estudos e práticas da economia (e da) política de comunicações na al

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    Estudos e prticas da economia (e da) poltica de comunicaes na Amrica Latina1

    Edgard Rebouas2

    RESUMOEste artigo expe um panorama do que vem sendo debatido na Amrica Latina com referenciais da economia poltica das co-municaes e das indstrias culturais ao longo dos ltimos 50 anos. Mostra ainda como pesquisadores latino-americanos tm se destacado pela juno de aportes do espao pblico haberma-siano, das polticas de comunicaes, da economia poltica orto-doxa, das novas tecnologias e das indstrias culturais. O texto trata tambm dos riscos da ideologizao e/ou do economicismo de muitos estudos e conclui observando a necessidade de mais dilogos entre pesquisadores e reas.Palavras-chave: Amrica Latina; hibridismo metodolgico; eco-nomia poltica; polticas de comunicaes; indstrias culturais.

    ABSTRACTThis article expose a panorama of that is being debated in Latin America with theoretical references of the political economy of communications and the cultural industries to the long one of last 50 years. It also shows as Latin American researchers have worked with the hybridization of those approaches: the haber-masian public space, the communications policies, the orthodox political economy, the new technologies and the cultural in-dustries. The text also deals with the risks of the ideologization and/or the economicism of many studies and concludes observing the necessity of more dialogues between researchers and fields.Keywords: Latin America; methodological hybridism; politic eco-nomy; communications policies; cultural industries.

    1 Texto a ser publicado in: SOUSA, Helena (org.). Economia poltica da comunicao e dos media. Porto: Porto Editora.2 Doutor em Comunicao Social pela Universidade Metodista de So Paulo, mestre em Sciences da linformation et de la Communication pela Universit Stendhal-Grenoble 3, jornalista, coordenador do Ncleo de Pesquisas de Polticas e Estratgias de Comunicaes da Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicao (Intercom) e professor/pesquisador visitante no Programa de Ps-graduao em Comunicao da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE).

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    A pesquisa em comunicao na Amrica Latina apre- senta certas peculiaridades. Da mesma forma que ocorreu na formao social, poltica, econmica e cultural da regio, mesclando uma srie de influncias nativas e es-trangeiras, os estudos e prticas comunicacionais adquiriram um carter hbrido/mestio. As perspectivas terico-metodo-lgicas utilizadas na regio por boa parte dos estudiosos tm feito com que a comunidade internacional passe a respei-tar tal hibridismo/mestiagem no mais como algo extico, mas como diferente. Mas h ainda um grande caminho a ser percorrido pelo chamado pensamento comunicacional lati-no-americano, principalmente no que se refere difuso de suas observaes em publicaes em ingls e em francs.

    Na rea de estudos da economia poltica e das polticas de comunicaes no diferente. O dilogo entre pesqui-sadores latino-americanos se d muito bem no interior da prpria regio, no entanto, se limita a algumas incurses em grupos de Portugal, da Espanha, da Frana e de Que-bec (Canad). Dessa forma, este texto tem como objetivo expor um panorama do que vem sendo debatido na Amri-ca Latina com a utilizao de referenciais da economia po-ltica das comunicaes e das indstrias culturais ao longo dos ltimos 50 anos.

    Antes disso, faz-se necessria uma breve apresentao da trajetria desse pensamento comunicacional latino-ameri-cano para que se possa melhor compreender a incluso das temticas da economia poltica e das polticas de comuni-caes no quadro regional.

    A periodizao mais clssica sobre a evoluo dos es-tudos comunicacionais na Amrica Latina comea com a criao do Centro Internacional de Estudios Superiores de Comunicacin para a Amrica Latina (Ciespal), em 1959, na capital do Equador, Quito, sob a gide da Unesco. No entanto, no se pode afirmar que as observaes mais apro-

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    fundadas sobre os problemas ligados s comunicaes te-nha comeado a partir da. J na dcada de 1920, no Brasil, Barbosa Lima Sobrinho publicou o livro O problema da imprensa (de 1923) e Rui Barbosa, A imprensa e o dever da verdade (de 1920). Esses primeiros textos, e outros poucos que se seguiram nos anos 1930, eram ou muito descritivos ou excessivamente ensasticos, caractersticas que perdura-ram por muitos anos em estudos posteriores de boa parte dos intelectuais latino-americanos, que tm dificuldade de desenvolver estudos numa perspectiva mais analtica ou mesmo emprica.

    Os anos 1940 foram marcados pela continuidade de trabalhos descritivos sobre a imprensa e a publicidade em vrios pases da regio, principalmente no Brasil, na Argen-tina, no Mxico, no Peru e no Chile.

    Mas foi nos anos 1950 que o meio acadmico se viu ul-trapassado pelas iniciativas de pesquisas realizadas por em-presas de rdio e de televiso. Foram criados departamen-tos comerciais que encomendavam estudos quantitativos de audincia a grandes institutos de pesquisa como Gallup e Ibope3. Tal direcionamento fez com que os acadmicos fossem forados a voltarem as atenes para os fenmenos ligados recepo, o que acabou se tornando uma das mais importantes reas de pesquisa na Amrica Latina.

