estratégias para auxiliar os sem - abrigo na cidade de lisboa · definições de sem-abrigo ......
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Relatório Final (versão em português)
2009
Estratégias para Auxiliar os Sem-
Abrigo na Cidade de Lisboa
Coordenador:
Prof. Doutor José Lúcio
Equipa de Investigação:
Dra. Filomena Marques
Dr. Luís Almeida
Dr. Rui Carvalho
1
Índice
Introdução................................................................................................. 3
I. Conceptualização teórica sobre a Pobreza, Exclusão e o fenómeno dos Sem-
Abrigo.....................................................................................................…6
1.1. Pobreza e Direitos Humanos ........................................................................................................................... 7
1.2. A Pobreza ............................................................................................................................................................. 10
1.3. A Exclusão Social .............................................................................................................................................. 17
1.4. As Pessoas Sem-abrigo .................................................................................................................................... 24
1.4.1. O Direito à Habitação ....................................................................................................................................... 24
1.4.2. A problemática do conceito de sem-abrigo ............................................................................................... 30
1.4.3. Definições de Sem-Abrigo .............................................................................................................................. 33
1.4.4. Porque as Pessoas são Sem-Abrigo? ............................................................................................................ 41
1.4.5. Abordagem dos Sem-Abrigo de acordo com uma Perspectiva Ecológica ....................................... 43
II. Compreender o Fenómeno dos Sem-Abrigo nos Estados Unidos da América:
O que é e o que está a ser feito? ............................................................. 49
Nota de Abertura ............................................................................................................................................................ 50
2.1. A “Modernização” da Sociedade Norte-Americana e a “Modernização” do Fenómeno dos Sem-Abrigo nos Estados Unidos da América ........................................................................................................ 53
2.2. “Os Sem-Abrigo contam”: Contando e Explicando os Sem-Abrigo nos Estados Unidos da América .............................................................................................................................................................................. 60
2.3. Breve nota acerca da investigação sobre a questão dos Sem-Abrigo nos Estados Unidos da América .............................................................................................................................................................................. 79
2.4. Estratégias para ajudar os Sem-Abrigo nos Estados Unidos da América – Uma Perspectiva Diacrónica e alguns exemplos actuais ..................................................................................................................... 84
III. Conhecer o Fenómeno dos Sem-Abrigo em Portugal e Lisboa…..112
3.1. O fenómeno dos Sem-Abrigo em Portugal ............................................................................................. 113
3.2. O Perfil do Sem-Abrigo na Cidade de Lisboa ........................................................................................ 119
IV. Estratégias actuais de apoio aos Sem-Abrigo na cidade de Lisboa..131
4.1. Breve Perspectiva Histórica ......................................................................................................................... 132
4.2. Respostas existentes na cidade de Lisboa............................................................................................... 136
4.3. Estratégias e Políticas de Inclusão Social ............................................................................................... 139
4.3.1. Na Europa ......................................................................................................................................................... 139
2
4.3.2. Em Portugal ...................................................................................................................................................... 143
4.4. Estratégias para as Pessoas Sem-Abrigo ................................................................................................. 152
4.4.1. Estratégia Nacional para a Integração de Pessoas Sem-Abrigo – 2009-2015 ................................ 152
4.4.2. Plano Cidade para a Pessoa Sem Abrigo – Lisboa ................................................................................ 159
Conclusões ............................................................................................. 163
Bibliografia………………………………………………………………164
3
Introdução
Este projecto de carácter exploratório surge na sequência de reuniões tidas com a
Vereadora do Pelouro da Acção Social da Câmara Municipal de Lisboa. No decurso
dessas reuniões, a Vereadora responsável pelo Pelouro acima mencionado, manifestou
interesse na colaboração do E-GEO, no domínio da ampla revisão do actual quadro de
políticas sociais conduzidas pela Edilidade. Assim, pretende-se com este projecto
aprofundar uma temática de grande relevância no quadro das políticas sociais de base
local e, em simultâneo, obter ganhos e economias de escala e tempo, uma vez que o
trabalho tirará partido de uma colaboração entre o E-GEO e a Câmara Municipal de
Lisboa.
Como primeira etapa de investigação, cumpre referir a estadia de três semanas (do
coordenador do presente projecto de investigação) no Departamento de Sociologia da
University of Southern California (USC) no mês de Setembro de 2007. Cumpre, aqui,
agradecer aos Professores Tim Biblarz, Michael Messner e Elaine Kaplan do referido
Departamento. Foi através da oportunidade de investigação concedida que o presente
projecto começou a ganhar forma. No âmbito dessa estadia de três semanas, efectuou-se
um primeiro levantamento de estratégias e políticas de apoio aos sem-abrigo em curso
nos EUA e iniciou-se um primeiro contacto com a realidade norte-americana.
Deste modo, a primeira etapa de investigação permitiu balizar, da forma mais
adequada, o tipo de objectivos e metodologias a seguir no âmbito do presente trabalho.
Por outro lado, o presente Projecto tem como Consultor Externo o Professor
Elliott Sclar do Earth Institute/Columbia University. Pretendeu-se, com esta consultoria,
garantir as melhores condições de sucesso do presente projecto de investigação e, em
simultâneo, ter a possibilidade de aceder aos recursos científicos e académicos de uma
instituição de renome internacional no domínio dos estudos sobre pobreza e exclusão. É
importante mencionar que o Professor Elliott Sclar possui um currículo académico e
profissional adequado ao perfil de Consultor Externo para um Projecto nesta área
4
temática. Acresce, ainda, que o projecto irá incluir uma comparação com a realidade
norte-americana, no domínio das estratégias de apoio à população sem-abrigo. Esta
opção justifica-se por dois motivos:
a) Os Estados Unidos da América têm grande tradição no domínio da
investigação e da acção no que concerne aos problemas da exclusão do
mercado habitacional formal;
b) A Câmara Municipal de Lisboa pretende, até certo ponto, inspirar-se em
experiências norte-americanas no quadro do apoio à população sem-abrigo,
nomeadamente nos princípios filosóficos e organizacionais dos denominados
“Ten Year Plans”.
Assim, pensou-se que a opção por uma ligação internacional ao Earth
Institute/Columbia University, no quadro da execução deste projecto, se afigurava como
adequada e benéfica para a melhor concretização dos objectivos propostos. Deste modo,
efectuou-se um conjunto de quatro deslocações aos Estados Unidos no decurso da
elaboração do projecto: duas em 2008 e outras duas em 2009. As referidas deslocações
tiveram como objectivos a recolha bibliográfica, a discussão de materiais produzidos
com o Consultor Externo e a realização de entrevistas a investigadores e a dirigentes
com interesses e responsabilidades nesta temática1.
O presente relatório irá abordar, sequencialmente, os seguintes pontos:
a) Perspectiva teórica sobre os conceitos de Pobreza, Exclusão e Sem-Abrigo;
b) Análise das estratégias desenvolvidas nos EUA para apoiar a população sem
residência permanente;
c) Quantificação do fenómeno dos sem abrigo à escala do país (Portugal) e, mais em
pormenor, à dimensão da Cidade de Lisboa;
d) Estudo das estratégias (recentes e actuais) desenvolvidas pelas autoridades
municipais de Lisboa, em apoio dos sem abrigo.
1 Elliot Sclar, Martha Burt, Carol Canton, Sam Tsemberis, Tony Hannigan, Aaron Levitt, Kim Hopper.
5
Pretende-se com o presente projecto de investigação, analisar em que medida é que a
filosofia subjacente às estratégias desenvolvidas nos EUA, e em particular as que têm
como palco a área urbana de Nova Iorque, poderá ser “adaptada” à realidade da
principal cidade do país. Nesta análise ter-se-á em consideração as características,
tipologias, história e nexos de causalidade do fenómeno dos sem abrigo em Lisboa. Por
este motivo, inclui-se no Relatório de Projecto um estudo detalhado quer da
quantificação do fenómeno, quer do historial recente das estratégias levadas a cabo pela
Edilidade do maior aglomerado urbano de Portugal.
Esperamos, assim, dar uma contribuição para uma futura
reformulação/reposicionamento das estratégias de apoio à população sem-abrigo na
cidade de Lisboa.
6
Capítulo I
Conceptualização teórica sobre a Pobreza, Exclusão e o fenómeno dos Sem-Abrigo
7
1.1. Pobreza e Direitos Humanos
No ano em que é celebrado o 60º aniversário da assinatura da Declaração
Universal dos Direitos Humanos2 (ou seja, em 2008), o Banco Mundial, publica, no mês
de Agosto, uma nova avaliação da pobreza, colocando o número de pobres, no mundo,
na casa dos 1,4 mil milhões de pessoas. Mais 40% face aos 930 milhões apresentados em
2005. Na Europa de Leste e Ásia Central, o número de pobres mais do que triplicou
entre 1981 e 2005, passando de sete para 24 milhões. No continente africano a situação é
dramática. Na África Subsariana a pobreza manteve-se estável em termos percentuais –
atingindo cerca de metade da população – mas quase duplicou em termos absolutos3.
“As mortes sem sentido em Bombaim, os milhares de pessoas em fuga do conflito na República
Democrática do Congo, as centenas de milhares de pessoas encurraladas em condições extremas no
Darfur, em Gaza, na zona norte do Sri Lanka, e uma recessão económica global que pode empurrar
muitos milhões para a pobreza, criam uma plataforma premente para a acção no âmbito dos direitos
humanos,” afirmou a Secretária-Geral da Amnistia Internacional, Irene Khan, no dia 10
de Dezembro de 20084.
Na União Europeia (UE), uma parte importante da população continua a viver
em situação de exclusão social, dado que uma em cinco pessoas vive em habitações
degradadas; cada dia, cerca de 1,8 milhões de pessoas são acolhidas em centros
especializados para os sem-abrigo; 10% vivem em agregados familiares desempregados;
o desemprego de longa duração aproxima-se dos 4%; 31 milhões de trabalhadores, ou
seja 15%, auferem ordenados extremamente baixos; 8%, ou 17 milhões de trabalhadores
encontram-se em situação de pobreza monetária apesar de terem um emprego; a
proporção de jovens que abandona o ensino precocemente ultrapassa os 15%; e que a
2 A Declaração Universal dos Direitos Humanos foi redigida, em 1948, por Eleanor Roosevelt e dois outros juristas. Os trinta artigos da Declaração organizam-se em quatro grandes dimensões: i) A das prerrogativas pessoais de todos os indivíduos, como o direito à vida, o direito de não ser torturado ou escravizado, o de ser protegido pela lei e por uma justiça imparcial; ii) A dimensão dos direitos decorrentes da vida em sociedade, como o direito à vida privada, à família e à propriedade, o direito de circulação, nacionalidade e asilo; iii) A dimensão das liberdades públicas, como a de pensamento e de crença, a de expressão, reunião e associação, ficando bem explícito, no artigo 21º que “A vontade do povo é o fundamento da autoridade dos poderes públicos (…)”; finalmente, iv) A dimensão dos direitos económicos, sociais e culturais, onde são proclamados os direitos ao trabalho, ao salário (“igual para trabalho igual”), à segurança social, ao descanso e às férias, bem como os direitos à saúde e ao bem-estar, à educação básica gratuita e à participação na vida cultural e científica.
3 Fonte: Banco Mundial (Agosto, 2008)
4 Data do Aniversário da assinatura da Declaração Universal dos Direitos Humanos
8
fractura digital se mantém (44% da população da UE não sabe utilizar a Internet nem
um computador)5.
No momento em que a crise financeira alastra, existe um risco muito concreto de
que as pessoas e as comunidades mais pobres e marginalizadas do mundo venham a
encontrar-se numa situação ainda pior do que aquela em que vivem actualmente. A
pobreza é, ao mesmo tempo, causa e consequência de violações dos direitos humanos.
Para muitas pessoas, a Declaração Universal continua a ser uma promessa incumprida, já
que a vontade política dos Estados em matéria de cumprimento dos seus compromissos
está lamentavelmente muito aquém das suas promessas.
Hoje em dia chega-se à conclusão que têm existido inúmeros fracassos ao nível
dos direitos humanos6. Apesar dos tratados, cartas de intenção, convenções e outros
documentos, tem sido difícil, ao longo destas seis décadas, combater a pobreza e
estabelecer a igualdade de oportunidades. Perante os dados estatísticos acima
referenciados, acentua-se a ideia de que “os ricos são cada vez mais ricos e os pobres
cada vez mais pobres”. Estamos, assim, a falar de desigualdades e “(…) a desigualdade é
uma questão de direitos humanos. O Artigo 1º da Declaração Universal dos Direitos Humanos
estabelece que todos crescemos livres e iguais em dignidade e direitos. Para os pobres esta afirmação é uma
enorme fraude (…)” (Sané, 2007:18)7. Poderemos alvitrar que existem vícios ao nível dos
sistemas económico, social e cultural que destroem os esforços individuais, institucionais
e até políticos.
Os direitos humanos que têm estado em segundo plano são os da área económica,
social e cultural: muito tem falhado ao nível dos cuidados de saúde, habitação e
alimentação. Sabemos que os diferentes direitos humanos (civis, políticos, culturais,
económicos e sociais) estabelecem entre si relações de causalidade, reforçando-se
mutuamente, podendo “(…) criar sinergias capazes de contribuir para que os pobres assegurem os
5 Fonte: Resolução do Parlamento Europeu, de 9 de Outubro de 2008, sobre a promoção da inclusão social e o combate à pobreza, nomeadamente a pobreza infantil, na UE (2008/2034(INI)).
6 Foi considerado na Declaração Universal dos Direitos Humanos “que o reconhecimento da dignidade intrínseca a todos os membros da família humana e o da igualdade e inalienabilidade dos seus direitos são o fundamento da liberdade, da justiça e da Paz no mundo”.
7Ribeiro, E.; Oliveira, I.; Silva, M. (Org.) (2007) Pobreza, Direitos Humanos e Cidadania, Comissão Nacional de Justiça e Paz, Lisboa.
9
seus direitos, desenvolvam as suas potencialidades humanas e escapem à pobreza. Devido a estas
complementaridades, a luta pela realização dos direitos económicos e sociais não deve ser separada da
luta pela realização dos direitos civis e políticos. E elas devem, as duas, ocorrer em simultâneo (…)”8.
Alguns estudos têm demonstrado correlações significativas entre direitos como, por
exemplo, a liberdade de expressão e participação na vida política, na prevenção de
catástrofes sociais. Um dos autores que chamou a atenção, na sua vasta obra, para este
facto foi Amartya Sen, referindo que os direitos políticos são fundamentais não só para
procurar respostas políticas às necessidades económicas, mas também são centrais para a
própria formulação dessas necessidades económicas. E um dos sistemas, que não sendo
perfeito, garante uma maior participação dos cidadãos é a Democracia.
Sen, na sua análise das “Fomes”, defende que, perante os valores da democracia, é
mais difícil a existência das mesmas, pois uma oposição derrubaria um governo que não
atendesse às necessidades dos seus cidadãos, no entanto, um ditador não teria que se
preocupar com o bem-estar do seu povo, principalmente os mais carentes, pois são os
que têm menos poder. A existência de democracia e liberdade de imprensa são
fundamentais, pois forçam os governos a agir mais rapidamente quando se prevê, por
exemplo, uma Fome. Amartya Sen compara o exemplo da Índia ainda não democrática9,
do Sudão e da Etiópia, com países democráticos como o Zimbabué e o Botswana, onde
as Fomes foram evitadas devido a rápidas políticas públicas. A produção alimentar foi
duramente atingida durante a seca de 1973, em Madrasta. Mas os políticos eleitos
reagiram com programas de obras públicas para 5 milhões de pessoas e evitaram uma
Fome.
As democracias também contribuem para a estabilidade política, criando espaço
para a oposição política e para a alternância do poder. Entre 1950 e 1990, os tumultos e
as manifestações foram mais vulgares nas democracias, mas foram muito mais
desestabilizadores nas ditaduras. As guerras foram mais frequentes em regimes não
democráticos e tiveram custos económicos muito mais elevados.
8 Relatório do Desenvolvimento Humano (2000:73).
9 A última Fome, em 1943, matou entre dois a três milhões de pessoas
10
É de salientar que a governação democrática pode desencadear um ciclo virtuoso
de desenvolvimento, uma vez que a liberdade política dá poder às pessoas para
exercerem pressão a favor de políticas que aumentem as oportunidades sociais e
políticas, e na medida em que os debates abertos ajudam as comunidades a moldar as
suas prioridades. Da Indonésia ao México as iniciativas que foram tomadas no sentido
da democratização e da abertura política, ajudaram a produzir este tipo de ciclo virtuoso,
com uma imprensa livre e um activismo da sociedade civil, fornecendo às pessoas novas
maneiras de participar em decisões e em debates políticos.
Cada vez mais as Organizações Não Governamentais (ONG’s), com o seu
crescimento e organização em rede, têm um papel importante, em todo o mundo, na
transição para a democracia10, na mudança para sociedades mais abertas e na expansão
da solidariedade mundial no que diz respeito aos Direitos Humanos. As que antes
concentravam a sua acção nos direitos civis e políticos estão a prolongar as suas
actividades aos direitos económicos, sociais e culturais, especialmente para aqueles que
são mais vulneráveis. Na Argentina, um conjunto de ONG’s apresentou um pedido ao
Ministério da Saúde em que desaprovava a falta de cuidados de saúde e de
medicamentos adequados para as pessoas infectadas pelo VIH/SIDA, pois a
Constituição do país estabelecia o direito dos cidadãos à protecção estatal, e ela estava a
ser violada. Temos ainda movimentos como o ATD – Quart Monde, que organiza e dá
voz à Pobreza, juntando-se a modernas concepções da invisibilidade dos direitos, e a
estudos sociais pioneiros da inter-acção da dinâmica cultural apelando à participação
social.
1.2. A Pobreza
A actual percepção da dicotomia existente entre o Mundo Desenvolvido e
o Mundo em Desenvolvimento decorre, de uma forma geral, da diferença e das
desigualdades de crescimento. A fórmula que levou a este fosso e ao seu
alargamento progressivo é complexa, já que actualmente são vários os factores
explicativos, que dependem das próprias especificidades regionais. Contudo, a
10 Em alguns países com regimes autoritários, as ONG’s têm sido, com alguma frequência, uma força de oposição política.
11
raiz desta realidade pode-se reportar ao advento da Revolução Industrial, a qual
teve consequências em todos os sectores da sociedade “(…) a Revolução Industrial
e o crescimento económico moderno que se lhe seguiu mudaram a existência das pessoas em
todos os aspectos fundamentais: onde e como vivem, que tipo de trabalho ou actividade
económica desempenham, como formam famílias (…)” (Sachs, 2006:75).
No fundo, e tal como enfatiza Sachs (2006), esta revolução foi mais que o
aumento da produção e o fomento do crescimento económico, foi um processo
de mudança e de transição paradigmático, que por sua vez “(…) criou uma
desigualdade global em termos de riqueza e poder (…)” (Sachs, 2006:79). Desde este
marco, a ordem global estabeleceu-se a diferentes ritmos de crescimento e mudança
que, por efeito multiplicador, continua a subsistir, e a divergir até aos dias de hoje,
sendo que as “(…) grandes desigualdades actuais de rendimento reflectem dois séculos de
predomínio de crescimento económico extremamente desiguais (…)” (Sachs, 2006:67).
Neste sentido, é visível que a percepção das desigualdades é hoje muito
maior, fruto da própria disseminação e difusão do conhecimento que aproxima a
realidade real da realidade percepcionada. Este problema é hoje conhecido e,
mais importante, é parte da agenda política mundial.
As divergências criadas e existentes entre regiões e países incidem assim
não apenas numa desigual distribuição de rendimentos, como também numa
desigual equidade de oportunidades, de acesso à saúde, à educação, à
alimentação, no fundo à possibilidade de uma existência digna, de uma cidadania
plena (recursos + direitos), sem privações, que se traduz, à escala nacional ou
regional, num maior ou menor desenvolvimento, que, em última análise, se
consegue através da erradicação da pobreza (e melhoria das condições de vida).
A pobreza é assim um fenómeno (e sobretudo uma constatação)
generalizado na sociedade, que tem merecido uma discussão e análise por parte
de várias disciplinas, sendo que “(…) a última década do século XX presenciou um
renovar da preocupação com a extensão e persistência da pobreza (…)” (Ferreira, 2000:11,
citando Hoeven e Rodgen:1995).
A pobreza é um fenómeno muito variável, quer no espaço, quer no tempo
e o seu significado deve ser entendido de uma forma aberta e abrangente e não
12
redutora, o que tem implicações, tanto na dificuldade em definir o fenómeno,
como na dificuldade em o quantificar, classificar e generalizar. Deste modo,
verifica-se que cada sociedade apresenta diferentes visões sobre a pobreza, em
função do seu próprio padrão de vida e das condições que oferece aos seus
cidadãos, onde, em última instância, se pode abordar o fenómeno à escala do
indivíduo. Nas palavras de Ferreira “(…) o problema da pobreza é pois um problema
velho como o mundo, assumindo sempre novas configurações e constituindo sempre um desafio
para que as sociedades criem mais justiça e solidariedade entre todos os seus membros (…)”
(Ferreira, 2000:12)
Exprimindo esta dificuldade, é visível que a conceptualização de um
conceito de pobreza é extremamente intrincada o que, consequentemente, torna
a operacionalização de programas e “soluções” de combate à pobreza numa
tarefa de dificuldade acrescida, a vários níveis de decisão política.
São várias as teorias e abordagens a esta problemática, mais ou menos complexas,
com maior ou menor ênfase nas questões sociais ou nas questões económicas
(rendimento).
Luís Capucha, na sua Tese de Doutoramento – Desafios da Pobreza, (2005) leva-nos
às duas principais tradições teóricas que presidem a este problema. Por um lado, a
perspectiva culturista, assente no conceito de “cultura de pobreza”. Por outro, a
perspectiva socioeconómica. A primeira, ao estabelecer como central o conceito de
“cultura da pobreza”, ficou conhecida como perspectiva “culturalista”. A sustentar esta
tradição estão diversos estudos de cariz investigação-acção, assentes em metodologias
intensivas e em terminologias do foro micro-sociológico, tais como a noção de modos
de vida e histórias de vida. São particularmente abordados objectos como o
despovoamento das áreas rurais deprimidas, os estilos de vida em áreas urbanas
degradadas, ou as trajectórias de vida dos grupos “ à margem”, como os sem-abrigo,
jovens em risco, minorias étnicas, toxicodependentes, entre muitos outros.
Já na segunda perspectiva, a socioeconómica, assistimos aos debates teórico-
conceptuais em torno de termos como pobreza absoluta, relativa e subjectiva.
Metodologicamente assente num plano extensivo, esta é a perspectiva que mais se
13
aproxima daquilo a que podemos chamar os grupos-alvo das políticas sociais activas,
pelo facto da definição de pobreza estar intimamente ligada a uma condição na qual a
falta de acesso a serviços como a saúde, a educação, a segurança social e os mínimos
recursos financeiros por parte de indivíduos de determinados grupos sociais, prejudica
ou impossibilita a subsistência dos mesmos.
Crain e Kalleberg apontam, também, para duas visões: a primeira refere-se ao
facto de as pessoas serem pobres devido às suas características individuais, ou seja,
colocando o “(…) focus on the socioeconomic attributes and individual behavioral tendencies of the
poor, emphasizing the «culture of poverty» (…) [e, de acordo com a segunda perspectiva, a
pobreza pode ser considerada] (…) as a structural feature of a capitalistic economy that is rooted
in the institutions of society (…)” (Crain e Kalleberg, 2007:4-5). O mesmo autor assegura
ainda que, ao se atribuírem as causas da pobreza às características individuais de cada um
é uma forma de “blame the victims”; a pobreza não pode ser atribuída a insuficiências
individuais, mas, sobretudo, a factores socioeconómicos.
Existe uma outra teoria, no seguimento da anterior linha de pensamento, a
Geográfico-Marxista, que consiste, muito sucintamente, na afirmação de que a
desigualdade e a pobreza são produzidas, inevitavelmente, pelas sociedades capitalistas; a
ideia geográfico-social refere-se ao facto de que a desigualdade pode transmitir-se de
geração em geração, através do meio ambiente de oportunidades e serviços, no
momento do nascimento de cada indivíduo.
Considerando a vasta bibliografia produzida sobre o tema da pobreza desde os
anos 1960, à partida, não seria difícil defini-la. Desta literatura poderíamos retirar
critérios simples e concisos que nos ajudariam a desenvolver, de uma forma precisa e
sintética, uma definição de Pobreza. Infelizmente, esta vasta bibliografia conduz-nos a
uma infinidade de regras e normas que torna complexo chegar-se a uma definição de
pobreza.
Colocam-se, logo à partida, duas grandes questões como por exemplo “o que é?” e
“como deve ser definida?”. Os critérios são excessivos devido à complexidade da realidade,
onde se cruzam inúmeros factores. Deveria ser suficiente afirmar que a pobreza é a
situação em que as pessoas se encontram privadas de meios para assegurar a sua
14
sobrevivência e satisfazer as suas necessidades básicas, tais como alimentação, vestuário,
habitação e cuidados de saúde. Assim, poderemos considerar uma pessoa pobre a que
não consegue satisfazer as suas necessidades básicas e naturais?
Alguns investigadores consideram duas abordagens diferentes – a da pobreza
absoluta e a da pobreza relativa. A primeira está associada às ideias de subsistência e à
satisfação das necessidades básicas dos indivíduos, tais como a comida, a roupa e ter um
abrigo. As pessoas que carecem destes requisitos vivem em situação de pobreza. A maior
parte dos autores defende que a pobreza absoluta é universal e que, em qualquer parte
do mundo, coabita na pobreza quem estiver abaixo destes padrões de subsistência.
No entanto, para os seres humanos, a subsistência não significa apenas o “manter-
se vivo” através da satisfação das funções fisiológicas, mas implica, sobretudo, a noção
de decência. A decência não pode ser analisada fora de um contexto particular que lhe dá
um significado especial. Jean Labbens11, muito pertinentemente, afirma que “l’évaluation
des nécessités ne peuvent pas être fait seulement sur les nécessités purement physiologiques. Ne c’est pas
uniquement une matière de subsistence, mais surtout une subsistence décent. La décence est une matière
social”.12
A decência13 tem, de facto, implícita uma noção social. Se for circunscrita às
questões da subsistência, veremos que a representação social da pobreza é diferente de
sociedade para sociedade e, na mesma sociedade, consoante os períodos históricos14.
Temos, pois, que ter em consideração os contextos. Mas confrontamo-nos com a
dificuldade de os delimitar: a uma comunidade específica, a uma região onde vivem os
11 Militante da Association ATD – Quart Monde, denuncia as injustiças e chama a atenção para intervenções que agreguem os “esquecidos” do progresso, ou seja, aqueles que não conseguiram manter-se ou tornar-se assalariados.
12 LABBENS, Jean – Sociologie de la Pauvreté: le Tiers Monde et le Quart Monde, Gallimard, Paris, 1978, pág. 78
13 Gerry Rodgers utiliza o conceito de “decent work” como “(…) for everybody and everywhere, decent work is about securing human dignity. The expression of these goals will be different if you are an agricultural labourer in India or a high tech worker in Silicon Valley, but there is a common underlying idea, that people have aspirations which cut across and bring together these different domains (…)” (ILO, 2001, Reducing the decent work deficit, Report of the Director General to the 2001 International Labour Conference, Geneve). 14 A este propósito podemos citar Amartya Sen: “(…) Há dificuldade em traçar uma linha num sítio qualquer, e as chamadas ‘necessidades nutricionais mínimas’ têm uma arbitrariedade inerente que vai muito para além das variações entre grupos e regiões (…)” (SEN, A., Pobreza e Fomes, Terramar, Lisboa, 1999: 28) e David SHIPLER (2008:8) “(…)The American poor are not poor in Hong Kong or in the sixteenth century; they are poor here and now, in the United States (…)”.
15
pobres, ou pode ser alargada em termos mundiais? O nível da pobreza deverá ser
considerado de acordo com medidas locais ou internacionais? Em suma, a pobreza
absoluta está directamente associada à ideia de sobrevivência biológica, à satisfação dos
mínimos sociais necessários à reprodução da vida, com um mínimo de dignidade
humana. E de acordo com Hélio Jaguaribe, “(…) embora este ‘mínimo de dignidade’ esteja
parcialmente sujeito a determinações culturais, supõe-se que os requerimentos impostos pela mera
sobrevivência física sejam razoavelmente universais, permitindo assim o estabelecimento de uma linha de
pobreza coincidente com esses requerimentos mínimos (…)” (Jaguaribe 1989:64).
Existem outros autores que alegam que é mais adequado utilizar o conceito de
pobreza relativa que traduz a satisfação das necessidades em relação ao padrão de
desenvolvimento e ao modo de vida de uma dada sociedade. Os adeptos deste conceito
consideram que a pobreza é determinada em termos culturais e não deve ser medida de
acordo com um modelo de privação universal. Não podemos advogar que as
necessidades humanas são iguais em todo o mundo, pois elas são distintas entre as
diversas sociedades: em sociedades desenvolvidas, por exemplo, o consumo regular de
frutas e vegetais é entendido como essencial para uma vida saudável, no entanto, nos
países em vias de desenvolvimento estes não estão divulgados junto da população.
A definição de uma linha de pobreza permite, à partida, calcular uma taxa simples
de pobreza, que, por um lado, nos dá o número de pobres mas que, por outro, não nos
permite identificar a intensidade da pobreza, isto é, quão pobres são os pobres, partindo
do pressuposto que existem grandes diferenças entre indivíduos e os grupos daqueles
que se consideram como estando abaixo da linha da pobreza, isto é, considerando-se que
existem dinâmicas diferenciadas dentro dos que “não têm”.
Neste sentido, a linha de indigência faz esta distinção, separando os que estão
entre esta linha e a linha da pobreza, como os que não têm suficiente rendimento para
proporcionar a si e à sua família os bens primários (alimentação, vestuário e habitação); e
os que estão abaixo da linha de indigência, como os que não têm rendimento suficiente
para comer, encontrando-se em situação de fome.
A definição diferenciada destas duas dinâmicas tem particular relevância nas
agendas políticas, dado que se pode optar por uma política que beneficie aqueles que
16
estão abaixo da linha de indigência, dando-lhes uma possibilidade de sobreviver que, no
entanto, não tem reflexos na taxa geral de pobreza, ou pode optar-se por uma política
que promova a diminuição da taxa de pobreza, incidindo especialmente naqueles que
estão mais próximos de sair da linha de pobreza. Esta é então uma situação complicada e
sensível que merece reflexão e atenção particular.
Pode, no entanto, adoptar-se uma diferente forma de medição dos níveis de
pobreza que seja mais consentânea com as realidades particulares de cada país e que não
esconda situações mais graves, como é o caso da brecha da pobreza – poverty gap. Esta é
definida através do cálculo da diferença média entre o rendimento médio dos pobres
(em relação à população total) e o rendimento necessário para chegar à linha de pobreza.
É então um modo de avaliar e percepcionar as reais distâncias a percorrer, sendo um
instrumento essencial para a criação e elaboração de programas específicos, permitindo
definir dentro dos mais pobres, vários sub-grupos que merecem atenção especial.
Os pressupostos económicos são insuficientes para conseguir proceder à
quantificação e classificação exacta dos mais pobres. Contudo, o estudo da pobreza não
é uma ciência exacta, compreendendo-se que é necessário seguir determinadas linhas de
análise para efectivamente ser conseguida uma generalização; mas é também necessário
não cair numa generalização abusiva, dado que existem especificidades intrínsecas que
importa compreender.
Ao falarmos em pobreza, não poderíamos olvidar um fenómeno recente (anos
1980/90) – a pobreza urbana. Caracteriza-se por ser uma forma de pobreza atípica, isto
é, não são visados, somente, os grupos de indivíduos tradicionalmente pobres, e deriva
sobretudo do fenómeno de urbanização crescente que se verifica em todo o mundo,
dadas as especificidades inerentes às cidades, que possibilitam uma maior oferta de
emprego, uma melhor qualidade de vida, entre outros. No entanto, este sonho não é real
para todos, uma vez que a concentração urbana (em termos de população e, mesmo,
actividades económicas, tem trazido fenómenos de pobreza muito graves, também
associada ao fenómeno de exclusão social.
Este tipo de pobreza afecta sobretudo indivíduos que se enquadram em perfis
diferentes, como por exemplo trabalhadores assalariados, novos migrantes e idosos. O
17
próprio perfil deste tipo de grupos faz com que não tenham uma delimitação geográfica
bem definida, como os grupos tradicionais, encontrando-se dispersos pela cidade. Por
este motivo, são uma classe difícil de quantificar e de enquadrar nos programas
existentes de combate à pobreza, dificultando a existência de um melhor conhecimento e
de maior informação sobre esta realidade.
O caso dos trabalhadores assalariados é um caso que merece particular atenção,
uma vez que ter uma ocupação profissional sempre foi considerado um meio para deixar
de ser pobre. Actualmente, esta realidade é mais complexa. O caso particular dos
trabalhadores pobres tem que ver sobretudo com a sua perda de poder de compra
(compressão salarial na base da escala), em que o seu salário já não permite adquirir
todos os bens de primeira necessidade.
