evitar a politica

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Angelo Panebianco

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  • EVITAR A POLTICA?

    Angelo PanebiancoTraduo do italiano: Cludio Gonalves Couto

    RESUMOO tecnicismo e o moralismo representam tentativas de negar a autonomia da poltica: oprimeiro invoca o poder dos especialistas e reduz as questes polticas a problemasadministrativos; o segundo impe uma peculiar viso tica e confunde moral pblica eprivada. O "governo dos tcnicos" e o "partido dos honestos" revelam-se, portanto, frmulassimplistas, que obstaculizam a formao de uma tica pblica e livre de condicionamentos.Palavras-chave: poltica; tcnica; tica; moral pblica; moral privada; corrupo; Itlia.

    SUMMARYTechnical specialization and moralism represent two attempts to deny the autonomy ofpolitics: the former, in invoking the power of specialists, reduces political issues toadministrative problems; the latter imposes a peculiar ethical view, blurring public and privatemorality. The "government by specialists" and the "honest people's party" hence prove to beoversimplified formulas, which inhibit the development of public ethics, free from condi-tioning.Keywords: politics; technical experts; ethics; public morality; private morality; corruption; Italy.

    Um sonho recorrente atravessa a histria do Ocidente. O sonho de poderdesembaraar-se da poltica, de anular a sua especificidade e autonomia, recondu-zindo-a a outrem. Esse "outrem" pode ser, s vezes, a "comunidade eclesistica",que a retraduz e, retraduzindo-a, neutraliza-a a comunidade poltica, ou podeser a "administrao", ou a "tcnica", ou a "economia", ou a "tica", seja crist ousecularizada.

    Por um longo perodo, at cerca de metade do sculo XIII, esta operao forasubstancialmente efetivada no Ocidente. Apenas ento, recorda Walter Ullmann, otermo grego politikon, importado de Bizncio, efetuou o seu ingresso no Ocidentemedieval cristo. Embora no imprio bizantino houvesse permanecido bem viva aidia de que o imprio fosse antes e acima de tudo uma entidade poltica, noOcidente, ao contrrio, at o fim da Idade Mdia

    [...] o lugar da categoria do poltico e do governo poltico tomado [...] pelacategoria do eclesistico e do governo eclesistico. Aqui o pensamento no sefundamentava sobre categorias mundanas, histricas e polticas, mas sobrecategorias eclesisticas. O rei ou imperador era um membro da igreja e foi esta

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    Este artigo foi publicado origi-nalmente na revista Il Mulino,Societ Editrice II Mulino, abr.1993.

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    considerao basilar que inspirou todo o pensamento ocidental e, em particu-lar, o do papado [...]1.

    O nascimento do Estado moderno e do sistema de Estados europeus darfora idia de poltica e da autonomia da poltica com relao a outras esferas. Masa batalha jamais ser definitivamente vencida, os seus xitos nunca permaneceroincontestes. Maquiavel e Hobbes sero, cada um a seu modo, autores malditos.

    A parbola do "moderno" ser assim caracterizada, simultaneamente, peloreconhecimento da diversidade crescente e da autonomia dos contextos (a polticase separa da tica crist no alvorecer da modernidade; a seguir, com o advento daeconomia de mercado, a economia separar-se- da poltica), assim como pelasmediaes e compromissos, ao invs da imposio autoritria de "verdades"(teolgicas, filosficas, cientficas etc.).

    A poltica, que a utopia tecnocrtica gostaria de neutralizar e banir, como natural, vinga-se regularmente. Quando o tcnico chega ao poder, de duas uma: ouperde as suas conotaes de tcnico e se transforma num poltico (o que lhe dalguma chance de sucesso), ou permanece tcnico e ento a poltica encarregar-se-de esbofete-lo e escarnec-lo. O governo dos tcnicos , alm do mais, sinnimo defracasso poltico garantido (como no recordar com ironia, por exemplo, as "cabeasbrilhantes" de MacNamara na poca da guerra do Vietn?), uma vez que aadministrao e a tcnica, assim como a competncia, podem seguir a poltica, jamaispreced-la, e menos ainda substitu-la. A arte da poltica a arte de mobilizar esforosem torno de valores e forjar o consenso, construindo coalizes entre os interesses. Eesta, que a essncia do saber poltico, no pode ser sub-rogada pelos saberestcnicos. Da idia, correta, de que para produzir uma boa administrao a polticadeve se servir tambm de tcnicos competentes (mas no s: a boa administrao 90% filha de tradies e de ethos administrativos forjados ao longo de dcadas),passa-se, com o mito tecnocrtico, idia, incorreta, dos tcnicos no poder.

