pública, sendo que num momento no qual se espera um diálogo da mesma com a população são enviados funcionários de quarto escalão. No entanto ele informa que no dia do lançamento na Associação Comercial, esteve presente o próprio Secretário Municipal de Desenvolvimento Urbano, Habitação e Meio Ambiente, Paulo Damasceno (op. cit., p. 15).

Ivana Chastinet, Diretora teatral e moradora do Bairro Dois de Julho, sintetiza as principais reivindicações dos moradores e usuários do bairro, afirmando que em relação ao Projeto de “humanização” de Santa Tereza que

Não houve consulta ou diálogo com os moradores nem usuários do Bairro 2 de Julho na elaboração do projeto em questão;

Não foi realizado Estudo de Impacto de Vizinhança (EIV);

O projeto como é incompatível com a legislação municipal, a exemplo da Lei Municipal Nº 3.289/83 que define que a área onde se insere o Bairro Dois de Julho, integrante do antigo Distrito de São Pedro, faz parte de uma Zona de Proteção Rigorosa, o que significa dizer que não pode ter sua forma e seus recursos transformados. Ivana ressalta que se trata de uma contradição, já que o Município está agindo contra a sua própria legislação;

Ausência de uma pesquisa socioeconômica para traçar o perfil dos moradores, para se identificar dizer quem são, onde moram, como moram, sua situação econômica, financeira etc;

Não se observou no projeto nenhuma menção relacionada à política tributária do IPTU, pois, segundo o Estatuto da Cidade, a Prefeitura já deveria estar cobrando dos casarões “inativos” o IPTU progressivo. Argumenta-se que caso o projeto em questão seja implementado, haveria uma mudança no padrão e no valor dos imóveis, refletindo diretamente no valor do IPTU atual, que não iria mais condizer com a atual situação financeira e econômica dos moradores atuais. Nesse sentido é exigido a garantia do direito dos moradores de continuarem a pagar um valor de IPTU “popular”, condizente com o perfil socioeconômico dos mesmos.

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Ausência de definição de Zonas Especiais de Interesse Social (ZEIS), que não constam no projeto, apesar de previstas no Estatuto da Cidade e no Plano Diretor;

O projeto não faz qualquer menção a itens essenciais, correspondentes às demandas e necessidades dos moradores e usuários do Bairro 2 de Julho, quais sejam:

− Construção de creche;

− Programa de inserção e qualificação do trabalho para o comércio informal;

− Melhorias na rede pluvial;

− Recuperação de encostas;

− Fiscalização de trânsito;

− Projetos de estacionamento de modais alternativos de transportes, tais como bicicletas e motos;

− Fiscalização da lei de poluição sonora;

− Segurança pública;

− Instalação de Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) que atendam aos diversos grupos vulneráveis, presentes no Bairro, tais como usuários de drogas, moradores de ruas, idosos, crianças etc;

− Crítica ao fato do projeto propor uma espécie de “Shopping Santa Tereza”, que não pode ser chamado de Bairro Santa Tereza, pois bairro tem vida;

− Planejamento e qualificação do calçamento, pavimentação e calçadas para universalização da acessibilidade e condições de mobilidade adequadas;

− Projeto de iluminação pública;

− Projeto para banheiros públicos;

− Programa de apoio e suporte ao comércio informal, para que eles permaneçam de modo qualificado no local;

− Coleta seletiva de lixo;

− Fiscalização do tamanho dos gabaritos e da compatibilidade de usos dos novos empreendimentos com os pré existentes. Destaque para o fato de que na visita ao Bairro, no período da tarde, se observar, por exemplo, que o empreendimento Clock Marina Residence está sendo construído no fundo de uma escola municipal com quase um século de existência. Atualmente as crianças que estudam na escola não podem mais jogar bola, pois as paredes dos muros estão rachadas, devido ao processo de construção. Há também pelo efeito de um novo muro e do próprio empreendimento Clock Marina Residence a obstrução de parte significativa da vista da paisagem da Baía de Todos (ALBA, 2012, pp. 18-19).

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Enfatiza-se ainda as várias orientações emitidas pelo Relator Nacional do Direito Humano à Cidade da Plataforma DHESCA, Leandro Franklin Gorsdorf, que sugere

(...) a criação de uma comissão de acompanhamento, do projeto Dois de Julho [Cluster Santa Tereza e Projeto de Humanização do Bairro Santa Tereza], com representações diversas da sociedade civil , formada por todos os atores sociais, como ONGs, escolas, associações, comerciantes formais e informais, e onde também possa estar presente a Defensoria pública e o Ministério Público, para que se possa dialogar em conjunto sobre os processos.