Muitas vezes estes indivíduos são forçados a “deixar” as suas casas, por falta de
pagamento de rendas/hipotecas e vêm “cair” na rua (o caso dos sem-abrigo).
1.3. A Exclusão Social
Os conceitos de pobreza e exclusão social são muitas vezes utilizados como
sinónimos, embora cada um deles encerre diferentes formas teóricas. Não sendo
sinónimos, estes conceitos são, no entanto, complementares, uma vez que o conceito de
exclusão associa ao conceito de pobreza uma dinâmica que encerra as problemáticas do
desenvolvimento humano e social. “A eliminação da pobreza enquadrar-se-ia na dinâmica do
progresso social, ou progresso na equidade, definido como o incremento do conjunto de necessidades
acessíveis a todos numa base igualitária. O desenvolvimento, não meramente o desenvolvimento económico
mas o desenvolvimento humano, aumentaria ainda a procura da equidade (…)” (Ferreira, 2000:39,
cit. Scitovsky, 1986:7). Presentemente, manifesta diferentes aspectos pelo mundo inteiro,
e nos distintos continentes do globo terrestre, e mesmo dentro destes, subsistem, ainda,
diferenças entre regiões e países. Mas a exclusão social afecta a todos e convém conhecer
a origem deste conceito.
18
A exclusão social é um fenómeno complexo15, heterogéneo, multidimensional,
universal e a sua abordagem é ainda mais difícil face à sua difusão nos diferentes
discursos, tanto económico-políticos e jornalísticos, como nos académicos. A sua
banalização adopta o conceito, por vezes, de uma forma equívoca. Assim, é da maior
importância construir uma abordagem que seja uma explicação mais fidedigna e permita
estabelecer uma definição mais completa.
Não afecta apenas pessoas, mas também territórios e instituições sociais. Os
lugares podem ser simultaneamente excluídos e provocar a exclusão nos indivíduos, pois
são “destinatários de medidas e acolhedores de cidadãos” (Rodrigues, cit. por Miguel, 2007). São
exemplo os denominados quartiers difficiles16, onde existe: uma elevada concentração de
famílias “desestruturadas”, um grande número de desempregados, pessoas com
empregos precários, entre outras problemáticas. São territórios onde o isolamento social
é enorme e onde existe uma significativa taxa de delinquência juvenil. E como refere
Serge Paugam “(…) les individus ont conscience d’hériter d’un statut dévalorisé lorsqu’ils résident
dans un ensemble d’habitations (…) dont la réputation est mauvaise (…) se sont inscrits dans la
consience social de ses habitants, à tel point que les nouveaux locataires héritent d’un statut dévalorisé et
font l’expérience de la disqualification social (…)” (Paugam, 2009:157 e 161).
Em qualquer das suas formas, a exclusão social, significa, essencialmente, uma
desagregação social a diferentes níveis – económico, político, cultural, ambiental e social.
Anthony Giddens entende a exclusão social como “(…) as formas pelas quais os indivíduos
podem ser afastados do pleno envolvimento na sociedade (…)” (Giddens, 2008:324) e por
conseguinte “(…) «exclusão social» significa «exclusão da sociedade» (…), considerando que cada
uma das esferas da existência social – da mais pequena à mais ampla, da mais simples à mais
complexa – constitui um sistema social. A Sociedade (local, nacional, regional ou global) será, então,
15 “A noção de exclusão social é saturada de significados, não-significados e contra-significados. Pode-se fazer quase qualquer coisa com o termo, já que ele significa o ressentimento daqueles que não podem obter aquilo que reivindicam” – Commissariat General du Plan, Governo Francês (1993).
16 A este propósito ler também (Jordan, 2003:173, citando Parkinson, 1994:7-8) onde é referido que “(…) social exclusion is not confined to particular groups but is concentrated in particular areas. In particular the most disadvantaged have been increasingly concentrated in areas immediately adjacent to the city center (….). They are also the areas where ethnic minorities (…), unemployed people, single mothers, disabled, (…) living on minimum income concentrated in a limited number of problem neighbourhoods (…). Economic growth has gone hand-in-hand with social exclusion (…)”.
19
constituída por um conjunto de sistemas sociais, alguns dos quais poderão ser considerados como básicos
ou essenciais. (…)” (Costa et al., 2008:64-65).
Este processo tem, assim, uma repercussão na fragilização dos laços familiares e
sociais e na negação da participação na vida comunitária. Robert Castel denomina
“desafiliação” relativamente à sociedade, ou seja, a não constatação do lugar na
sociedade17, ocasionando uma quebra na própria unidade social. Se considerarmos que “a
exclusão resulta das dificuldades de assimilação, de inserção ou de integração, a situação assim definida
permite efectivamente definir uma lista de populações diferencialmente excluídas (…)” (Xiberras,
1996:27).
É por esta razão que, frequentemente, a exclusão aparece-nos relacionada com
“grupos marginais”, que colocam em risco a segurança e a normalidade social “(…)
indicando uma falta, uma falha no tecido social (…)” (Rosanvallon,1995:204). Aliás, “(…) a
temática do conflito permite, em muitos casos, explicar o ponto de partida de um processo de exclusão que
começa por uma derrota dos futuros excluídos que serão, pouco a pouco, rejeitados pela sua não
conformidade com o modelo dos vencedores (…)” (Xiberras, 1996:17).
Assim, para Robert Castel, a exclusão caracterizaria uma situação extrema de
ruptura tanto ao nível das relações familiares e afectivas, como com o mercado de
trabalho e outras formas de socialização. No entanto, dificilmente encontramos esta
situação, pois a exclusão não é a ausência de relações “(…) não há ninguém fora da sociedade,
mas um conjunto de posições cujas relações com o centro são mais ou menos distendidas” (Castel,
1998:569) e, alguns autores aconselham a que “(…)a relação (laços) entre a pessoa e cada
sistema social seja graduada, pelo menos, em «forte», «fraca» e «em estado de ruptura» (…)” (Costa et
al., 2008:77), construindo-se, para o efeito, um conjunto de indicadores que permitam a
“fixação dos limiares correspondentes” .
Como refere Jordi Estivill “(…) seria errado pensar que a realidade expressa por este
conceito não tem um vasto antecedente histórico. Pois (…) pode-se afirmar que exclusão e excluídos
sempre existiram desde que os homens e as mulheres vivem de forma colectiva e quiseram dar um sentido
a esta vida em comunidade. O ostracismo em Atenas, a proscrição em Roma, as castas inferiores na
17 Castel, R., (1998) As metamorfoses da questão social: uma crónica do salário, Vozes, Petrópolis.
20
Índia, as várias formas de escravatura, de exílio e desterro, de «guetoização», de excomunhão, são
manifestações históricas de rejeição, com as quais cada sociedade tratou os indesejáveis (…)”.18
Após a Segunda Guerra Mundial e até aos finais dos anos 60, a grande
preocupação dos governos dos países envolvidos nesta Guerra, foi o da habitação.
Desenvolveram-se grandes projectos de renovação urbana e construção de grandes
empreendimentos, tendo ficado conhecidos, em França, os HLM, ou seja Habitações de
Aluguer Moderado. Na mesma época, surgiram Movimentos, essencialmente conotados
com o discurso católico, com o objectivo de ajudar a população que não conseguiu
acompanhar o forte dinamismo da sociedade industrial. Ficou conhecido o Abade
Wresinski enquanto principal dinamizador do movimento “aide à toute détresse”.
Nos anos 70, a problemática ultrapassa as questões da habitação e centra-se nos
“esquecidos” do progresso. É nesta conjuntura que surge o conceito de exclusão social
e, para isso, temos que referir a publicação do livro Les exclus: un Français sur dix, em
1974, da autoria de René Lenoir19, como um marco para conhecermos esta origem.
Utilizou-o num contexto económico, onde era difícil agregar determinados grupos, tais
como deficientes físicos, doentes mentais, alcoólicos e outros.
Como o próprio título da obra indica, Lenoir estabelecia uns cálculos que
determinavam que um em cada dez franceses ficava marginalizado20 dos resultados do
progresso económico; esta era a sua principal preocupação. O autor apontava para o
facto de que o crescimento da riqueza não reduz os níveis de pobreza que se abate sobre
os “handicapés sociaux” e uma gama de inadaptados que deveriam ser beneficiados por
políticas específicas de protecção social. Trata-se de “(…) une autre France (…) au-delà de
l’ordinaire (…) mais qui, malgré sa situation d’exception, est une (…) gangrène menaçant (…) tout le
corps social” (Lenoir, 1974:10 e 36).
18 Estivill, J., PANORAMA da luta contra a exclusão social – conceitos e estratégias, Genebra, Bureau Internacional do Trabalho, Programa Estratégias e Técnicas contra a Exclusão Social e a Pobreza (2003:5).
19 Foi Secretário de Estado da Acção Social do Governo de Jacques Chirac.
20 É importante estar atento à noção de “ficar marginalizado”, pois na época em que o livro foi publicado estávamos nos denominados “trinta gloriosos anos” (1945-1975), em que as economias ocidentais passaram de um período crítico para uma nova fase que se iniciava, naquele momento, com a crise do petróleo.
21
O conceito de exclusão social foi utilizado nas políticas sociais do governo
francês, sendo utilizado como referencial de acção sobre um “(…) group of people living on
the margins of society and, in particular, without access to the system of social insurance (…)” (Percy-
Smith, 2000:1, citando Room, 1995; Jordan, 1997; Burchardt et al., 1999).
Nos finais dos anos 1980 começa a falar-se em novos pobres, pois a pobreza não
atingia só os que se encontravam à margem da sociedade, mas começava a afectar os que
estavam na base da pirâmide social. Apenas os mais providos de um capital escolar
escapavam às malhas do desemprego e a esta nova pobreza21. E, a partir do início de 1990,
as situações de maior vulnerabilidade começam a abranger os trabalhadores
especializados e estratos da população com um nível de instrução superior. Até então
detinham carreiras auspiciosas, protegidos por direitos, e era promissora uma mobilidade
ascendente, tanto em termos económicos, como sociais. Resumidamente, no espaço de
duas décadas, a questão social transforma-se de “anormais incapazes” para “normais inúteis”
(Donzelot, 1996:59).
Esta nova conjuntura, onde o desemprego e a precariedade no trabalho são
notórios, a perda de status e de raízes associadas a uma sociabilidade primária (provinda
de uma carência de relações sociais e laborais coesas) origina grupos diversificados de
“excluídos” e “marginalizados”. Assim, a marginalidade social é difícil de circunscrever:
“(…) quelles sont les frontières de groupes à l’identité incertaine (…)? On ne peut appréhender le
champ de la marginalité en l’absence d’une théorie (…) de l’intégration. (…) Sont «intégrés» les
individus et les groupes inscrits dans les réseaux producteurs de la richesse et de la reconnaissance
sociales. Seraient «exclus» ceux qui ne participeraient en aucune manière à ces échanges réglés (…)
(Castel, 1996:32). Sobre estes grupos, as ciências sociais e humanas produziram inúmeras
teorizações e investigações, nestes últimos anos, donde podemos enunciar algumas.
Pierre Bourdieu (1993:487-498) descreve o padecimento físico e mental resultante
da pobreza e divulga-nos o “que é viver por um fio”; Gaujelac e Leonetti (1994:4) salientam
a percepção de “inferioridade” e de “identidade ferida” destes novos “excluídos”; Serge
21 Ver, também, entre outros, PAUGAM, S. – La Societé Française et ses Pauvres, Paris, Presses Universitaires de France, 1993 e La Disqualification Sociale: Essai sur la Nouvelle Pauvreté, Paris, Presse Universitaires de France, 1991.
22
Paugam (1991:6ss.) aponta para o “descrédito” que recai sobre aqueles que estão à
margem; Donzelot e Estebe (1991:26) enunciam o termo “anormais inúteis”; e Robert
Castel (1991:154 e 1993:145) fala em “desestabilização dos estáveis”.
Trata-se de teorizações que nos conduzem a uma percepção de desenraizamento
ao nível laboral, da comunidade, da família e que conduzem os indivíduos a um
isolamento social, e é nesta sequência que Donzelot e Estebe (1991:27) mencionam as
“não-forças sociais, esta classe de desclassificados”. Castel (1985:427) sublinha a “ausência de
perspectivas para controlar o futuro” e Rosanvallon (1995:203) exprime que “(…) os excluídos
constituem, de facto, quase que por sua própria essência, uma não-classe (…)”.
A União Europeia mais recentemente, fruto das suas políticas de coesão social,
adoptou o seguinte conceito: “(…) Social Exclusion refers to the multiple and changing factors
resulting in people being excluded from the normal exchanges, practices and rights of modern society.
Poverty is one of the most obvious factors, but social exclusion also refers to inadequate rights in housing,
education, health and access to services. It affects individuals and groups, particularly in urban and rural
areas, who are in some way subject of discrimination or segregation; and it emphasizes the weaknesses in
the social infrastructure and the risk of allowing a two-tier society to become established by default. The
Commission believes that a fatalistic acceptance of social exclusion must be rejected, and that all
Community citizens have a right to the respect of human dignity (…)” (Percy-Smith, 2000:3,
citando Commission of the European Communities, 1993:1).
Adoptando-o ou não, este conceito da UE, obviamente reflecte o seu
entendimento do fenómeno enquanto organismo supra-nacional. Constata-se, numa
dimensão global, que a exclusão social é tudo o que priva a integração de um indivíduo
na sociedade, sendo assim consequência das sociedades actuais, estando intrinsecamente
relacionado com o fenómeno da globalização, que tem alterado as próprias estruturas da
sociedade (Figura 1):“Social exclusion is seen in a wider context. In particular it is seen in the
context of globalization and the structural changes brought about by globalization (…)” (Percy-
Smith, 2000:5).
Não obstante, importa também conhecer e dar importância às realidades locais,
por terem especificidades próprias e por ser a esta escala a que se têm de tomar atitudes
23
de forma a combater a exclusão, uma vez que o fenómeno acontece e subsiste à escala
individual. Neste contexto, numa sociedade de direito, ou seja, que promove a cidadania
plena, o indivíduo só não é considerado excluído se tiver acesso aos direitos cívicos (à
informação livre, das crianças, das mulheres, à propriedade privada), aos direitos
políticos (à livre associação sindical, de associação política, de eleições livres, justas e por
sufrágio universal) e aos Direitos Humanos (de não detenção sem culpa formada, de
representação legal, a uma vida livre de pressões intoleráveis, de refúgio seguro).
Figura 1 – Contextos da Exclusão Social22
Prova-se, assim, que a exclusão social é um fenómeno multidimensional. Embora
alguns autores assumam diferentes dimensões a educação e o emprego são os garantes
mais básicos de inclusão nas sociedades, possibilitando ao indivíduo uma vivência em
sociedade e um sentimento de inclusão e de pertença a uma comunidade, bem como um
sentimento de utilidade.
A promoção da inclusão é a forma essencial de combate à exclusão, pelo que
temos que saber identificar o fenómeno e, dada a sua especificidade, como actuar sobre
ele. Deste modo, é necessário saber como se manifesta (normalmente, encontra-se
associado a um determinado estigma social), saber o que está na sua raiz (causa, onde o
22 Fonte: adaptado de Percy-Smith (2000:5).
Globalização e mudanças estruturais
associadas
Contexto nacional: políticas
económicas, segurança social,
direitos dos cidadãos e respostas à
Contexto local:
especificidades, população e
Exclusão Social
24
défice de rendimento não é necessariamente a causa) e analisar as consequências actuais
e as previsíveis, de forma a conseguir actuar atempadamente e minimizar os seus efeitos.
Uma postura pró-activa é uma determinante quando se lida com este fenómeno
face ao qual, dada a sua especificidade e evolução constante, são sempre necessárias
novas perspectivas e novas formas sobre como actuar com o fenómeno, à escala do
indivíduo (promovendo a sua inclusão) e à escala do território (integração territorial).
1.4. As Pessoas Sem-abrigo
1.4.1. O Direito à Habitação
Como poderemos verificar, ao longo deste capítulo, ser Sem-abrigo é um dos
exemplos e uma das “(…) formas mais extremas de exclusão social e, por vezes, uma das mais
visíveis, aquela em que o carácter de privação múltipla é patente e, por vezes, contrasta fortemente com o
meio ambiente em que se apresenta (…)” (COSTA, 1998:80).
Ao falarmos desta população ocorre-nos, de imediato, que a sua maior carência é
a de uma habitação e que, por este motivo, podem ser excluídas de muitas das nossas
actividades quotidianas, como os simples actos de receber cartas por correio, ou manter
uma conta bancária.
Durante as últimas décadas, têm-se produzido inúmeros instrumentos e
documentos internacionais, relacionados com os sem-abrigo e o direito a uma habitação.
Um primeiro documento a relevar, produzido pelas Nações Unidas, é a Declaração
Universal dos Direitos Humanos, já referida no capítulo anterior, estabelece, no seu Artigo
25º, que “toda a pessoa tem direito a um nível de vida suficiente para lhe assegurar a si e à sua
família, a saúde e o bem-estar, principalmente quanto à alimentação, ao vestuário, à habitação, à
assistência médica e ainda quanto aos serviços sociais necessários, (…)”.
Desde a adopção da Declaração Universal, em 1948, que o direito a uma habitação
tem sido, sucessivamente, reafirmado através de outros instrumentos tais como
Convenções, Declarações e outros Conjuntos de Regras e de Princípios adoptados pela
25
Organização das Nações Unidas23. Tomemos como exemplos, a Declaração de Vancouver
sobre os Povoamentos Humanos, mais conhecida por Habitat I (1976), que descreve as
obrigações dos governos no que diz respeito à habitação, particularmente as ligadas à
criação de comunidades integradas a nível social e racial; a Estratégia Global de Habitação
para o ano 2000 reforça o direito a uma habitação adequada, e a obrigação das nações de
melhorarem as condições de vida dos povoamentos irregulares, priorizando as acções
que promovam uma urbanização integrada, mantendo a população no local e resolvendo
in situ os seus problemas; no Capítulo 7º da Agenda 21 – Promoção do Desenvolvimento
Sustentável dos Povoamentos Humanos, adoptada pela Conferência das Nações Unidas sobre
Meio Ambiente e Desenvolvimento (Conferência do Rio), é reconhecido que nos países
em desenvolvimento, os governos apenas dedicaram cerca de 5,6% dos seus orçamentos
à habitação, segurança social e ao lazer. Assim, é recomendado – Oferecer a Todos
Habitação Adequada considerando que “(…) o acesso a habitação segura e saudável é essencial para
o bem-estar físico, psicológico, social e económico das pessoas, devendo ser parte fundamental das actividades
nacionais e internacionais (…). Estima-se que actualmente pelo menos 1 bilião de pessoas não disponha de
habitações seguras e saudáveis e que, caso não se tomem as medidas adequadas, esse total terá aumentado
drasticamente até ao final do século e além (…)”24.
Em 1995, na cidade de Copenhaga, o Programa de Acção do World Summit for Social
Development, considerou que ser “sem-abrigo” e ter uma habitação inadequada são as
principais manifestações da pobreza. Chamou-se a atenção para a redução da pobreza no
mundo e para a necessidade de adoptar medidas “(…) to protect the displaced, the homeless,
street children (…)” (Parágrafo 34)25.
O Habitat II, que decorreu em Istambul, em 1996, continua a possuir como
princípios a melhoria económica, social e ambiental dos povoamentos humanos,
principalmente nas cidades. À data da realização desta Cimeira Mundial, previa-se que
mais de três biliões de pessoas se concentrassem nas áreas urbanas, na viragem para o
23 Os Pactos são instrumentos jurídicos internacionais, o que significa que os membros das Nações Unidas, ao tornarem-se partes num Pacto, ou noutro instrumento, mediante a ratificação ou adesão, aceitam importantes obrigações que lhes são impostas pelo Direito. 24 Consultado em: http://www.geocities.com/Heartland/Valley/5990/agenda21.html
25 Consultado em: http://daccessdds.un.org/doc/UNDOC/GEN/N95/116/51/PDF/N9511651.pdf?OpenElement
26
século XXI, para viver e trabalhar. E, os maiores problemas “(…) confronting cities and
towns and their inhabitants include inadequate financial resources, lack of employment opportunities,
spreading homelessness (…), increased poverty and a widening gap between rich and poor(…)”.26 Mais
adiante, no Parágrafo 11, é ainda referido que “(...) more people than ever are living in absolute
poverty and without adequate shelter. Inadequate shelter and homelessness are growing plights in many
countries, threatening standards of health, security and even life itself. Everyone has the right to an
adequate standard of living for themselves and their families, including adequate (…) housing, water and
sanitation, and to the continuous improvement of living conditions (…)”.
O Plano de Acção Global confirma, uma vez mais, o estatuto legal do direito a
uma habitação condigna e, neste contexto, estabelece mais de cem compromissos e
seiscentas recomendações para a cooperação e a acção unida no sentido da realização do
direito à habitação.
A Declaração sobre as Cidades e Outros Povoamentos Humanos no Novo Milénio (2001), foi
adoptada numa sessão extraordinária da Assembleia Geral, reviu a Declaração de
Istambul sobre os Povoamentos Humanos e a Agenda HABITAT, criadas em 1996, e
prescreveu novas iniciativas no sentido de alcançar os compromissos expressos nesses
documentos. De acordo com o espírito da Declaração do Milénio das Nações Unidas reforçou
o objectivo específico da referida Declaração, de melhorar de forma significativa a vida
de 100 milhões de habitantes residentes em bairros degradados antes de 2020.
A União Europeia não tem dado grande prioridade ao direito à habitação e,
mesmo em alguns tratados que definem a base legal destas políticas, não é referido o
direito a uma habitação digna. Embora o Tratado não atribua à União Europeia
competências específicas em matéria de habitação, algumas políticas comunitárias,
nomeadamente em matéria de ambiente, energia, transporte, política social, têm
implicações directas ou indirectas nas condições da habitação nos diferentes Estados-
Membros da UE.
26 Parágrafo 8 do Preâmbulo. Consultado em: http://www.unhabitat.org/downloads/docs/1176_6455_The_Habitat_Agenda.pdf
27
No entanto, podemos mencionar alguns documentos europeus que têm referido a
provisão de uma habitação adequada, como, por exemplo, o Livro Branco sobre a Política
Social Europeia (1994) que, na sua Resolução “Política Social Europeia: Como avançar na
União” (A4-0122/94),27 encarrega a Comissão de “(…) propor um plano de acção (…) contra a
exclusão social no âmbito de uma política global de luta contra a pobreza e a favor dos direitos humanos
(…) e entende (…) que a Comissão deve ir mais além na luta contra as exclusões, atacando
directamente, por exemplo, o problema da habitação (…)” (página 12).
Na Carta Social do Conselho de Europa, assinada em Estrasburgo a 3 de Maio de
1995, houve um comprometimento no sentido de se assegurar o exercício efectivo do
direito à habitação e “(…) tomar medidas destinadas a favorecer o acesso à habitação de nível
suficiente, a prevenir e reduzir o estado de sem-abrigo, com vista à sua eliminação progressiva e a tornar
o preço da habitação acessível às pessoas que não disponham de recursos suficientes” (Artigo 31º).
Em 1999, o Comité das Regiões emitiu um parecer sobre “Os Problemas dos Sem-abrigo
e da Habitação”28 onde considerou que “(…) a presença de sem-abrigo nas cidades é uma das mais
graves manifestações dos fenómenos de exclusão social na União Europeia e que preocupam em primeiro
lugar a administração local e regional (…) [face ao que, estão convidadas] as instâncias europeias
a aprofundarem o princípio do direito à habitação (…)”.
Já a Carta Europeia da Habitação, aprovada pelo Intergrupo “URBAN-Housing” do
Parlamento Europeu, em 26 de Abril de 2006, define a habitação como um bem de
primeira necessidade, um direito social fundamental na base do modelo social europeu e
um elemento da dignidade humana.
Um ano depois, uma Resolução do Parlamento Europeu, datada de 10 de Maio de
2007, sobre a habitação e a política regional29 considera que “(…) a carência de habitação
digna por um preço abordável tem uma influência directa na vida dos cidadãos, limitando a sua
possibilidade de inserção social e de mobilidade nas zonas urbanas e rurais (…) [e que muitas das
cidades europeias] (…) têm graves problemas no domínio da habitação tais como: oferta excessiva ou
27 Consultado em: http://www.europarl.europa.eu/calendar/calendar?APP=PDF&TYPE=PV2&FILE=19950119PT.pdf&LANGUE=PT
28Jornal Oficial nº C 293 de 13/10/1999 p. 0024, consultado em: http://eurlex.europa.eu/LexUriServ/LexUriServ.do?uri=CELEX:51998IR0376:PT:HTML
29 [2006/2108(INI)] – Jornal Oficial da União Europeia – C 76 E/129
28
insuficiente em função da região ou do país, fenómeno dos sem-abrigo, rápida subida dos custos de
aquisição e de manutenção, mau estado do parque imobiliário (…)”. É recomendada a adopção de
uma abordagem integrada perante a complexidade do fenómeno habitacional,
permitindo um acesso facilitado à habitação e a melhoria da qualidade da construção.
Mais recentemente, no dia 20 de Março de 2008, um grupo de Eurodeputados
assinou uma Declaração Parlamentar30, na qual consideram, ao abrigo do Artigo 116.º do
seu Regimento, que “(…) o acesso a um alojamento adequado (…) [é] um direito fundamental e
que o acesso a um centro de acolhimento é, muitas vezes, o primeiro passo para a resolução adequada e
sustentável do problema do alojamento das pessoas submetidas a uma exclusão e pobreza extremas
(…)”. Os subscritores desta missiva pedem ao Conselho que “(…) adopte um compromisso de
alcance comunitário para resolver o fenómeno das pessoas sem-abrigo na rua até 2015”.
Os tratados internacionais e regionais que se aplicam especificamente ao direito à
habitação têm sido amplamente ratificados, mas apenas alguns países especificam este
direito na sua Constituição. Só a partir da década de 1990, se tornou largamente expressa
a perspectiva do “direito-fundamental” de acesso a uma habitação condigna. A
Constituição da República da África do Sul, datada de 1996, é um exemplo deste novo
paradigma, que consagra, explicitamente, o direito à habitação e obriga o estado a tomar
medidas para a sua satisfação, proibindo, também, a prática de desalojamentos forçados.
Na Europa, países como Bélgica, Dinamarca, Espanha, Finlândia, os Países
Baixos, o Reino Unido, Portugal, e Suécia, têm consignado, nas respectivas
Constituições, o “Direito à Habitação”. Destes, apenas a Dinamarca e a Suécia garantem
este direito às classes sociais mais desfavorecidas, embora os restantes países promovam
diversas iniciativas com o objectivo de assegurar um fácil acesso à habitação. Embora o
objectivo seja o mesmo, as políticas de habitação dos países europeus apresentam
diferentes caminhos para o atingir, resultado de heranças sociais e económicas, como o
estado de desenvolvimento da propriedade, o estímulo dos governos para o
30 Declaração do Parlamento Europeu sobre uma Resolução do Fenómeno dos Sem-abrigo na Rua [P6_TA-PROV (2008) 0163]
29
investimento privado em habitação ou as medidas fiscais aplicáveis a este sector (Housing
and Homelessness: models and practices from across Europe, FEANTSA, 200831).
Em Portugal, a Constituição da República Portuguesa, aprovada em 1976, é, ainda hoje,
considerada uma das constituições mais progressistas do Mundo. No seu Artigo 65º,
número 1, era já consignado que “todos têm direito, para si e para a sua família, a uma habitação
de dimensão adequada, em condições de higiene e conforto e que preserve a intimidade pessoal e a
privacidade familiar (…)”. Os legisladores foram mais longe ao atribuir, ao Estado, um
conjunto de responsabilidades para poder assegurar este Direito, designadamente quanto
à necessidade da elaboração de um conjunto de instrumentos de planeamento e de
ordenamento do território, tanto por parte do Estado e Regiões Autónomas, como das
Autarquias Locais. Neste Artigo 65º estão previstas respostas habitacionais para
diferentes estratos da população, nomeadamente no número 2, alínea b) onde se prevê
“promover, em colaboração com as regiões autónomas e com as autarquias locais, a construção de
habitações económicas e sociais (…)”, e na alínea c) “estimular a construção privada, com
subordinação ao interesse geral, e o acesso à habitação própria ou arrendada (…)”. Existiu, também,
a preocupação de adequar a renda de acordo com o rendimento familiar e a promoção,
por parte do Estado, de uma política de acesso a habitação própria. Foram, igualmente,
contempladas as situações daqueles que pretendem resolver os seus próprios problemas
habitacionais, fomentando-se a autoconstrução e a criação de cooperativas de habitação.
Queremos ainda salientar que, em Portugal, os cidadãos que reconheçam que o
seu direito à habitação se encontra ameaçado, podem recorrer a uma multiplicidade de
estratégias jurídicas e não jurídicas para reivindicar os seus direitos. As estratégias
jurídicas incluem recursos legais para impedir despejos planeados ou demolições
realizadas por ordem judicial, procedimentos legais para a obtenção de indemnizações na
sequência de desalojamentos ilegais, denúncia de acções ilegais realizadas pelos senhorios
relativamente às rendas, manutenção ou descriminação, alegações de discriminação em
relação ao aluguer ou acesso à habitação, queixas contra a falta de condições sanitárias
ou condições adequadas das habitações e ainda os processos relacionados com o
31 Consultado em: http://www.feantsa.org/files/freshstart/Communications/Homeless%20in%20Europe%20EN/PDF_2009/Homeless%20in%20Europe_Winter2008.pdf
30
significativo aumento do número dos sem-abrigo (não apenas em Portugal, como na
generalidade dos países Europeus). 32
Muitos Estados, como veremos no próximo capítulo, possuem programas
concebidos para se centrarem nos problemas imediatos dos sem-abrigo. No entanto,
estes programas actuam geralmente a nível local, proporcionando alojamento aos sem-
abrigo e habitação temporária aos mais necessitados, juntamente com outros serviços
como apoio psicossocial, jurídico, formação, entre outros, para que as pessoas possam
alcançar uma situação que lhes permita obter e manter a sua própria habitação.
1.4.2. A problemática do conceito de sem-abrigo
Existem inúmeras dificuldades na definição do conceito, que se prendem, desde
logo, com o facto de não existir, nem nunca ter existido, uma definição inequívoca a
nível internacional de sem-abrigo. “La définition du sans abri n´a rien d´universelle: chaque pays
développe la sienne propre” (Thelen, 2006:12). Ora, não existindo nenhuma definição
uniforme, pensamos que será conveniente começar pela palavra em si, onde nos
deparamos com dois termos que permitem contrabalançar, a priori, o horizonte
referencial do conceito: primeiro a preposição «sem», apontando para as ideias de
ausência e exclusão; posteriormente o substantivo «abrigo», que remete para as ideias de
casa e protecção. O sem-abrigo é, pois, aquele que se encontra desprovido de uma casa,
de um espaço que o filie e com o qual se possa identificar. Comummente é alguém que
vive na rua, ou seja, alguém que tem uma carência a nível habitacional. Embora
consensual e pragmática, esta acepção primeira, apesar de entrar frequentemente em
linha de conta para efeitos de contagem, não traduz a total extensão do conceito.
Sobretudo por acentuar a dimensão externa e física da questão, quando têm idêntica
32 A título de exemplo, podemos referir que o direito a ter uma casa passou a ser exigido perante os tribunais franceses. Esta medida surgiu depois de centenas de sem-abrigo e activistas sociais terem acampado, durante 15 dias, em Março de 2007, ao longo do Canal de Saint-Martin, convocando os parisienses a dormirem ao relento em sinal de solidariedade. Como resultado, foi aprovada uma lei no Parlamento, que entrou em vigor no dia 1 de Dezembro de 2008, e que contempla as seguintes situações: pessoas que carecem de alojamento; as ameaçadas de despejo sem terem alternativa; as alojadas temporariamente por terceiros; as que habitam em imóveis impróprios, insalubres ou perigosos; as famílias com menores a seu cargo ou; aquelas que vivem com deficientes físicos e que não têm uma casa decente ou suficientemente ampla.
31
valoração para o entendimento desta realidade, as dimensões sociais e económicas e, não
raras vezes as psicológicas e as patológicas.
Há um vasto campo semântico, legado historicamente, associado à ideia de sem-
abrigo, que contribui para a sua delimitação estigmatizada.
O termo “sem-abrigo” poderá ter origem na tradução do francês “Sans-Abri” e do
inglês “Homeless”. A expressão “Sans-Abri” transmite uma ideia de “falta de habitat mínimo,
que protegeria o ser humano do frio, do vento ou da chuva que da mesma maneira que a alimentação
e/ou o vestuário, assegura uma necessidade essencial à sobrevivência humana” (Thomas, cit. por
Bento e Barreto, 2002:23).
O termo, em inglês, Homeless, poderá significar “sem lar” mas, ao mesmo tempo,
pode revelar uma certa desafiliação.33 No entanto, não significa o mesmo que houseless –
“Sem-Casa”, que se refere à falta de uma residência física. Por exemplo, nos Estados
Unidos da América (Anderson, cit. por Bento e Barreto, 2002:24) usaram-se termos
como hobos, ou seja, trabalhadores itinerantes; tramps, que significa vagabundos não
trabalhadores ou, por último; bums, que eram os não trabalhadores e não vagabundos.