    No havia uma sistematizao clara da conduo dos estudos nem sequer critrios metodolgicos ou referenciais tericos bem definidos. O que se registrava era um amontoa-do de paradigmas emprestados das cincias sociais, adap-tados aos estudos comunicacionais.

    O Ciespal surgiu, ento, como principal reduto de en-contro para dar incio ao que hoje pode ser chamado de pensamento comunicacional latino-americano. Mas como o esprito desse tipo de escola era diretamente ligado aos ideais de desenvolvimento regional, era necessria uma

    3 Sigla de Instituto Brasileiro de Opinio Pblica e Estatstica, que se tornou substantivo incorporado lngua comum para designar status e prestgio, tamanho o uso que a mdia faz de suas pesquisas.

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    importao de modelos, principalmente vindos dos Esta-dos Unidos, com a sociologia emprica do Mass Commu-nication Research, e da Frana, com as cincias da infor-mao. A utilizao de tais abordagens foi difundida entre os pesquisadores latino-americanos durante todo o perodo dos anos 1960, mas alguns perceberam que o uso de meto-dologias importadas no se adequava a certas especificida-des da realidade regional.

    necessrio aqui recordar que a origem da palavra m-todo vem do grego e do latim e significa caminho para chegar a um fim. E certo que os objetivos e as problem-ticas de americanos e europeus no so os mesmos que os dos latino-americanos. Havia um outro ponto-chave de di-ferenciao: a maior parte dos estudos era feita em centros ou grupos de pesquisa (ININCO, na Venezuela; CEREN, no Chile; e ILET, no Mxico) enquanto poucos eram rea-lizados em centros universitrios.

    A teoria da dependncia e a teologia da libertao j ha-viam ganhado fora nos anos 1960 se opondo teoria do desenvolvimento e gerado a teoria da participao popular. Com isso, nos anos 1970, v-se a emergncia de trabalhos mais engajados politicamente, fundados sobretudo nas pers-pectivas de Frankfurt e de Gramsci. Em pases com realida-des muito semelhantes (misria, ditadura militar, desigual-dades sociais...), a opo por estudos marxistas representava uma maneira de posicionar-se que parecia ser a mais eficaz em oposio aos meios de comunicao e ao protecionismo das elites exercido pelo Estado. Foi nessa poca que se re-gistrou a maior quantidade de ensaios crticos, sem contudo consistncia metodolgica, terica e com poucos elemen-tos empricos. certo que o ensasmo tem o seu lugar e importante como gnero de texto acadmico, mas se no tem uma boa fundamentao, acaba se inclinando mais para o lado do discurso do que da cincia.

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    Na mesma dcada tambm pode-se ver o incio do que, mais tarde, seria qualificado de hibridismo metodolgico: estratgias funcionalistas americanas comeam a misturar-se s anlises mais aprofundadas da perspectiva europia. Desta forma, consegue aproximar-se um pouco mais das problemticas locais e regionais. O pesquisador boliviano Luis Ramiro Beltrn (1975: 187-192) sugere ento uma comunicologia da libertao.

    Tal inquietao tem origem em uma grande reunio do Ciespal, em 1973, na Costa Rica. O objetivo era discutir um ponto de partida de reorientao da abordagem meto-dolgica para a pesquisa em comunicao na Amrica Lati-na. Dois importantes assuntos de reflexo foram expostos:

    1. As teorias e as metodologias utilizadas continuam a ser muito ligadas aos modelos americanos (Chicago) e europeus (Paris e Frankfurt) e so aplicadas sem o devido contexto das realidades regionais.

    2. necessrio procurar definir procedimentos metodo-lgicos mais prximos dos problemas latino-americanos.

    Mas estabelecer uma abordagem metodolgica para uma cincia to complexa e diversificada como o caso da comunicao no um trabalho to fcil de ser realizado. Algumas disciplinas e cincias passaram sculos procura de paradigmas aplicveis, no sem muitos esforos e sem sa-ber se poderiam ser definitivos ou no. Alm disso, o fim das ditaduras militares marcava o incio da abertura poltica na maior parte dos pases do continente, de modo que a pesqui-sa denuncista e contestatria comeava a ficar sem sentido.

    Os anos 1980 registraram uma baixa na produo cien-tfica em comunicao, e esse foi um fenmeno quase mundial. J havia um reconhecimento internacional das pesquisas latino-americanas, mas a crise de identidade ps

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    os estudiosos em uma situao de reflexo a respeito de seus papis. Um ponto positivo foi que a amizade existente entre os acadmicos mais conhecidos fez que os congressos regionais da Associao Latino-americana de Investigado-res de Comunicao (Alaic) e a Federao Latino-ameri-cana das Faculdades de Comunicao Social (Felafacs) se transformassem em fruns para debater um novo perfil para a pesquisa na regio em um projeto comum.