    A tica no posto de comando, ou o paradoxo do moralista

    Cavour dizia que se houvesse cometido com vistas ao seu interesse privadoapenas uma parte do que fez para realizar a unidade da Itlia, teria sido consideradoo pior dos malfeitores. Uma outra forma de enfocar o problema subentendido naafirmao de Cavour questionar o quanto haveria de verdadeiro na clebre ereveladora sentena segundo a qual, em poltica, cometer "um erro" coisa pior doque cometer "um crime".

    Trs problemas, freqentemente confundidos entre si, esto plasmados noeterno debate sobre tica e poltica: (1) se possvel ou no resolver, de uma vezpor todas, o conflito entre aquilo que "moralmente justo" e o que "politicamentetil" ( o tema do dilogo tucididiano entre os melissos e os atenienses); (2) seaquilo de que se fala e sobre cujas relaes com a poltica se reflete seja "a tica"no singular ou "as ticas" no plural; (3) se possvel superar a diviso entre moralprivada e tica pblica.

    Como esses trs problemas so muito complexos e, alm disso, cada umdeles admite mais de uma resposta, a combinao entre as respostas que se do acada problema pode dar lugar a um sistema bastante complicado. E ainda, diantedas tenses e ambigidades morais, frise-se que este tema proporciona,existe, e continuamente proposta, na histria do Ocidente moderno, uma respostaradicalmente simplificadora. uma resposta que simplifica tudo desvencilhando-seda incmoda (e moralmente embaraosa) autonomia da poltica. a respostamoralista, a qual consiste em resolver os trs problemas indicados acima do

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    (1) W. Ullmann. Principi digoverno e politica nel Medioe-vo. Bolonha: Il Mulino, 1982,pp. 142-3.

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    seguinte modo: (1) o moralmente justo deve necessariamente prevalecer sobre opoliticamente til; (2) existe uma s "tica": dela deve depender e a ela deveresponder a poltica; (3) no existe uma tica pblica distinta da moral privada.

    Fundamentalmente, portanto, o moralismo resolve a tenso (que outrasorientaes julgam inarredvel) entre tica e poltica aniquilando a poltica atravsda tica, negando poltica qualquer especificidade e autonomia com relao tica que, alm disso, suposta como nica e de fcil e segura identificao.

    Mas assim como no caso da utopia tecnocrtica, tambm naquele domoralismo a poltica se vinga: expulsa pela porta, ela entra pela janela. E o faz damaneira mais paradoxal e prfida possvel: transformando o moralismo em seuinstrumento. Este xito paradoxal, esta heterognese dos fins, a consequncianecessria dos erros intelectuais sobre os quais o moralismo se apia. Este acreditaser possvel, em primeiro lugar, eludir a dureza da poltica; acredita ser possvel quea ao poltica possa desembaraar-se do critrio do til todas as vezes que omesmo entre em conflito com o critrio do moralmente justo. Mas como, noOcidente, sabemos pelo menos desde os tempos de Tucdides, o dilema no admitenunca uma resposta to simplista.

    Alm disso, o moralismo acredita ser possvel, numa era dominada pelo polites-mo dos valores, abenoar como vlido um, e apenas um, dentre os muitos sistemas ti-cos, que concorrem entre si e se apresentam todos aos diversos jris da modernidade.O moralismo fala de tica no singular, mas no sabe, no pode, et pour cause, dar al-gum contedo preciso palavra: porque se tentasse faz-lo, encontrar-se-ia subitamen-te com dilemas delicados e insolveis (como no reconhecer, por exemplo, o estigmade uma "moralidade" especfica, a comunista, em Primo Greganti?). Enfim, e este oerro decisivo do qual advm todos os outros, o moralismo no se d conta do fato deque aquilo que se costuma chamar de "tica pblica" no coincide com a moral priva-da: tem as suas prprias regras, os seus cdigos, que esto frequentemente em conflitocom a prescrio da moral privada. Optando pelo politicamente til ao invs do moral-mente justo, Cavour no est, na realidade, optando por uma poltica sem princpiosem detrimento de uma moral apoltica. Est simplesmente escolhendo agir de acordocom as normas de uma tica pblica (que no seu caso tem a unidade da Itlia como fimsupremo), as quais esto inevitavelmente em contraste com as normas da moral priva-da. Aquilo que o moralismo no apreende, em suma, que ocorrem muitos casos nosquais o politicamente til "moralmente injusto" se medido com base nos parmetrosda moral privada, mas , por outro lado, "moralmente justo" se medido com base na-queles da tica pblica.