Em França (Vexliard, cit. por Bento e Barreto, 2002:24) usaram-se termos como vagabond
e clochard para se referir aos sem-abrigo. Vexliard caracterizou-os como inúteis para a
sociedade, pois ninguém se preocupava com eles : “(…) il est certain que l'on rencontrait
autrefois parmi les vagabonds une plus grande quantité de malades mentaux, parce que nul ne se
préoccupait d'eux. Ils étaient condamnés à l'errance comme individus non utilisables socialement ; en
outre, ils n'entraient à l'asile que s'ils se révélaient dangereux pour l'ordre public (…)” (Vexliard,
1957:196).
Em Espanha, e em quase toda a América Latina, o termo mais utilizado é sin techo
(roofless). Na Finlândia, o termo homeless (kodition) foi substituído por dwellingless ou
houseless (asunnoton), porque o anterior tinha corporificada a ideia de “(…) having no
established relationships – no-one to take care of them (…)” (Edgar et al., 1999:47). Na Noruega,
o termo hjemløshet (homelessness) foi mudado para bostedsløshet (dwellinglessness). Os
33 Entende-se por desafiliado, todo aquele que rompeu com os laços afiliativos tanto familiares, como sócio-laborais.
32
documentos oficiais noruegueses também utilizam o termo UFB (uten fast bolig), que
significa “sem residência fixa”.
Em Portugal, é tradicionalmente associada a categoria de sem tecto, rooflessness,
que tem tido reflexos importantes quer ao nível da investigação, quer no delinear de
estratégias e políticas. Vejam-se, por exemplo, os conceitos: vagabundo, vadio, ocioso,
mendigo, indigente (Bento et al., 2002:23) 34. Como bem nota o autor mencionado,
actualmente, a prevalência do termo sem-abrigo aponta para a instauração de um novo
olhar sob a qual esta realidade é perspectivada, particularmente nas classes dirigentes e
políticas: “Se contrastarmos esta definição [sem-abrigo] com as anteriores de vagabundo, vadio,
mendigo, verificamos que ela revela uma profunda alteração do discurso oficial sobre estas pessoas. O
sentido pejorativo e responsabilizador dos primeiros é substituído por uma definição que acentua as
causas externas do problema” (idem, ibidem: 26).
Mas, em verdade, a carga dos epítetos negativos ainda sobrevive no senso comum.
Em certa medida, arriscar-nos-íamos a dizer que vive neste conceito, um anti-exemplo,
uma negação do sujeito individual e socialmente realizado, ou, no limite, uma espécie de
produto com defeito produzido pela sociedade. Não espanta que no seio dos regimes
totalitários, propensos à auto-exaltação, esta realidade tenha sido escondida,
precisamente por se constituir como indicador de pobreza. Indo ao encontro do estigma
que recai sobre este tipo de indivíduos, podemos lembrar a definição abjecta de sem-
abrigo presente na Enciclopédia Social Russa: “The most destitute and hopeless segment of the
homeless people…beg, rummage through rubbish, steal, become carriers of infectious diseases and
originators of fires and create moral discomfort for the members of the public (Mirsagatova, 2000:34)”
(Stephenson, 2006:4).
Assim, percebemos, por tudo o que foi dito até então, que a definição de sem-
abrigo se dirige a todo aquele que se encontra desprovido de um abrigo físico. Contudo,
essa ausência repercute-se também na inexistência de uma série de outros “abrigos”
e/ou protecções, sejam eles sociais, laborais, económicos, familiares, psicológicos. Em
34 Um dos poucos livros escritos sobre esta matéria em Portugal.
33
última instância, o sem-abrigo é alguém que se encontra em ruptura, em virtude de não
estar re-ligado nem a si nem ao outro.
A casa, enquanto território metonímico do próprio sujeito, institui a edificação de
um indivíduo; inversamente, a rua, na medida em que é um espaço público, desconstrói
a sedimentação dessa individualidade. O modo como se desenrola o conflito entre
interioridade e exterioridade, entre apropriação e expropriação parece-nos cheio de
consequências pois traduz, em nosso entender, o par dialéctico vinculação e
desvinculação que subjaz ao conceito de sem-abrigo.
Torna-se evidente que a questão habitacional é importante, mas os problemas dos
sem-abrigo são, também, outros e é da maior importância que estejamos conscientes
quanto a esta matéria. Por esta razão é importante que se estabeleça a distinção entre
houseless e homeless: é grave não deter uma habitação com as condições mínimas de
habitabilidade, mas é mais complexo SER homeless, pois, por trás desta situação, e de
acordo com Bulla et al., (2004:113-114), existe uma perda de vínculos familiares,
decorrentes do desemprego, da violência, da perda de algum ente querido, da perda de
auto-estima, do alcoolismo, da toxicodependência, de uma doença mental, entre outros
factores, que são os principais motivos que levam as pessoas a “morarem na rua”.
São histórias de rupturas sucessivas e que, com muita frequência, estão associadas
ao uso de álcool e drogas, não só pela pessoa sem-abrigo, mas por outros membros da
família. Snow e Anderson (1998:77) afirmam que o mundo social dos sem-abrigo se
constitui como uma subcultura, ainda que limitada ou incompleta. Trata-se de um
mundo social que não é criado ou escolhido pelas pessoas que vivem nas ruas (pelo
menos inicialmente), mas para o qual foram empurradas por circunstâncias alheias ao
seu controle. Partilham, contudo, do mesmo destino, o de sobreviver nas ruas e becos
das grandes cidades.
1.4.3. Definições de Sem-Abrigo
O fenómeno dos sem-abrigo é complexo, pois tem uma grande variedade de
causas e de consequências. Como resultado, o número de significações é desmesurado e
34
os seus contornos advêm mais frequentemente de ideologias e não tanto de análises
imparciais e desapaixonadas. Após consulta a uma vasta literatura concluímos que existe
uma grande multiplicidade de definições sobre sem-abrigo. A maior parte da bibliografia
consultada converge para grupos específicos como os desempregados, imigrantes,
toxicodependentes, alcoólicos, minorias étnicas, mulheres vítimas de violência
doméstica, veteranos de guerra, crianças de rua, pessoas com problemas de saúde
mental, entre outros. Contudo, o grande problema destas perspectivas é o excessivo
enfoque em experiências subjectivas e nas características e histórias de vida dos
indivíduos, estigmatizando-os e correndo-se o risco de não serem verdadeiramente
sustentados os principais factores estruturais.
Teria um grande mérito uma definição universal que permitisse monitorizar o
fenómeno e torná-lo comparável em todo o mundo. No entanto, tal torna-se intangível
uma vez que existe uma abundância de causas que conduzem as pessoas à situação de
“sem-abrigo”, e as suas consequências estão relacionadas com uma grande diversidade
cultural e com as particularidades dos grupos afectados. Porém, têm sido feitas tentativas
para desenvolver estas definições universais, como por exemplo, a tentativa de propor o
termo houselessness para identificar aqueles que detêm abrigos desadequados, o que tem a
vantagem de reconhecer os que não têm qualquer tipo de habitação; são houseless aqueles
que a detêm, mas em condições inadequadas. Coloca-se, neste momento, a questão da
medição do fenómeno e em que categorias incluir os moradores dos “bairros de lata”, os
“moradores” dos campos de refugiados, as vítimas de catástrofes ambientais, entre
outros.
Springer, (2000:479) alerta-nos para a imensidade de definições e conclui que
“(…) there are as many classifications and definitions of homelessness as there are different points of
views. A definition of homelessness might refer to a special housing situation, to a special minimum
standard, to the duration and the frequency of a stay without shelter, to lifestyle questions, to the use of
the welfare system and to the being part of a certain group of the population, to the risk of becoming
houseless and to the possibility to move or not if desired (…)”
Em quase todos os países a definição de sem-abrigo revela a existência de uma
forte ligação entre o “ser sem-abrigo” e a carência de habitações para alojar toda a
35
população. No entanto, a forma como esta situação se manifesta, varia entre as
diferentes nações. De acordo com um relatório do Centre for Human Settlements (2000), das
Nações Unidas, e referido no 2007 National Symposium on Homelessness Research, as Nações
estão organizadas em três clusters:
• “high-income, industrial countries, including the United States, Western Europe,
Canada, Australia and Japan,
• Other industrial countries with economies in transition, including Eastern and Central
Europe and the Russian Federation, and
• Developing countries, including many in Africa, Latin America, and much of Asia.”
(Leginski, 2007:1-27)35.
Por exemplo, na Índia e no Bangladesh encontramos um grande número de
indivíduos, e até famílias, a dormir nas ruas e, mesmo, nas lixeiras das grandes cidades.
Estas pessoas preferem abdicar de uma habitação, para poderem enviar as suas
poupanças para as suas regiões de origem. O Bangladesh Bureau of Statistics (BBS) sugere
como definição oficial de sem-abrigo, utilizada nos Recenseamentos Gerais da
População, “the floating population are the mobile and vagrant category of rootless people who have no
permanent dwelling units whatever (…)” (BBS, 1999: 3). Esta definição tem subentendido o
conceito de “população em trânsito” que poderá ter algures, uma habitação e que a
abandonou temporariamente.
Na China, os que dormem na rua não são tolerados e o mais aproximado a ser um
“sem-abrigo”, é estar no estado de “blindly floating”, não tendo qualquer registo nos
documentos de identificação no campo “residência”. É usual estes indivíduos ocuparem
edifícios em zonas pobres, onde a habitação é de baixa qualidade (Zhang et al., 2003).
Beavis et al. (1997) dedicou-se ao estudo dos sem-abrigo entre os Aborígenes
Australianos. Fez a distinção entre aqueles que estão temporariamente sem abrigo e os
denominados “crónicos”.
35 Historical and Contextual Influences on the U.S. Response to Contemporary Homelessness, in Toward Understanding
Homelessness: The 2007 National Symposium on Homelessness Research, USA, Setembro de 2007.
36
O Egipto apresenta as pessoas como sem-abrigo, dependendo da qualidade da
habitação. As pessoas que vivem em habitações marginais (Iskan gawazi) e inadequadas
são considerados sem-abrigo. Na África do Sul (tal como acontece, por exemplo, na
Indonésia) é comum as pessoas sem-abrigo ocuparem os edifícios abandonados das
principais cidades. O fenómeno dos sem-abrigo no Gana é recente, devido, sobretudo,
aos conflitos étnicos no norte do País. No Peru, aqueles que vivem em aglomerados
populacionais e que não detêm um título de propriedade são considerados, oficialmente,
“sem-abrigo”. A ênfase dada à “propriedade”, também se verifica no Zimbabué
(Kamete, 2001; Tipple e Speak, 2005). Como refere Cooper (1995), as definições de
sem-abrigo reflectem as prioridades políticas, influenciando o nosso conhecimento sobre
as questões e a forma de as resolver.
Na 61st Session of the United Nations Commission on Human Rights, realizada em Genève,
no dia 30 de Março de 2009, Miloon Kothari36 declarou que o número de sem-abrigo,
nos centros urbanos, situa-se entre 20 a 40 milhões e, no mundo em geral, fixa-se entre
os 100 milhões a um bilião. No entanto, o intervalo entre a contagem por excesso ou
por defeito é muito grande. Tal facto deve-se à definição utilizada. Como refere Peressini
et al. (1995) “(…) a definition is important because most researchers agree on one fact: who we define
as homeless determines how we count them (…)”. Avramov (1999) é de opinião que é necessário
ter cuidado a comparar dados, a descrever problemas e a encontrar soluções para os
sem-abrigo, porque não existe nenhuma definição única que caracterize o fenómeno dos
sem-abrigo.
Para efeitos estatísticos, as Nações Unidas (1998:50) desenvolveram a seguinte
definição para agregados familiares em situação de “sem-abrigo” – “(…) households without
a shelter that would fall within the scope of living quarters. They carry their few possessions with them
sleeping in the streets, in door ways or on piers, or in any other space, on a more or less random basis
(…)”. Esta definição, sugere-nos, desde logo, a imagem de pessoas que deambulam pelas
cidades, transportando os seus haveres, e dormindo nas ruas, e converte-se, assim, numa
explicação simples e universal do fenómeno.
36 Special Rapporteur on Adequate Housing.
37
Vários países desenvolveram as respectivas definições, com a preocupação de
incluírem as pessoas institucionalizadas e que não tinham qualquer tipo de abrigo. Foi o
caso da Índia, França e dos Estados Unidos da América. Neste último, o Stewart B.
McKinney Homeless Assistance Act of 1987, definiu sem-abrigo como:
“(1) An individual who lacks a fixed, regular, and adequate night-time residence; and
(2) An individual who has a primary night-time residence that is:
A supervised publicly or privately operated shelter designed to provide temporary living
accommodations (including welfare hotels, congregate shelter, and transitional housing for the mentally
ill);
An institution that provides a temporary residence for individuals intended
to be institutionalized; or
A public or private place not designed for, or ordinarily used as, regular sleeping accommodations
for human beings.
(3) This term does not include any individual imprisoned or otherwise detained
under an Act of Congress or state law.
People who are at imminent risk of losing their housing, because they are being evicted from
private dwelling units or are being discharged from institutions and have nowhere else to go, are usually
considered to be homeless for program eligibility purposes” (USA, 1994: 22-23).
Esta definição é equiparada aos dois grupos identificados na Europa – os que
dormem na rua e aqueles que dormem em centros de abrigo. O termo “adequate” dá
lugar àqueles casos que se pode considerar inadequada, e também implica a ausência de
relações sociais e familiares. Avramov (1996) prefere uma definição mais ampla e que
inclui, também, o termo “adequate”: “Homelessness is the absence of a personal, permanent,
adequate dwelling. Homeless people are those who are unable to access a personal, permanent, adequate
dwelling or to maintain such a dwelling due to financial constraints and other social barriers (…)”
(Avramov 1996:71).
Nos últimos anos o UNCHS (Habitat), agora denominado UN-Habitat, esteve a
rever as suas definições sobre sem-abrigo, uma vez que existiam outras mais correctas,
38
nomeadamente na Europa e nos Estados Unidos. Alguns autores definiram homelessness
como uma falta de direito a aceder a uma casa com condições de habitabilidade e
descreveram-na como “(…) rooflessness (living rough), houselessness (relying on emergency
accommodation or long-term institutions), or inadequate housing (including insecure accommodation,
intolerable housing conditions or involuntary sharing)" (Edgar et al. 1999: 2).
Esta definição é muito semelhante à que foi desenvolvida pela FEANTSA37.
Procura-se, actualmente, no contexto europeu encontrar formas de entendimento mais
abrangentes que permitam abordar a questão em diferentes países. De acordo com
Brousse (2005), o EUROSTAT conseguiu chegar a uma definição consensual de “sem-
abrigo”, fruto de um entendimento com todos os actores envolvidos, nomeadamente os
profissionais da estatística e os representantes da FEANTSA: “Une personne est dite sans-
abri si elle n’a pas accès à un logement qu’elle pourrait raisonnablement occuper, que ce logement soit
légalement sa propriété ou qu’il soit loué; fourni par un employeur; occupé sans loyer d’une manière
contractuelle ou selon un autre arrangement. En conséquence, elle est obligée de dormir: à l’extérieur;
dans des bâtiments qui ne satisfont pas aux critères reconnus communément pour l’habitation; dans un
centre d’urgence dépendant du secteur public ou d’organisations caritatives; dans des centres de plus long
séjour dépendant du secteur public ou d’organisations caritatives; dans un bed-and-breakfast; dans un
autre hébergement de court séjour; chez des amis ou de la famille; dans des squats occupés avec
autorisation (…)” (Brousse 2005:52).
A FEANTSA apresentou, pela primeira vez, em 1998, a tipologia “ETHOS”38 –
European Typology of Homelessness (Tipologia Europeia sobre Sem-abrigo e Exclusão
Habitacional) que está dividida em quatro categorias:
• Os sem-tecto (rooflessness): é a forma mais visível, incluindo as pessoas que
dormem na rua;
37 Fédération Européenne d’Associations Nationales Travaillant avec les Sans-Abri. 38 É entendimento da FEANTSA que a definição desta tipologia é um meio de promover a compreensão e avaliação da situação de sem-abrigo na Europa bem como promover uma linguagem comum. Esta definição é construída em torno do conceito de uma casa. “A FEANTSA considera que existem três elementos que constituem uma casa, e na falta dos quais se esboça a situação sem-abrigo. Ter uma casa pode ser entendido como: ter uma habitação adequada sobre a qual a pessoa e família podem exercer uma posse exclusiva (elemento físico); poder manter a privacidade, conseguir relacionar-se (elemento social) e ter um estatuto legal para ocupação (elemento legal). Isto conduz a quatro principais categorias conceptuais sobre sem-abrigo: sem-tecto, sem casa, em habitação precária e habitação inadequada” (SPINNEWIJN, 2005: 22-23).
39
• Os sem-casa (houselessness): refere-se às situações em que, apesar de existir acesso a
centros de abrigo de emergência ou instituições com permanência de longa
duração, as pessoas continuam a ser classificadas como sem-abrigo;
• Habitação precária (insecure housing): diz respeito à ocupação ilegal de um fogo ou
edifício, ao sub-arrendamento ou à vivência em casa de familiares e amigos.
• A habitação inadequada (inadequate accomodation): inclui aqueles cujo alojamento é
inadequado para habitação ou se encontra sobrelotado, e ainda aqueles cujo
alojamento é uma caravana ou um barco.
Springer (2000) assinala que estas duas últimas categorias coincidem, ou seja, uma
habitação pode ser simultaneamente insegura e fora dos padrões normais.
Existe um autor que discute as ideias de relative e absolute homelessness. A primeira
refere-se ao facto de uma pessoa poder ter um abrigo, mas não possuir uma casa.
Persiste a absolute homelessness quando não se tem acesso quer a um abrigo, quer a nenhum
elemento constituinte de uma casa (Cooper 1995).
Em Portugal, a utilização do termo sem-abrigo tem vindo a ser debatida,
procurando ter maior impacto na percepção de que está cada vez menos assente numa
linearidade causal explicativa, centrada nas características individuais dos sem-abrigo. É
urgente promover uma reflexão que permita dar visibilidade às causas estruturais destes
fenómenos de marginalização extrema, que se encontram, também, de acordo com
Baptista (2005), inscritas nas trajectórias individuais e familiares.
Apesar dos muitos debates sobre estas matérias foi necessário envolver um grupo
de actores que identificasse um conjunto de problemas que estão na base destas
situações e definisse um agregado de medidas que visassem a sua resolução. Assim, foi
constituído um Grupo Interinstitucional39, em Maio de 2007, cuja tarefa foi desenvolver
39 Entidades representadas no Grupo: Públicas: Alto Comissariado para a Imigração e o Diálogo Intercultural (ACIDI), Instituto Público; Alto Comissariado da Saúde (ACS); Associação Nacional de Municípios Portugueses (ANMP); Comissão para a Cidadania e Igualdade de Género (CIG); Direcção-Geral da Saúde (DGS); Direcção-Geral da Segurança Social (DGSS); Direcção-Geral de Reinserção Social (DGRS); Direcção-Geral dos Serviços Prisionais (DGSP); Guarda Nacional Republicana (GNR); Instituto da Droga e da Toxicodependência (IDT); Instituto do Emprego e Formação Profissional (IEFP); Instituto da Habitação e Reabilitação Urbana (IHRU); Instituto da Segurança Social (ISS), Instituto Público; Laboratório Nacional de Engenharia Civil (LNEC); Polícia de Segurança Pública (PSP); Escola Nacional de
40
uma Estratégia Nacional para a Integração de Pessoas Sem-Abrigo40. A coordenação
deste Grupo esteve a cargo do Instituto de Segurança Social, IP e nele estiveram
representados os diferentes sectores públicos e privados, considerados actores chave
para a intervenção neste fenómeno.
Este Grupo Interinstitucional sentiu a necessidade que a Estratégia a definir, fosse
dirigida a um grupo alvo bem preciso, pelo que foi definido um conceito de pessoa sem-
abrigo, que passou a vigorar, que é o seguinte:
“Considera-se pessoa sem-abrigo aquela que, independentemente da sua nacionalidade, idade,
sexo, condição sócio-económica e condição de saúde física e mental, se encontre:
• sem tecto – vivendo no espaço público, alojada em abrigo de emergência ou com paradeiro em
local precário;
• sem casa – encontrando-se em alojamento temporário destinado para o efeito”.
Este conceito foi elaborado com base nas categorias operacionais da tipologia
proposta pela FEANTSA e utilizada por outros países europeus, com vista à facilidade
da sua aplicação e operacionalização.
Em conclusão, o conceito de “sem-abrigo” é distinto nas diversas nações e
reflecte sobretudo o clima político e nem tanto a verdadeira realidade da “privação”.
Não persiste a dúvida de que as pessoas que dormem nas ruas, debaixo das pontes, ou
noutros locais, que não são considerados de “residência”, são pessoas sem-abrigo. No
entanto, a distinção entre pessoas sem-abrigo e aquelas que vivem em habitações
inadequadas é vaga e não permite chegar a conclusões.
Saúde Pública (ENSP); e Privadas: Confederação Nacional das Instituições de Solidariedade (CNIS); Rede Europeia Anti-Pobreza Nacional (REAPN); Santa Casa da Misericórdia de Lisboa (SCML); Federação Nacional de Entidades de Reabilitação de Doentes Mentais (FNERDM); União das Misericórdias; e Observatório do FEANTSA.
40A Estratégia foi apresentada pelo Governo no dia 14 de Março de 2009; vai permitir a coordenação dos recursos existentes e a aposta em três áreas específicas: prevenção, intervenção e acompanhamento.
41
1.4.4. Porque as Pessoas são Sem-Abrigo?
Toro e Warren (1999) descrevem como principais critérios para definir o
fenómeno dos sem-abrigo, a natureza das condições de vida, e ao fim de quanto tempo a
pessoa que viva nessas condições é considerada sem-abrigo. Associada às pessoas que
dormem em abrigos ou que vivem nas ruas, deve a definição incluir aqueles que se
encontram em instituições, hospitais ou prisões, que serão desinstitucionalizados e não
têm para onde ir. Por exemplo, Rivlin (cit. por Pereira, Barreto e Fernandes, 2000)
diferencia os sem-abrigo em termos da duração do período em que estes se encontram
na rua e do consequente grau de vulnerabilidade. Distinguem-se, assim, quatro formas
de sem-abrigo:
• O crónico, que passa grande parte da sua vida na rua, tem apenas dinheiro
suficiente para gastos mínimos; pode manter uma rede de contactos sociais ou
formar pequenas comunidades com pessoas na mesma situação;
• O periódico, que tem casa mas que, por vezes, a deixa indo viver para um
albergue ou até mesmo para a rua, mantendo-se no entanto essa casa acessível;
• O temporário, que está numa situação de sem-abrigo devido a uma situação
inesperada. Tem a capacidade para manter uma casa estável;
• Por último, o total, que é considerado o mais dramático de todos. Não tem casa,
pernoita em albergues, igrejas, edifícios abandonados. Por norma, são pessoas
traumatizadas por não manterem relações sociais na comunidade, e que não têm
qualquer tipo de suporte social nem humanos.
Em tempos, a natureza das explicações para o surgimento dos sem-abrigo, estava
centrada apenas nas características individuais dos sem-abrigo. No entanto, o
aparecimento em massa e a selectividade social do fenómeno, bem como a
heterogeneidade de situações e de trajectórias que a situação de sem-abrigo encerra,
colocaram em causa as explicações de carácter individual (Pereira, Barreto e Fernandes,
2000). Os estudos centrados apenas nos indivíduos não fariam mais do que identificar os
factores vulneráveis, e não as causas dos problemas (Bento e Barreto, 2002).
42
Assim, actualmente, é considerado que a abordagem mais adequada para a
situação de sem-abrigo é a que considera a sua complexidade (Anderson e Christian,
2003; Clapham, 2003; Sosin, 2003) de uma forma contextual, tendo em conta todos os
factores que a podem influenciar, assim como a complementaridade entre diferentes
factores (Meert et al., 2005 cit. por Miguel, 2007).
Por isso, a situação de sem-abrigo não é um problema social distinto com
características e causas únicas (Pleace, 1998) e, como tal, não deve ser conceptualizada
enquanto problema de ordem estrutural ou de ordem individual, mas sim considerada na
interacção e sobreposição entre estruturas sociais e circunstâncias individuais (Anderson
e Christian, 2003), isto é, num modelo que integre ambos os tipos de factores de risco
(Commitee of the Regions e Shinn, cit. por Tompsett et al., 2003; Clapham, 2003), e que
considere também a importância dos acontecimentos de vida como centrais na
explicação da situação de sem-abrigo (Sosin, cit. por Miguel, 2007).
Poderão existir quatro causas principais que contribuem para a situação de sem-
abrigo: pobreza persistente, distúrbios de comportamentos, empobrecimento das redes
sociais e perda de habitação acessível (Koegel et al.; Rossi, cit. por Shinn et al., 1998). Os
factores estruturais estão relacionados com a organização da sociedade, tais como
condições de emprego e do mercado habitacional, e políticas públicas, como as da saúde
e da segurança social (Clapham, 2003), e os factores individuais estão relacionados com:
perturbações psiquiátricas, défices educacionais e profissionais, desafiliação e falta de
identificação cultural (Piliavin et al., cit. por Bento e Barreto, 2002).
Existem outros factores de risco que fazem uma pessoa tornar-se sem-abrigo, tais
como: conflitos; fim de relações; abuso físico e sexual; falta de qualificações;
desemprego; consumo de álcool e drogas; problemas de saúde mental e do foro judicial,
ou seja, com o sistema de justiça criminal (prisões); endividamento; falta de uma rede de
suporte social (Randall e Brown, cit. por World Health Organization [WHO] 2005, cit.
por Clapham 2003); ou institucionalização ou morte de um progenitor durante a infância
(Nordentoft e Wandall-Holm, cit. por WHO, 2005).
Uma abordagem mais centrada numa explicação da natureza dos problemas que
afectam os sem-abrigo, apresenta três explicações:
43
• Ser sem-abrigo como uma opção de vida (decisão consciente em rejeitar a
vivência numa casa convencional);
• Ser sem-abrigo devido a problemas patológicos (doença mental,
droga/alcoolismo...);
• Ser sem-abrigo como consequência de acontecimentos ou circunstâncias negativas
(violência doméstica, incapacidade financeira para manter um alojamento...)
(“Estudo dos Sem-abrigo”, ISS, IP, 2005).
Koegel et al. (cit. por Sousa & Almeida, 2001) argumenta que o aparecimento de
pessoas sem-abrigo está intrinsecamente ligado às políticas que afectam o bem-estar das
famílias, particularmente das mais pobres. Isto inclui as políticas relacionadas com a
distribuição de rendimentos, com a habitação, com o emprego, com a educação, com o
abuso de substâncias e com a saúde mental. Assim a prevenção de situações de sem-
abrigo terá que passar necessariamente por mudanças nessas políticas.
1.4.5. Abordagem dos Sem-Abrigo de acordo com uma Perspectiva
Ecológica
Ornelas (1997) refere que a Ecologia é um paradigma científico e um conjunto de
valores, partindo do pressuposto de que o ambiente exerce efeitos significativos no
comportamento humano. A Ecologia focaliza-se na relação entre os organismos e os
recursos, chamando a atenção para o que está para além da pessoa.
A perspectiva ecológica, segundo Kelly (cit. por Ornelas, 1997) transpõe a
necessidade da observação dos indivíduos nos seus contextos naturais, propõe a
impossibilidade de separação, dos métodos de investigação, dos valores subjacentes e do
trabalho ou posição do interventor social.
A partir dos quatros princípios da perspectiva ecológica podemos compreender a
relação do indivíduo com os contextos sociais. Neste contexto, pretende-se fazer uma
analogia entre a perspectiva ecológica e a problemática da situação de sem-abrigo. Os
quatro princípios da perspectiva ecológica são:
44
• Princípio da adaptação:
Está em causa a adaptação do indivíduo ao meio social e a sua relação com o mesmo. A
especificidade dos recursos que o meio proporciona e como estes podem facilitar
determinados comportamentos e constranger outros (Ornelas, 1997). O contexto social
é estruturado em vários níveis de análise, em que cada um deles contribui para a
compreensão do ambiente e os seus efeitos no comportamento (Bronfenbrenner, cit. in
Toro et. al, 1991). Quanto aos sem-abrigo, o princípio da adaptação demonstra que
existem diversas influências de adaptação, que são: as influências socioculturais, onde se
sugere a necessidade de considerar a forma como os factores sociais e culturais
influenciam esta problemática. Segundo Toro e Rojansky (cit. in Toro et al., 1991) numa
análise dos factores que influenciaram a problemática dos sem-abrigo, sugere-se que o
recente crescimento do fenómeno de sem-abrigo nos Estados Unidos, pode ser o
resultado de diferentes manifestações culturais, o que diferencia este país dos outros. Na
influência local é importante ter em conta os vizinhos, o meio em que interagem, tudo
aquilo que os envolve localmente. Embora vários factores socioculturais vão no sentido
de uma visão global dos sem-abrigo, a consideração de múltiplos níveis de análise sugere
que o contexto de vizinhança fornece constrangimentos mais imediatos face aos sem-
abrigo. De que forma as pessoas se enquadram no meio. Destaca a noção de que a
adaptação funciona como uma interacção entre as características pessoais e as
características individuais dos contextos; assim, nenhuma política, serviço, ou recurso
deve ser visto como a única solução possível, visto que a situação de sem-abrigo é um
fenómeno que aponta para um conjunto de factores ligados entre si (Toro et. al, 1991).
• Princípio dos Recursos Cíclicos (Cycling of Resources):
Se o princípio da adaptação realça uma visão contextual dos sem-abrigo, o dos recursos
cíclicos promove um enfoque diferente na forma como os recursos no sistema social são
definidos, distribuídos e melhorados. Adoptar a perspectiva de recursos cíclicos nos
sem-abrigo, implica a procura das forças do indivíduo e da comunidade em que podem
ser desenvolvidos e aplicados, tendo em consideração a forma como os recursos não
explorados na comunidade podem ser melhor utilizados (Toro et al., 1991). A avaliação
dos recursos a nível individual é importante para avaliar aqueles que são necessários para
45
sobreviver como uma pessoa sem-abrigo nos mais variados contextos. Para o
desenvolvimento das intervenções, a avaliação dos procedimentos para a utilização
desses recursos, é essencial para clarificar a forma como as capacidades são distribuídas
na comunidade e como a comunidade partilha as suas competências (Kelly, 2006).
• Princípio da Interdependência:
Refere-se não somente à existência de uma influência mútua entre os componentes da
comunidade, mas também à sua interacção dinâmica ao longo dos tempos. Este
princípio realça a complexidade dos processos de mudança e aponta a comunidade
como unidade base de intervenção (Ornelas, 1997). O princípio da interdependência
pode ser aplicado em diferentes níveis de análise, tal como os outros princípios
ecológicos. Este princípio realça que, por exemplo, em contexto individual e familiar,
tornar-se sem-abrigo envolve várias alterações na vida, como, por exemplo, na
redefinição do papel da família, numa mudança individual e na rede social, ou no
aumento de problemas de saúde (Streuning & Padgett, cit. por Toro et al, 1991).
• Princípio da Sucessão:
É particularmente relevante para estudar os ambientes sociais e acautela o investigador a
avaliar e definir a mudança sistémica presente na comunidade antes de iniciar qualquer
intervenção (Kelly, 2006). Isto implica que na avaliação dos ambientes ou contextos,
estes não sejam designados como estáticos. Segundo este princípio os problemas e as
limitações com que nos defrontamos residem na capacidade de visionar e criar novos
contextos (Ornelas, 1997). Defende, igualmente, uma abordagem histórica e contextual
na compreensão actual deste fenómeno social. Promove a compreensão temporal dos
sem-abrigo incluindo os seus antecedentes, estádios ou fases, e reacções.
Esta perspectiva (ecológica) dá relevância ao contexto em que os sem-abrigo estão
inseridos e à complexidade das interacções ao nível social, pessoal, e económico, e os
recursos oferecidos pelos serviços que afectam directamente o seu bem-estar. Esta dá
importância ao processo de interacção pessoa-ambiente, que foi sugerido como uma
alternativa ao processo que se centrava apenas na pessoa (Toro et al., 1991).
46
A perspectiva ecológica sugere muitas direcções para a pesquisa e actividades de
intervenção. Envolve a diversificação das questões de pesquisa e metodologia usadas
para compreender os sem-abrigo, começando por um período extensivo de avaliação
(Toro et al., 1991).
A conduta de investigação e intervenção é baseada em dois pontos: o primeiro
refere-se à importância de dar tempo, e levar em conta os recursos, para entender
questões, por exemplo, como é que os sem-abrigo se expressam e as repostas aos
mesmos, e assim variar as condições ecológicas. Um segundo ponto desta perspectiva
passa por envolver o compromisso de conseguir relações de “empowering” com estas
pessoas e com as organizações nas quais as mesmas trabalham (Toro et al 1991).