Ele enfatiza ainda, que todo empreendimento que vai ser realizado, privado ou púbico, necessita oferecer uma contrapartida social para o local onde ele será instalado. Desta forma, ele afirma a necessidade da elaboração de um Estudo de impacto de Vizinhança (EIV), para se identificar aspectos como adensamento populacional, demanda de equipamentos urbanos, alteração nos usos e ocupação do solo, valorização imobiliária, interferências de ventilação e iluminação etc. Para que, identificando quais os impactos desses empreendimentos, e dos que estão a caminho, se possa verificar ações de maneira a comprometer e responsabilizar os empreendimentos. O relator também afirmou que o município tem que tomar para si, juntamente com a comunidade, a regulação do espaço urbano.

Propõe a realização de um censo social para se identificar a composição da comunidade do bairro Dois de Julho, pois é ponto de partida para a construção de um projeto de intervenção urbana em área edificada e habitada.

Enfatiza a necessidade de se pensar nos grupos vulneráveis existentes no local, se fazem visíveis a olho nu. É necessário políticas públicas de saúde coletiva, principalmente vinculada ao uso de drogas, pois, normalmente, esta população não é bem-vinda a projetos como este apresentado pelo prefeitura, onde a ideia é construir algo esteticamente belo, e o “belo” está associada a ideia de limpeza, e aqui a limpeza será desses grupos sociais vulneráveis. Reafirma a necessidade de incluir os moradores de rua, o comércio informal e o atendimento às mulheres, vitimas de violência, e prostituas, e que (...) neste processo de remoção forçada, a situação de vulnerabilidade das mulheres é muito maior nas nossas cidades.

Ele ressalta a importância de aplicação de instrumento urbanístico de retenção a especulação imobiliária e fundiária, considerando o aumenta no valor dos imóveis e do aluguel. A consequência deste processo de valorização acelerado da área causa indiretamente o que a relatoria chama de “despejos econômicos” - as pessoas que não tem mais condições de permanecer no local em função do aumento do aluguel e ou valorização dos imóveis. Nesse contexto, os despejos em razão da questão econômica se enquadra no que a relatoria da ONU classifica como “remoções forçadas” – no qual um determinado grupo social é deslocado de forma involuntária, contra a sua vontade (op. cit., pp. 34-37).

As ações coletivas de reação e contestação pelos moradores, usuários e sociedade civil atuantes no Bairro Dois de Julho, articulados no “Movimento Nosso Bairro é Dois de Julho!” imprimem contra-racionalidades alternativas5, criando possibilidade de reversão da ação gentrificadora do Projeto de “humanização” Santa Tereza e dos agentes privados do Cluster Santa Tereza.

5 Contra-racionalidades aqui entendida no sentido proposto por Milton Santos (2008, p. 304-310)

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5.0. A Prefeitura desiste do Projeto de “humanização” do Bairro Santa Tereza, mas ação gentrificadora continua...

As ações coletivas, levadas a cabo pelo Movimento “Nosso Bairro é Dois de Julho!” tiveram grande repercussão na mídia local6, influenciando a opinião pública contra a postura da Prefeitura de Salvador. Após essa repercussão a Prefeitura lançou uma nota pública no dia 30 de Julho, “desistindo” do projeto. Conforme matéria do Blog Bahia Notícias, a Prefeitura resolveu suspender o projeto, se justificando da seguinte maneira

“Em função da manifestação clara de parte dos moradores do bairro 2 de julho, em conjunto com o jornal A Tarde, contrários à execução do Projeto de Humanização (...), a Secretaria Municipal de Desenvolvimento, Habitação e Meio Ambiente (Sedham) informa a desistência da execução do referido projeto, por entender que tal polêmica tem criado um clima de acirramento indevido, prejudicial aos reais interesses da cidade”, diz um trecho da nota. “A área que seria beneficiada pelo projeto sofre um contínuo e acentuado processo de degradação tendo justamente como principais prejudicados os seus atuais moradores. O projeto contemplaria ações de infraestrutura, paisagismo, implantação de áreas de lazer, plena acessibilidade para os portadores de necessidades especiais, valorização das atividades comerciais existentes, cursos de capacitação profissional para os moradores e atração de novas empresas para a geração de empregos com prioridade de contratação para a população local (...) A prefeitura se vê obrigada a suspender a execução do projeto na área citada, iniciando imediatamente estudos para a identificação de outra área que possa vir a ser beneficiada pelas ações já planejadas pelos técnicos da Fundação Maria Leal Ferreira”, finaliza a nota (BAHIA NOTÍCIAS, 2012).