    Se o moralismo representa, portanto, uma intromisso indevida dos critriossob os quais se fundamenta a moralidade privada num espao que pertence ticapblica, como definir esta ltima? Existe apenas uma maneira: a tica pblica dizrespeito salus reipublicae, ela tem a salvao da coisa pblica, o bem da cidade,como fim fundamental. Naturalmente, os seus contedos variam de acordo com ascircunstncias histricas e, alm disso, dar-se-o em cada momento histricointerpretaes discordantes, as quais so, por sua vez, geradoras de conflitos sobrea tentativa recorrente de anular a diversidade e a autonomia mediante algum tipode reductio ad unum.

    Na idade moderna e contempornea, as duas vias mais frequentementeseguidas na tentativa de destruir a autonomia da poltica sero aquelas baseadassobre a argumentao tcnica e sobre a argumentao moralista. Por um lado,procurar-se- reduzir a poltica gesto tcnico-administrativa. Por outro lado,procurar-se- negar poltica e s suas "leis de funcionamento e de movimento"autonomia daquela forma de moral comum que no Ocidente nasce com asecularizao e que ela mesma uma variante secularizada da moral crist. Por umlado, procurar-se- reduzir o domnio do homem sobre o homem e os conflitos aele inerentes "administrao das coisas". Por outro lado, buscar-se- reafirmar oprincpio segundo o qual somente os paternoster (e as suas variaes laicas) so os

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    princpios legtimos de governo. No sentido de que a partir deles so inferidos tantoos fins que a poltica deve dar a si mesma, como a escolha dos meios legtimos.

    Tcnicos, cientificismo e poltica

    A idia da neutralizao da poltica e dos seus conflitos atravs daquela formade despolitizao que consiste em transformar os problemas polticos em proble-mas tcnico-administrativos tem uma longa tradio no Ocidente. Em versesdiversas, a encontramos na cameralstica2 alem e no positivismo francs. Seradotada por aquelas elites liberais que, ao longo do sculo XIX (por exemplo, naItlia ps-Risorgimento), se defrontaro com delicadssimos problemas de legitimi-dade na fase de construo do Estado. Ser ainda, no sculo XX, uma idiadominante nos pases que, tendo experimentado uma revoluo socialista, assumi-ro como definitivamente resolvido o problema poltico por efeito da revoluo edo conseqente desaparecimento do domnio de classe exercido pela burguesia.

    Na origem esto, naturalmente, os mitos da cincia e da tcnica, alimentadospelos sucessos da revoluo tecnolgica-industrial. E ainda, intricadamente, umsentimento de hostilidade pelo parlamentarismo e pela democracia liberal queacompanha a democratizao da Europa desde os seus primeiros passos. So idiasque encontramos, por exemplo, num dos mais ilustres pais da utopia tecnocrtica,em quase todas as suas variantes: Claude-Henri de Saint-Simon, com a sua hiptese-profecia sobre a organizao como um substituto da poltica e sobre a cinciapositiva como um guia para a atividade de governo. O antiparlamentarismo tomar,como se sabe, diversos caminhos ao longo dos sculos XVII e XVIII: um desses sero casamento com a idia de governo dos tcnicos. As idias saint-simonianas seroretomadas e desenvolvidas no sculo XX por muitos autores, Karl Mannheim porexemplo. Estaro na base daquele hino utopia tecnocrtica que A revoluogerencial (1941) de James Burnham. Traos seus ainda sero encontrados, maisrecentemente, em obras como A sociedade ps-industrial (1973) de Daniel Bell.Alm disso, e de forma mais genrica, em todo o mundo ocidental essas idiasserviro como pano de fundo ideologia da engenharia, ao mito construtivista(como o chamou Hayek) adotado pelas corporaes acadmicas de cientistassociais para justificar e legitimar as relaes profissionais dos seus prpriosmembros com a administrao pblica e o poder poltico3.

    Avaliada deste prisma, a idia do governo dos tcnicos no outra que noa verso contempornea, adaptada era tecnolgica, dos ideais autoritrios dogoverno dos custdios. E o governo dos custdios , sob o plano terico, mastambm sob o prtico-poltico, a forma de governo antagonista por excelncia dademocracia liberal.