É de particular importância a pesquisa direccionada para a prevenção da existência
dos sem-abrigo. Por exemplo, Rossi (cit por Toro et al, 1991) defendeu uma pesquisa
orientada no sentido da compreensão das situações de grupos de pessoas que vivem em
habitações precárias. Este grupo de risco é maior que o grupo de pessoas que
literalmente não possuem habitação, talvez 20 a 30 a vezes (Rossi; Rossi, Wright, Fisher,
e DeWillis, cit. por Toro et al, 1991). Será importante compreender as causas ecológicas
que forçam estas pessoas a saírem de suas casas, ou de um modo transposto, a prevenir a
sua ocorrência.
A perspectiva ecológica encoraja os investigadores, bem como os programas
desenvolvidos, a contemplar os problemas dos sem-abrigo em diferentes níveis de
análise, de forma a olharem para os sem-abrigo como um resultado de factores do
contexto com que estes interagem individualmente e com as famílias dos mesmos, e para
olharem com cuidado para o contexto social em que os investigadores e os programas
desenvolvidos actuam (Toro et al, 1991).
Adquirir competências colaborativas e aprender a participar em projectos de
comunidades que promovam o “empowering”, são partes do desenvolvimento de uma
certeza ecológica. O valor do profissional colaborativo foi descrito como uma forma de
promover o “empowerment” e como uma epistemologia que pode enriquecer a
compreensão dos sem-abrigo (Toro et al 1991).
47
Espera-se que a perspectiva ecológica possa servir como estímulo para futuras
pesquisas e acção de compromissos por parte dos profissionais, tendo em conta a
problemática dos sem-abrigo (Toro et al., 1991).
O interesse e os conceitos sobre os sem-abrigo tiveram um enorme
desenvolvimento nos últimos anos nas respostas públicas, profissionais e também nas
políticas desenvolvidas. São agora reconhecidos como um complexo e multifacetado
fenómeno que envolve políticas sociais, deficiências no sistema, falhas no suporte social,
nas diferenças individuais e familiares, e no acesso aos vários recursos e a estilos de vida
(Shinn & Weitzman, cit. por Toro et al., 1991).
Embora os actores sociais que operam nesta área de intervenção tenham uma
longa história de relutância para resolver importantes aspectos sociais (Dewey, 1946;
Fairweather, 1972; Lewin, 1951; Moleiro, 1969; Sarason, 1981, 1981; Seidman, 1988;
Smith, 1990 cit. por Toro et al., 1991), existem sinais prometedores na preocupação com
os sem-abrigo.
Segundo Blasi (cit. por Toro et al., 1991), a maioria das ciências sociais focou as
características dos sem-abrigo no contexto dos mesmos, em vez de o fazerem nos seus
contextos sociais, ou nos contextos naturais. Alguns psicólogos começaram a aplicar
componentes desta perspectiva ecológica no seu trabalho de investigação na área dos
sem-abrigo (Milburn & D'Ercole, 1991, Morse et al., 1989; Shinn et al., 1991; Shinn e
Weitzman, 1990; Toro, 1991; Watt & Milburn, 1987; cit. por Toro et al., 1991).
Muitas vezes o meio ambiente onde vivemos, onde nos formamos ou
estabelecemos as redes sociais influenciam a forma como pensamos e como agimos.
Segundo Fernandes (2002), os cidadãos, para assumirem a sua cidadania, têm de
sentir que são parte inteira de um todo corrente e solidário. Têm de sentir que os seus
representantes o são realmente e que o seu desejo de participação na “coisa pública” é
útil e como tal reconhecido, valorizado e recompensado. São muitos os cidadãos que
não se revêem na sociedade onde vivem por questões culturais, políticas e sociais.
Como foi referido anteriormente, o fenómeno dos sem-abrigo está relacionado
com factores estruturais, que reflectem a forma como a nossa sociedade está organizada
48
e como está distribuída a riqueza e o poder, e que contribuem para o aparecimento de
pessoas sem-abrigo.
A utilização valorativa dos nossos recursos naturais e humanos na promoção da
qualidade de vida dos cidadãos e do progresso do bem-estar económico, social e
ambiental é uma mais-valia, e será a forma como o indivíduo vive na sociedade, e
conforme o estilo de vida adoptado, que poderá influenciar o seu percurso de vida
(Fernandes, 2002).
49
Capítulo II
Compreender o Fenómeno dos Sem-Abrigo nos Estados Unidos da América:
O que é e o que está a ser feito?
50
Nota de Abertura
Encontrando-se já apresentadas algumas questões-chave, essencialmente de índole
conceptual – que permitiram introduzir a questão dos sem-abrigo, contextualizando-a no
espectro dos estudos relacionados com a pobreza, a exclusão social e os Direitos
Humanos (nomeadamente o Direito à Habitação) –, urge, agora, efectuar uma
aproximação à situação da “homelessness” nos Estados Unidos da América, referencial
analítico essencial ao cumprimento dos objectivos do presente projecto, ou seja, ao
delinear de “novas estratégias para auxiliar os sem-abrigo na cidade de Lisboa”.
A presente nota de abertura tratará, essencialmente, de explicitar os objectivos
subjacentes ao capítulo a que se refere (“Compreender o Fenómeno dos Sem-Abrigo
nos Estados Unidos da América (EUA): O que é, e o que está a ser feito?”),
identificando, também, a importância e contextualização desse ponto do trabalho no
projecto de investigação “New Strategies to Help Homeless People in Lisbon City Area”. Será,
ainda, incluída, nesta breve nota introdutória, um sucinto apontamento relativo à
metodologia seguida e à estrutura e organização conceptual traçada para o capítulo.
Foram traçados os seguintes objectivos para o presente capítulo, devidamente
contextualizados nos propósitos delineados, de uma forma mais geral, para o projecto de
investigação no seu todo:
1. Analisar o historial das políticas sociais americanas relativas à concessão de ajudas à
população sem-abrigo, contextualizando-as nas políticas sociais especificamente
dirigidas à pobreza e exclusão social;
2. Perceber as características, as principais valências e a evolução da aplicação das
estratégias recentes de mitigação das problemáticas inerentes aos sem-abrigo, com
concessão de uma forte atenção aos chamados “Ten Year Plans” e às abordagens no
âmbito dos programas de “Supportive Housing” e “Housing First”;
51
3. Possibilitar o estabelecimento de uma plataforma que permita a realização de um
estudo comparativo entre as políticas de apoio e assistência aos sem-abrigo nos EUA
– país com uma larga experiência e “tradição” de trabalho, investigação e intervenção
na área – e Portugal, tanto no que respeita às políticas movidas a nível nacional,
como, também, em termos locais, para a cidade de Lisboa.
Este último objectivo resume, mesmo, de forma exemplar, a relevância do presente
capítulo dirigido à situação dos EUA, no âmbito de um estudo sobre os sem-abrigo na
Área Metropolitana de Lisboa (AML), uma vez que, com maior ou menor sucesso, e
sendo alvo de maior ou menor criticismo, é factual que a questão dos sem-abrigo é,
desde há largos anos, uma temática presente na sociedade norte-americana. Assim, a
análise e inventariação das políticas, das linhas de investigação académica e do trabalho
social (p.ex., proporcionado através da actuação de Organizações Não-Governamentais
– ONG’s) levados a cabo nos EUA, pode constituir uma mais-valia na identificação de
“boas práticas” a – salvaguardando as respectivas adaptações às especificidades de
Portugal e da cidade de Lisboa – eventualmente procurar “exportar” para o caso
português. Efectuando o raciocínio inverso, esta abordagem à situação americana
permite, ainda, aprender com as “experiências menos conseguidas” levadas a cabo num
país (EUA) com uma larga tradição na abordagem a esta temática, evitando repetir erros
que foram anteriormente cometidos na tentativa de colmatação das problemáticas
individuais e sociais inerentes à questão dos sem-abrigo.
De forma a cumprir os objectivos delineados anteriormente, o presente capítulo
abordará quatro aspectos principais, cujos títulos e conteúdos provisórios se apresentam
em seguida:
1. A “Modernização” da Sociedade Americana e a “Modernização” do Fenómeno dos Sem-Abrigo:
No qual se procurará proceder a uma breve introdução à actual situação da pobreza e
exclusão social nos EUA – com a devida contextualização da questão dos sem-abrigo
nessas temáticas – como reflexo de alguns aspectos inerentes ao processo de
transição para a “modernidade” por parte da sociedade norte-americana; o relevo
será atribuído à importância dos fenómenos de reestruturação urbana e de
52
recomposição sociocultural que se têm vindo a fazer sentir, nas cidades norte-
americanas, de forma demarcada desde meados do século XX;
2. “Os Sem-Abrigo Contam”: Contando e Explicando os Sem-Abrigo nos Estados Unidos da
América: Serão, neste contexto, apresentadas algumas definições para o conceito dos
sem-abrigo nos EUA, assim como alguns números importantes, referentes à situação
actual do fenómeno (incluindo a sua espacialização, e considerando várias
“tipologias” de análise); serão, ainda, analisadas de forma mais detalhada algumas das
principais e potenciais causas e consequências diferenciais do fenómeno;
3. Breve Nota acerca da Investigação sobre a Questão dos Sem-Abrigo nos Estados Unidos da
América: Trabalhar-se-ão, neste ponto, os principais aspectos relativos à actuação da
sociedade civil (p.ex. ONG’s e outras associações) e, principalmente, das instituições
de ensino superior e investigação, face à problemática dos sem-abrigo nos EUA.
Efectuar-se-á, ainda, uma introdução (de contextualização ao capítulo seguinte) ao
tratamento da legislação e dos relatórios relativos à actuação política ao nível da
prevenção e colmatação dos problemas inerentes à questão dos sem-abrigo nos EUA.
4. Estratégias para Ajudar os Sem-Abrigo nos Estados Unidos da América – Uma Perspectiva
Diacrónica e Alguns Exemplos Actuais: No qual será, essencialmente, efectuada uma
aproximação, sob uma perspectiva evolutiva, às várias abordagens à questão dos sem-
abrigo nos EUA, desde a “ancestral” criminalização do fenómeno às metodologias
mais recentes, com destaque nítido para os chamados “Ten Year Plans” e para os
programas de “Supportive Housing” e “Housing First”.
Finalmente, e terminando a presente introdução, é essencial efectuar uma breve nota
sobre os principais aspectos metodológicos levados em consideração no presente estudo.
Os objectivos visados pela análise efectuada, juntamente com as especificidades
inerentes ao projecto como um todo, justificam a preponderância da pesquisa
bibliográfica – possibilitada através de literatura seleccionada e recolhida nos EUA, em
Portugal e na Internet; do levantamento de dados estatísticos; e da análise de documentos
legislativos norte-americanos – como o principal método de investigação utilizado.
No entanto, uma pesquisa desta índole quedaria incompleta sem a realização de
trabalho de campo. Assim, mesmo apesar dos óbvios constrangimentos espaciais, foi
53
aplicado um conjunto de entrevistas a peritos e especialistas seleccionados – íntimos
conhecedores e especialistas acerca do espectro das políticas e práticas dirigidas aos sem-
abrigo no contexto norte-americano –, cujos resultados irão sendo colocados (a
contexto, sempre que se justifique, e de forma mais ou menos explícita) ao longo dos
vários tópicos do capítulo, enriquecendo as informações decorrentes da, já acima
mencionada, pesquisa bibliográfica.
2.1. A “Modernização” da Sociedade Norte-Americana e a “Modernização” do
Fenómeno dos Sem-Abrigo nos Estados Unidos da América
Ao notório processo de desenvolvimento económico que se tem registado nas
últimas décadas – e do qual as principais cidades mundiais se vêm assumindo como
palcos privilegiados – não tem sido alheio o aparecimento, ascensão e agravamento de
um conjunto de importantes sintomas de crise social (e ambiental) nas principais áreas
urbanas, quer a nível mundial, quer particularizando para os casos norte-americano e
português.
Apesar das cidades se afirmarem, actualmente, como motores de desenvolvimento
económico, é também nelas que, e em aparente contradição, se vão concentrar alguns
dos problemas e fracturas sociais de maior dimensão e de resolução mais difícil. Os
espectros em que estes problemas se exprimem são múltiplos, variando desde a
integração das populações mais vulneráveis nos mercados de trabalho formais (p.ex., os
imigrantes, quer sejam internos, quer provenientes de outros países, normalmente dos
países “periféricos”), à degradação ambiental (p.ex., a sobre-exploração dos recursos
naturais ou a agudização de fenómenos de poluição e contaminação dos solos, do ar
e/ou dos recursos hídricos), passando pelo (in)cumprimento de Direitos Humanos
básicos (e consagrados) como a Educação, a Saúde ou a Habitação.
Assiste-se assim, actualmente, do ponto de vista social, ao aprofundamento
progressivo do dualismo social nas cidades, com o aparecimento e consolidação de
crescentes clivagens e contrastes entre os vários estratos populacionais que partilham um
mesmo território urbano, e à consolidação de fenómenos de segregação social e urbana,
54
de entre os quais a proliferação dos bairros de génese ilegal ou a degradação dos centros
históricos constituem exemplos claros.
Apesar da questão dos sem-abrigo constituir um fenómeno de notória ancestralidade,
a sua ligação com os supracitados processos de reestruturação urbana, que se têm vindo
a fazer sentir de forma nítida nas últimas décadas, é inequívoca. Foi a partir dos anos
1960/70 que o fenómeno começou a ganhar – particularmente nos EUA – uma maior
dimensão quantitativa, assumindo, também, novos e diferenciados contornos (cf.
AMBERT, 1998; BLAU, 1992).
Curiosamente, foi também a partir dessas décadas (1960/70) que as questões ligadas
à exclusão social e à pobreza – já trabalhadas no capítulo anterior – começaram a ser
alvo da atenção institucional, ganhando uma maior visibilidade para o mundo
académico, para os órgãos políticos e institucionais e para a sociedade civil em geral.
Pobreza e exclusão social, muitas vezes conotadas como realidades sinónimas,
apresentam, no entanto, algumas diferenças significativas. «A substituição do termo
“pobreza” pela expressão “exclusão social” seria prejudicial, quer para a ciência, quer para os grupos
desfavorecidos, mormente nos países em que a pobreza ainda reveste um carácter massivo (...) [assim, é
necessário] estabelecer um conceito de “exclusão social” que abarca a noção de “pobreza” e inclui
outras situações que, embora não sendo de pobreza, são caracterizadas por rupturas ao nível das relações
sociais» (cf. BRUTO DA COSTA, 2004: 12-13).
Percebe-se, pela anterior afirmação, que a noção de “exclusão social” – em oposição
à de inclusão ou integração social – implica o não cumprimento do Direito da Cidadania,
sendo este último traduzido no acesso a um conjunto de sistemas sociais básicos. Podem
ser identificados um total de cinco domínios no que a esses sistemas se refere, cuja
ausência de cumprimento e acessibilidade revela a existência de processos graves e
profundos de exclusão social (cf. BRUTO DA COSTA, 2004):
• Domínio Social: Referente ao conjunto dos sistemas de inserção social dos indivíduos –
estejam eles inseridos em grupos, comunidades, ou redes sociais mais vastas –, com
expressão a diversos níveis ou escalas de proximidade. Corresponde, assim,
essencialmente, aos factores de socialização e integração social. Um exemplo claro
deste domínio diz respeito ao aspecto integrador que a participação no mercado de
55
trabalho – encarado, aqui, não pela sua componente de inserção monetária, mas como
factor social – pode apresentar;
• Domínio Económico: Diz respeito à participação nos: i) Mecanismos geradores de
recursos económicos (p.ex., os salários no mercado de trabalho, ou os sistemas de
pensões); ii) Mercados de bens e serviços (p.ex., nas economias de mercado, este
aspecto assume-se como uma condição básica para se aceder a bens essenciais); iii)
Sistemas de poupanças, que permitam propiciar o estabelecimento de um grau de
segurança individual e social, tanto em relação ao presente, como em termos futuros;
• Domínio das Referências Simbólicas: Refere-se ao conjunto de perdas psicológicas e
identitárias que o excluído sofre, em função dessa sua posição (de excluído).
Constituem exemplos deste domínio as perdas de identidade social, de auto-estima, de
auto-confiança, de capacidade de iniciativa, ou de sentido de pertença à sociedade,
entre muitos outros;
• Domínio Institucional: Inclui o acesso aos sistemas prestadores de serviços (p.ex., os
serviços de educação, de saúde, de justiça e/ou de habitação) abarcando, também, a
importância do cumprimento de participação efectiva em algumas instituições de
índole político-institucional, referentes à capacidade ou possibilidade de exercer, de
forma efectiva, direitos de cidadania consagrados como, por exemplo, o direito de
voto);
• Domínio Territorial: A relevância atribuída a este domínio é recente e relaciona-se,
essencialmente, com os casos em que a exclusão territorial diz respeito, não
directamente a pessoas ou famílias, mas ao acesso a um território. Pode incluir vários e
diversificados aspectos, nomeadamente, os que se relacionem com os domínios das
acessibilidades, da habitação, dos equipamentos sociais, das actividades económicas, ou
dos sistemas e tecnologias de informação e comunicação (p.ex. a inclusão digital).
De acordo com o anteriormente disposto, parece inquestionável que a questão dos
sem-abrigo se constitui como um dos exemplos mais claros da existência de processos
de pobreza e exclusão social nas áreas urbanas, reflectindo fortes disrupções sociais dos
indivíduos, que podem ser sentidas, de forma nítida, ao nível de todos os anteriores
domínios. As problemáticas afectas à questão dos sem-abrigo extravasam a mera esfera
56
das questões habitacionais – que, no fundo, é o que “dá nome” ao fenómeno –
incorporando questões e situações diversas de exclusão, relacionadas com domínios
sociais, económicos, institucionais, territoriais e também, como se verá adiante, do
âmbito psíquico e identitário.
Tendo sido então, através da anterior (breve) contextualização teórica, e no
seguimento do que foi adiantado no anterior capítulo do presente relatório, consolidados
alguns aspectos teóricos que relacionam a questão dos sem-abrigo com o espectro mais
abrangente das questões relativas à pobreza e exclusão social, importa centrar a atenção
da análise desta relação nas especificidades inerentes ao caso norte-americano. Para tal, é
essencial adoptar uma perspectiva diacrónica, recuando alguns anos até ao período do
pós-II Guerra Mundial, no qual se fizeram sentir – a nível mundial e, mais
particularmente, nos Estados Unidos da América – importantes mudanças estruturais a
nível socioeconómico, político, cultural e, mesmo, urbanístico.
Neste contexto, o ano de 1956 marca de forma indelével o aparecimento e evolução
das referidas mudanças estruturais nos EUA. Os acontecimentos deste ano vão
condicionar, de forma indelével, o aparecimento de alterações significativas no modo
como o espaço urbano norte-americano passou a ser produzido (e consumido). Data
desse ano a reeleição de Dwight Eisehower, líder republicano, que vai consubstanciar (a
partir do ano seguinte, ou seja, 1957) um projecto de apoio, por parte do Governo
Federal Americano, à construção de uma rede nacional de auto-estradas inter-estaduais.
Este projecto – denominado Federal-Aid Highway Act – possibilitou, rapidamente, a
construção de mais de 75 mil quilómetros de auto-estradas, com efeitos notórios a nível
da acessibilidade rodoviária do vasto território norte-americano.
Para além de incentivar mais cidadãos americanos a recorrer ao transporte rodoviário
(particularmente ao transporte individual) foi também enorme o efeito do Federal-Aid
Highway Act na paisagem socioeconómica norte-americana. As claras vantagens logísticas
e económicas proporcionadas pelas referidas “interstates” foram rapidamente percebidas
pelo tecido empresarial norte-americano, com nítido destaque para as empresas de
transportes e para as indústrias pesadas. A circulação rodoviária ficava, então, mais
rápida, fluida e facilitada, o que permitia diminuir os custos de produção e transporte,
possibilitando, também, o funcionamento do tecido produtivo em “clusters” industriais
57
cada vez mais vastos e especializados. Assim, os anos seguintes ao Federal-Aid Highway
Act caracterizaram-se pela ocorrência de massivos processos de deslocalização
empresarial, essencialmente preconizados por unidades industriais pesadas que, saindo
dos centros das cidades, se iam localizando ao longo das referidas auto-estradas inter-
estaduais (Figura 2).
Fig. 2: Mapa da rede de interstates nos Estados Unidos da América
(Fonte: http://www.antiwar.com/blog/wp-content/uploads/2006/06/map.gif).
No entanto, o anterior processo de deslocalização não se aplicou apenas às unidades
fabris. Seguindo as oportunidades de emprego industrial, não tardou até que a população
– que anteriormente habitava, também, nos centros das cidades – acompanhasse este
processo de deslocalização, aglomerando-se em redor das vias de acesso às interstates,
criando inúmeros novos bairros e localidades, num processo que o geógrafo DAVID LEY
(1983) vai denominar como “explosão para o exterior da cidade”.
É claro que nem toda a população foi capaz de acompanhar estas “ondas” massivas
de suburbanização. Apenas os grupos sociais com maior mobilidade económica
seguiram este processo centrífugo, deixando uma cidade (centro) “entregue” aos mais
desfavorecidos economicamente, normalmente, representantes de classes socioétnicas
mais vulneráveis.
58
É este processo de segregação socioétnica – que WYATT (2004), de forma bastante
gráfica, vai denominar de “white-flight” –, que vai dar origem, simultaneamente, à
formação dos chamados “Whites Only Levittown Suburbs”, nas novas áreas de habitação, e
de guetos nas áreas mais centrais das cidades, que constituíam verdadeiros enclaves
socio-étnicos, desfavorecidos, urbanisticamente desqualificados, e habitados, na sua
maioria, por indivíduos de origem porto-riquenha e de raça negra (afro-americanos).
Apesar dos avisos de vários autores – de entre os quais se pode destacar, por
exemplo, JANE JACOBS (1961) que, na sua influente obra “The Death and Life of Great
American Cities” vai alertar para as consequências presentes (à altura) e futuras dos
desajustamentos sociais e urbanos que iam sendo alimentados por este processo –, este
movimento segregatório, reflexivo da ausência de eficácia no processo de planeamento
dos sistemas urbanos como um todo e, mais particularmente, dos espaços intra-urbanos
(em especial dos centros das cidades), vai-se prolongar pelas décadas seguintes, com
efeitos nítidos ainda nos dias de hoje.
Para além dos anteriores aspectos, são de realçar várias outras mudanças estruturais
na sociedade norte-americana, datáveis do mesmo período temporal. De entre estas
alterações, assumem particular destaque as que ocorreram ao nível dos sistemas de
emprego, da crescente polarização e concentração social e geográfica dos rendimentos,
do funcionamento dos mercados de habitação e do papel do chamado Estado-
Providência (Welfare-State) – não só nos apoios à habitação, mas também à generalidade
dos serviços sociais – que, cumulativamente, acabaram por resultar em intensificadas
dificuldades monetárias (para aquisição de habitação) por parte dos segmentos mais
vulneráveis da população.
Também o aumento dos fluxos imigratórios (quer legais, quer indocumentados) com
destino, especialmente, às principais áreas urbanas, vieram provocar crescentes pressões
sobre os mercados de trabalho e de habitação, contribuindo para a agudização das
insuficiências no acesso à habitação formal.
Cumulativamente aos anteriores processos de recomposição social – motivados, e
com nítidos impactos a nível dos mecanismos de reestruturação dos espaços urbanos, os
anos 1950/60 foram também, nos EUA, palco da ascensão de vários movimentos
activistas, de entre os quais se pode destacar o intenso activismo de raiz étnica. Por
59
diferentes motivos, e defendendo diferentes abordagens (que, no entanto, acabavam por
radicar em objectivos comuns), nomes como Rosa Parks, Martin Luther King Jr., Malcolm
X, Huey P. Newton ou Assata Shakur, entre muitos outros; vão-se tornar, a partir dessas
décadas, “símbolos” históricos do activismo afro-americano nos EUA, sendo a sua
influência para a evolução da sociedade norte-americana reconhecida e visível de forma
inequívoca ainda nos dias de hoje.
Para além das referidas convulsões a nível interno, a política norte-americana durante
essas duas décadas foi, também, agitada por vários fenómenos externos, com nítidos e,
em muitos casos, violentos impactos internos.
Durante dez anos (1965-1975), os EUA estiveram envolvidos numa violenta guerra
com o Vietname. De acordo com HERRING (2001), essa guerra terá provocado cerca de
58 mil mortos nas tropas americanas. Para além das mortes, há ainda a registar um
elevadíssimo número de feridos graves – muitos deles mutilados e em condição de
invalidez permanente – que, segundo o mesmo autor, terá sido superior a 350 mil.
A violência social destes impactos gerou enormes e múltiplas dificuldades ao nível
dos processos de reintegração dos indivíduos que haviam estado na guerra (os
denominados “war veterans”). Para além dos problemas relativos à reinserção dos
indivíduos mutilados, importa acrescentar que muitos dos ex-combatentes da guerra do
Vietname terão voltado aos EUA com graves problemas de foro mental. A todos estes
factores se associou, ainda, o facto de, nos EUA, este ter sido um período de
generalização social do consumo de drogas pesadas, como a heroína ou o “crack”, às
quais os física- e psiquicamente vulneráveis “veteranos” retornados da guerra, se iam
mostrando cada vez mais expostos.
Em resumo, é da combinação de todos os anteriores aspectos que se veio a agrupar, a
partir das referidas décadas de 1950-70, um conjunto de importantes factores de risco,
propícios à ascensão e perpetuação de desequilíbrios sociais graves. A sua combinação
terá actuado, em grande parte dos casos (como se poderá verificar adiante), de forma a
induzir a ascensão e proliferação de “novas” situações de “homelessness” nos EUA, num
fenómeno para o qual têm surgido várias denominações consoante os autores, de entre
as quais se podem destacar, a título exemplificativo, as nomenclaturas de “ressurgence of
60
homelessness” (cf. HOPPER, 1997) ou “advanced homelessness” (cf. MARCUSE, 1987; ROSSI,
1996).
Assistiu-se, então, a partir dessas décadas a uma “modernização” do fenómeno dos
sem-abrigo nos EUA que, à medida que a própria sociedade norte-americana ia
efectuando a sua transição para a modernidade, se ia revestindo de novas dimensões,
quer em termos quantitativos, quer no que respeita à agudização e diversificação das
problemáticas e consequências sociais a elas inerentes.
Como nota HOPPER (1997: 21-22), sintetizando muitos dos aspectos anteriormente
relevados, e introduzindo o ponto seguinte do próximo ponto do capítulo, «today’s
homeless poor are a far more heterogeneous group than their immediate skid row predecessors. Indeed
(…) homeless has undergone a transformation of a scale and complexity not seen since the Great
Depression [and] is now widely recognized as the staging ground for a new kind of poverty (…). Today,
the homeless population counts men, women, and children – alone, in small groups, and as families –
among its ranks (…). Reflecting the changing composition of poverty at large, today’s homeless poor are
younger and more ethnically diverse than their counterparts of the 1950s and 1960s. If certain of their
number have been found to have problems of substance abuse or a pronounced degree of psychiatric
disability, it is also the case that others are distinguishable from the settled poor chiefly by the fact of their
displacement».
Seguindo o anterior mote, e à luz do quadro conceptual evolutivo introduzido neste
tópico, a avaliação da situação actual, ou seja, dos “novos” e diversificados contornos do
fenómeno dos sem-abrigo, constituirá uma das questões centrais dos conteúdos
seguintes do presente capítulo, nos quais será efectuada, também, uma sistematização
mais detalhada das questões que têm presidido à consolidação e diversificação das
formas de “homelessness” nos Estados Unidos da América, nas últimas décadas.
2.2. “Os Sem-Abrigo contam”: Contando e Explicando os Sem-Abrigo nos
Estados Unidos da América
A reflexão acerca da definição de sem-abrigo é comum a grande parte da bibliografia
relativa à temática. Tendo já sido trabalhada no capítulo anterior, a focalização sobre
61
estes aspectos será, aqui, efectuada apenas com referência às particularidades da situação
norte-americana.
São notórias, e espacialmente transversais, as dificuldades em alcançar uma definição
universalmente consensual para a delimitação de quem é, efectivamente, sem-abrigo. No
entanto, estes constrangimentos não diminuem a fulcralidade inerente ao
desenvolvimento, quer a nível político, quer em termos académicos, de critérios capazes
de nortear a actuação dos vários agentes (sejam eles políticos, institucionais ou
socioeconómicos) envolvidos na tentativa de resolução e mitigação desta problemática.
Apenas através de uma clara orientação conceptual do fenómeno dos sem-abrigo se
tornará possível a organização e implementação de políticas eficazes e pró-activas, que
permitam mitigar e diminuir a sua incidência, actuando, quer de forma preventiva –
procurando diminuir ou mesmo anular os factores de risco –, quer no sentido de mitigar
os seus (potenciais e reais) efeitos negativos a nível social e/ou individual.
Como tal, atentando na anterior necessidade e nas particularidades referentes a cada
contexto específico, cada país foi desenvolvendo, ao longo dos últimos anos, a sua
própria definição de sem-abrigo. A variabilidade inerente a cada contexto nacional (que
se considerarão, aqui, como os factores “internos” ao fenómeno dos sem-abrigo) e a
diferencialidade referente às abordagens privilegiadas por cada decisor político (que,
concomitantemente com o anterior raciocínio, podem ser considerados como factores
“externos” ao fenómeno dos sem-abrigo) têm induzido um grande dinamismo na
evolução temporal e espacial da referida definição.
Percebe-se, assim, a existência de uma forte permeabilidade do conceito de sem-
abrigo, que se revela, quer relativamente às especificidades inerentes a cada locus em que
este fenómeno se desenvolve, quer face a influências externas – que influenciam as
tomadas de decisão –, sejam elas de cariz político-ideológico, referentes à disponibilidade
(e prioridade, estabelecida por cada órgão de governação, conferida à alocação) de
recursos económicos, ou às expectativas políticas e socioeconómicas que existem face à
actuação dos vários agentes com relevância sobre o fenómeno. Estes agentes são
múltiplos e diversificados, podendo variar desde os órgãos responsáveis pela criação e
implementação das políticas públicas, até às ONG’s (cujo trabalho “no terreno” se tem
demonstrado da maior fulcralidade), passando pelas instituições académicas,
62
responsáveis por grande parte da teorização e da investigação existente sobre o
fenómeno.
O caso americano não é excepção à anterior volatidade conceptual. As questões
relativas à definição de sem-abrigo nos EUA têm sido alvo da atenção e teorização por
parte de inúmeros autores, alguns dos quais, ou pelo seu pioneirismo, ou pela
importância das suas produções científicas, irão sendo, em seguida, referidos ao longo
do texto.
Não parece, então, existir um verdadeiro consenso nos EUA no que à definição de
“homeless” diz respeito. Alguns autores preferem a utilização de critérios mais restritos,
enquanto outros admitem uma maior generalização da definição do fenómeno, a ponto
de incluir, por exemplo, os indivíduos em risco de “homelessness”.
Por exemplo, PETER ROSSI – experiente investigador, com vasto trabalho realizado e
publicado sobre o tema – propõe a seguinte definição conceptual: «Homelessness, at its core,
means not having customary and regular access to a conventional dwelling: it mainly applies to those who
do not rent or own a residence» (ROSSI, 1996: 10).
Percebe-se facilmente que a definição se apoia na aplicação de uma maior
restritividade ao conceito de sem-abrigo, realçando a necessidade de focar a atenção
sobre a população literalmente sem-abrigo (do inglês “literally homeless”) (cf. CORDRAY e
PION, 1997; MONTAUK, 2006; NAEH, 2007f; ROSSI, 1996).
Assim, ROSSI (1996), apesar de consciente dos vários factores que colocam as
populações em risco de “homelessness” – como, por exemplo, as dificuldades
socioeconómicas de algumas fracções da população no acesso aos mercados de
habitação, ou os constrangimentos monetários provocados pela precarização das
relações laborais –, prefere não os incluir na sua definição, considerando que os
indivíduos que assumem tais características poderão ser incorporados, com maior
benefício para a delimitação conceptual dos fenómenos, por exemplo, numa outra
categoria, correspondente aos “extremamente pobres”.
Em contraponto, outros autores atentam sobre a importância de incluir, na definição
de sem-abrigo, factores como a instabilidade residencial ou laboral, possibilitando que
seja adoptada uma visão mais lata do fenómeno, com benefícios óbvios – por exemplo,
63
uma maior abrangência, universalidade e carácter preventivo – no que respeita ao
desenho de medidas políticas referentes à mitigação do fenómeno (cf. HOPPER, 1997).
No entanto, historicamente, a maior parte dos documentos legislativos tem
procurado a adopção de visões mais restritivas, menos responsabilizadoras e
penalizadoras da acção política perante a opinião pública, no que respeita à (falta ou
ineficácia da) actuação estatal, e motivando acções mais localizadas e menos exigentes
sob os pontos de vista monetário e social.
O McKinney Act (1987) – importante documento político e legislativo norte-
americano – constitui uma notável excepção à anterior afirmação, adoptando uma visão
mais lata de “homelessness”. «The definition incorporated by the McKinney Act (…) adopts a
somewhat broader view of homelessness. [According to it] the term “homeless” or “homeless
individual” includes an individual who (1) lacks a fixed, regular, and adequate night-time residence and
(2) has a primary night-time residence that is (a) a supervised, publicly or privately operated shelter
designed to provide temporary living accommodations (including welfare hotels, congregate shelters, and
transitional housing for the mentally ill), (b) an institution that provides a temporary residence for
individuals intended to be institutionalized, or (c) a public or private place not designed for, or ordinarily
used as, a regular sleeping accommodation for human beings» (CORDRAY e PION, 1997: 79).