A “desistência” da Prefeitura de Salvador, de levar a cabo o criticado projeto, demonstra que a mesma recuou diante da intensa mobilização dos moradores do Bairro 2 de Julho e da sociedade civil, que reivindicam participação e transparência desta intervenção pública. Porém, a nota da Prefeitura distorce completamente a mobilização dos moradores, como se esses não desejassem um autêntico processo de reabilitação do Bairro 2 de Julho. A questão mais criticada pelos moradores é, justamente, o fato da Prefeitura, neste projeto, não ter considerado as suas demandas e necessidades, ao lado da falta de participação no processo.

Com esta postura a Prefeitura nega decisivamente o diálogo e o direito à participação dos moradores do Bairro Dois de Julho, agindo de modo autoritário e arbitrário. Ao fazer isto, a Prefeitura de Salvador assume que só há decisão de investimentos públicos de urbanização para atender exclusivamente a poderosos grupos econômicos, interessados na privatização da Cidade, em detrimento dos interesses público e coletivo. Ao agir assim, o Município deliberadamente descumpre suas competências, constitucionalmente definidas, de provisão de serviços públicos locais, de caráter essencial, bem como de regular o ordenamento, o uso e a ocupação do espaço da cidade, pautado pelos interesses público e social, com garantia da função social da propriedade e da cidade (Arts. 30 e 182 da CF/1988; Arts. 1º e 2º da Lei 10.257/2001).

Agrava este cenário o fato de que, a despeito do anúncio da “desistência” do projeto em questão, a Prefeitura continue a licenciar e aprovar a produção de empreendimentos privados sem critérios adequados. Por outro lado, a mesma Prefeitura continua sem aplicar os

6 Dentre outros registros na imprensa, destaca-se que foram publicadas duas matérias no Jornal À Tarde, de maior circulação no Estado, contendo severas críticas ao projeto, feitas através de depoimentos de moradores e intelectuais.

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instrumentos de salvaguarda social, corroborando para potencializar a emergência de novos processos de gentrificação na cidade. Por tudo que foi exposto, pode-se afirmar que a única necessidade de “humanização” observada, neste caso, é a de humanizar o Poder Público e suas práticas desumanas, anti-cidade.

6.0. Considerações Finais

Este projeto que toma a cidade como mercadoria é inadmissível do ponto de vista de Política Urbana, dos direitos humanos, do direito a cidade para todos. Transformar o Bairro Dois de Julho num espaço para gerar lucros imobiliários, remoção de atividades e populações de menor renda e abertura de frentes de expansão imobiliária para o capital corporativo é esta proposta que a Prefeitura de Salvador está investindo. É inconcebível a submissão do planejamento urbano e gestão da cidade a essa concepção.

Mas antes que se perguntem quais os caminhos possíveis para combatermos a este desejo de gentrificação por parte da Prefeitura e do Mercado Imobiliário, é bom que fique claro que os moradores, frequentadores, comerciantes formais e informais, feirantes, população em situação de rua, - “todos nós” queremos que o Dois de Julho tenha uma melhor qualidade urbanística. A questão é que queremos uma intervenção conduzida para o interesse público do conjunto dos cidadãos, orientada pelos princípios que bem descreveram diversos intelectuais e militantes sociais.

Consertar sem destruir, refazer sem desalojar, reciclar, restaurar, restituir à estima pública, criar a partir do que está dado, manter o tecido urbano o mais inalterado possível, valorizar a vida econômica, cultural e social, realizar adaptações necessárias nos equipamentos, na infraestrutura e espaços públicos, melhorar as condições de habitabilidade dos imóveis existentes, mantendo usos e a população da área. Ou seja, reafirmar o Bairro Dois de Julho como o lugar da resistência, restituindo seu patrimônio cultural, social, econômico, mantendo a população e usos da área por meio de um processo muito participativo.

Referências

ASSEMBLEIA LEGISLATIVA DO ESTADO DA BAHIA / SUBCOMISSÃO ESPECIAL DE DESENVOLVIMENTO URBAO. Relatório da Audiência Pública Projetos no Bairro 2 de Julho: Impactos e medidas de salvaguarda da população. Salvador, 2012.

BAHIA NOTÍCIAS. Prefeitura desiste do Projeto de Requalificação do 2 de Julho. Matéria publicada em 30 de Julho de 2012. Disponível em <http://bahianoticias.com.br/principal/noticia/120109-prefeitura-desiste-de-projeto-de-requalificacao-do-2-de-julho.html >. Acesso, Jul, 2012.

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PREFEITURA MUNICIPAL DE SALVADOR (PMS) / SECRETARIA MUNICIPAL DE DESENVOLVIMENTO URBANO, HABITAÇÃO E MEIO AMBIENTE (SEDHAM). Santa Tereza: “humanização” do Bairro. Apresentação da PMS no XX CIDEU. Barcelona, 2012.

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