    A idia de base que est por trs da variante tecnolgica do governo doscustdios aquela segundo a qual os problemas polticos no nascem naturalmentedos inarredveis conflitos entre interesses e valores incompatveis entre si (e a tarefade uma administrao eficiente aquela de servir particular combinao deinteresses e valores que volta e meia se torna vitoriosa), mas surgem prevalente-mente, se no exclusivamente, como consequncias de erros administrativos. Errosque uma correta aplicao das cincias (naturais e humanas) permite evitar. Ocientificismo (seja em Saint-Simon, em Burnham, assim como em todos os seusfilhos e netos) justifica esta posio. Da a exigncia de concentrar o poder decisrionos tcnicos, naqueles que, pelo seu treinamento, pela sua preparao especfica,podem, apenas eles, governar eficazmente.

    Nas verses mais adocicadas, as nicas que podem circular hoje no Ocidente,em tempos de democracia triunfante, o ideal do governo dos tcnicos-custdiossurge combinado com o ideal democrtico. Coloca-se a surdina no antiparlamen-

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    (2) Cincia que trata das ques-tes da administrao e dasfinanas do Estado (N.T.)

    (3) Sobre este ponto me per-mito fazer referncia ao meu"Le scienze sociali e i limitidell'iluminismo applicato". In:Angelo Panebianco, org.L'analisi della politica. Bolo-nha: II Mulino, 1989.

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    tarismo, no se nega a legitimidade democracia eleitoral, no se afirma que apoltica seja por inteiro redutvel tcnica administrativa. Prope-se contudo"temperar" a democracia liberal atravs dos tcnicos.

    A contradio, todavia, patente: a democracia liberal confia o poder aoseleitos e a resoluo dos conflitos mediao entre os interesses; o governo dostcnicos confia o poder aos "sbios" e, no lugar dos conflitos entre os interesses entre os quais pode haver apenas confronto ou mediao (ou seja, jogos de soma-zero ou jogos de soma-varivel) , v problemas administrativos que devem serenfrentados atravs das tcnicas do problem-solving.

    Podemos dizer ainda, de acordo com Collingridge e Reeve4, que enquanto ogoverno dos tcnicos confia a cincia aplicada e, portanto, tcnica, um papel"herico" e, implicitamente, autoritrio ( cincia aplicada caberia a tarefa deprescrever as solues e aos tcnicos, um papel de implementao administrativa), ademocracia liberal , pelo contrrio, aquele regime em que aos tcnicos se confia, nomximo, um papel "irnico": a tarefa principal de uma argumentao tcnica seriaaquela de impedir que o problema seja enfrentado com base numa argumentaotcnica rival, aps ter-se dado ouvidos a uma posio isoladamente. A diferena se dpelo fato de que a democracia liberal, e apenas a democracia liberal, dentre todas asformas de governo, aceita a livre manifestao da competio entre os interesses e asua composio atravs do meio mais eficaz, nas condies dadas, de perseguir o fimfundamental. E mesmo as interpretaes mais discordantes distinguir-se-o sempredas interpretaes moralistas (assim como a moralidade poltica se distingue damoralidade privada). Por exemplo, diante dos fenmenos de corrupo, a argumen-tao moralista recorrer tipicamente a valores como a honestidade, ou lei da moralcomum que probe o furto, ao passo que, de forma distinta, a argumentao que temcomo parmetro prprio a tica pblica apelar unicamente ao fato de que a violaocontinuada da lei positiva, a lei do Estado, leva longa runa e a desordem na cidade.(Neste exemplo, naturalmente, o comportamento prescrito no roubar dinheiropblico comum a ambas as posies, mas aquilo que conta na verdade que asmotivaes adotadas so diversas. E, alm do mais, podem-se conceber muitassituaes, por exemplo aquelas atinentes aos problemas da "segurana nacional",nas quais a moral comum e a tica pblica entram muito facilmente em conflito,prescrevendo comportamentos reciprocamente antiticos).