De reparar que esta segunda definição, para além de considerar os aspectos
mencionados nas anteriores concepções dos “literally homeless” inclui, também, outras
situações, que se podem configurar como factores de risco de incorrer em situação de
sem-abrigo.
Em resumo, parece ser agora perfeitamente claro – através da apresentação dos
anteriores exemplos – que pode ser adoptada uma grande multiplicidade de critérios na
construção de definições conceptuais para os sem-abrigo. De qualquer forma parece ser
agora consensual que, quaisquer que sejam os aspectos considerados na definição do
fenómeno, existe uma forte necessidade de adopção de critérios conceptuais objectivos,
com claros benefícios em termos de uma operacionalização mais adequada e eficaz das
políticas públicas destinadas aos sem-abrigo.
Qualquer que seja a definição que se adopte, é claro que esta vai condicionar a
contabilização do número de sem-abrigo.
64
Considerando critérios restritos (similares à definição de ROSSI (1996)), estimativas
acerca do número de sem-abrigo nos EUA, assumiam que estes quantitativos ascendiam,
em 2005, a valores próximos dos 750/800 mil indivíduos (cf. NAEH, 2007a).
Estimativas mais recentes (cf. NAEH, 2009) revelam alguns resultados bastante
animadores, apontando para um decréscimo da ordem dos 10% no número total dos
sem-abrigo norte-americanos, entre 2005 e 2007, assumindo que esse valor se situava, a
esta última data, ligeiramente acima dos 670 mil indivíduos. O maior decréscimo terá
sido concretizado na classe dos “chronic homeless” (cuja definição será explorada mais
adiante no decorrer do presente capítulo), com uma diminuição de 28%, e das famílias
sem-abrigo, que atingiriam, em 2007, um valor total cerca de 18% menor do que em
2005. Apesar do sucesso evidenciado pelos anteriores resultados, a redução do número
de sem-abrigo não ocorreu de forma homogénea em todos os estados norte-americanos,
sendo de assinalar contrastes geográficos importantes no que respeita à evolução recente
do fenómeno (Figura 3).
A mesma fonte estabelece, ainda, a interessante distinção entre a redução conseguida
ao nível dos indivíduos que frequentadores dos abrigos (“shelters”) (cerca de 4%) e dos
chamados indivíduos sem-abrigo “unsheltered”, com uma importante redução, da ordem
dos 13%.
No entanto, há que relevar que todos os anteriores autores alertam para a
importância de encarar todos estes valores com algumas reservas, aceitando a expectativa
de que deverão existir grandes flutuações em termos sazonais, principalmente se forem
considerados os indivíduos que vivem na rua durante períodos de tempo mais reduzidos.
(a) (b)
65
Fig. 3: Evolução do número (total e segundo categorias) de sem-abrigo nos EUA
(a) ; e variação segundo Estados (b), entre 2005 e 2007 (Fonte: NAEH, 2009).
No que respeita à espacialização do fenómeno, parece ser possível verificar uma
(natural) correlação entre o número total de sem-abrigo e os Estados norte-americanos
nos quais se localizam as maiores cidades do país. Assim, seguindo o anterior raciocínio,
os Estados da Califórnia, Nova Iorque, Florida, Texas e Michigan podem-se contar entre
aqueles cuja incidência do fenómeno dos sem-abrigo é maior em termos absolutos (cf.
NAEH, 2007a; 2009) (Figura 4a). A análise dos anteriores valores em termos relativos, ou
seja, a percentagem de sem-abrigo face à população residente no Estado demonstra
resultados bastante diferentes (Figura 4b).
Em termos de grandes áreas urbanas, segundo BURT et al. (2001), entre as cidades
mais afectadas pelo fenómeno podem-se considerar os casos de Los Angeles, Nova
Iorque, Filadélfia, Chicago, São Francisco ou Seattle.
(a) (b)
Fig. 4: Incidência dos sem-abrigo por estado norte-americano, em termos absolutos
(a); e relativizado por 10 mil habitantes (b), em 2007 (Fonte: NAEH, 2009).
Percebidos os quantitativos (e a sua evolução recente) referentes ao número de sem-
abrigo nos EUA, e enquadrada a sua distribuição geográfica no interior do País, importa,
agora, procurar apresentar algumas tipologias socio-demográficas, procurando traçar –
66
embora reconhecendo que a intensa variabilidade espacial e temporal do fenómeno
provoca grandes riscos à excessiva generalização dos dados – um perfil geral dos sem-
abrigo norte-americanos (Figura 5).
Mesmo entre os vários autores analisados é possível encontrar fortes discrepâncias
em termos dos números (absolutos e relativos) apresentados, pelo que se recomenda
alguma cautela na análise, utilização e cruzamento de alguns dos valores que serão
enunciados em seguida. Uma última nota para relevar que, excepto quando
explicitamente indicado no texto, os dados apresentados em seguida são referentes (ou
anteriores) ao ano de 2005 (cf. NAEH, 2007a).
São vários os autores que apontam que mais de 60% da população sem-abrigo norte-
americana tende a viver sozinha. Os mesmos autores relevam que, dentro dos indivíduos
“sós”, o género masculino é, de forma bastante marcada, o mais susceptível a incorrer
em situação de sem-abrigo uma vez que, quase ¾ dos sem-abrigo “individuais” são do
sexo masculino (cf. BURT et al., 2001; JENCKS, 1995; MONTAUK, 2006; NAEH, 2007a;
WONG, 1997).
Uma importante fracção destes últimos indivíduos “sós” do sexo masculino –
segundo as estimativas utilizadas, cerca de 1/3 destes indivíduos – corresponderá a
antigos combatentes da guerra do Vietname, os chamados “homeless veterans”. Algumas
fontes chegam mesmo a avançar que, em 2005, existiriam quase 200 mil ex-veteranos da
guerra do Vietname em situação de sem-abrigo (cf. NAEH, 2007a; 2007f).
Segundo NAEH (2009) o número destes indivíduos terá diminuído de forma bastante
intensa nos dois anos seguintes contabilizando, em 2007, um total ligeiramente superior
a 150 mil indivíduos (mais especificamente, 154 mil efectivos).
Normalmente, estes indivíduos são mais idosos e apresentam um maior grau de
escolaridade que a generalidade da população sem-abrigo. A sua incidência ao nível das
doenças mentais e do consumo de álcool e estupefacientes é, em geral, também superior
aos valores médios correspondentes à totalidade dos sem-abrigo norte-americanos. É
estimado que a distribuição geográfica destes indivíduos siga as tendências referentes à
generalidade do fenómeno, com a maioria a localizar-se nos estados onde a incidência
absoluta do fenómeno dos sem-abrigo é maior, nomeadamente, na Califórnia – que
67
apresenta o valor mais elevado a nível nacional que, segundo a NAEH (2007f), chegava a
atingir cerca de 50 mil indivíduos – Nova Iorque, Texas e Florida.
A maioria dos indivíduos sem-abrigo é de raça branca (cerca de 52%, excluindo os
indivíduos de origem hispânica). No entanto, e principalmente entre os homens, existe
uma grande variabilidade étnica. Cerca de 25% dos sem-abrigo são de raça negra (não
hispânicos), correspondendo os de origem hispânica a quase 20%. A percentagem
remanescente é ocupada por indivíduos de outras etnias como, por exemplo, os “native
americans”. No que respeita a este últimos, é de assinalar a evidência de uma maior
concentração nos estados e cidades do Noroeste (p.ex. Seattle), aspecto que pode ser
explicado, notoriamente, por questões de índole marcadamente histórico-geográfica (cf.
BURT et al., 2001; WONG, 1997).
Finalmente, no que respeita às famílias com filhos, é crível que estas concentrem, no
total, mais de 30% dos indivíduos sem-abrigo. Exceptuando os importantes (e já
mencionados) decréscimos evidenciados nos últimos anos, tem-se verificado um
aumento considerável dos indivíduos incluídos nesta categoria. De relevar que a maioria
das famílias corresponde a uma mulher acompanhada por uma ou mais crianças (seus
filhos), muitas vezes com idades inferiores a 6 anos (cf. MONTAUK, 2006; NAEH, 2007b;
WONG, 1997).
Da anterior afirmação se depreende que as crianças/jovens são, também, bastante
afectadas pelo fenómeno. Acredita-se que quase 20% dos sem-abrigo têm idades
inferiores a 16 anos, a maioria dos quais acompanhados por familiares. Ainda assim,
algumas estimativas chegam a apontar para a existência de cerca de 20 mil
crianças/jovens sem acompanhamento (cerca de 3% do total de sem-abrigo) (cf.
MONTAUK, 2006; WONG, 1997).
68
43%
33%
3%
17%
4%
Homens solteiros
Famílias com filhos
Crianças sem acompanhamento
Mulheres solteiras
Desconhecido
Fig. 5: Valores relativos de população sem-abrigo nos EUA, em 2005, e
segundo várias tipologias (Fonte: MONTAUK, 2006; Adaptado).
É, agora, inquestionável, que a noção de sem-abrigo envolve uma grande
multiplicidade de factores e condicionantes, que impõem diferentes actuações político-
institucionais, no sentido da sua resolução. Assim, nos EUA, é comum agrupar os
indivíduos sem-abrigo de acordo com algumas das suas características mais relevantes.
É, exactamente, sobre essas tipologias de classificação – e sua íntima relação com os
vários factores explicativos para o fenómeno dos sem-abrigo nos EUA – que irá, agora,
recair a atenção do presente capítulo.
Como já foi referido anteriormente, a questão dos sem-abrigo não é nova nos EUA.
No entanto, a partir dos anos 1960/70 – num contexto de reestruturação urbana e
recomposição social –, o fenómeno conheceu novas dimensões e proporções. Tem-se
vindo a assistir, desde então, à ascensão, permanência e agravamento de um conjunto
vasto de factores de risco, que hiperbolizaram os contextos de empobrecimento,
desqualificação social e exclusão nos EUA. São vários os autores que identificam este
período pós-fordista de evolução do fenómeno dos sem-abrigo. ROSSI (1996) atribui-lhe,
mesmo, a denominação de “advanced homelessness”.
É sobre esta base teórica e conceptual que vão surgir as múltiplas classificações
actualmente aceites, nos EUA, para categorizar as principais variantes do fenómeno.
69
Uma primeira grande distinção pode ser traçada através da delimitação de uma
categoria normalmente designada como “chronic homelessness” (sem-abrigo crónico, em
português). O Governo Federal Americano inclui nesta categoria todos os «homeless
individuals with a disabling condition (substance use disorder, serious mental illness, developmental
disability, or chronic physical illness or disability) who have been homeless either: 1). continuously for one
whole year, or 2). four or more times in the past three years» (cf. NAEH, 2007a: 1-2).
Em resumo, a anterior definição baseia-se assim, essencialmente, em dois aspectos
principais, que são unanimemente considerados como as principais características dos
sem-abrigo crónicos: i) A situação de sem-abrigo é prolongada ou regularmente
reproduzida temporalmente; ii) Essa situação envolve a ocorrência de um qualquer tipo
de incapacidade, seja ela física, mental ou relacionada com o abuso de álcool ou drogas.
Segundo o “U.S. Department of Health and Human Services” podem ser consideradas as
cinco seguintes características principais associáveis à situação de sem-abrigo crónico (cf.
CATON et al., 2007):
1. A (quase) universal presença de incapacidades (debilidades físicas ou psicológicas);
2. A utilização recorrente e frequente de programas de assistência aos sem-abrigo e de
outros serviços sociais, com particular destaque para os serviços de saúde;
3. A frequente e recorrente falta de ligação com as comunidades;
4. Os múltiplos problemas de saúde, sendo comuns as disfunções ao nível das
doenças mentais, do abuso de substâncias, ou a contracção do vírus da SIDA;
5. A existência de serviços sociais fragmentados, que se mostram incapazes de
corresponder às necessidades múltiplas destes indivíduos.
As estimativas oficiais apontam que existiriam, em 2005, aproximadamente 150-200
mil indivíduos – provavelmente cerca de 171 mil, correspondentes a mais de 20% do
número total de sem-abrigo – nesta situação, espalhados por todo o País. Em 2007, o
seu valor não ultrapassaria os 125 mil (cf. NAEH, 2007a; 2009) (Figura 6). Como já foi
relevado anteriormente, respeitam com maior intensidade a indivíduos não
acompanhados (correspondendo, em 2007, a quase 30% desta fracção), em idade adulta
e do sexo masculino (cf. NAEH, 2007a; 2009).
70
(a) (b)
Fig. 6: Evolução do total de sem-abrigo e dos sem-abrigo crónicos (a cinzento), nos
EUA (a) e segundo várias categorias (b) entre 2005 e 2007 (Fonte: NAEH, 2009).
No que respeita à distribuição geográfica destes indivíduos, é possível verificar que os
Estados com maiores taxas de incidência de sem-abrigo crónicos, relativamente ao total
de sem-abrigo desse mesmo Estado, são Virgínia Ocidental (quase metade dos sem-
abrigo deste Estado são classificados como “crónicos”), Mississípi, Califórnia e Utah.
Entre os estados com menor percentagem podem-se destacar Maine, Kentucky,
Montana e Wyoming (cf. NAEH, 2009).
A situação de “chronic homelessness” apresenta a particularidade de ser relativamente
transversal a inúmeros problemas que afectam os sem-abrigo. Daí que seja comum
associar esta designação com outras categorizações, nomeadamente os “homeless veterans”
ou os “mentally-ill homeless” (sem-abrigo com problemas mentais, em português) (cf.
O’FLAHERTY, 1998).
De facto, face a esta transversalidade e à dimensão dos problemas que acarretam, os
sem-abrigo crónicos são, de entre as várias categorias de sem-abrigo, os que mais efeitos
e problemas causam nos sistemas sociais (p. ex., para o sistema judicial, para os sistemas
de saúde ou para os sistemas de abrigo ou alojamento), promovendo a sua saturação ou
a ineficácia das medidas políticas implementadas (cf. CATON et al., 2007).
Para além do anterior aspecto, são também estes os sem-abrigo mais “consumidores”
de recursos e fundos públicos. Por exemplo, apenas para os chamados “mentally-ill
homeless” – importa relembrar que as incapacidades de foro mental incorrem como um
dos elementos extremamente vulnerabilizadores para a situação de sem-abrigo crónico –
estima-se que sejam, apenas na cidade de Nova Iorque, dirigidos anualmente cerca de
71
$40 mil, dispendidos em abrigos com financiamento público, hospitais (hospitalizações
psiquiátricas e não só, e incluindo os “US Department of Veterans Affairs hospitals”), prisões,
entre outros recursos e equipamentos sociais (cf. CATON et al., 2007; NAEH, 2007a).
Assim, apesar de representarem uma percentagem relativamente reduzida do total de
população sem-abrigo, face à variedade e multiplicidade dos problemas afectos à
categorização de “sem-abrigo crónico”, é para estes que se dirige a focalização da maior
parte dos recursos e estratégias dirigidas aos sem-abrigo nos EUA.
E é, exactamente, sobre esta intensa focalização política nos últimos anos que pode
recair a responsabilidade da redução dos quantitativos (e das percentagens relativas)
destes indivíduos. No entanto, para atestar de forma inequívoca acerca da real eficácia da
implementação das políticas dirigidas, nos últimos anos, para este “segmento” da
população sem-abrigo, será necessário esperar por resultados mais actuais e
temporalmente abrangentes, considerando um intervalo mínimo de três a cinco anos,
que permitam identificar, com maior confiança, as tendências de evolução da “chronic
homelessness” nos EUA (cf. NAEH, 2007f; 2009).
Em resumo, a aplicação de programas dirigidos especificamente aos sem-abrigo
crónicos – iniciativas essas que serão tratadas mais à frente no decorrer do presente
capítulo – parece estar a permitir reduzir grandemente os quantitativos destes indivíduos
na sociedade norte-americana.
A confirmar-se como uma tendência estrutural, esta diminuição apresenta grandes
benefícios a vários níveis, seja em termos da diminuição dos gastos públicos, da melhoria
das condições de vida das comunidades, ou da situação de inserção social destes
indivíduos sem-abrigo, por exemplo, através da melhoria das suas condições de saúde
física e mental, do aumento da possibilidade de criação de emprego e de geração de
rendimentos autónomos, ou da menor propensão para ser detido judicialmente, entre
muitos outros aspectos.
Uma outra categorização que merece grande destaque na investigação e nas
estratégias dirigidas aos sem-abrigo nos EUA é a que engloba as famílias (incluindo pais
e respectivas crianças) sem-abrigo.
As chamadas “homeless families” têm sido identificadas como pertencentes a um
segmento de população sem-abrigo em franco crescimento desde os anos 1990. Em
72
2005 compreendiam já cerca de 33% da população sem-abrigo, dos quais, quase 25%
corresponderão a crianças. Extrapolando para o total de famílias americanas, verifica-se
que estes cálculos traduzem que (pelo menos do ponto de vista estatístico) um total de
agregados familiares equivalente a quase 2% das famílias norte-americanas já teria
experienciado (pelo menos durante uma noite) uma situação de ausência de abrigo (cf.
NAEH, 2007b; ROG e BUCKNER, 2007).
Também neste grupo se assistiu a uma importante descida, da ordem dos 18%, entre
2005 e 2007. Nesta última data, o total de indivíduos sem-abrigo pertencentes a esta
categoria encontrava-se ligeiramente abaixo dos 250 mil, correspondentes a cerca de 84
mil agregados familiares. Em 2005, os valores correspondentes situavam-se,
respectivamente, em torno dos 304 mil indivíduos, constituindo cerca de 98 mil
agregados (cf. NAEH, 2007a; 2009).
No caso das famílias, uma das principais causas para a sua incorrência em situação de
sem-abrigo diz respeito aos problemas ligados às dificuldades ou insuficiências dos
mercados de compra e arrendamento de habitação, por exemplo, a existência de sistemas
de rendas incomportáveis para as capacidades financeiras de famílias, muitas vezes
monoparentais, e com baixos rendimentos. Por conseguinte, é fácil perceber a extrema
vulnerabilidade deste segmento às flutuações da economia e a outros fenómenos de
índole conjuntural (cf. NAEH, 2007b; 2009; ROG e BUCKNER, 2007).
Para além da questão (da escassez ou insuficiência) dos recursos económicos, parece
evidenciar-se, ainda, uma tendência para as famílias sem-abrigo pertencerem a um grupo
étnico minoritário. De entre estes grupos, verifica-se uma nítida e particular incidência
sobre as famílias compostas por indivíduos afro-americanos (cf. NAEH, 2007b; ROG e
BUCKNER, 2007).
O risco de uma família “cair” em situação de sem-abrigo parece, ainda, ser maior
quando estas apresentam, na sua composição, crianças em idade pré-escolar. Finalmente,
a situação de gravidez, em especial quando referente a mulheres de segmentos
socioeconómicos mais baixos, parece também – quando combinada com outros
factores, como, por exemplo, a vulnerabilidade habitacional e socioeconómica das
famílias – poder ser apontada como um importante factor de risco (cf. ROG e BUCKNER,
2007).
73
Ao contrário dos sem-abrigo crónicos, as famílias sem-abrigo – constituídas,
maioritariamente, por mulheres e suas respectivas crianças – parecem evidenciar uma
menor tendência para permanecer de forma prolongada nessa situação (de sem-abrigo).
Sendo constituída, maioritariamente, por indivíduos pertencentes a grupos etários e
sociais vulneráveis – particularmente as mulheres e as crianças – esta “categoria” tem,
também, sido alvo de uma importante atenção por parte dos decisores políticos (e da
sociedade civil), e da operacionalização de vários programas dirigidos aos sem-abrigo nos
EUA. Tudo indica que seja a este relevo político e institucional que, à imagem do que se
notou para os sem-abrigo crónicos, podem ser associadas as recentes tendências de
descida dos quantitativos das famílias em situação de sem-abrigo.
No entanto, também para as “homeless families” se ressalva a necessidade de analisar
com cautela estes resultados, rejubilando com o que parecem ser resultados bastante
positivos nos últimos anos, mas considerando o carácter provisório das tendências
evidenciadas nos últimos anos. Particularmente num grupo tão vulnerável a flutuações
socioeconómicas conjunturais, será essencial procurar analisar comparativamente e
contextualizar as recentes variações positivas nos resultados impostos pelo actual
contexto de crise económica e financeira, que se tem feito sentir de forma tão
proeminente nos EUA.
São estas as duas principais categorias de sem-abrigo nos EUA, assumindo-se como
as mais contabilizadas, tanto em termos estatísticos, como no desenvolvimento e
implementação de políticas dirigidas à população sem-abrigo. No entanto, nos últimos
anos, tem vindo a ser considerado de forma individualizada um outro segmento
populacional, correspondente aos adolescentes e jovens adultos em situação de sem-
abrigo (os chamados “homeless youth”).
«Homeless youth can be distinguished from two other homeless populations: single adults, who are
predominantly male and do not have children in their custody; and homeless families, typically comprising
a mother and her children. Homeless youth include runaways, who have left home without parental
permission, throwaways, who have been forced to leave home by their parents, and street youth, who have
spent at least some time living on the streets as well as systems youth – i.e., young people who become
homeless after aging out of foster care or exiting the juvenile justice system» (TORO et al., 2007: 232).
74
Alguns autores têm vindo a considerar, de forma crescente, os adolescentes e adultos
jovens – que apresentam, por exemplo, elevados níveis de susceptibilidade ao consumo
de drogas ou a depressões – como um dos grupos sociais em maior risco de incorrer em
situação de sem-abrigo (cf. TORO et al., 2007; MOLINO, 2007).
Cumulativamente os adolescentes sem-abrigo têm sido um dos grupos mais
desprezados no que à investigação e à implementação de políticas explícita- e
especificamente dirigidas a si diz respeito. O seu crescimento nos últimos anos
provocará, com certeza, uma inflexão nas anteriores tendências, alargando-se, cada vez
mais, a necessidade de desenvolver actuações específicas para este grupo de indivíduos
sem-abrigo.
A delimitação das três anteriores categorias procura corresponder aos principais eixos
de análise e actuação sobre os sem-abrigo norte-americanos na última década. Apesar de
se assumirem, actualmente, como as grandes divisões do fenómeno, não excluem as
hipóteses de diversificação e categorização das abordagens dirigidas aos sem-abrigo. Às
três tipologias anteriores e às já mencionadas anteriormente categorias “homeless veterans”
ou “mentally-ill homeless” (cf. NAEH, 2007a; 2007f; O’FLAHERTY, 1998), podem-se associar,
ainda, muitas outras classificações, representando áreas de intervenção importantes, de
entre as quais se podem destacar as questões ligadas aos ex-reclusos sem-abrigo (cf.
METRAUX et al., 2007) ou as referentes ao estudo dos sem-abrigo fora das áreas urbanas
(a chamada “rural homelessness”) (cf. ROBERTSON et al., 2007).
Em resumo, parece ter ficado até agora percebido, que são várias as tipologias
atribuídas aos sem-abrigo nos EUA. Normalmente, acabam por se reunir em três grupos
principais, apresentados anteriormente. Independentemente de qual é a tipologia
considerada, as especificidades inerentes a cada uma dessas classificações acaba por
reflectir as causas dominantes que presidiram à incorrência dos indivíduos na situação de
sem-abrigo. Importa, portanto, à luz dos conhecimentos apresentados anteriormente –
relativamente aos quantitativos, à espacialização, às tendências de evolução e às
tipologias de classificação do fenómeno dos sem-abrigo nos EUA – retomar as questões
iniciadas no primeiro ponto do presente capítulo, procurando aprofundar
sistematicamente, as principais causas e factores explicativos para a existência e
consolidação dos vastos contingentes de sem-abrigo nos EUA.
75
Existem, assim, como percebido até então, várias explicações para o fenómeno dos
sem-abrigo. A muitas delas pode ser associado um carácter global, outras serão mais
específicas do contexto norte-americano. Qualquer que seja o caso, já ficou percebido
que a apresentação de uma explicação vaga e monocausal, relacionada com a simples
perda do acesso à habitação – que é o aspecto nomeia o fenómeno – perecerá
rapidamente por falta de profundidade analítica e explicativa, fruto da ausência de uma
visão sistémica, capaz de abarcar toda a complexidade que se encontra intrínseca ao
fenómeno dos sem-abrigo.
Percebeu-se, até agora, que a referida falta de acesso à habitação, mais do que apenas
uma causa, deve ser considerada como a materialização de vários sintomas
socioeconómicos, ou seja, por outras palavras, como um efeito (não apenas de uma, mas
sim) de várias situações de ruptura individual e social. Seguindo o anterior raciocínio,
podem (e devem), como tal, ser aplicadas várias explicações para a ascensão, emergência
e consolidação do fenómeno dos sem-abrigo nos EUA.
Apesar de muitas delas já terem sido apresentadas – no primeiro ponto do presente
capítulo, e de forma implícita às características de cada tipologia de sem-abrigo –
procurar-se-á efectuar uma sistematização conclusiva e mais organizada dessas causas.
Resumidamente, e em termos gerais, podem ser considerados dois tipos de causas
para as situações de sem-abrigo: i) Causas endógenas ao indivíduo (sem-abrigo); ii)
Factores exógenos a esse mesmo indivíduo (cf. AMBERT, 1998; HOPPER, 1997; LEGINSKI,
2007; ROSSI, 1996).
As causas de origem endógena aos sem-abrigo baseiam-se, essencialmente, em
factores ou características intrínsecas a cada indivíduo. As causas subjacentes a esta
perspectiva analítica centram-se, assim, nas esferas da responsabilização individual pelas
escolhas ou opções (socioeconómicas) efectuadas, ou das incapacidades (as chamadas
“handicaps” ou “disabilities”) de cada sem-abrigo. É, em resumo, o modelo analítico a que
DAVID HARVEY (1985; 1991) se refere, de forma explícita, como “the mad, sad, bad
explanation”. Incluem-se, neste âmbito, explicações como, por exemplo, as doenças de
foro físico ou mental ou o abuso de álcool e de outras substâncias aditivas.
No entanto, existem também os factores explicativos para a situação dos sem-abrigo
que procuram centrar-se sobre a esfera das causas (sejam elas estruturais ou
76
conjunturais) subjacentes ao funcionamento da(s) sociedade(s). As explicações deste tipo
associam-se, geralmente, às questões sociais indutoras de situações de pobreza extrema e
de vulnerabilidade habitacional, tendendo a responsabilizar os agentes públicos e
privados, e realçando a existência de graves insuficiências no que concerne às políticas
públicas de protecção social (a “crise” do papel do Estado-Providência) e aos
mecanismos capitalistas de estruturação dos mercados.
Neste âmbito, por exemplo, ROSSI (1996) identifica os mercados imobiliário e laboral
e os sistemas de segurança e apoio social como os factores que, de uma forma mais
marcada e substancial, contribuem para a diminuição da autonomia socioeconómica dos
indivíduos e das famílias, tornando-as mais vulneráveis a “cair” numa situação de sem-
abrigo.
Semelhante focalização sobre os factores exógenos é relevada por HOPPER (1997: 23),
quando afirma que «whatever personal quirks, ailments, or deficiencies may put individuals or
households at increased risk of becoming homeless, the structural roots of the problem lie in the changes
that have taken place over the past two decades in the labour and housing markets in the United States.
The net effects of these trends are exacerbated by declining welfare, unemployment, and disability benefit
levels (…). The upshot, terrible in its simplicity, is the contemporary delineator of homelessness: income
insufficient to afford available housing».
Apesar da tentativa de explícita simplificação avançada pelas anteriores palavras,
nota-se, implícito nas palavras de KIM HOPPER, a existência de uma grande
complexidade nos factores que explicam o fenómeno dos sem-abrigo nos EUA. No
fundo, aquilo que parece ser um único factor – insuficiência dos rendimentos
económicos e financeiros das famílias e indivíduos – acaba por radicar e ser influenciado
constantemente por inúmeras nuances, resultantes de diferentes combinações de vários
aspectos, tanto endógenos (“ailments or deficiencies” e riscos inerentes), como exógenos
(“declining welfare, unemployment, disability benefit levels”, entre outros).
É assim, actualmente, assumido que o fenómeno dos sem-abrigo nos EUA pode ser
(em termos gerais) explicado pela existência de uma complexa espiral descendente de
situações desviantes, que se vão acumulando até um determinado momento de ruptura
socioeconómica, culminando com a perda ou rejeição de uma habitação física e das
formas de vida associadas à posse ou pertença à referida habitação. Como é óbvio, estas
77
conclusões são extrapoláveis, com toda a legitimidade científica, para outros contextos
espaciais, que não apenas o caso americano.
Em resumo, considera-se, actualmente, que todas as variáveis – sejam elas endógenas
ou exógenas – tendem a inter-relacionar-se, concorrendo para a criação de um conjunto
complexo de factores de risco e vulnerabilidade, cuja combinação pode originar um
momento de ruptura, que se manifesta pela incorrência numa situação de perda
física/psíquica de acesso a uma habitação.
WALTER LEGINSKI (2007), na sua tentativa de compilar as principais causas
explicativas para o actual fenómeno dos sem-abrigo dos EUA, procura assumir essa
abordagem sistémica e de complexidade, realçando que, para explicar as incidências
actuais do fenómeno dos sem-abrigo, é essencial considerar a participação combinada de
várias explicações, endógenas e exógenas.
Assim, em resumo, pode-se compreender, em termos gerais, a actual situação dos
sem-abrigo nos EUA, como resultante da combinação dos seguintes factores (cf.
LEGINSKI, 2007):
1. Factores Endógenos: Apresentam uma maior incidência entre os jovens, os veteranos
de guerra e os adultos do sexo masculino pertencentes a estratos socioeconómicos
mais desfavorecidos e/ou ex-residentes em bairros marginalizados. De entre estes
factores podem-se destacar: i) Doenças de foro mental; ii) Doenças sexualmente
transmissível (SIDA); iii) Doenças fisicamente incapacitantes (nota-se, aqui, a íntima
ligação com a questão dos veteranos de guerra mutilados e fisicamente
incapacitados); iv) Abuso de álcool e drogas pesadas (p.ex. heroína ou crack);
2. Factores Exógenos: De entre os quais se podem considerar: i) Desemprego associado
à terciarização da economia e às reestruturações do espaço urbano; ii)
Incapacidades e desregulação dos mercados habitacionais, em especial no que
respeita à habitação social; iii) Desinstitucionalização e excessiva burocratização do
acesso aos serviços sociais de apoio aos menos favorecidos socioeconomicamente.
Sintetizados os principais aspectos gerais que presidem à explicação do fenómeno
dos sem-abrigo nos EUA passar-se-á, em seguida, de forma conclusiva, ao tratamento
78
mais detalhado das situações que são, regularmente, apontadas como explicativas para
cada uma das três principais tipologias de “homelessness” consideradas anteriormente.
Em primeiro lugar, no que diz respeito à “chronic homelessness” parece ser possível
perceber a incidência de causas de foro pessoal (endógenas) e social (exógenas).
Resumidamente, pode-se considerar que a «available information on the characteristics of those
who end up homeless for long periods of time indicates that older age, persistent unemployment, poor
family support, arrest history, poor functioning and coping skills, a history of placement in the child
welfare system, and recent victimization are important factors in determining the risk for chronic
homelessness (…). A longer duration of homelessness was [also] related to a lack of earned income
[and] a history of substance abuse treatment» (CATON et al., 2007: 157-158).
Estimativas de BURT et al. (2001) corroboram a anterior afirmação, demonstrando
que cerca de 60% dos sem-abrigo crónicos apresenta problemas mentais; quase 80%
desses indivíduos revela problemas múltiplos relacionados, por exemplo, com o
consumo de álcool ou de drogas pesadas.
As várias dificuldades (ou mesmo, incapacidades estruturais) políticas de re-inclusão
social dos ex-veteranos da guerra do Vietname são também consideradas como algumas
das causas mais importantes para a “chronic homelessness”. Como mostram as estatísticas,
cerca de 194 mil combatentes da guerra do Vietname já viveram em situação de sem-
abrigo nos EUA, dos quais entre 25-30% podem ser classificados como sem-abrigo
crónicos (cf. CATON et al., 2007).
Os factores que colocam as famílias com crianças em risco de incorrer em situação de
sem-abrigo são, também, diversos. As famílias monoparentais, de baixos rendimentos,
constituídas pela mãe e por um ou mais filhos, representam a maior fracção deste grupo
de sem-abrigo.
As razões económicas são, normalmente, colocadas entre as mais importantes. As
famílias que apresentam menores rendimentos – em situação ou grave risco de pobreza
– são as mais vulneráveis, não encontrando, inúmeras vezes, meios financeiros para
manter a sua habitação, especialmente em períodos de maior instabilidade económica
(cf. ROG e BUCKNER, 2007).