    Nos anos 1990, a comunidade internacional pde me-lhor apreciar os resultados dessa reflexo, dado que uma boa quantidade de trabalhos comeou a ser aceita nos con-gressos da International Association for Media and Com-munication Research (IAMCR) e da International Com-munication Association (ICA). A comunicao e a pesquisa desenvolvidas na Amrica Latina no eram mais olhadas pelo mundo apenas como algo extico. A frmula de mes-clar as perspectivas funcionalistas e crticas nas pesquisas sobre questes locais, mas com uma viso global, continua a chamar a ateno da comunidade acadmica internacio-nal. Um fenmeno que americanos e europeus mais desa-visados no chegam a compreender plenamente.

    necessrio aqui reconhecer que, mesmo com essa evoluo do pensamento comunicacional latino-america-no, no se pode dizer que todos consigam seguir uma me-todologia to clara. Os pesquisadores sabem faz-la, mas no sabem necessariamente como a fazem. Seria equivoca-do dizer que h uma metodologia latino-americana; talvez uma perspectiva latino-americana.

    necessrio, no entanto, que alguns pesquisadores saiam dos posicionamentos da infncia, utilizando apenas as idias de um nico pai terico, e que tambm parem de manter-se na adolescncia, pensando que as respostas que do so as melhores, sem contudo terem atingido a maturidade.

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    Uma nova onda de referenciais vem influenciando a pes-quisa na regio nos ltimos anos. A velocidade dos estudos e prticas em torno das novas tecnologias est confundindo acadmicos, levando muitos a equvocos baseados em obser-vaes superficiais, o que faz Jess Martn-Barbero (2004: 10) alertar para uma crescente tendncia ao autismo tecni-cista e hegemonia gerencial que parecem estar se apode-rando dos estudos de comunicao na Amrica Latina.

    Apesar dos problemas da pesquisa na regio, preciso dar especial destaque para trabalhos crticos em algumas reas especficas:

    1. Comunicao comunitria/popular Estudos nas co-munidades urbanas e o uso por parte destas dos meios de comunicao social, principalmente o rdio e a imprensa de bairro.

    2. Comunicao e desenvolvimento Implementao de programas de acesso s tecnologias de educao e agricul-tura.

    3. Comunicao e educao Pesquisas sobre dois eixos: a leitura crtica dos meios e a utilizao das tecnologias para o ensino em todos os nveis.

    4. Comunicao poltica Observao do papel da im-prensa e do marketing poltico nas eleies.

    5. Estudos de recepo Sobretudo anlises a respeito dos efeitos das telenovelas nas classes populares com a uti-lizao de uma perspectiva dos estudos culturais4.

    6. Folkcomunicao Pesquisa sobre as manifestaes populares e como os meios de comunicao de massa tra-tam os fenmenos.

    7. Identidades culturais e globalizao Estudo das questes da diversidade cultural e a influncia dos meios de comunicao na formao de identidades, alm da ob-servao dos fenmenos da mundializao da cultura, da

    4 Em uma adequao dos cultural studies ingleses ao contexto latino-americano.

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    globalizao econmica e da planetarizao dos interesses de cada pas no conjunto das realidades locais e regionais em relao s preocupaes internacionais.

    8. Imprensa e interesse pblico Questionamento do papel da tica da imprensa em relao aos governos e aos cidados.

    9. Polticas e economia poltica das comunicaes Pes-quisas sobre os modelos de regulao e de regulamentao; o debate sobre a propriedade e democratizao dos meios de comunicao; a concentrao da produo e da distri-buio de bens culturais e o fluxo informacional.

    A adequao latino-americana: economia (e) poltica de comunicaes

    Foi nos anos 1950 que as preocupaes a propsito da cultura local apareceram com mais fora. A teoria do im-perialismo cultural americano encontrou um terreno frtil quando comeou-se a ver os jovens latino-americanos em jeans, ouvindo rockn roll nas rdios, comendo sanduches, assistindo a filmes de Hollywood em todas as cidades, mes-mo nas menores. A ameaa s culturas nacionais batia porta da Amrica Latina.

    Nos anos 1950 e 1960 vrios grupos industriais america-nos instalaram suas fbricas nos pases em desenvolvimen-to. Os governos abriram seus mercados a qualquer espcie de investimentos vindos dos Estados Unidos sem nenhu-ma poltica de proteo industrial. No campo da cultura, alguns pases estabeleceram a obrigao de incluir o in-gls como segunda lngua nas escolas, em substituio ao francs. Mas nem tudo andava como previsto. A Amrica Latina tinha sua prpria msica, sua prpria televiso, sua prpria literatura, sua prpria imprensa, seu prprio espor-te, seu prprio star system.

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    Aos poucos pesquisadores e empresrios de mdia co-meam a encontrar respostas para questes muito antigas, a principal delas que o local no uma oposio ao global, e que no h necessariamente uma fora maligna e invi-svel querendo dominar coraes e mentes. Descobriu-se que o que rege as estratgias de comunicaes o merca-do, o lucro. E para analisar e criticar tal fenmeno latino-americano foi necessria a busca de teorias mais slidas do que os modelos fundamentados em preconceitos e/ou importados.