    Uma vez que o moralismo nasce de erros intelectuais fundamentais, que ocondenam sem apelao, o seu fim paradoxal torna-se facilmente explicvel.Nascido contaminado, morre de uma pssima morte: morre e este o paradoxodo moralismo afogando-se na hipocrisia e na imoralidade (caso se defina estaltima pelos mesmos critrios que utiliza o moralista). Nasce, em suma, acreditan-do-se escolhido para a santidade e termina como uma puta em um bordel. Uma vezque se desloca de uma avaliao radicalmente equivocada sobre a poltica e sobreos seus dilemas morais (aqueles autnticos), o fim inevitvel do moralista tornar-se o instrumento til, esteja ou no consciente disso, de algum grupo na competiopelo poder com outros grupos. Como as armas, o dinheiro ou tantos outros recursosdos quais a poltica se serve, tambm as "argumentaes morais" so frequentemen-te um instrumento a ser utilizado, em combinao com outros, para submeter oubater um adversrio. A autonomia da poltica, que o moralista pensava terderrotado, dele se vinga, tornando-lhe seu devido capacho.

    Itlia: uma revolta poltica contra a poltica?

    A fase que a Itlia est atravessando dominada por um curioso paradoxo: ao mesmo tempo uma mudana de regime poltico, que tem origens polticas eque todavia acompanhada por palavras que exprimem a rejeio poltica, sua

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    (4) Science speaks to power.Londres: Pinter, 1986.

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    autonomia e sua especificidade. Podemos dizer que uma revolta polticaconduzida (aparentemente) contra a poltica, usando os argumentos da antipoltica.Que as causas da mudana sejam polticas, sabido. O que acontece na Itlia aconsequncia direta do fim da guerra fria e do colapso do sistema comunista. Sendoo sistema poltico italiano aquele que, devido presena do mais forte partidocomunista, foi condicionado no seu funcionamento mais do que qualquer outrosistema poltico ocidental pela guerra fria, ainda, por necessidade, o sistemapoltico do Ocidente que em primeiro lugar e mais duramente paga as consequn-cias das mudanas que ocorreram na poltica mundial. Simplesmente aquelescustos, em termos de desgoverno, corrupo, excesso de presso fiscal, ausncia dealternncia nas elites de governo etc., que foram durante tanto tempo aparentemen-te tolerveis para setores majoritrios do eleitorado quando o problema dominanteera defender-se do comunismo, deixaram de aparecer dessa forma quando ocomunismo, entendido como sistema organizado, morreu. Portanto, causas polti-cas, muito polticas, esto agora na origem disto que est ocorrendo na Itlia. Mas,paradoxalmente, os argumentos que vm saturando o "discurso pblico", os quaisacompanham o processo (poltico) de desestruturao dos velhos equilbrios, dasvelhas regras e das velhas instituies, so em larga medida os argumentos daantipoltica. So os argumentos do antiparlamentarismo tecnocrtico e do moralis-mo. Que a mudana poltica ocorra deste modo at compreensvel. Na Itlia, pelasua centralidade, os partidos polticos ocuparam todo o espao, prtico e simblico,da poltica. Por isso, a revolta contra os velhos partidos se recobre inevitavelmentede palavras que exprimem a rejeio poltica.

    O antiparlamentarismo tecnocrtico se manifesta na mitificao do "tcnico",contraposto ao poltico de profisso, ao homem do aparato partidrio. Uma idiaque na Itlia foi constantemente proposta no curso dos ltimos dez anos (porexemplo, pelo jornal La Repubblica) tornou-se uma das idias-fora da "revoluoitaliana". O governo Ciampi representa, de uma certa forma, a concretizaoprovisria dessa idia. Mais genericamente se afirma o princpio (os argumentosutilizados por muitos candidatos durante a campanha eleitoral das recentes eleiesadministrativas so bastante reveladores) de que a alternncia das elites, tanto nonvel nacional como no local, deva realizar-se no substituindo os velhos polticospor novos, mas substituindo o j desacreditado "poltico" pelo "competente", pelo"tcnico". Se no se tratasse, como de fato o , de um autntico blefe, de um simplesauto-engano coletivo, poder-se-ia dizer que a poltica se renova dialeticamenteatravs da sua prpria negao.