A desestruturação familiar, muitas vezes provocada pelo abandono do agregado
familiar por parte do homem, durante os primeiros anos de vida das crianças, ou mesmo
79
ainda durante a gravidez; associada às dificuldades de inserção no mercado de trabalho
por parte das mulheres grávidas ou com filhos em idade pré-escolar actuam, também,
como factores fortemente condicionantes da situação de “homeless families and children”.
Em muito casos, essas mulheres apresentam já um preocupante historial no que respeita
a traumatismos físicos e mentais, muitas vezes derivados de abuso físico/sexual por
parte de parceiros e/ou familiares, ou do consumo aditivo de álcool e estupefacientes
(cf. BURT et al., 2001; ROG e BUCKNER, 2007).
Finalmente, no que diz respeito aos adolescentes sem-abrigo verifica-se que, às
“tradicionais” questões ligadas com o abuso de drogas ou com traumatismos mentais ou
físicos relacionados com violência parental, familiar ou de parceiros (p.ex. abusos
sexuais) podem ser associados vários factores de maior especificidade.
Como sintetiza TORO et al. (2007: 249-250) «many risk factors associated with youth
homelessness have been identified. Examples include family conflict, aging out of foster care, and
identifying as gays, lesbians or bisexuals. What is not well understood is how these factors operate. That
is, what are the pathways leading to homelessness among youth with these risk factors? Future research
needs to explore these pathways and consider how other factors (e.g., access to and quality of services
received during childhood or early adolescence, growing up in a family that experienced homelessness)
[that have recently been questioned as probable causes or suppressors for youth
homelessness] either aggravate or mitigate those risks».
2.3. Breve nota acerca da investigação sobre a questão dos Sem-Abrigo nos
Estados Unidos da América
Seguindo as principais linhas de actuação política relativas à colmatação dos
problemas individuais e sociais do fenómeno dos sem-abrigo nos EUA, as primeiras
incursões académicas sobre esta temática vieram da esfera das Ciências Médicas, o que
terá acontecido, sensivelmente, até meados do século XX. Vivia-se, do ponto de vista
político, um período de desinstitucionalização e “criminalização” do fenómeno, no qual
se acreditava que a existência dos sem-abrigo poderia ser justificada, unicamente, por
factores endógenos aos indivíduos.
80
A contribuição dos investigadores provenientes da esfera epistemológica e
metodológica das Ciências Médicas continua ainda, nos dias de hoje, a ser das mais
profícuas e importantes. Contemporaneamente, é possível notar a existência de
importantes contributos efectuados por médicos de várias especialidades clínicas – com
destaque para a Psiquiatria, a Cardiologia, ou a Neurologia – mas também por
psicólogos, epidemiologistas, sanitaristas, entre muitos outros.
Questões ligadas à saúde pública, ao desenvolvimento (físico e psicológico) das
crianças sem-abrigo, à incidência de doenças mentais entre os sem-abrigo e ao consumo
de álcool ou drogas pesadas continuam a afirmar-se, de forma destacada, entre algumas
das principais preocupações médicas de índole académica relativas à questão dos sem-
abrigo nos EUA (cf. ALPERSTEIN et al., 1988; BASSUK et al., 1998; FISCHER et al., 1986,
HWANG, 2001; SUSSER et al., 1997).
No entanto, desde os anos 1970/80 – e, com maior consolidação, a partir da década
de 1990 – que o fenómeno dos sem-abrigo tem despertado o interesse de outros flancos
do espectro científico norte-americano. De entre eles, o destaque pode ser concedido às
Ciências Sociais e Humanas, nomeadamente, à Sociologia, à Geografia ou à Demografia.
De relembrar que foi também a partir dessas mesmas décadas que o fenómeno dos
sem-abrigo atingiu novas proporções. É o período em que aumenta consideravelmente o
número de sem-abrigos nos EUA e em que se assiste a uma grande diversificação das
tipologias de pessoas (e famílias) sem-abrigo nas cidades norte-americanas.
A análise do interesse particular da Geografia pelas questões relativas à
reestruturação, produção e mercantilização dos espaços urbanos remonta, também, às
décadas de 1970/80, epistemologicamente concentrado no seio da Geografia Urbana de
inspiração marxista. A questão dos sem-abrigo – relacionada com outras temáticas, de
entre as quais se podem destacar, a título exemplificativo, o acesso aos mercados de
emprego urbano e de habitação, ou aos sistemas de apoio e protecção social – foi sendo
progressivamente incluída e relevada nesses estudos.
Autores como DAVID HARVEY (1985; 1991) ou NEIL SMITH (1996; 2005) –
fortemente inspirados pelas Geografias Marxistas – podem-se contar entre os primeiros
geógrafos que adereçaram (de forma mais ou menos explícita) a temática dos sem-
abrigo.
81
Percebe-se assim que, pouco a pouco, os estudiosos dos espaços urbanos,
provenientes de vários ramos das ciências sociais, foram concedendo um interesse cada
vez maior a esta questão (dos sem-abrigo), considerando-a como um elemento fulcral na
análise da reestruturação socioeconómica dos espaços urbanos.
A recente atenção dispendida pelas outras correntes epistemológicas ligadas, por
exemplo, ao pós-modernismo e ao pós-estruturalismo – que têm privilegiado a análise
das áreas urbanas como espaços social- e urbanisticamente fragmentados – tem também
orientado o aparecimento (particularmente nos EUA, mas também na Europa e, até, em
Portugal) de estudos particularmente críticos relativamente à vulnerabilidade da posição
dos sem-abrigo nos novos processos de reterritorialização e de reconstrução do
património e da identidade dos espaços urbanos (cf. MITCHELL, 1997).
Apesar dos avanços efectuados a partir das décadas de 1970/80, é apenas nos anos
1990 que a investigação sobre os sem-abrigo vai dar um salto definitivo. Esse avanço
deu-se, não só em termos da quantidade de material produzido, como também ao nível
da sua “qualidade” patente, por exemplo, na sua maior operacionalidade e mais estreita
ligação às políticas públicas.
A escalada do fenómeno nas décadas anteriores havia induzido a necessidade de se
começar a implementar, de forma efectiva e eficaz, programas e medidas de combate e
mitigação dos efeitos do fenómeno. É, exactamente, nos anos 1990 que a eficácia dessas
medidas vai começar a ser “testada”, o que resultou na produção de intensa e crítica
investigação, cada vez mais baseada em exaustivos e profundos estudos de campo,
levados a cabo, de forma mais ou menos coordenada, em várias cidades norte-
americanas (cf. BARROW et al., 1999; BLAU, 1992; CULHANE et al., 1997; SALIT et al., 1998;
SHINN et al., 1998; WOOD et al., 1990; WONG, 1997).
A integração dos resultados da, anteriormente mencionada, intensa investigação, com
os mecanismos e directrizes de actuação política e da sociedade civil, conheceu um
incremento bastante importante no ano de 1998, através da organização do “First
National Symposium on Homelessness Research”, que juntou investigadores de vários espectros
científicos, “policy-makers” e agentes e representantes da sociedade civil (p.ex. ONG’s), e
indivíduos que se haviam já encontrado em situação de sem-abrigo (cf. DENNIS et al.,
2007).
82
Os principais tópicos em focalização nesta reunião prenderam-se com questões
relacionadas com o acesso à habitação, à saúde e aos serviços de apoio por parte dos
sem-abrigo. Foram lançadas raízes que permitiram criar novas linhas de investigação e de
actuação institucional, e promover a operacionalização das políticas definidas no terreno.
Foram, ainda, levantados alguns dos alicerces que permitiram a posterior criação das
abordagens e programas que viriam a marcar a actuação política e institucional face aos
sem-abrigo – alguns desses programas serão estudados adiante – ao longo da última
década, e sobre os quais recairá muito do (pelo menos provisório e aparente) sucesso da
evolução verificada nos últimos anos.
Quase uma década depois, ou seja, em 2007 foi organizado, pelo “US Department of
Health and Human Services” (HHS) e pelo “US Department of Housing and Urban Development”
(HUD), um segundo simpósio – denominado “Toward Understanding Homelessness: The
2007 National Symposium on Homelessness Research” – intuindo efectuar um balanço dos
avanços efectuados ao longo da década antecedente e delinear novas orientações de
trabalho para os próximos anos (cf. DENNIS et al., 2007)
Para além das temáticas já abordadas em 1998, novas preocupações foram
introduzidas neste segundo simpósio, nomeadamente a importância de actuar de forma
tematicamente mais abrangente – numa tentativa de compreender, de modo mais
holístico, a verdadeira complexidade do fenómeno actual dos sem-abrigo – concertando
medidas dirigidas a: i) Educação e inserção dos sem-abrigo nos mercados de emprego; ii)
Apoio específico aos sem-abrigo veteranos de guerra e aos sem-abrigo crónicos; iii)
Ligações existentes entre a situação de sem-abrigo e os sistemas criminais, judiciais e
penitenciários; iv) Questões dos sem-abrigo adolescentes e das famílias com crianças,
cada vez mais comuns e a exigir abordagens (cada vez mais) específicas; v) Sem-abrigo e
pobreza nos espaços rurais (cf. DENNIS et al., 2007)
Foram também, nesta reunião, adereçados novos (e velhos, mas renovados)
programas e abordagens para a resolução das questões dos sem-abrigo, avaliando ou
perspectivando a sua eficácia. Discutiram-se, ainda, vários modelos de acolhimento e de
fornecimento de habitação aos sem-abrigo (com destaque para os mecanismos de
“Supportive Housing” e de “Housing First”, que serão analisados, com um maior detalhe,
mais adiante), e diversos planos de apoio à inserção laboral e à criação de rendimento
83
autónomo – na tentativa de promoção progressiva da auto-suficiência dos indivíduos –
para os sem-abrigo.
Uma das principais conclusões do encontro assume a existência de uma notória
evolução na década anterior, tanto a nível da reflexão e teorização sobre o fenómeno,
como em termos do seu conhecimento empírico, como, ainda, ao nível da aplicação
efectiva de programas e iniciativas locais e nacionais dirigidas aos sem-abrigo norte-
americanos (cf. DENNIS et al., 2007)
A análise da multiplicidade de tópicos abordados permite traçar, conclusivamente,
um “state-of-the-art” (que se pode considerar relativamente actual) da investigação sobre os
sem-abrigo nos EUA. Assim, e procurando efectuar um resumido balanço da evolução
verificada, ao longo dos últimos anos, ao nível da investigação – em termos da sua
quantidade, da sua profundidade”, e da interligação com a actuação ao nível das
instâncias políticas, da sociedade civil e com os sem-abrigo propriamente ditos – sobre a
questão dos sem-abrigo nos EUA, parece ser possível contabilizar a emergência de dois
aspectos centrais, que resumem as directrizes principais que presidiram à referida
evolução decenal (cf. DENNIS et al., 2007):
1. Assistiu-se, de forma demarcada, à emergência e fortalecimento de novos (muitos
dos quais no seguimento de outros, já pré-existentes) esforços colaborativos para
adereçar a questão dos sem-abrigo a vários níveis de decisão política, com particular
destaque para a importância que foi, crescentemente, conferida à esfera local, tanto
ao nível dos “fornecedores” de ajuda, como dos “receptores” desses auxílios.
Os chamados “10 Year Plans” podem ser apontados como um dos exemplos cabais
deste maior “glocalismo” de actuação, pautado pela interligação e coordenação
entre os trabalhos efectuados em níveis de decisão distintos, mas evidenciando um
maior (e progressivamente crescente) destaque a ser assumido pela esfera local.
2. Revelou-se, durante a última década, a atribuição de uma ênfase crescente aos
processos de recolha e utilização de dados empíricos, encarados como formas de: i)
Melhor compreender as características e as dinâmicas dos sem-abrigo; ii) Auxiliar e
possibilitar a implementação de programas de assistência mais adequados; iii) Traçar
novos e mais adequados rumos de investigação e actuação política, baseados na
progressiva actualização do conhecimento que se vai reunindo.
84
A utilização crescente dos chamados “Homeless Management Information Systems”
(HMIS), ou a “banalização” da aplicação de análises custo-benefício para cada uma
das intervenções realizadas, constituem exemplos de actuações recentes,
desenvolvidas no âmbito desta linha de pensamento/actuação, que valoriza e
renova a fulcralidade que deve ser concedida ao trabalho de campo e à percepção e
conhecimento aprofundado dos efeitos específicos de cada um dos programas e
iniciativas implementados.
Encontrando-se, já, devidamente contextualizados os principais processos referentes
à evolução (e situação actual) da questão dos sem-abrigo nos EUA, e introduzida a
renovação dos principais referenciais de investigação académica ao longo das últimas
décadas, parecem estar, a este ponto, lançadas as bases para a apresentação das políticas
dirigidas aos sem-abrigo nos EUA. Para tal, começar-se-á por analisar a sua evolução
diacrónica (até à situação actual) para, em seguida, se proceder a uma análise mais
detalhada de alguns dos principais programas de acção política e institucional dirigidos
aos sem-abrigo nos EUA.
2.4. Estratégias para ajudar os Sem-Abrigo nos Estados Unidos da América
– Uma Perspectiva Diacrónica e alguns exemplos actuais
A questão dos sem-abrigo tem constituído um aspecto persistente e duradouro ao
longo da história norte-americana. Ao longo dos últimos séculos foram sendo
implementadas diversas medidas, reveladoras de diferentes abordagens e opiniões
institucionais face a esse fenómeno.
Já foi demonstrado que, nos últimos anos, se assistiu a grandes alterações no que
respeita à questão dos sem-abrigo nos EUA. As causas estruturais (sejam elas endógenas
ou exógenas) têm ganho progressiva preponderância nos últimos anos, induzindo uma
cada vez maior permanência e diversidade de situações de “homelessness”. Este alargar de
dimensão por parte desta problemática tem também, como já foi relevado
anteriormente, proporcionado a sua maior visibilidade a nível científico, político,
institucional e, mesmo, socioeconómico.
85
Particularmente em termos políticos, esta maior escala dimensional da questão dos
sem-abrigo nos EUA, tem apresentado grandes reflexos, induzindo a aplicação de novas
medidas e programas, tematicamente mais abrangentes e mais integradores face aos
trabalhos teóricos e empíricos desenvolvidos nas esferas social (associações da sociedade
civil) e académica. Nota-se, a partir da segunda metade da década de 1990, uma
progressiva tentativa de intervenção governamental – tanto por parte do Governo
Federal, como ao nível dos órgãos políticos locais –, com importantes efeitos directos
que, a acreditar no carácter estrutural das recentes estatísticas, se fazem sentir, tanto
sobre a evolução dos quantitativos e condições de vida das populações sem-abrigo,
como também sobre as próprias cidades nas quais recaem as intervenções.
Por outro lado, não se pode deixar de relevar que o entusiasmo que vem sendo
gerado em torno das políticas dirigidas aos sem-abrigo desde os anos 1990 não é geral,
sendo possível encontrar autores que se mantêm cépticos e extremamente críticos em
relação à legislação e às políticas directamente dirigidas aos sem-abrigo (principalmente
até ao final da década de 1990), assumindo-as como restritivas, excludentes,
incriminatórias e aniquiladoras do espaço público utilizável pelas pessoas sem-abrigo (cf.
MITCHELL, 1997).
Em alguns casos, esses mesmos autores assumem mesmo que estas medidas surgem
apenas como movimentos de marketing urbano, associados a grandes e visíveis
acontecimentos mediáticos, e suportando-se em planos de renovação urbana que em
nada pretendem beneficiar, pelo menos de forma legítima e desinteressada, a população
sem-abrigo.
Contrariamente, parece existir algum consenso na consideração que a evolução do
fenómeno dos sem-abrigo nos EUA se tem pautado pela existência de grandes episódios
(ou períodos). O que varia ligeiramente entre os vários autores são os intervalos
temporais considerados. De notar que, a cada uma das referidas fases é comum estarem
associadas distintas formas ou abordagens de intervenção pública (cf. BLAU, 1992; BURT
et al., 2001; CULHANE e HORNBURG, 1997; HOMBS, 2001; JENCKS, 1995; LEGINSKI, 2007).
Resumidamente, e de forma inspirada, principalmente, na classificação avançada por
WALTER LEGINSKI (2007) – considerando, no entanto, algumas nuances introduzidas pela
bibliografia anteriormente mencionada – pode ser considerado um total de cinco fases,
86
cujas respectivas denominações, delimitações temporais, características e formas de
actuação política associadas se apresentam, de forma sucinta, em seguida (Tabela 1):
1. Período da “Colonial Homelessness” (do século XVII até 1820/30): Período anterior à
existência dos asilos, no qual não se identificam estratégias relevantes, localizadas e
definidas de forma propositada para a resolução da problemática dos sem-abrigo.
As classificações atribuídas a estes indivíduos eram, em geral, recriminatórias e
excludentes (p.ex., destacam-se as categorizações de “wandering poor” ou “studdy
beggars”). Evidenciavam-se as actuações de cariz violento e punitivo para com os
sem-abrigo, sendo comuns a aplicação de castigos, ou a organização de “purgas”
por parte dos órgãos políticos ou das próprias comunidades, procurando reprimir e
desincentivar a existência desses indivíduos. No seguimento da legislação de
inspiração britânica, às comunidades vai ser atribuída a responsabilidade pelos
“seus” pobres, o que induzia, em geral, um forte desconforto nas comunidades
locais para com os sem-abrigo (na altura maioritariamente migrantes) e a sua não-
inserção social, o que acabava por motivar as anteriores práticas repressivas e social-
e territorialmente excludentes.
2. Período Pós-Guerra Civil (de 1820/30 até ao início do século XX): Vai-se assistir à
manutenção das classificações discriminatórias para com os sem-abrigo, que vão ser
correntemente apelidados de “vagabonds”, “bums” ou “tramps”. Assiste-se, face ao
período anterior, a um grande crescimento do número de sem-abrigos, situação
resultante, principalmente, do rescaldo da Guerra Civil norte-americana, que
potenciou a existência de um maior número de escravos libertos, de ex-veteranos
da guerra, de imigrantes ou populações deslocadas, de órfãos, entre outros.
Institucionaliza-se, verdadeiramente, a criminalização do fenómeno, o que origina
que os sem-abrigo sejam, neste período, frequentemente encaminhados para asilos,
esquadras policiais, prisões ou orfanatos. Destaque, neste contexto, para a
aprovação do “Rhode Island Tramps Act” (1880), documento desenhado para
estabelecer as regras de criminalização dos sem-abrigo, e que acabou por ser
emulado por grande parte dos Estados norte-americanos.
Paradoxalmente, é também neste período que vão ser criados os primeiros abrigos
(“shelters”) – normalmente da responsabilidade de grupos de Cristãos Evangélicos –,
87
sendo, também, efectuados alguns dos primeiros trabalhos de investigação de que
há registo, sobre os sem-abrigo norte-americanos, maioritariamente provenientes da
esfera das Ciências Médicas (p.ex., estudando e reconhecendo a existência de
ligações entre o fenómeno dos sem-abrigo e o consumo de álcool; ou a maior
vulnerabilidade destes indivíduos para a contracção de doenças infecto-contagiosas
como a tuberculose).
88
Tabela 1: Fases de evolução histórica (século XVII até à actualidade) do fenómeno dos sem-abrigo nos EUA
Fonte: LEGINSKI (2007)
89
3. Período da Grande Depressão e das duas Guerras Mundiais (do início do século XX
até à década de 1950): Período pautado por momentos de grande
instabilidade económica e política a nível internacional, que
condicionaram a ocorrência de grandes fluxos migratórios com destino
ao continente norte-americano, factores esses que, conjuntamente,
acabaram por promover um aumento dos sem-abrigo nos EUA.
Apesar da maioria das grandes cidades continuar a não apresentar
qualquer “oferta” de apoio aos sem-abrigo, é neste período que vão ser
introduzidos os primeiros programas federais de assistência a estes
indivíduos, normalmente sob a forma de mecanismos institucionais
actuantes em termos da provisão de alimentação (“soup kitchens”), de
abrigo (“shelters”), ou de emprego (“transient relief programs”).
Apesar dos anteriores avanços, até à criação do “National Committee on
Care of Transient and Homeless” – que pode ser considerado como o
primeiro verdadeiro grupo de acção dirigido, com alguma especificidade,
para as questões ligadas aos sem-abrigo – as medidas dirigidas a estes
indivíduos não vão diferir grandemente da generalidade das políticas que
iam sendo desenvolvidas com o intuito de melhorar as condições de vida
das populações evidenciando maiores níveis de pobreza.
4. Período da desinstitucionalização das economias e dos serviços sociais (da década de
1950 até aos anos 1990): Ganham forma (e maiores proporções) vários dos
processos actuais, já mencionados em tópicos anteriores e que,
conjugadamente, concorrem para explicar as actuais e complexas formas
tomadas pelo fenómeno dos sem-abrigo. É o, já referido, período da
“ressurgence of homelessness” (cf. HOPPER, 1997) ou da “advanced homelessness”
(cf. ROSSI, 1996). Vai-se, assim, assistir à ocorrência de processos
diversos e profundos de reestruturação urbanística das principais cidades
norte-americanas, acompanhando a recomposição social que ia
acontecendo nesses mesmos espaços urbanos, com múltiplos,
90
importantes e diversificados impactos directos e indirectos sobre a
questão dos sem-abrigo.
Data de 1987 a implementação do conhecido “McKinney Act”, importante
figura legislativa norte-americana que, apostando numa abordagem mais
abrangente para o conceito e problemática dos sem-abrigo, vai
possibilitar uma maior facilidade e eficácia no estabelecimento e
financiamento de programas específicos para a população sem-abrigo.
As cidades (contextos locais), ainda que de forma relativamente tímida,
ganham uma maior preponderância na resolução dos problemas dos
“seus” sem-abrigo. No entanto, vai-se verificar, nesta fase, pouca
criatividade e efectividade no desenvolvimento de programas sociais
dirigidos à maioria dos espaços urbanos, uma vez que a maior parte das
políticas desenvolvidas se vai centrar (unicamente) sobre a provisão de
abrigos e alimentos aos sem-abrigo. A teorização desenvolvida ao longo
da década de 1990 – em geral, extremamente crítica face ao período
anterior – vai reconhecer a ineficácia das anteriores políticas, chegando,
mesmo, a assumir que os seus efeitos se revelaram particularmente
nocivos e perversos, podendo mesmo ser responsabilizados como os
catalisadores da proliferação do fenómeno dos sem-abrigo em muitas
cidades americanas (cf. BLAU, 1992; BURT et al., 2001; CULHANE e
HORNBURG, 1997; HOMBS, 2001; JENCKS, 1995; ROSSI, 1996).
Podem considerar-se, dentro deste período, duas fases com diferentes
características (cf. ROSSI, 1996).
Numa primeira, vai-se assistir a uma desterritorialização da população
sem-abrigo, forjada, essencialmente, em ideologias moralmente
conservadoras e forçada pelos processos excludentes de reorganização
socio-urbanística das cidades.
À anterior fase, vai-se seguir uma outra, que se pode entender como uma
reterritorialização do fenómeno dos sem-abrigo.
91
Para os mais positivos, esta fase assume-se, no fundo, como uma
reaproximação à questão dos sem-abrigo, que vai passar a ser, desde
então, encarada como uma problemática complexa, cuja resposta social e
institucional deve incluir abordagens e resoluções coerentes e
abrangentes. Esta transição vai originar um conjunto de efeitos positivos,
de entre os quais se podem destacar: i) O fomento à investigação sobre
os sem-abrigo; ii) A criação de programas, mais ou menos eficazes,
dirigidos especificamente aos problemas afectos aos sem-abrigo; iii) A
abertura de espaços para a expansão e consolidação dos trabalhos
realizados por entidades da sociedade civil, como por exemplo, as
ONG’s; iv) A criação das bases que permitiram a transição para as
transformações conceptuais e operacionais das políticas dirigidas aos
sem-abrigo, que se fizeram sentir a partir da segunda metade da década
de 1990 (cf. BURT et al., 2001; CULHANE e HORNBURG, 1997; DENNIS et
al., 2007; LEGINSKI, 2007).
No entanto, importa, também, relevar que nem todos os autores vão
revelar a anterior positividade em relação a esta fase de reterritorialização
dos sem-abrigo, assumindo-a, essencialmente, como um período de
“aniquilação legal do espaço público” através da legitimação da criação e
reconfiguração de um conjunto de mecanismos de vigilância e de
punição indirecta (p.ex. através do encaminhamento “forçado”, mais ou
menos subtil, dos sem-abrigo, para outras áreas das cidades com menor
valorização urbanística) de fenómenos como a mendicidade ou a
pernoita ao relento (cf. MITCHELL, 1997).
5. Período Contemporâneo (desde a segunda metade da década de 90 até à actualidade):
Assiste-se, em geral, à continuação do anterior período, tanto em termos
da expansão e das tipologias do fenómeno dos sem-abrigo, como das
políticas a ele dirigidas. De notar, no entanto, uma inflexão em relação a
algumas das práticas anteriores, pautada, essencialmente, pelo
92
reconhecimento inequívoco do fracasso das políticas centradas
exclusivamente na oferta de abrigos e refeições. Passam a procurar-se
novas abordagens, mais holísticas e integradoras, e dirigidas às
particularidades de cada grupo e comunidade de sem-abrigo. Vai-se
assistir a grandes desenvolvimentos em termos do conhecimento dos
sem-abrigo, derivado, quer da maior intervenção e envolvimento por
parte dos agentes políticos, quer da actuação de fundações e associações
públicas e privadas, quer, ainda, da crescente teorização académica sobre
o fenómeno. Destaque, em termos políticos para a implementação de
novas práticas, de entre as quais se podem destacar os chamados “Tem
Year Plans to End Chronic Homelessness in Your Community”, os programas de
“Supportive Housing” e a abordagem subjacente à filosofia “Housing First”,
cada um deles procurando adaptar as melhores soluções a cada grupo e
situação específica.
A importância das três anteriores abordagens políticas – tanto pelos
resultados positivos que a sua implementação tem alcançado, como, também,
pela sua potencial transposição para as especificidades do caso português –
impõe que seja dispensada uma maior atenção sobre as suas principais
características, procurando avaliar as suas potencialidades e constrangimentos
principais, determinando, de forma sucinta, quais os seus “universos” de
aplicação e os principais resultados (e perspectivas futuras) que alcançaram.
Para tal, recorrer-se-á, não só à pesquisa bibliográfica efectuada, mas, também,
às informações recolhidas nas entrevistas efectuadas a vários especialistas
norte-americanos com importantes conhecimentos e valias na matéria.
Iniciar-se-á, a referida análise, com a aproximação aos denominados “Ten
Year Plans to End Chronic Homelessness in Your Community”. A identificação da sua
génese obriga a remontar até ao ano 2000, data da ocorrência da publicação
“A Plan, not a Dream: How to End Homelessness in Ten Years” (cf. NAEH, 2000).
93
O referido relatório vai reconhecer – através da apresentação de um
diagnóstico relativo à problemática dos sem-abrigo nos EUA – que, para além
dos custos sociais associados ao fenómeno, a questão dos sem-abrigo
acarretava importantes externalidades em termos económicos. Apesar da
importância de tais considerações – enunciadas numa tentativa de captar a
atenção da comunidade política para a importância de actuar sobre o
fenómeno –, importa realçar que já vários autores as haviam relevado
anteriormente (cf. O’ FLAHERTY, 1998; SALIT et al., 1998).
Uma das chaves dos “Ten Year Plans” vai ser a sua tentativa de implementar
os pressupostos percebidos na intensa investigação dos anos precedentes.
Outro factor de sucesso vai-se referir ao facto de ser procurado, pelos
decisores políticos, que os planos sejam desenvolvidos de acordo com uma
abordagem mais inovadora do ponto de vista sociocultural e político,
procurando a atribuição de relevo ao trabalho que pode ser efectuado a nível
local, ou seja, em cada comunidade.
Assim, em resumo, a filosofia destes planos aponta para a importância de
conferir autonomia aos contextos decisórios locais. De acordo com a
“National Alliance to End Homelessness” (NAEH) – organização que se pode
considerar como a grande ideóloga e impulsionadora destes “Ten-Year Plans” –
é no seio de cada comunidade que melhor se poderão desenvolver as
estratégias para a resolução da questão dos sem-abrigo (dessa comunidade),
possibilitando, a esses indivíduos, um melhor, mais facilitado e menos
burocratizado acesso, quer a habitação a preços mais acessíveis – os chamados
programas de “affordable housing” –, quer aos vários serviços sociais (de saúde,
de educação, de emprego, ou de protecção social) de que os sem-abrigo se
encontram, em geral, excluídos (cf. NAEH, 2000; 2003; 2006; 2007c).
Assim, no seguimento das anteriores indicações conceptuais, foram
delineadas, no relatório inicial – “A Plan, not a Dream: How to End Homelessness
in Ten Years” – algumas directrizes importantes, que deveriam ser incorporadas
94
nas estratégias de redução dos problemas ligados aos sem-abrigo, a
desenvolver no contexto dos vários “planos decenais” comunitários. Entre os
referidos conceitos directivos podem-se destacar os seguintes (cf. NAEH, 2000;
2003):
1. “Plan for Outcomes”: Assume que os territórios votados a intervenção pelos
planos locais, e as respectivas estratégias de actuação, devem ser
delineados através da realização de recolhas de dados exaustivas acerca
dos sem-abrigo desse local, de forma a permitir um maior (e melhor)
conhecimento diagnóstico do fenómeno, salvaguardando, como tal, uma
maior aplicabilidade e adequação das políticas e estratégias a desenvolver
para a sua mitigação;
2. “Close the Front Door”: Relevo para a importância de adoptar medidas e
programas holísticos e mais abrangentes de combate à pobreza nas
comunidades, para evitar que os grupos de risco nelas identificados não
incorram em situação de sem-abrigo; basicamente, defende-se, desta
forma, uma actuação preventiva;
3. “Open the Back Door”: Realça a importância de analisar as necessidades
habitacionais e sociais dos sem-abrigo de cada comunidade, definindo e
aplicando, como tal, e de forma o mais célere e eficaz possível, as
estratégias que se possam vir a demonstrar mais adequadas à sua
reinserção social e habitacional;
4. Build Infrastructures: Atenta na demonstração da fulcralidade apresentada
pelo alargamento do leque de serviços prestados pelas instituições sociais
e políticas, e da concessão de possibilidades para os sem-abrigo gerarem
os seus próprios rendimentos de forma autónoma; as medidas
implementadas ao nível dessa autonomização devem, assim, actuar de
forma complementar e intimamente associada à generalização da oferta
de alojamento (a preços mais acessíveis) para os sem-abrigo.
95
Desde o ano 2000 – que, conforme referenciado anteriormente, se pode
assumir como a data de constituição das directrizes gerais de organização dos
programas comunitários decenais votados à erradicação do fenómeno dos
sem-abrigo – foram já desenvolvidas iniciativas deste tipo em mais de 360
comunidades, espalhadas um pouco por todo o País mas, com uma óbvia (e
nítida concentração) nos estados e cidades norte-americanas mais afectadas
pela questão dos sem-abrigo (Figura 7).
Do total de planos implementados, é possível anunciar que foram já
concluídos 234, encontrando-se os restantes em fase de desenvolvimento, o
que parece demonstrar um forte comprometimento por parte dos agentes
políticos e sociais.
Fig. 7: Distribuição geográfica dos “Ten-Year Plans” já concluídos (até
meados de 2009) no território norte-americano
(Fonte: http://www.endhomelessness.org/section/tools/communityplans).
Na (óbvia) impossibilidade de analisar todos os referidos planos, importa
procurar efectuar o estabelecimento de algumas tendências e padrões de
organização que revelem a existência de estratégias comuns entre eles.
96
Um primeiro aspecto a relevar diz respeito à estrutura formal da estratégia
desenvolvida nos planos. Seguindo indicações da NAEH (cf. NAEH, 2000;
2003), parece ser possível identificar que a generalidade dos planos –
salvaguardando algumas pequenas adaptações locais – parece apresentar uma
estrutura disposta em torno de um conjunto de objectivos estratégicos
(“goals”), que pretendem responder à questão “o que se está a tentar alcançar?”.
Para cada um desses objectivos é possível contabilizar um conjunto de linhas
de actuação (“action steps”), cuja enunciação deve ocorrer de modo a permitir
perceber “como se vai actuar no sentido de cumprir os objectivos anteriores?”. A cada
uma das anteriores linhas de acção está, normalmente, associada uma, ou
mais, metas temporais (“timeframes”) e, em alguns casos, a discriminação da
pessoa/organização que está responsável pelo cumprimento da referida
orientação (cf. NAEH, 2000; 2003; 2006; 2007c)
Segundo a NAEH (2006; 2009), a maior parte dos planos delineados incluiu,
de forma central, estratégias dirigidas aos “sem-abrigo crónicos” (fazendo jus
ao nome completo dos planos – “Ten Year Plans to End Chronic Homelessness in
Your Community”). Este segmento dos sem-abrigo foi mesmo considerado
como o principal “receptor” das medidas estratégicas implementadas em mais
de 30% dos programas locais. Quase metade do total de planos inclui
iniciativas dirigidas aos sem-abrigo adolescentes; cerca de 50% (valor que tem
crescido nos que vêm sendo implementados nos últimos anos) centram a sua
atenção sobre as questões ligadas à “family homelessness”. Como nota NAEH
(2009: 17) «approximately 49 percent of plans to end homelessness specify families as a
target subpopulation. The recent emphasis on ending homelessness among families has
resulted in progress».