    H ainda um dilema a ser discutido por pesquisadores e epistemlogos para uma melhor fundamentao terica dos conceitos relativos economia (e) poltica de comuni-caes, que est no fato de tal problemtica ser cercada de um lado pelas polticas culturais e de outro pelas polticas industriais. Ambas so sustentadas por arcabouos tericos estabelecidos no sculo XIX e rediscutidos ao longo do s-culo XX. A influncia das polticas culturais no mbito das polticas de comunicaes ocorre sobre as questes relativas ao contedo. Quanto s polticas industriais, o poder bem maior, j que envolve tambm uma estrutura industrial for-te e apoiada por boa parte das polticas pblicas exemplos so a infra-estrutura de telecomunicaes, os subsdios s fbricas de equipamentos, os emprstimos a fundo perdido etc. A primeira est ligada s estratgias de atuao, regu-lamentao e regulao do contedo, enquanto a segunda age sobre a tecnologia.

    A maior parte das pesquisas se atm s conseqncias dos fenmenos em relao ao interesse social. Mas o que ocorre no mundo real, fora dos muros da academia, uma supremacia dos interesses empresariais e comerciais rapidamente atendidos pelos que tomam as decises em relao ao estabelecimento e reformulao das polticas. E aqueles estudos mais centrados na anlise crtica das tecno-

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    logias das comunicaes nem sequer so levados ao conhe-cimento de polticos, governantes, empresrios e menos ainda da sociedade como um todo.

    Muitos pesquisadores levam tal constatao ao p da letra e acabam se tornando to engajados que deixam de lado a cientificidade, fazendo com que reflexes sobre uma temtica to rica acabem tendendo para que a ideologia tome o lugar da teoria e a polmica, o lugar destinado pesquisa.

    A sada encontrada foi uma conjugao da observao emprica geradora de exposies descritivas com a reflexo terica, na busca de uma prxis mais voltada para a com-preenso dos problemas e a indicao de propostas para tentar solucion-los. Os pesquisadores viram a necessidade imediata de encontrar parmetros de anlise para as pes-quisas sobre tais fenmenos. Como j foi dito, os intelec-tuais sabem que papel devem desempenhar, mas para que isso seja feito dentro dos critrios de cientificidade preciso que saiam em busca de uma teoria mais slida ou um conjunto delas. No caso levantado pela problemtica das indstrias culturais na Amrica Latina, elas podem ser: 1) pela esfera pblica habermasiana; 2) pelas polticas de co-municaes; 3) pela economia poltica ortodoxa; 4) pelas novas tecnologias; e 5) pelas indstrias culturais e pela economia poltica da comunicao.

    A primeira possibilidade de referencial leva em conta que todo processo da relao dos atores sociais entre si e visando influenciar as polticas no setor das comunicaes est vinculado ao que acontece no interior do espao p-blico habermasiano. No apenas aquele da esfera pblica burguesa dos cafs e sales literrios da Londres e da Paris dos sculos XVIII e XIX, mas sua nova dimenso, trazendo para o momento atual as dinmicas e lgicas sociais, tendo

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    as comunicaes como um elemento bem mais presente do que na viso inicial do jovem Habermas.

    O prprio autor reviu muitas de suas posies em textos publicados no incio dos anos 1990 e chegou concluso de que os meios de comunicao so to necessrios s mu-danas econmicas como nas discusses polticas, e que atualmente a sociedade civil composta por grupos organi-zados vindos dos movimentos populares que acolhem, dis-cutem e repercutem os problemas sociais da esfera privada de tal forma que se transformaram em um importante ator de presso na esfera pblica (Habermas 1997).

    A maneira como organizaes da sociedade civil na Amrica Latina se apropriaram dos meios de comunica-o principalmente o rdio, o cassete, o vdeo e, mais recentemente, a internet nos ltimos 30 anos tem dado uma amplitude ainda maior ao antigo conceito de espa-o pblico. O cidado, antes um espectador, passa a ter a possibilidade de estar em cena e exercitar sua razo crti-ca, sem que com isso caia nas facilidades do determinismo tecnolgico. Como lembra Gatan Tremblay (1990: 73), a pesquisa crtica deve:

    Reconhecer esta dupla fundamentao do desenvolvimen-to da mdia, esse duplo papel de constituio tanto da es-fera privada como da esfera pblica. Essa dualidade que permitiu a existncia de sistemas organizacionais do audio-visual to diferentes no seio de democracias autenticamen-te burguesas.5

    O segundo possvel caminho tentado pelos pesquisado-res latino-americanos foi o das polticas de comunicaes, que teve o incio de sua discusso com base nas propostas lanadas pela Unesco no final dos anos 1960, a partir do debate sobre o fluxo das informaes no mundo, em um momento em que a Guerra Fria dividia o planeta em duas 5 Traduo do autor.