    O segundo argumento forte da revoluo italiana ( moda italiana) oargumento moralista. Este , compreensivelmente, o argumento mais imediato,mais facilmente consumvel, diante da impiedosa revelao judiciria (que foi, porsua vez, efeito, e no causa, do fim das condies que garantiam a estabilidade daPrimeira Repblica) dos mecanismos autnticos de financiamento da polticapartidria e das verdadeiras relaes que existiam entre polticos e empresrios napoca da guerra fria. Por um ano inteiro, aps as eleies de 5 de abril de 1992 (eat o referendo eleitoral do 18 de abril de 1993, que lanou ribalta os problemasrelacionados s regras do jogo), a cena foi ocupada quase que integralmente pelo"partido dos honestos" nas suas vrias expresses e ramificaes. E uma vez que oproblema foi posto em termos de "honestidade" versus "desonestidade", a mensa-gem implcita e explcita era que a prioridade estava em culpar os "desonestos",mais do que mudar as regras de financiamento da poltica, diminuindo assim asocasies que fazem o homem (pblico) ladro. Havia naturalmente nesta revoltaconduzida em nome "da honestidade e da legalidade", como sempre ocorrequando lanada a carta moralista, diversas como cham-las manchas. Aprincipal mancha era causada pela conscincia pesada. Muitos daqueles quetnhamos visto brandir nesse ano a bandeira da honestidade no tinham as coisasem ordem na medida em que tambm haviam sido parte do velho sistema, tendo

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    compartilhado suas prticas (e de fato, diversos expoentes do partido dos honestos,para a alegria de adultos e crianas, j caram por terra, abatidos por aes judiciais,tendo a sua queda provocado muita e justificada diverso). Alm disso, atmesmo a supostamente inocente "sociedade civil", que tanto bradava contra oescndalo, foi por anos e anos a no-inconsciente cmplice e, em muitssimoscasos, beneficiria, direta ou indireta, daquelas prticas de governo. Nada deestranho, naturalmente. Todas as mudanas de regime poltico trazem consigofulguraes coletivas do caminho de Damasco, revoadas de pssaros e esbaforidastentativas de identificar a tempo os novos vencedores para prestar-lhes socorro epalavras de conforto.

    Tambm no caso italiano o paradoxo do moralista, que comea tentandofazer o funeral da poltica e acaba se tornando seu servo, por vezes trouxa, porvezes astuto, reposto com fora. Basta pensar, para dar um nico exemplorevelador que diz respeito a um ponto nevrlgico da luta poltica italiana nestemomento, aquele que concerne ao controle sobre os meios de comunicao nocaso Berlusconi. Alvo predileto dos moralistas, que a consideram um tipo desmbolo dos "hedonistas" e corruptos anos 80, a Fininvest, que nesse perodo foi oveculo de mdia que menos cobriu a poltica, tornou-se j h algum tempo objetode um ataque concntrico por parte da concorrente RAI e de grupos editoriais-financeiros (que atuam em sinergia com a RAI, ou com um ou outro dos seuscentros de poder interno) com interesses contrapostos queles de Berlusconi. Ocaso revela que muitos dos j mencionados moralistas figuram nas folhas depagamento desses grupos.

    Por trs do palco, no qual se recita decoradamente a revoluo italiana,desenrola-se, como sempre, a luta pelo poder (da qual participam grupos epersonagens polticos novos e reciclados, grupos financeiros e concentraeseditoriais, alm de corporaes politicamente expostas, como magistrados ejornalistas). Argumentaes tecnocrticas e argumentaes moralistas contribuempara a destruio do antigo regime e, lidas contraluz, ajudam a divisar as formasdo "regime" vindouro (aquilo que est acontecendo com a RAI, atravs detransformismos polticos e restruturaes financeiras, um teste interessante),certamente diverso, mas no necessariamente melhor, do que aquele que oprecedeu: por exemplo, seria interessante saber se ser submetido aos poderes decondicionamento, e quais, daquela corporao "tcnica", transformada ainda noesteretipo popular de "guardi da moralidade", que a magistratura.

    De todo modo, qualquer que seja a fisionomia do regime que substituir ovelho, h alguma coisa nele que provavelmente continuar a faltar. a idia deEstado laico. Talvez no nos libertemos jamais da saudade. A saudade daquelacomunidade eclesial que outrora abarcava a poltica e impunha a ela de modofrreo as suas prprias regras. este, no fundo, o problema italiano, que sobrevive,sempre igual a si mesmo, s mudanas de regime; que impediu ontem os italianosde se identificarem profundamente com o Estado liberal e hoje com o liberal-democrtico, explicando o nosso sempre precrio e aproximativo modo de estar como diriam os filsofos na "modernidade". Nada de estranho, portanto, secontinuar como sempre a ocultar-se aquela tica pblica que, quando de fato existe,no tem qualquer necessidade de buscar fora de si as razes que a devam justificar.

    JULHO DE 1996 57

    Angelo Panebianco profes-sor de Cincia Poltica na Uni-versidade de Bologna.

    Novos EstudosCEBRAP

    N. 45, julho 1996pp. 51-57