Continuando a referenciar as mesmas fontes de informação, é possível
perceber que a grande maioria dos planos concedeu uma grande importância
ao esforço de envolvimento de uma gama vasta de “stakeholders”,
contabilizando, quer agentes públicos, quer entidades privadas, no(s)
97
processo(s) de planeamento. De relevar que, quase 30% dos planos já
implementados decidiu aproveitar as experiências de ex-sem-abrigo,
fomentando a sua participação no desenvolvimento desses planos.
No que respeita às fontes de financiamento, identifica-se uma grande
variabilidade em termos de “investidores”, sendo possível considerar, neste
âmbito, quer entidades públicas, quer fundações privadas. De notar que cerca
de metade dos planos foram capazes de identificar, logo à partida, doadores
importantes, que se responsabilizaram pela implementação de todo o plano.
Apesar de alguns planos terem demonstrado uma boa capacidade de
angariação de fundos provenientes de investidores privados, a viabilização
financeira da generalidade dos planos foi possibilitada pela actuação das
Autarquias, responsáveis por uma parte bastante substancial dos
financiamentos totais em mais de metade dos planos (cf. NAEH, 2006).
Um outro aspecto a destacar reside no facto de que, embora radicando
numa génese comum – nomeadamente, os referidos relatórios pioneiros da
NAEH, que construíram as directrizes e linhas de actuação gerais para a
elaboração e operacionalização de cada plano –, é possível evidenciar a
tentativa de manutenção de uma grande flexibilidade na implementação de
cada plano, visando possibilitar uma maior adequabilidade de cada conjunto
de medidas, a cada situação e comunidade específica. Algumas comunidades
apostaram, de forma mais incisiva, sobre as questões ligadas ao abuso de
álcool e estupefacientes, outras relevaram a intervenção sobre os “mentally-ill
homeless”, enquanto algumas preferiram centrar a sua actuação sobre a
concessão do acesso à habitação.
No entanto, o exercício de avaliação dos vários planos, efectuado em
NAEH (2006), permite, ainda, identificar, ao nível das próprias estratégias dos
vários planos, algumas expectativas de actuação comuns, subjacentes (de
forma mais ou menos directa) à maior parte deles. Assim, é possível identificar
98
como preocupações relativamente transversais aos vários planos, os seguintes
aspectos (cf. NAEH, 2006):
1. Criação de Sistemas de Bases de Dados: Reconhecendo a importância
atribuída pelos teóricos relativamente ao papel do conhecimento e da
informação sobre os sem-abrigo (cf. DENNIS et al., 2007), cerca de 90%
dos planos implementados afirmou, na sua estratégia, a ambição de
proceder à criação – e operacionalização, visando a criação de
mecanismos possibilitadores da sua constante actualização futura – de
um “Homeless Management Information System” (HMIS);
2. Prevenção da “Homelessness”: Quase 80% dos planos reconheceu a
importância operacional que deve ser atribuída ao desenvolvimento de
medidas de prevenção relativas à agudização do fenómeno dos sem-
abrigo nas comunidades; entre essas medidas – que demonstram uma
grande variedade entre os vários contextos – podem-se destacar aspectos
como o fornecimento de apoio e consultoria a indivíduos pobres e
socialmente excluídos das comunidades, apoiando-os no processo de
negociação de rendas, ou na fuga à situação de desemprego e sub-
emprego; acompanhamento das famílias vulneráveis (em especial, as
monoparentais) com crianças adoptadas, situações de gravidez precoce,
ou crianças em idade pré-escolar; entre outras medidas;
3. Diminuição dos Períodos Contínuos de “Homelessness”: Ligação das iniciativas
deste tipo à mitigação das questões de “chronic homelessness”, ou de situação
prolongada de sem-abrigo, por exemplo, através da criação e
generalização de oportunidades de alojamento permanente para estes
indivíduos (“permanent housing”) ou da implementação dos chamados
programas de “re-housing”. As iniciativas deste tipo encontram-se
presentes em mais de 70% dos planos, totalizando um quantitativo já
superior a 200 mil unidades habitacionais subsidiadas, das quais 80 mil
correspondem a “permanent housing”; de acordo com este eixo de actuação,
99
deve ser conferido um grande privilégio às iniciativas desenvolvidas no
âmbito de programas de “Supportive Housing” ou de “Housing First”, que
serão tratadas a seguir;
4. Ligação e Inserção dos Indivíduos e Famílias Sem-Abrigo à Rede de Serviços Sociais:
Uma vez completada a etapa de colocação dos sem-abrigo nos
alojamentos, cerca de 80% dos planos prevê a continuidade da actuação
através da aplicação de medidas promotoras da conexão dos sem-abrigo
aos serviços sociais básicos; assim, deve ser promovida a sua integração
laboral (possibilitando a sua auto-suficiência) e a sua inclusão nos vários
serviços de apoio e protecção social (p.ex. saúde e educação).
Resumindo, parece constituir uma opinião transversal, quer para os autores
consultados por via da sua produção bibliográfica, quer dos vários peritos
entrevistados, que a aplicação dos “Ten-Year Plans” se pode considerar, em
geral, bastante positiva. Uma grande parte dos planos foi já implementada
(dentro dos prazos estipulados), permitindo, nalgumas comunidades, uma
redução acentuada dos efectivos de sem-abrigo. A sobreposição dos mapas
referentes ao número de planos já efectivamente concretizados e aos Estados
e cidades que maior sucesso conseguiram, nos últimos anos, na redução dos
seus quantitativos de sem-abrigo, parece actuar como elemento demonstrativo
do relativo sucesso destas iniciativas.
Em contraponto, noutros contextos, os resultados terão ficado aquém das
expectativas iniciais sendo, mesmo, possível identificar alguns exemplos em
que se verificou um elevado nível de inactividade na implementação dos
programas estabelecidos nos planos. O facto destes planos – organizados para
períodos temporais relativamente abrangentes – dependerem da necessidade
do estabelecimento de um forte comprometimento a nível político pode ser
apontado como uma das explicações para a “perda de fulgor” verificada em
alguns planos durante os processos de transição eleitoral, ocorridos nas
100
comunidades. A implementação desajustada de algumas das iniciativas e
planos – encarados, em alguns casos, mais como medidas de marketing
político, do que como estratégias efectivas de combate à incidência dos sem-
abrigo, pode ser apontada como outra possível causa para os exemplos menos
bem-sucedidos. Para além dos anteriores aspectos é, também, de relevar a
ineficácia observada, num número considerável de planos, ao nível da
capacidade de captação de investimentos privados. Nalguns casos, este facto
pode, também, ter actuado como uma forte condicionante a uma maior
efectividade da operacionalização das medidas inicialmente planeadas.
Em suma, independentemente das eventuais disrupções a um mais
adequado funcionamento, é essencial relevar que a abordagem subjacente aos
“Ten-Year Plans to End Homelessness in Your Community” – cuja aplicação, importa
relembrar, é considerada pelos peritos, em geral, bastante positiva – apresenta
vários aspectos de interesse, de entre os quais urge destacar: i) A focalização
que é colocada sobre os contextos decisórios locais (comunidades); ii) A sua
flexibilidade e “capacidade de adaptação” (pelo menos teórica) às
especificidades de cada contexto socioespacial; iii) A importância que
conferem, simultaneamente, às medidas preventivas e profiláticas, destinadas,
respectivamente, a “close the front door” e “open the back door”; iv) O facto de
possibilitar uma actuação conjunta com vários programas de “housing”
destinados aos sem-abrigo, como, por exemplo, os de “Housing First”, ou os de
“Supportive Housing”, cujas especificidades e principais aspectos e resultados
alcançados serão apresentados em seguida.
A abordagem subjacente ao conceito de “Permanent Supportive and Affordable
Housing” radica, essencialmente, na combinação de dois aspectos-chave: i)
Disponibilização rápida e eficaz de alojamentos, em condições
monetariamente acessíveis, para os sem-abrigo (ou seja, promoção do
chamada “affordable housing”); ii) Criação de uma rede de serviços de apoio
dirigidos às necessidades de cada indivíduo, cuja actuação ocorrerá, de forma
101
contínua, após a atribuição dos alojamentos aos indivíduos sem-abrigo (daí a
denominação “permanent supportive housing”) (cf. HANNIGAN e WAGNER, 2003).
Dos dois anteriores aspectos-chave é possível retirar aqueles que, apesar de
toda a variedade inerente aos programas desta tipologia, constituem os quatro
princípios básicos subjacentes a este modelo de desenvolvimento social
dirigido aos sem-abrigo (cf. HANNIGAN e WAGNER, 2003):
1. Permanência e Acessibilidade Financeira: Um dos principais objectivos dos
programas diz respeito à procura de proporcionar uma maior
disponibilidade de alojamentos a preços acessíveis à população com
baixos rendimentos, especialmente aos sem-abrigo que apresentam
algum tipo de necessidade especial (p.ex. problemas de saúde física ou
mental). Normalmente, as rendas praticadas nunca chegam a ultrapassar
30% dos rendimentos dos novos inquilinos;
2. Segurança e Conforto: Uma prioridade para a integração dos sem-abrigo
nestes programas diz respeito à promoção do seu conforto e segurança
nas suas novas habitações, seja pela maior facilidade da sua integração
social, seja por permitir o seu grau de aceitação face aos programas.
Esses sentimentos de conforto, identidade social e territorial, e segurança
devem ser alcançados, quer por via da qualidade das habitações e
alojamentos, quer, também, pela promoção da integração e criação de
poder identitário dos indivíduos no seio das “suas” novas comunidades;
3. Acessibilidade e Flexibilidade dos Serviços de Apoio, Visando a Estabilidade
Habitacional: O desenho dos programas deve ser influenciado pelas
necessidades mais prementes dos indivíduos apoiados, tanto no
momento inicial em que as estruturas dos programas são delineadas,
como durante o seu processo de implementação, acompanhando a
evolução das necessidades de cada comunidade.
O objectivo primário destes programas deve centrar-se no assegurar, de
forma progressiva e faseada, da estabilidade habitacional dos indivíduos,
102
pela promoção da sua auto-suficiência e pelo estímulo ao cumprimento
efectivo da sua cidadania e responsabilização social, por exemplo, através
do faseamento na obrigação do pagamento de rendas; da manutenção de
condições de higiene e salubridade nas habitações; ou do cumprimento
de algumas regras, quer ao nível das habitações, quer em termos da
convivialidade nas comunidades.
Os serviços de apoio são variáveis consoante as unidades habitacionais
programadas. No entanto, em termos gerais, costumam focar aspectos
como: i) Apoio e consultoria dirigido ao cumprimento das obrigações
legais dos indivíduos (p.ex., pagamento de rendas e impostos, ou
mediação, quando justificado, junto dos serviços de imigração); ii)
Criação de estruturas de apoio à formação e educação, incluindo o
aconselhamento profissional, e auxílio à inclusão nas estruturas
educativas formais, por exemplo, através da organização de cursos que
possibilitem a aprendizagem ou reciclagem de competências técnicas por
parte dos indivíduos; iii) Estreitamento das ligações entre os indivíduos e
os serviços de saúde, particularmente, dirigidos para os problemas
clínicos experienciados pelos indivíduos.
4. “Empowerment” e Independência: Os programas devem ser desenhados para
a promoção do “empowerment” e da auto-suficiência dos indivíduos,
incutindo-lhes, simultaneamente, o sentimento de liberdade e de
responsabilidade pelas suas acções.
Podem-se apontar como exemplos claros de esforços a desenvolver neste
sentido, os seguintes aspectos: i) Envolvimento dos novos inquilinos na
gestão do projecto de “supportive housing” a que pertencem; ii) Criação de
oportunidades de emprego; iii) Estímulo à constituição e participação dos
indivíduos em grupos de apoio e aconselhamento no seio da própria
comunidade.
103
Um aspecto já mencionado anteriormente, e ao qual importa conceder um
maior destaque, diz respeito ao reconhecimento da existência de uma grande
diversidade de modelos de “supportive housing”. É possível encontrar grandes
variações entre programas, seja em termos das suas dimensões, estrutura dos
locais de aplicação, características dominantes dos indivíduos alojados, ou
nível e tipos dos apoios concedidos. Aliás, essa flexibilidade e capacidade de
adaptação às especificidades de cada contexto e às necessidades dos principais
“inquilinos” – expressa pelas várias formas e tipologias que pode adoptar – é,
exactamente, apontada como uma das principais vantagens e aspectos
positivos destes programas de “supportive housing” (cf. HANNIGAN e WAGNER,
2003; NAEH, 2007d).
É, exactamente, a anterior ideia que está subjacente à descrição dos
programas deste tipo avançada por HANNIGAN e WAGNER (2003: 1), quando
este afirma, de forma bastante organizada e sucinta, que «supportive housing offers
affordability and a stable living environment while helping tenants access services and
amenities that promote self-sufficiency and enhance their quality of life. Depending upon the
tenancy, supportive services programs in housing provide and/or maintain linkages to
individual and family counselling, HIV services, mental health services, alcohol and
substance use services, crisis intervention, childcare, medical care, vocational counselling, and
job placement, among others. Supportive housing projects also work to foster community-
building efforts among tenants and are often engaged with the surrounding neighbourhood as
well. (…) Affordability and the flexibility to adapt services to the needs of the tenants are
the greatest strengths of effective supportive housing projects»
Apesar de, em essência, não constituir uma abordagem social totalmente
nova para a questão dos sem-abrigo – uma vez que, em essência, estes
programas são baseados na simples concessão de alojamentos a estes
indivíduos – as anteriores particularidades adaptativas, que combinam a
referida provisão de habitação a preços acessíveis, com a organização de
estruturas de apoio adaptadas às especificidades/problemas de cada grupo,
104
têm granjeado aos programas da tipologia de “supportive housing” uma reputação
de eficiência e adequabilidade aos múltiplos e diferenciais problemas
colocados pela questão dos sem-abrigo.
A expansão da sua aplicação tem ocorrido a um ritmo acelerado na última
década, muitas vezes integrados nos, já referidos, “Ten-Year Plans”. São já
contabilizáveis várias dezenas de milhar de unidades de “alojamento assistido”
nos EUA, normalmente patrocinadas e geridas por ONG’s, que variam entre
alojamentos unitários (normalmente ocupados por famílias com crianças) a
empreendimentos de várias unidades, usualmente focadas sobre indivíduos
sem-abrigo que partilham um mesmo tipo de problema (p.ex. problemas
mentais; deficiências físicas; portadores do vírus da SIDA; entre outros) (cf.
HANNIGAN e WAGNER, 2003; NAEH, 2007d).
As opiniões relativamente a estes programas dividem-se. Alguns autores
consideram-nos excludentes – caminhos para a criação de guetos e enclaves
de indivíduos “homogéneos” e socialmente excluídos – afirmando que são
desenvolvidos com o intuito de “limpar” as cidades, criando paisagens
urbanas mais qualificadas e “livres” dos sem-abrigo (cf. MITCHELL, 1997).
No entanto, outros autores preferem realçar os aspectos positivos destas
abordagens, afirmando que permitem a constituição de comunidades
progressivamente auto-suficientes (e integradas na sua envolvente), com
indivíduos que se identificam entre si e que, como tal, se ajudam mutuamente.
Acreditam, estes autores, que esta abordagem é promotora do “empowerment” e
da independência progressiva da população sem-abrigo que, de forma faseada
e aproveitando o acompanhamento próximo efectuado por vários agentes
sociais, vão sendo progressivamente reintegradas na sociedade, ganhando
acesso aos sistemas de trabalho, de saúde, e de criação e gestão das suas
próprias fontes de rendimento; e a possibilidade de “desintoxicação” de vícios
e consumo de substâncias aditivas (cf. HANNIGAN E WAGNER, 2003; NAEH,
2007d; 2009).
105
Não sendo do cerne do presente relatório tecer confirmações deterministas
acerca de qual das visões anteriores será pautada por uma maior correcção,
importa, no entanto, reforçar o decréscimo evidenciado no número de sem-
abrigo norte-americanos nos últimos anos. «This decrease is likely due to both real
decreases, meaning [for example] more chronically homeless people getting back into
permanent housing, and changes in the methods used to count chronically homeless people.
Considering the recent efforts to increase the stock of permanent housing targeted (…) one
would expect a decrease in this population. And in a number of places, decreases (…) have
had a visible effect on the street» (cf. NAEH, 2009: 14-15).
O mesmo documento releva, ainda, a crescente importância destas
iniciativas a nível nacional, realçando que «communities across the country are
implementing strategies to end family homelessness, including increasing permanent housing
options for families and Housing First initiatives» (cf. NAEH, 2009: 17).
Discutidos alguns dos principais aspectos subjacentes às opções de tipo
“supportive housing”, importa, finalmente, dispensar alguma a atenção sobre os
programas de “Housing First”.
O primeiro (e, ainda hoje, mais reconhecido) programa desenvolvendo
medidas do tipo “Housing First” data do ano de 1992. Denominado “Pathways
to Housing”, foi implementado inicialmente na cidade de Nova Iorque, tendo-
se expandido, desde então, com relativo sucesso, a várias cidades e estados
norte-americanos, totalizando, já, um quantitativo de 150 programas
implementados em várias cidades dos EUA e, mesmo, do Canadá (Figura 8).
Os principais destinatários dos programas deste tipo são os sem-abrigo que
apresentam dificuldades em ser considerados aptos para outros programas de
alojamento, nomeadamente os “mentally-ill homeless”, ou todos os indivíduos
que evidenciem problemas de abuso de álcool e/ou, especialmente, de drogas
pesadas.
106
Fig. 8: Programas de “Housing First” que receberam apoio da “Pathways to
Housing” nos EUA e Canadá (até 2007) (Fonte: TSEMBERIS, 2009).
O objectivo principal dos programas deste tipo consiste no fornecimento,
à população sem-abrigo, de acesso directo a alojamentos. Depois de ser
concedida essa habitação, todos os indivíduos são acompanhados a tempo
inteiro – normalmente a partir de um ponto administrativo central situado no
bairro do alojamento – por elementos (normalmente agentes sociais)
organizados em equipas, de acordo com um plano pré-estabelecido e
denominado “Assertive Community Treatment” (ACT) (cf. GULCUR et al., 2003;
NAEH, 2007e; TSEMBERIS, 2009).
Conforme resumido por um dos grandes mentores do programa, o “casas
primeiro” é «a program that provides immediate access to permanent housing and support
services with a philosophy of consumer choice. Consumer are not required to participate in
psychiatric treatment or attain a period of sobriety in order to obtain housing» (cf.
TSEMBERIS, 2009: 2).
Da anterior definição se percebe, rapidamente, que o “Housing First” acaba
por se poder constituir como uma “variante” dos programas de “supportive
107
housing”, mais flexível e centrado no conceito de “consumer choice” (cf.
TSEMBERIS, 2009). A grande diferença dos programas de “housing first” reside,
exactamente, na atribuição do poder de decisão aos sem-abrigo
(“consumidores”) acerca de vários aspectos relativos aos seus “novos”
alojamentos e do tipo, sequência e intensidade dos serviços de apoio de que
crêem necessitar, podendo optar por não beneficiar de nenhum serviço de
apoio, concordando, unicamente, com a ocorrência de uma visita semanal
obrigatória, por parte de uma equipa de acompanhamento. Procura-se, desta
forma, dignificar os papéis da tomada de decisão autónoma e da capacidade
de participação dos sem-abrigo, fomentando, por estas vias, a sua auto-
responsabilização e valorização pessoal.
Assim, em resumo, verifica-se que um dos grandes aspectos inovadores
desta abordagem diz respeito à separação entre duas esferas de actuação das
equipas (cf. GULCUR et al., 2003; NAEH, 2007e; TSEMBERIS, 2009), a saber:
1. Serviços de Alojamento: Os apartamentos seleccionados pelos
“consumidores” podem ser independentes uns dos outros, desde que
adaptados às suas necessidades e possibilidades financeiras e legais.
Apesar da concessão de subsídios para a compra e manutenção dos
apartamentos – que permitem reduzir substancialmente os preços das
rendas, em relação aos valores de mercado – a responsabilização dos
novos inquilinos é fomentada pela obrigatoriedade de pagamento de 30%
do preço da renda negociada, e pelo respeito dos demais aspectos
presentes no contrato de compra, venda e utilização da casa.
São desenvolvidas, neste âmbito, pelas equipas de apoio social, tarefas
como o auxílio à procura e negociação de apartamentos; a consultoria
legal, particularmente no que respeita ao pagamento das rendas; ou a
mediação das relações entre inquilinos e senhorios.
2. Serviços de Tratamento: Os serviços de apoio clínico são, também,
disponibilizados, não constituindo, no entanto, uma obrigatoriedade. O
108
acompanhamento clínico – muitas vezes providenciado no seio das
próprias comunidades – é, assim, efectuado de forma independente face
aos serviços de alojamento e pode ser disponibilizado a vários níveis,
adaptando-se às necessidades e escolhas dos indivíduos (p.ex. apoio
psiquiátrico, abuso de drogas e álcool, entre outros). Para além do apoio
clínico são ainda providenciados outros serviços de reinserção,
nomeadamente, nos âmbitos da inserção laboral, da educação e do apoio
contabilístico à gestão de contas e despesas.
Em resumo, a prioridade dos programas deste tipo centra-se na esfera dos
alojamentos. Não existe qualquer obrigatoriedade de comprometimento do
sem-abrigo em ser acompanhado para a resolução dos seus problemas
clínicos, educacionais ou de emprego. No entanto, caso este decida ser
apoiado, existem, nas comunidades, várias estruturas que possibilitam que esse
acompanhamento possa ser realizado com eficácia. A integração efectiva dos
indivíduos, não só na sociedade em geral mas, mais particularmente, na sua
comunidade é, também, um aspecto bastante relevado.
No que diz respeito à avaliação da eficácia destes programas, um primeiro
aspecto a relevar diz respeito à progressiva notoriedade e procura – em vários
estados e cidades norte-americanas – da implementação de medidas deste
tipo, o que pode ser considerado como uma medida que atesta acerca da
eficácia geral do programa.
Mais especificamente, é possível verificar que os resultados disponíveis – e
respectivas análises quantitativas e qualitativas – demonstram a existência de
traços de grande positividade proporcionados pela implementação destes
programas.
São vários os autores (incluindo os entrevistados) que anunciam taxas de
manutenção das habitações, por parte dos indivíduos anteriormente sem-
abrigo, da ordem dos 85% após o primeiro ano de concessão de alojamento
em regime de “Housing First”. Estes resultados são transversais a várias cidades
109
norte-americanas, não se verificando apenas na cidade de Nova Iorque,
“berço” da iniciativa. É assumido que cerca de 30% do decréscimo
evidenciado, entre os anos de 2005 e 2007, nos quantitativos de sem-abrigo a
nível nacional seja devido aos programas de “housing first” (cf. GULCUR et al.,
2003; NAEH, 2007e; SHINN, 2009; TSEMBERIS, 2009).
Resumindo de forma qualitativa os dados quantitativos apresentados em
SHINN (2009), podem ser retiradas algumas ilações importantes. Em termos
gerais, é possível, então, afirmar que os “consumidores” do “casas primeiro”
foram alojados mais rapidamente do que noutros programas – resultado da
menor burocratização dos processos de concessão de alojamento –
demonstrando, em termos gerais, a capacidade para manter as suas habitações
durante vários anos. Os resultados económicos são, também, notórios, por
exemplo, a nível da diminuição dos custos públicos com os serviços de saúde,
justiça e protecção social com estes indivíduos (cf. GULCUR et al., 2003; NAEH,
2007e; SHINN, 2009; TSEMBERIS, 2009).
De relembrar que é sobre os sem-abrigo com historial de abuso de
substâncias, e em situação de “chronic homelessness” – em especial os indivíduos
evidenciando notórios problemas mentais de foro clínico –, que recai a
focalização destes programas. Tratando-se de indivíduos, em geral,
considerados incapazes de manter uma habitação (seja com, ou sem,
acompanhamento clínico) – sendo, normalmente, rejeitados, ou
demonstrando grandes dificuldades de adaptação em relação a outros
programas mais restritivos – estas taxas de sucesso revelam o potencial
interesse e importância que deve ser conferida a esta abordagem específica, no
âmbito (mais lato) das iniciativas de “permanent supportive housing”.
Uma das principais características das iniciativas de “Housing First” respeita
à sua potencial flexibilidade e adaptação às escolhas dos sem-abrigo. No
entanto, apesar de toda a variabilidade que lhe está inerente, é possível
encontrar alguns aspectos comuns aos vários programas.
110
O seu carácter distintivo face a outras iniciativas de combate à
problemática dos sem-abrigo nos EUA, justifica que, conclusivamente, se
apresentem os seguintes aspectos caracterizadores do programa, encarados,
aqui, como valias conceptuais, que destacam este programa em relação aos
demais, realçando as vantagens subjacentes à sua aplicação (cf. NAEH, 2007e):
1. E concedido um forte privilégio – constituindo, mesmo, o mote
orientador do programa –, ao encaminhamento directo da população-
alvo (que pode ser variável e diversa; no entanto, é privilegiado o apoio
aos grupos considerados menos aptos para outros programas) para um
alojamento permanente, o que permite diminuir a burocratização
inerente ao processo de “saída” das ruas, por parte destes indivíduos;
2. Apesar dos programas poderem incluir a oferta de diversos serviços de
apoio, a participação dos sem-abrigo nesses serviços não é obrigatória, o
que, pela menor restritividade e condicionalismo que representa, fomenta
a valorização da opinião e a integração dos indivíduos;
3. Mesmo sendo possível contabilizar a existência de alguns programas
especialmente dirigidos às famílias sem-abrigo, a maior parte das
iniciativas deste tipo é dirigida aos chamados “mentally-ill homeless” e aos
sem-abrigo crónicos, especialmente os que evidenciem um historial de
consumo de drogas, que apresentam, normalmente, uma maior relutância
e resistividade em frequentar os abrigos e demais serviços sociais.
Os três tipos de programas apresentados (de forma bastante resumida)
figuram entre as principais iniciativas dirigidas actualmente aos sem-abrigo nos
EUA. Procurou-se demonstrar, de forma imparcial, os aspectos relevados
como positivos, e as críticas que lhes são imputadas, enaltecendo as suas
principais características e alguns dos seus resultados (principalmente
quantitativos) mais emblemáticos.
Apesar das iniciativas apresentadas não esgotarem a totalidade de
abordagens políticas dirigidas aos sem-abrigo nos EUA, permitem que seja
111
traçado um quadro geral bastante fidedigno das principais ideias subjacentes à
referida actuação política nos últimos anos.
A selecção dos programas relevados seguiu a importância que estes
apresentam, actualmente, nos EUA, e o seu eventual potencial de transposição
– salvaguardando as (sempre) necessárias particularidades – para o caso
português, mais especificamente para o contexto local da cidade de Lisboa,
correspondente ao caso de estudo do presente relatório – cujos aspectos
distintivos e de unicidade serão analisados em seguida.
112
Capítulo III
Conhecer o Fenómeno dos Sem-Abrigo em Portugal e Lisboa
113
3.1. O fenómeno dos Sem-Abrigo em Portugal
O processo de conhecimento do universo dos sem-abrigo é uma tarefa
difícil e complexa, “(…) homeless people exist outside of the normal structures of society,
they comprise a moving target which by its very nature is dificult to access. Subsections of the
homeless population are even more difficult to identify (…)” (EDGAR; DOHERTY et
al, 2001). Muitas vezes, os números apontados referem-se a estimativas que,
em algumas situações, “tendem a variar amplamente consoante as fontes e o seu
significado político” (JENKS, 1995 apud BARRETO; BENTO, 2002, p.31).
Um exemplo apontado refere-se às instituições privadas que dependem de
financiamentos e que tendem a inflacionar os números; em contrapartida, as
instituições governamentais tendem a subestimá-los.
Os dados estatísticos sobre esta população são raros ao nível de Portugal e
os primeiros estudos efectuados remontam aos finais dos anos 80 do século
passado.
DRAKE (1994, apud BARRETO; BENTO, 2002, p.30), apresentou o
valor de 4.100 sem-abrigo em Portugal, um valor considerado “baixo
relativamente a outros países da Europa”41. No entanto, estas estimativas não
tiveram em consideração o número de pessoas que a viver em barracas, e que
eram de cerca de 60.000 que, segundo os critérios dos países do Norte da
Europa, também deveriam ser considerados sem-abrigo (idem: ibidem).
Actualmente, estima-se que esse valor se situe entre os 2.500 e os 3.500
indivíduos, só em Portugal Continental.
Embora não se consiga ter uma percepção real, ao analisar-se os valores
que apresentam determinadas organizações de apoio a este segmento da
41 Este valor não é consensual, uma vez que existem estimativas que apontam para uma população sem-abrigo entre os 2.000 e os 3.500 só na cidade de Lisboa (Portugal, 2007:2).
114
população, verifica-se que os números apurados sugerem que este fenómeno
está longe do fim. Por exemplo, a Assistência Médica Internacional (AMI)
apresenta, todos os anos, um número elevadíssimo de novos casos de sem-
abrigo (Figura 9), sendo, 2002 e 2006, os anos em que esse valor se mostrou
mais elevado, com 1.017 e 789 novos utentes respectivamente.
Fig. 9 - Evolução do número de novos casos de sem-abrigo atendidos pela
AMI (Fonte: Relatório Anual AMI, 2007).
Em 2006, a AMI realizou, ainda, uma caracterização dos seus utentes
concluindo que estes:
• Pernoitavam, maioritariamente, na rua (32%);
• O seu recurso económico mais frequente é a mendicidade (27%);
• A esmagadora maioria encontra-se desempregada (89%);
• Embora grande parte dos indivíduos tenha familiares vivos (92%), só
existe uma pequena parte que mantém relações com eles (37%);
• Cerca de 39% não tem médico de família;
• O HIV/SIDA atinge 7% da população;
• Cerca de 28% encontra-se dependente de substâncias activas.
115
O estudo concluiu, também, que tem havido um aumento, nos últimos
anos, da população feminina em situação de sem-abrigo.
Recentemente, o Instituto da Segurança Social (ISS) realizou um estudo
com o objectivo de conhecer a realidade dos sem-abrigo em Portugal, para
melhor definir estratégias de promoção de formação profissional e de
empregabilidade deste segmento da população.
Segundo os dados apurados pelo ISS42, é evidente o peso de Lisboa (48%)
face aos casos identificados de sem-abrigo. No entanto, é notório, também, o
peso de distritos como o Porto (16%), Setúbal (7%), Faro (5%) e Aveiro (4%),
o que demonstra que são os grandes centros urbanos que mais contribuem
para este problema (Figura 10).
Fig. 10 - Percentagem de Casos de sem-abrigo identificados, por Distrito
(Fonte: ISS, 2005).
42 Instituto da Segurança Social (2005) Estudo dos Sem-Abrigo, Instituto da Segurança Social, Lisboa;
116
A grande maioria da população sem-abrigo continua a ser masculina
(90%) (Figura 11), embora estudos recentes apontem para um crescimento da
população feminina nesta situação, nos últimos anos.
Fig. 11 - Distribuição da População Sem-Abrigo por Género Fonte: ISS, 2005
Relativamente à idade, mais de metade da população inquirida situa-se
no escalão etário compreendido entre os 30 e os 49 anos, situação muito
semelhante à realidade Norte-Americana, que tem, neste escalão etário, a
esmagadora maioria da sua população sem-abrigo.
Fig. 12 – Distribuição Etária dos Sem-Abrigo, em Portugal
(Fonte: ISS, 2005).
117
O estado civil mais representativo (Figura 13) deste segmento da
população é o dos Solteiros, com 64%, seguido dos separados/divorciados, o
que reflecte, de certo modo, a ideia da quebra de laços familiares deste
segmento da população. No entanto, o universo dos Casados é ainda bastante
significativo, com 12% dos casos identificados.
Fig. 13 - Distribuição da População Sem-Abrigo por Estado Civil
(Fonte: ISS, 2005)
Relativamente à nacionalidade destes indivíduos (Figura 14), verifica-se
que a grande maioria é portuguesa (75%), embora o efeito das vagas
migratórias, primeiro dos PALOP’s e, depois, dos Países de Leste, se faça
sentir, também, na população sem-abrigo, uma vez que cerca de 20% é
proveniente dessas áreas. A agravar esta situação, muitos destes indivíduos
encontram-se em situação de ilegalidade, o que coloca importantes problemas
ao nível de obtenção de um emprego ou de uma habitação condigna.
118
Fig. 14 – População Sem-Abrigo segundo a sua macro-região mundial de
Origem, em Portugal (Fonte: ISS, 2005)
As estatísticas relativas à situação destes indivíduos face ao emprego
revelam que 73% das pessoas se encontrava, à altura do estudo,
desempregada. Entre estas, 44% estiveram na situação de desemprego mais do
que uma vez e 27%, embora encontrando-se a trabalhar, apresentava
trajectórias laborais instáveis e precárias. Cerca de 85% da população inquirida
nunca beneficiou do subsídio de desemprego e somente 2% recebe aquela
prestação. Em suma, este segmento populacional encontra-se, em geral,
desempregado, economicamente inactivo ou inserido num mercado laboral
alternativo, precário, mal remunerado e, desta forma, sem benefícios ao nível
da Segurança Social.