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    partes. Em uma realidade que ainda era expressa em Leste e Oeste, a Unesco, que at ento no se manifestava muito em termos polticos, passou a encabear uma rede interna-cional de debates sobre as diferenas histricas existentes entre os hemisfrios Norte e Sul, tendo como foco o uso dos meios de comunicao. Aquela parte do planeta que no se alinhava diretamente nem com o sistema capita-lista americano/europeu nem com o comunista da Unio Sovitica e seus aliados representava uma grande parcela da populao. O Terceiro Mundo deveria ter sua prpria voz como difusora de cultura, conhecimento e desenvol-vimento.

    Diante dessa preocupao, a Amrica Latina teve uma importncia fundamental, pois a regio j vinha servindo de laboratrio da Unesco em seu projeto de associar co-municaes a desenvolvimento. O Centro Internacional de Estudios Superiores de Comunicacin para a Amrica Latina (Ciespal) j funcionava em Quito desde 1959 com o apoio da organizao, e as discusses em torno de polti-cas pblicas estavam adiantadas, tendo se intensificado nos anos 1970 com levantamentos encomendados a pesquisa-dores da regio com base em princpios lanados em Paris, em 1972.

    Fundamentada nos ensaios que tiveram a regio como cobaia, a Conferncia Intergovernamental de Comunica-o, em 1976, na Costa Rica deu as bases do paradoxo que ocorreu na regio em relao ao pioneirismo nos debates sobre polticas pblicas de comunicaes. O paradoxo da situao era que a maioria dos pases estava sob ditadura militar, mas se mostravam abertos ao debate sobre a de-mocratizao da comunicao. que para os militares, historicamente, a comunicao uma pea estratgica e deve estar nas mos do Estado. A confuso se dava por trs motivos: 1) pelo fato de haver um uso indevido do conceito

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    de pblico, que era usado como sinnimo de estatal; 2) pelo fato de os governos estarem se abrindo para o dilo-go com foras da sociedade que defendiam no somente a democratizao dos meios, mas a democratizao poltica; e 3) pelo fato de as elites proprietrias dos veculos de co-municao , em sua maioria, serem parceiras de primeiro momento dos militares.

    Dessa reunio saiu a Declaracin de San Jos, em que os pases que a assinam declaravam:

    [...] Que estabelecer planejamento e programas para o uso extensivo e positivo dos meios de comunicao dentro das polticas de desenvolvimento deve ser responsabilidade conjunta do Estado e dos membros da sociedade;Que as polticas nacionais de comunicao devem ser con-cebidas no contexto das prprias realidades, da livre expres-so do pensamento e do respeito aos direitos individuais e sociais;Que as polticas de comunicao devem contribuir para o conhecimento, compreenso, amizade, cooperao e in-tegrao dos povos, em um processo de identificao de alianas e necessidades comuns, respeitando as soberanias nacionais, o princpio jurdico internacional de no inter-veno entre os Estados e a pluralidade cultural e poltica das sociedades e dos homens, na perspectiva da solidarieda-de e da paz universais [...] (Unesco 1976).

    Todos esses princpios eram muito louvveis no papel, mas diante da realidade latino-americana de ter na poca a maioria de seus pases sob ditadura militar, as intenes da Unesco pareciam algo muito distante de ser colocado em prtica. Contudo, foi a partir da Declaracin de San Jos e da Resoluo n 100 da 19 Conferncia Geral da Unesco, em Nairobi, tambm em 1976, que saiu a base para o incio dos trabalhos da Comisso Internacional

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    para o Estudo dos Problemas da Comunicao, que teria a misso de fazer um exame geral dos problemas relativos Nova Ordem Mundial da Informao e da Comunica-o (NOMIC).

    Para presidir as atividades da comisso foi convidado Sean McBride, prmio Nobel da Paz (1974) e Lenin da Paz (1977), heri da independncia da Irlanda e funda-dor da Anistia Internacional. A comisso era composta por personalidades de vrias reas, sendo a maioria inte-lectuais. Dos 15 membros alm do presidente, dois eram latino-americanos: o escritor e jornalista Gabriel Garca Mrquez, da Colmbia, e o pesquisador Juan Somavia, do Chile.

    Muitos autores, de vrios pases, j trabalharam com a definio do conceito das polticas de comunicaes. As colaboraes apresentadas a seguir parecem as mais ade-quadas, pois so de trs latino-americanos. O pesquisador boliviano Beltrn (1982: 7), que desempenhou um impor-tante papel na defesa das idias contidas nesse conceito, pois j em 1971 fez parte daquela primeira comisso de especialistas formada pela Unesco para a elaborao de um documento internacional sobre o tema, explica:

    Uma poltica nacional de comunicao um conjunto integrado, explcito e duradouro de polticas parciais de comunicao harmonizadas em um corpo coerente de princpios e normas dirigidos a orientar a conduta das insti-tuies especializadas na participao do sistema de comu-nicao de um pas.

    Outra definio que chama a ateno a do pesquisa-dor argentino Joerge Daniel Cohen (1988: 69):

    A poltica nacional de comunicaes pode definir-se como o Conjunto de normas, princpios e prticas sociais relacio-nadas com a administrao, organizao e funcionamento

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    dos recursos humanos e tcnicos para orientar o sistema comunicacional de um pas.De modo que a poltica contempla no apenas as normas jurdicas, como tambm os princpios do sistema e as pr-ticas sociais.

    J o brasileiro Srgio Caparelli (1997) associa o conceito de poltica cultural para falar de comunicao:

    Para descrever esse tipo de estudo, no raro com um conte-do fortemente ideologizado, poderamos adaptar a con-cei tuao que Teixeira Coelho faz para poltica cultural, entendida habitualmente com o programa de interven-es realizadas pelo Estado, instituies civis, entidades privadas ou grupos comunitrios com o objetivo de satis-fazer s necessidades culturais da populao e satisfazer o desenvolvimento de suas representaes simblicas. Neste caso, basta substituir o termo cultura por comuni-cao e temos um conceito de poltica de comunicao [...].

    As trs definies so muito claras e se complementam. O grande problema do uso do conceito est no fato de que os estudos em torno das polticas de comunicaes ainda carecem de uma base terica e de uma metodologia con-sistentes. Um pesquisador que observa o mesmo problema Robert White (1985: 119), ao dizer que os pesquisadores crticos devem reconhecer as possveis inconsistncias e li-mitaes de seus prprios conceitos:

    Um problema mais perigoso e um problema que diz res-peito especialmente a pesquisadores de comunicao e aos que desempenham essa poltica que alguns dos maiores modelos de poltica que se dizem a base para desenvolver comunicaes mais democrticas, e que so as diretrizes reais para a poltica atual, incorporam muitssimas contra-dies e inconsistncias.

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    O alerta de Robert White foi dado h 20 anos, mas at hoje ainda preciso estar atento, principalmente em um mundo que de l para c atravessou uma srie de modifica-es, incluindo as paradigmticas. Pouco depois da queda do Muro de Berlim, na literatura acadmica ainda havia aqueles que insistiam em manter um discurso combativo, muitas vezes dogmtico, em lugar de refletirem e debate-rem sobre a nova realidade. Direcionando um texto exa-tamente para esses pesquisadores, Jos Marques de Melo viria a defender que no h mudana na retrica sem que haja uma alterao na postura acadmica, conselho que se aplica tambm a muitos estudiosos ligados vertente teri-ca que ser exposta a seguir.

    No se muda a retrica sem que haja uma mudana da pos-tura acadmica. E necessariamente essa mudana de atitu-de pressupe a diferenciao entre o trabalho de pesquisa e a militncia poltica. necessrio observar com ateno, no caso latino-ame-ricano, as experincias de pesquisa-denncia, pesquisa-ao, pesquisa-participante. So alternativas marcadas pela conjuntura de resistncia ao autoritarismo dos anos 1970 e 1980, mesmo que desgastadas pelas distores me-todolgicas de pesquisadores ingenuamente convertidos em missionrios de causas nobres, tornando-se cmplices de uma desvalorizao da atividade cientfica (Marques de Melo 1992: 46).

    A terceira via para uma possvel anlise aqui tratada a da economia poltica ortodoxa. Mesmo partindo do prin-cpio de que os interesses comerciais extrapolam os limites das empresas de comunicao na busca do lucro e se infil-tram no intrincado conjunto de corredores da burocracia do Estado, ou que por mais que as estratgias empresariais representem o principal peso na movimentao dos atores sociais, no se deve esquecer que

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    a histria dos meios de comunicao modernos no ape-nas uma histria econmica de sua crescente incorporao a um sistema capitalista, mas tambm uma histria poltica de sua insero cada vez mais forte no exerccio da cidada-nia (Golding & Murdock 2000: 76).

    Outro encaminhamento dado pelos pesquisadores in-gleses que h quatro pontos marcantes para a distino entre o estudo das polticas e estratgias no campo das co-municaes e a abordagem economicista: primeiramente, a rea dos sistemas de comunicaes holstica; em se-gundo lugar, histrica; em terceiro, direcionada para o equilbrio entre o setor privado e a interveno do Esta-do; e, finalmente, ainda segundo Peter Golding e Graham Murdock (2000: 73), talvez o mais importante de tudo, isso vai alm das vantagens tecnolgicas de eficincia para contemplar questes morais bsicas de justia, de eqidade e de bem pblico.

    O ponto-chave das mudanas que acabaram tambm chegando s empresas de comunicaes na Amrica Lati-na foi a crise do petrleo no incio dos anos 1970. A partir daquele momento, com a ameaa de uma inflao fora de controle e perdas financeiras incalculveis, governos e em-presas se viram obrigados a uma mudana radical em suas polticas e estratgias sem que tivessem o preparo adequado para isso. Para que fossem mantidas as estruturas, foi neces-sria uma reestruturao no modo de produo e nas rela-es capital e trabalho, a expanso de mercados em outros pases e, principalmente, o implemento de subsdios dos Estados para aumentar a produtividade e competitividade de empresas nacionais, em detrimento de projetos sociais.

    O estopim da crise do petrleo tambm afetou a aca-demia e a produo de anlises sobre os desdobramentos que tal fenmeno provocaria na sociedade. O ponto pu-

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    ramente economicista comeou a ser deixado de lado, e uma perspectiva crtica sobre os sistemas de comunicaes passou a ser exposta pouco a pouco nos estudos clssicos de Antonio Pasquali, Armand Mattelart, Cees Hamelink, David Samolo Amorin, Diego Portales, Elizabeth Fox, Emile McAnany, Fernando Reyes Matta, Hctor Schmu-cler, Herbert Schiller, Jess Martn-Barbero, Jos Marques de Melo, Kaarle Nordenstreng e Tapio Varis, Luis Rami-ro Beltrn, Mario Kapln, Patrcia Anzola, Rafael Ronca-gliolo e Roque Faraone, entre outros. Os aspectos sociais, polticos, culturais e da prpria comunicao foram enfim incorporados viso econmica.

    Do final dos anos 1970 culminando nos 1990, uma srie de pesquisadores deu continuidade a tal abordagem, mes-clando e adequando ainda mais referncias e anlises da economia poltica com as das polticas de comunicaes. Dessa linha pode se destacar uma nova gerao de estudio-sos, como Guillermo Mastrini, da Argentina; Alain Hersco-vici, Anita Simis, Csar Bolao, Dnis de Moraes, Edgard Rebouas, Juara Brittes, Luiz Gonzaga Mota, Mrcio Dantas, Murilo Csar Ramos, Othon Jambeiro, Roberto Amaral, Srgio Caparelli, Suzy Santos e Valrio Brittos, do Brasil; Delia Crovi, Enrique Snchez Ruiz e Jos Carlos Lozano, do Mxico.

    O quarto ponto de reflexo acabou sendo impulsionado na Amrica Latina baseado em estudos e prticas ligadas ao conceito de comunicao e desenvolvimento, em que as novas tecnologias de informao e comunicao poderiam ser aplicadas na regio como a panacia para os problemas do campo, com o uso do rdio e da TV para a extenso rural, e da cidade, com as mesmas tecnologias utilizadas para a educao. O sentido utilitarista dos meios provocou uma srie de equvocos, sendo supervalorizados por alguns e desprezados por outros.

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    No final dos anos 1980 e na primeira metade dos 1990 deu-se o pice do pensamento voltado para o determinis-mo tecnolgico. Diante da febre em relacionar todos os fenmenos das comunicaes questo da tcnica parecia no estar claro que no era a tecnologia que determinava as lgicas sociais. Como lembra Castells (2000: 25),

    o dilema do determinismo tecnolgico provavelmente um problema infundado, dado que a tecnologia a sociedade, e a sociedade no pode ser entendida ou representada sem suas ferramentas tecnolgicas.

    Ao seguir as pistas deixadas por Marshall McLuhan na dcada de 1960, com sua viso de aldeia global, Castells tinha a iluso de que a democratizao viria com a faci-litao do acesso, sendo que este um ponto altamente questionvel.

    importante lembrar o papel que o Estado tem sobre esse processo. Em nome do interesse pblico, ou aten-dendo a interesses empresariais, pode estabelecer ou no polticas de desenvolvimento tecnolgico. Desta forma, fazer com que a sociedade tenha acesso s inovaes, o que certamente mudar seu modo de vida. Foi assim com as estradas de ferro, com a luz eltrica, com o telgrafo, o telefone enfim, uma srie de tecnologias que se vincula-ram intimamente s prticas sociais. Tal fenmeno acabou dando uma importncia excessiva aos detentores dos siste-mas de conhecimento e de produo tecnolgica no s na Amrica Latina.

    No se sabe ainda se isso tudo est gerando uma nova estrutura social ou se a sociedade est se adaptando, como sempre o fez historicamente. O que pode ser analisado, isto sim, o surgimento de novos modos de produo, de circu-lao, de consumo e de regulao: a passagem do fordismo para o ps-fordismo ou gatessismo (Tremblay 1995).

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    O risco por que passam alguns pesquisadores latino-americanos o de cair na armadilha de, diante da velo-cidade com que evoluem as tecnologias, querer tratar de polticas de comunicaes somente por este prisma, como vem ocorrendo em muitos estudos ligados ao setor. A pauta mais recente a escolha do padro da televiso digital. O tema tem sido abordado como se fosse apenas vinculado a uma troca de aparelho, o velho pelo novo, mais ou menos como foi na passagem da TV em preto-e-branco para a TV em cores nos anos 1970. A questo deve envolver anlises muito mais profundas do que se a opo ser pelo modelo americano, europeu, japons, chins ou at brasileiro.

    O fato que os setores ligados ao capital se empenham cada vez mais em pesquisas ligadas s novas tecnologias. Enquanto isso, a maioria das pesquisas acadmicas na re-gio continua atrelada s conseqncias dos fenmenos tec-nolgicos em relao produo de sentidos por parte do receptor. O que ocorre que os interesses socioeconmicos acabam sendo deixados de lado pelos pesquisadores.

    Por fim, a quinta abordagem possvel a das hipteses e teorias sustentadas pelos estudos das indstrias culturais e da economia poltica da comunicao. A readequao do conceito cunhado por Theodor W. Adorno e Max Horkhei-mer em 1947 comeou a ser feita a partir do momento em que os textos dos principais pensadores da Escola de Frank-furt passaram a ser traduzidos do alemo nos anos 1970. E, a partir da, serem utilizados como alternativa paradig-mtica pelos pesquisadores das cincias sociais, sobretudo na Amrica Latina dominada por ditaduras militares. Mas a sociedade e os meios de comunicao mudaram muito. E uma das principais modificaes foi que os processos de produo, antes desprezados, ganharam uma especial im-portncia de anlise com o passar de quase 30 anos.

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    O ponto de vista que antes era tico-filosfico de Frankfurt passava a ser socioeconmico. Assim, a anlise das estruturas empresariais e das estratgias dos atores liga-dos ao setor das comunicaes caiu como uma luva para aquilo que estudiosos latino-americanos observavam, mas sem referencial terico.

    Os primeiros trabalhos com discusses dentro dessa nova perspectiva chegaram Amrica Latina por meio de intercmbios de pesquisadores da regio com auto-res como os franceses Bernard Mige e Patrice Flichy, os espanhis Enrique Bustamante e Miguel de Moragas Sp, o italiano Giuseppe Richeri e com os quebequenses Gatan Tremblay e Jean-Guy Lacroix. Todos se torna-ram presena constante em eventos cientficos na regio, abrindo espao para latino-americanos em seus centros de estudos.

    J os estudos de Vincent Mosco, sobretudo em seu tra-balho maior The political economy of communication: re-thinking & renewal, de 1996, tm entrado de forma mais lenta na regio, apesar de ter uma definio que se adapta com perfeio realidade latino-americana. No conjunto de sua obra, o socilogo parece ter conseguido reunir todas as conceitualizaes buscadas at agora para a compreen-so das relaes de poder em torno das polticas de comu-nicaes em trs nicas frases bem objetivas. Falando em economia poltica da comunicao, e no do uso da econo-mia poltica ortodoxa, ele define:

    O estudo das relaes sociais, principalmente das relaes de poder, que mutuamente constituem a produo, a dis-tribuio e o consumo de recursos. [...] Alm disso, a eco-nomia poltica tende a se concentrar em um ponto espec-fico das relaes sociais organizadas em torno do poder ou de sua habilidade para controlar outras pessoas, processos e coisas, mesmo que enfrentando resistncia. [...]

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    Uma outra definio um pouco mais geral e ambiciosa de economia poltica o estudo do controle e sobrevivncia em sociedade (Mosco 1996: 25-26).

    Concluses provisrias

    A necessidade do uso do termo provisrio para a conclu-so deste artigo se d pelo fato de na Amrica Latina tudo estar sempre em movimento, a regio vive em um eterno gerndio: descobrindo, fazendo, mudando, crescendo, er-rando, enfim, se encontrando. E no diferente nas cin-cias da comunicao.

    No caso das pesquisas, o mapa dos conceitos bsicos tem sido explorado pelos estudiosos da regio, mas, ao mesmo tempo, muitos compreenderam que era preciso trocar o lugar de onde eram formuladas as perguntas (Martn-Bar-bero 1993: 229). A perspectiva latino-americana, inspirada em uma mescla dos modelos europeus e americanos, com influncias regionais da teoria da dependncia, da teologia da libertao e da pedagogia do oprimido, tem se mostrado uma sada vivel para os pesquisadores preocupados com os sistemas de comunicaes e o papel que desempenham na sociedade.

    O posicionamento de alguns pesquisadores mais orto-doxos tambm tem mudado. Como ressalta Jos Carlos Lozano, na Amrica Latina, a dicotomia historicamente registrada entre os positivistas e os crticos tende a se diluir com a aproximao da perspectiva crtica com a dos estu-dos culturais:

    Por caminhos diferentes, os positivistas reconsideraram a influncia da mdia e perceberam algumas de suas insufi-cincias []. Paralelamente, as abordagens crticas de maior destaque atualmente, dos culturalistas, se distan-ciaram do pessimismo das tradies crticas apriorsticas e

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    abandonaram a concepo das audincias passivas e facil-mente manipulveis (Lozano 1996: 25).

    O sentido crtico e transformador visvel nos caminhos abertos por Paulo Freire conduz os pesquisadores latino-americanos em economia (e) poltica de comunicaes a uma utopia possvel, em que a prxis ocupa o lugar da torre de marfim. Caminho este que tem ainda muito a aprender, mas j um pouco a ensinar.

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