Embora alguns dos indivíduos tenham um emprego remunerado,
mantêm, normalmente, a situação de sem-abrigo, porque, para além dos
baixos salários, o valor do arrendamento de uma habitação é, em geral,
elevado e exige fiador e dois meses antecipados. Não existe qualquer política
dirigida a estes indivíduos para rendas e pagamento de serviços (p.ex., água ou
electricidade). A compra de habitação, por empréstimo, implica um vínculo
119
laboral duradouro e a burocratização para este processo é imensa. Há, ainda, a
relevar as representações estereotipadas e negativas em relação a este grupo,
que obstacularizam um tratamento com igualdade de oportunidades
(FEANTSA).
Uma vez que este trabalho procura encetar algumas estratégias de apoio
aos sem-abrigo na cidade de Lisboa é imperativo que se conheça, também, a
realidade específica deste território, recorrendo a um número variado de
documentos que, de alguma forma, possibilite o conhecimento deste
segmento da população, de forma a que as estratégias/medidas a adoptar se
coadunem com as reais necessidades deste grupo marginalizado.
3.2. O Perfil do Sem-Abrigo na Cidade de Lisboa
O fenómeno dos sem-abrigo é, de facto, uma das realidades características
aos grandes centros urbanos actuais e Lisboa não escapa aos custos da sua
capitalidade.
Hoje em dia, os números divulgados apontam para cerca de 2,5 milhões de
pessoas em situação de sem-abrigo a viver na União Europeia. Segundo um
estudo elaborado pelo Laboratório Nacional de Engenharia Civil (LNEC),
Lisboa contava com uma população sem-abrigo de 1.366 indivíduos. Embora
estes dados remontem ao ano 2000, até agora, este foi o estudo mais
aprofundado que se realizou neste âmbito, com vista a um conhecimento mais
pormenorizado do universo dos sem-abrigo na capital.
Segundo o mesmo estudo, a maioria dos sem-abrigo encontrava-se em
Centros de Acolhimento (54%) (Figura 15). No entanto, há que salientar o
grande peso que os “sem-tecto” representam na cidade, uma vez que
representam mais de 30% do total dos sem-abrigo. As situações híbridas, que
representam os indivíduos que, localizados em espaços com forte degradação
120
ou de residência muito precária, constituem-se como apenas 1% do universo
dos sem-abrigo.
31%
8%54%
6% 1%
Espaços Abertos Espaços Fechados
Centros de Acolhimento Referências/Vestígios
Situação Híbrida
Fig. 15 – Locais de Pernoita dos sem-abrigo na cidade de Lisboa
(Fonte: LNEC, 2000)
Na cidade de Lisboa, à semelhança de outras áreas urbanas nacionais, as
opções de pernoita dos indivíduos sem domicílio fixo, variam entre a
possibilidade de dormida em pensões e “camaratas” subsidiadas por IPSS43 e
albergues a funcionar sob a égide daquelas instituições ou da Autarquia. No
entanto, as vagas disponíveis nestas instituições são insuficientes para o
número de sem-abrigo existentes, o que leva à ocupação de espaços
abandonados (residenciais ou não) e de veículos. A pernoita ao relento
também é uma realidade comum, sendo estes a face mais visível do fenómeno.
Nestes casos, os locais mais comuns são arcadas de prédios, passeios públicos,
debaixo de pontes e viadutos, em terrenos expectantes ou noutros recantos da
cidade.
43 Instituição Particular de Solidariedade Social
121
N %
Espaço Residencial Abandonado 90 6.6
Espaço não Residencial Abandonado 44 3.2
Veículos 119 8.7
Entradas e Imediações de Edifícios 184 13.5
Espaços Públicos de Lazer 19 1.4
Passeios e Ruas 53 3.9
Baldios e Canaviais 28 2.0
Viadutos e Pontes 25 1.8
Albergues e afins 736 53.9
Paragens de Autocarro 14 1.0
Outros 54 4.0
Total 1366 100
Tabela 2 – Espaços de Pernoita dos Sem-Abrigo na cidade de Lisboa
(Fonte: LNEC, 2000)
O quadro anterior mostra os locais de pernoita dos sem-abrigo nos
locais em que estes foram identificados. Assim, tal como já referido, a grande
maioria encontra-se em albergues e afins (53.9%). Nas restantes situações
verifica-se que os locais de pernoita mais comuns são, como também já foi
referido, as entradas e imediações de edifícios (13.5%), os veículos (8.7%) e os
espaços residenciais abandonados (6.6%).
Em suma, e tal como foi identificado no relatório do LNEC, o que
importa reter é o facto de 2/3 dos sem-abrigo pernoitarem em espaços
fechados, nomeadamente em centros de acolhimento e em espaços
residenciais e não-residenciais abandonados, potenciando, deste modo, a sua
122
não visibilidade. Os restantes são a face mais visível do problema e aqueles
que, de certa forma, são os mais marginalizados perante a sociedade.
Foto. 1: Exemplo de indivíduo sem-abrigo “sem-tecto” na cidade de Lisboa
Fonte: Jornalismo Ponto Net, 2004.
Foto. 2: Exemplo de indivíduo sem-abrigo “sem-tecto” na cidade de Lisboa
Fonte: diario.iol.pt, 2008
Relativamente à distribuição espacial dos sem-abrigo na cidade de
Lisboa, verifica-se que são as freguesias do Beato, Campolide e Alcântara as
que concentram um maior número de indivíduos, com, respectivamente
26.6%, 11.6% e 6.7% do total destes indivíduos na cidade. Isto, deve-se ao
facto de ser nestas freguesias que se concentra a maior oferta de centros de
acolhimento. Por outro lado, as freguesias que apresentam os valores mais
123
baixos são: São Vicente de Fora (0.1%), Marvila (0.1%) e Socorro (0.2%);
estes valores representam, respectivamente, 1, 2 e 3 indivíduos. Existem,
ainda, outras freguesias que apresentem valores abaixo dos 10 sem-abrigo
(Figura 16).
Fig. 16 - Distribuição dos Sem-Abrigo na Cidade de Lisboa, 2000 (Fonte Estatística: LNEC, 2000)
Numa análise mais pormenorizada, na qual se apresenta o número de
sem-abrigo segundo os locais de pernoita, verifica-se que as freguesias mais
frequentadas pelos indivíduos sem-abrigo que pernoitam em espaços abertos
são: São Jorge de Arroios e Santa Justa, ambas com 31 indivíduos observados;
seguem-se Alto de São João (26), São Nicolau (25) e Alcântara (24). Nestes
últimos casos, o principal factor de concentração respeita ao facto de ser
nestas freguesias que se encontra uma maior ajuda por parte das equipas de
rua de apoio aos sem-abrigo. Quanto a espaços fechados (exceptuando-se os
centros de acolhimento), verifica-se que são as freguesias de São Sebastião da
Pedreira e Santa Maria dos Olivais aquelas que apresentam os valores mais
elevados, com 30 e 15 casos, respectivamente. De salientar que, apenas 10
124
freguesias44, das 53 freguesias do concelho de Lisboa, não registaram qualquer
individuo em situação de sem-abrigo (Fotografias 1 e 2).
Já em 2004, a Câmara Municipal de Lisboa (CML) promoveu um outro
estudo, que tinha como objecto de análise “A População de Rua da Cidade de
Lisboa”. O intuito deste estudo foi saber: Quem são?; Quantos são?; Que
respostas poderão ser dadas?. Aqui, o conceito utilizado foi “o conjunto de
pessoas que, sem alternativa, fazem dos espaços públicos, o lugar de viver,
seja de forma circunstancial, emergente, ou de forma definitiva”.
Neste estudo, que foi aplicado a todas as freguesias da cidade de
Lisboa, foram observados 931 indivíduos, dos quais 432 se situavam
efectivamente na rua. Entre outras conclusões, verificou-se que a maioria dos
sem-abrigo identificados tinham idades compreendidas entre os 25 e os 34
anos, era maioritariamente do sexo masculino e apresentava a nacionalidade
portuguesa.
Do total de indivíduos contactados, e relativamente aos quais foi
possível identificar outras problemáticas associadas à situação de rua,
verificou-se que um grande número de pessoas tinha, ainda, problemas ligados
à toxicodependência.
No entanto, é de realçar que este estudo consistiu, apenas na realização
de uma contagem numa única noite, não sendo, como tal, possível retirar
conclusões mais aprofundadas sobre a problemática. Desta forma, a Câmara
Municipal de Lisboa (CML), atenta à necessidade de articular o trabalho das
inúmeras instituições que operam na cidade de Lisboa sob esta problemática,
criou um grupo de trabalho designado “Motivação e Encaminhamento”,
coordenado pela equipa dos sem-abrigo da Divisão de Intervenção Social e
44 São elas: Ameixoeira, Carnide, Castelo, Charneca, Mártires, Santiago, São Cristóvão, São Lourenço, São Francisco Xavier, São Miguel e Santa Catarina.
125
Animação Sociocultural (DISASC) do Departamento de Acção Social da
referida Edilidade.
Entre outros objectivos, o intuito desta equipa foi obter um
conhecimento alargado sobre a população sem-abrigo da cidade de Lisboa,
não só no que se refere aos seu número, mas, também, relativamente à
caracterização social desta população e às problemáticas que esta apresenta.
Assim, o Relatório Anual de 2007 apresentou diversos dados que permitem
delinear o perfil dos sem-abrigo da cidade de Lisboa e que, de certa forma,
vão ao encontro das conclusões apresentadas por outros estudos.
Do total de 766 sem-abrigo identificados pelas equipas de rua,
verificou-se que, mais uma vez, a grande maioria era do sexo masculino (cerca
de 83%, enquanto que as mulheres representavam apenas 11,5%). Os
restantes indivíduos correspondem a situações às quais não foi possível
identificar o sexo dos indivíduos.
Fig. 17 – População sem-abrigo segundo o género, 2007
(Fonte: Adaptado de CML, 2007)
126
Numa análise relativa à estrutura etária predominante destes indivíduos,
verifica-se que é o escalão etário dos 35 aos 44 anos que apresenta um valor
mais elevado (26,2%). No entanto, as faixas etárias 25-34 e 45-54 anos,
apresentam, também, valores bastante significativos, com 20,5% e 19,7%,
respectivamente. De referir, ainda, que a média de idades destes indivíduos é
de 43 anos e que os sem-abrigo observados tinham idades compreendidas
entre os 17 e os 89 anos (Figure 18).
Fig. 18 - Escalão Etário da População Sem-Abrigo em Lisboa, 2007
(Fonte: Adaptado de CML, 2007)
À semelhança de outros estudos, verificou-se, também, que o estado
civil predominante é referente aos solteiros (43,1%), seguindo-se os
divorciados (8,0%). Estas duas situações são, de facto, as mais preocupantes,
uma vez que correspondem a “indivíduos sem-abrigo sem suporte familiar directo e,
assim, também, mais vulneráveis às situações extremas de exclusão social, se atendermos à
importância do papel de suporte que as famílias ainda assumem em situações de crise”
(CML, 2007:9).
127
Fig. 19 - Estado Civil da População Sem-Abrigo em Lisboa, 2007
(Fonte: Adaptado de CML, 2007)
Em relação à nacionalidade destes indivíduos, e como seria de esperar,
a maioria destes é português (63,8%). Relativamente aos estrangeiros, foi
identificado um total de 223 indivíduos sendo, os mais representativos, os
sem-abrigo oriundos dos Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa
(PALOP), correspondentes a cerca de 11,4%, seguidos dos imigrantes
provenientes dos países do Leste europeu.
Fig. 20 – Número de sem-abrigo estrangeiros na cidade de Lisboa, por região
de origem, 2007
(Fonte: Adaptado de CML, 2007)
128
As problemáticas que colocam as pessoas em situação de sem-abrigo são,
também, diversas, e podem ter várias origens. Como afirma BARRETO e
BENTO (2002, p.32), “para uns a condição sem-abrigo é resultante da condição
primária de pobreza. Neste sentido, não existem «sem-abrigos» mas sim pessoas muito
pobres que, a dada altura, perdem o seu alojamento por várias razões relacionadas com a
sua pobreza”. No entanto, existem factores individuais que poderão contribuir
para que um indivíduo seja mais ou menos susceptível a entrar numa situação
de sem-abrigo. PILIAVIN et al. (1993 apud BARRETO; BENTO, 2002, p.32)
agrupou esses (vários) factores individuais em quatro categorias:
• Perturbações psiquiátricas; • Défices educacionais e profissionais; • Desafiliação; • Identidade Cultural.
Na grande maioria dos casos de indivíduos sem-abrigo existe uma
situação de co-morbilidade que, segundo a Organização Mundial de Saúde
(OMS), se refere à co-ocorrência, no mesmo indivíduo, de uma disfunção por
consumo de substâncias psicoactivas e de uma outra perturbação psiquiátrica
(OMS, 1995).
Na análise efectuada na cidade de Lisboa, as várias problemáticas
identificadas foram divididas nas categorias de “Problemáticas Sociais” e de
“Problemáticas de Saúde”. Desta forma, verificou-se que, nas questões sociais,
as situações mais frequentemente identificadas foram o desemprego e a falta
de documentação, com 27,2 % e 11,7%, respectivamente (Tabela 3).
129
Problemáticas Sociais %
Desemprego 27,2
Não Recorre a Instituições 8,3
Prostituição 0,6
Ausência de Documentação 11,7
Problemas Familiares 4,5
Tabela 3 – Sem-Abrigo segundo Problemáticas Sociais
(Fonte: Adaptado de CML, 2007)
Como se verificou, a falta de emprego é, assim, um dos factores mais
comuns na problemática dos sem-abrigo. No entanto, a sua resolução não é
fácil, uma vez que por trás do desemprego há outros factores associados,
como as baixas qualificações (educacionais e profissionais) destes indivíduos,
bem como, muitas vezes, a sua idade considerada “avançada” para
(re)inserção no mercado de trabalho – de relembrar que a média de idades dos
indivíduos sem-abrigo identificados se situa em torno dos 43 anos.
A ausência de documentação é um problema muitas vezes associado à
população imigrante. Um grande número de estrangeiros entra em Portugal
ilegalmente ou por via de redes internacionais que lhes “confiscam” a
documentação, o que causa enormes dificuldades na obtenção de um emprego
ou, mesmo, de uma habitação.
Relativamente às problemáticas ligadas à saúde, é recorrente a existência
de graves problemas ao nível da saúde mental, do consumo abusivo de álcool
e da toxicodependência, muitas vezes em situação de co-morbilidade, como já
referido anteriormente. No caso específico de Lisboa, verifica-se que a
principal problemática de saúde entre os sem-abrigo é o alcoolismo (22,6%),
seguindo-se as doenças mentais (11,4%) e a toxicodependência (5,4%).
130
Tabela 4 – População sem-abrigo segundo problemáticas de Saúde
(Fonte: Adaptado de CML, 2007)
Desta forma, e atentando nos anteriores dados, poder-se-á traçar um
perfil geral dos sem-abrigo na cidade de Lisboa que, segundo BAPTISTA
(2004, p.35), tem como características dominantes “pertencerem ao sexo masculino,
na sua maioria, serem, em geral, solteiros e com fracas ou inexistentes relações familiares ou
outras redes de suporte, em situação de desemprego e/ou apresentando percursos laborais
quase sempre em sectores marcados pela instabilidade, registando baixos níveis de
escolaridade e, frequentemente, também evidenciando saúde (física e/ou mental) debilitada,
por vezes, associada ao consumo excessivo de álcool”.
Uma vez caracterizada a população sem-abrigo na cidade de Lisboa,
torna-se imperativo analisar as estratégias de apoio existentes, dirigidas a este
segmento excluído, bem como delinear novas visões estratégicas que
possibilitem dar uma melhor resposta às problemáticas inerentes aos sem-
abrigo, com o intuito de proporcionar um melhor suporte, com vista à
erradicação deste grave problema social.
Problemáticas de Saúde %
Saúde Mental 11,4
Deficiência Física 0,8
Alcoolismo 22,6
Toxicodependência 5,4
DST 2,0
Tuberculose 0,6
Doenças Crónicas 2,2
Outras Doenças 2,8
131
Capítulo IV
Estratégias actuais de apoio aos
Sem-Abrigo na cidade de Lisboa
132
4.1. Breve Perspectiva Histórica
Ao longo dos séculos, no nosso País, as percepções sobre o fenómeno
da “população de rua” foram diferentes, consoante o período histórico, as
respectivas conjunturas socioeconómicas e os governantes da época. As
constantes mutações da sociedade portuguesa ao nível da demografia, do
tecido social e económico e, mesmo, derivada dos progressos tecnológicos,
inscreveram problemas estruturais que, até aos nossos dias, evidenciam a
necessidade da definição de estratégias de inclusão social, para determinadas
franjas da população.
No reinado de D. Afonso IV, foi aprovado um decreto que obrigava os
trabalhadores a permanecerem nos mesmos locais dos respectivos empregos,
necessitando de permissão para mudar de emprego ou para mendigar.
A Lei das Sesmarias, promulgada em Santarém, no dia 28 de Maio de
1375, no reinado de D. Fernando afirmava que “os mendigos e ociosos seriam presos
pelas justiças do lugar”. Tal ordenação estava relacionada com a carência de mão-
de-obra nos centros urbanos, devido à elevada mortalidade causada pela Peste
Negra. Só aos que não conseguiam trabalhar (velhos, doentes, deficientes) lhes
era permitido mendigar.
Tanto D. João I como D. Manuel determinaram que aqueles que não
tinham trabalho, “nem amo ou Senhor” fossem presos e açoitados, publicamente.
Na Europa, nos séculos XVIII e XIX, foram criadas “(…) grandes
estruturas asilares alternativas à prisão: a criação do Hospital Geral (1656) e dos «dépots
de mendicité» (1764) (…)” (Bento e Barreto, 2002:39). Em Portugal, não ocorreu
a criação de tais respostas e foram as “(…) Misericórdias, as igrejas e os Mosteiros
(…) os principais instrumentos de assistência e caridade (…)” (Idem:39).
De acordo com alguns historiadores, Lisboa, no século XVIII, era local
de concentração de diferentes grupos de meliantes, como mendigos,
133
desocupados, e deficientes, que dormiam nas ruas e deambulavam pela cidade.
Após o terramoto de 1755, e de acordo com Suzanne Chantal, estes, ou eram
aprisionados, ou eram sujeitos a trabalhos severos, e quem era apanhado a
roubar era enforcado.
No século XIX, “(…) a vadiagem era criminalizada tendo como base a
inexistência de domicílio certo e a capacidade para o trabalho (…)”(Idem:41).
A 12 de Agosto de 1905, é publicado o Regulamento Policial de Mendigos na
Cidade de Lisboa, que foi operacionalizado pela denominada polícia de inspecção
administrativa45. Este Regulamento previa que fossem presentes a tribunal os
mendigos que fossem válidos para o trabalho. Esta polícia de inspecção
administrativa teve um papel muito importante nas rusgas efectuadas pelas ruas
de Lisboa e pelo crescendo do número de prisões efectuadas.
Em 1912, é publicada a “Lei da Vadiagem”, vertendo “(…) as preocupações
regeneradoras do governo republicano em relação aos mendigos e vadios. A mendicidade é
autorizada, desde que seja apresentada uma licença própria para o efeito. E prevê a criação
de dois novos espaços para a correcção do vadio: a colónia penal agrícola e a casa correccional
de trabalho (…)”. (Bento e Barreto, 2002:42).
De acordo com o mesmo autor, nesta época, existiam, em Lisboa,
alguns asilos e albergues para indigentes: a Albergaria de Lisboa (1913), o
Albergue Nocturno (D. Luís I), o Asilo de Marvila, o Asilo de Nossa Senhora
do Amparo e o Asilo de D. Maria Pia (1867). Existiam, na cidade, outros tipos
de apoios/respostas, como, por exemplo, a Santa Casa da Misericórdia de
Lisboa, que integrou, através do Decreto 15.778, de 23 de Julho de 1928, as
Cozinhas Económicas, a Sopa dos Pobres e os balneários, pois existia uma grande
apreensão quanto à higiene destas pessoas.
45 Em Agosto de 1893, e de acordo com uma Lei de João Franco, foi aprovada uma reforma dos serviços policiais cujos efeitos se vão reflectir na estrutura policial até ao Estado Novo (Diário do Governo n.º 194, de 30 de Agosto). Esta polícia de inspecção administrativa, pretendia “tornar eficaz a fiscalização que a moral, a higiene e as conveniências públicas reclamam”.
134
No Estado Novo, a mendicidade constituía um fenómeno social
característico dos centros urbanos, com consequências perniciosas para a
sociedade em geral, na medida em que se constatava que, cada vez mais,
convergiam para a cidade de Lisboa pessoas oriundas de meios rurais, com
intenção de explorar a caridade pública. Eram indivíduos aventureiros, vadios,
vagabundos e falsos mendigos que, atraídos por uma vida fácil nas maiores
cidades, e pretendendo passar desapercebidos, se misturavam com os
verdadeiros mendigos e adoptavam comportamentos que punham em causa a
própria segurança pública. Esta realidade social, com dimensão considerável,
levou o Estado a legislar46 no sentido de estabelecer normas e processos de
acção policial adequados à prevenção e repressão da mendicidade nas ruas de
todos os lugares e cidades do País.
Assim, e visando combater este fenómeno social, a 20 de Abril de 1940
(Decreto-Lei nº 30.389), são criados – em todas as cidades capitais de Distrito,
e para funcionarem na dependência directa dos Comandos Distritais da
Polícia de Segurança Pública (PSP) – os albergues distritais para mendigos.
Os indivíduos que se encontravam em situação de mendicidade,
desamparados ou suspeitos de exercerem a mendicidade eram, então, detidos
e temporariamente internados nos albergues distritais, até se averiguar e
definir a sua real situação, para que lhes fosse dado o seu adequado destino.
Durante a actuação policial, existia o cuidado de distinguir entre os que
mendigavam por reconhecido estado de pobreza e necessidade, e os que o
faziam por vício e, quando detectadas e identificadas situações de real pobreza
e falta de amparo ou qualquer meio de sustento, poderiam, estas pessoas,
permanecer durante algum tempo nesses albergues.
46 Através do Decreto-Lei 19.687, de 4 de Maio de 1931, vai estabelecer-se “a repressão da mendicidade nas ruas e lugares públicos”.
135
Os que pudessem exercer alguma actividade eram então submetidos,
sob vigilância policial, a uma ocupação ou trabalho em obras públicas,
municipais ou paroquiais, ou em serviços domésticos particulares, sob tutela
dos comandos de polícia. Poderemos dizer que a PSP, nesta época, assumia
um papel assistencial e foi quase precursora dos actuais Serviços de Proximidade.
O Decreto-Lei nº 365 de 15 de Maio de 1976, admite modificações
significativas no entendimento e compreensão do fenómeno, atestando “(…)
que a mendicidade é consequência do nível de desenvolvimento sócio-económico e cultural de
uma comunidade sendo que na sua origem estão essencialmente causas de impossibilidade de
angariar meios de sustento (por motivos de idade, de deficiências físicas ou sensoriais, de
doença física ou mental e de desemprego) e outras de natureza psicológica (instabilidade e
desvio de comportamento (…)”.
Assim, de acordo com as leis actuais da República Portuguesa, quem
dorme nas ruas não é legalmente punido. E, tanto as autoridades policiais,
como outras instituições de carácter assistencial, só podem intervir junto das
pessoas sem-abrigo, desde que estes o aceitem.
Nas décadas de oitenta e noventa do século XX assiste-se a profundas
mudanças na sociedade portuguesa, nomeadamente no plano económico e
demográfico; estas alterações, resultam, principalmente, do êxodo rural e da
consequente explosão urbana. Face ao aumento demográfico registado nos
centros urbanos e, principalmente, na capital do País, para onde as pessoas
vinham em busca de uma vida melhor, emergiram grupos de pessoas que, não
conseguindo encontrar emprego, ou que, por outras razões, não podiam pagar
uma renda de casa/quarto; “caíram na rua”, tornando-se o fenómeno das
pessoas sem-abrigo, mais visível.
136
4.2. Respostas existentes na cidade de Lisboa
Foi nos finais da década de 1990, coincidindo com a realização da
EXPO 98, que foram criados vários equipamentos para as pessoas sem-
abrigo, nomeadamente o Centro de Abrigo do Beato e o Centro de Abrigo de
Xabregas47.
Importa aqui referir que, para identificarmos as respostas
implementadas na cidade de Lisboa, não interessa, apenas, enumerar, os locais
de dormida (alojamento) mas, sobretudo, reconhecer os que existem ao nível
da satisfação das necessidades básicas, como a alimentação e higiene; do
atendimento psicossocial, dos serviços de saúde, e dos serviços de promoção
de trabalho/emprego e dos ateliês ocupacionais.
É com base no diagnóstico elaborado pelo “Grupo de Trabalho para a
Pessoa Sem-Abrigo”, que produziu o Plano da Cidade para a Pessoa Sem-Abrigo –
Lisboa (PCPSAL) em Abril de 2009, que vão ser apresentadas as respostas
existentes na cidade.
Este Grupo de Trabalho percepcionou “(…) a existência de respostas no
território (…) como de suporte e vocacionadas, as primeiras com uma finalidade de
intervenção que não se esgota na população sem abrigo, e que se estende ao vasto conjunto da
população em situação de exclusão social. Considerando-se como respostas vocacionadas as
que priorizam e privilegiam a pessoa sem abrigo como objecto de intervenção (…)”
(PCPSAL, 2009:31).
Na presente investigação só apresentaremos as Respostas Vocacionadas.
47 Numa reestruturação recente, efectuada pela Segurança Social, ao nível das respostas para as pessoas
sem-abrigo, o “Centro de Abrigo” passou a denominar-se – “Centro de Alojamento Temporário”.
137
Atendimento/Acompanhamento SocialServiço de Emergência Social Santa Casa da Misericórdia de LisboaATENDIMENTO
Atelier Ocupacional Centro de Apoio Social de São
Bento
Atelier Ocupacional e Sala de ConvívioCentro de Apoio Social dos
AnjosSanta Casa da Misericórdia de Lisboa
Atelier OcupacionalAtelier OcupacionalAssociação Crescer na Maior
ATELIER
Refeitório/Cantina SocialCentro de Apoio Social dos
AnjosSanta Casa da Misericórdia de Lisboa
REFEITÓRIO CANTINA SOCIAL
Centro de Alojamento TemporárioCentro de Acolhimento para os
Sem Abrigo de LisboaVITAE - Associação de Solidariedade e
Desenvolvimento Internacional
Centro de Alojamento TemporárioCentro de Apoio Social dos
Anjos
Centro de Alojamento Temporário de Emergência
Centro de Alojamento Temporário (Extensão)
Centro de Alojamento Temporário
Centro de Alojamento Temporário Mãe d'Água
Santa Casa da Misericórdia de Lisboa
Centro de Alojamento TemporárioCentro de Acolhimento
Temporário para Sem Abrigo -Xabregas
Centro Social do Exército de Salvação
Centro de Alojamento TemporárioAlbergue NocturnoAssociação dos Albergues Nocturnos de
Lisboa
Centro de Alojamento TemporárioCentro de Abrigo da GraçaAMI - Fundação de Assistência Médica
Internacional
CENTRO DE ALOJAMENTO TEMPORÁRIO
Equipa de RuaEquipa de Rua - ETIRVITAE - Associação de Solidariedade e
Desenvolvimento Internacional
Equipa de RuaServiço de Emergência SocialSanta Casa da Misericórdia de Lisboa
Equipa de RuaEquipa de Rua Cidade SeguraNovos Rostos Novos Desafios
Equipa de Rua Equipa de Rua Projecto
SentidosMovimento ao Serviço da Vida
Equipa de Rua Para Pessoas Sem AbrigoNoite Saudável - Unidade
MóvelMédicos do Mundo (Associação)
Equipa de Rua - distribuição de alimentosEquipa de RuaLegião Boa Vontade
Equipa de Rua - distribuição de alimentosEquipa de RuaIgreja Evangélica do Sétimo Dia
Equipa de Rua - distribuição de alimentosEspaço Aberto ao DiálogoComunidade Vida e Paz
Equipa de Rua - distribuição de alimentosEquipa de RuaComunidade de Sto Egidio
Equipa de Rua Equipa de Rua ERASACML/ Departamento Acção Social
Equipa de RuaEquipa de RuaCentro Social do Exército de Salvação
Equipa de Rua - distribuição de alimentosEquipa de Rua CASACentro de Apoio Ao Sem Abrigo
Equipa de RuaEquipa de RuaAMI - Fundação de Assistência Médica
Internacional
EQUIPA DE RUA
Comunidade de Inserção Centro CAIS LisboaCAIS - Associação de Solidariedade Social
Comunidade de InserçãoCentro Porta Amiga das OlaiasAMI - Fundação de Assistência Médica
InternacionalCOMUNIDADE DE INSERÇÃO
Resposta EquipamentosEntidades
REDE VOCACIONADA
Atendimento/Acompanhamento SocialServiço de Emergência Social Santa Casa da Misericórdia de LisboaATENDIMENTO
Atelier Ocupacional Centro de Apoio Social de São
Bento
Atelier Ocupacional e Sala de ConvívioCentro de Apoio Social dos
AnjosSanta Casa da Misericórdia de Lisboa
Atelier OcupacionalAtelier OcupacionalAssociação Crescer na Maior
ATELIER
Refeitório/Cantina SocialCentro de Apoio Social dos
AnjosSanta Casa da Misericórdia de Lisboa
REFEITÓRIO CANTINA SOCIAL
Centro de Alojamento TemporárioCentro de Acolhimento para os
Sem Abrigo de LisboaVITAE - Associação de Solidariedade e
Desenvolvimento Internacional
Centro de Alojamento TemporárioCentro de Apoio Social dos
Anjos
Centro de Alojamento Temporário de Emergência
Centro de Alojamento Temporário (Extensão)
Centro de Alojamento Temporário
Centro de Alojamento Temporário Mãe d'Água
Santa Casa da Misericórdia de Lisboa
Centro de Alojamento TemporárioCentro de Acolhimento
Temporário para Sem Abrigo -Xabregas
Centro Social do Exército de Salvação
Centro de Alojamento TemporárioAlbergue NocturnoAssociação dos Albergues Nocturnos de
Lisboa
Centro de Alojamento TemporárioCentro de Abrigo da GraçaAMI - Fundação de Assistência Médica
Internacional
CENTRO DE ALOJAMENTO TEMPORÁRIO
Equipa de RuaEquipa de Rua - ETIRVITAE - Associação de Solidariedade e
Desenvolvimento Internacional
Equipa de RuaServiço de Emergência SocialSanta Casa da Misericórdia de Lisboa
Equipa de RuaEquipa de Rua Cidade SeguraNovos Rostos Novos Desafios
Equipa de Rua Equipa de Rua Projecto
SentidosMovimento ao Serviço da Vida
Equipa de Rua Para Pessoas Sem AbrigoNoite Saudável - Unidade
MóvelMédicos do Mundo (Associação)
Equipa de Rua - distribuição de alimentosEquipa de RuaLegião Boa Vontade
Equipa de Rua - distribuição de alimentosEquipa de RuaIgreja Evangélica do Sétimo Dia
Equipa de Rua - distribuição de alimentosEspaço Aberto ao DiálogoComunidade Vida e Paz
Equipa de Rua - distribuição de alimentosEquipa de RuaComunidade de Sto Egidio
Equipa de Rua Equipa de Rua ERASACML/ Departamento Acção Social
Equipa de RuaEquipa de RuaCentro Social do Exército de Salvação
Equipa de Rua - distribuição de alimentosEquipa de Rua CASACentro de Apoio Ao Sem Abrigo
Equipa de RuaEquipa de RuaAMI - Fundação de Assistência Médica
Internacional
EQUIPA DE RUA
Comunidade de Inserção Centro CAIS LisboaCAIS - Associação de Solidariedade Social
Comunidade de InserçãoCentro Porta Amiga das OlaiasAMI - Fundação de Assistência Médica
InternacionalCOMUNIDADE DE INSERÇÃO
Resposta EquipamentosEntidades
REDE VOCACIONADA
Fig. 21 – Respostas vocacionadas para a população sem-abrigo
Fonte: PCPSAL, 2009:33.
138
Da análise da Figura 21 podemos concluir que existem, especialmente,
serviços destinados às necessidades básicas da população sem-abrigo –
alojamento e alimentação. Quanto ao alojamento, e perante o diagnóstico
apresentado no capítulo 3, parece-nos insuficiente o número de camas para o
número de pessoas contactadas pelas equipas de rua (1.187).
Comunidades de Inserção 2
Equipas de Rua 13
Centros de Alojamento Temporário
(Número total de camas – 494)
8
Refeitório/Cantina Social 1
Ateliês Ocupacionais 3
Atendimento 1
Tabela 5 – Número total de estruturas existentes na cidade de Lisboa
por cada categoria das respostas vocacionadas aos sem-abrigo
(Fonte: PCPSAL, 2009).
Das 13 equipas de rua identificadas (Tabela 5), 8 só fazem distribuição
alimentar à noite, tendo as restantes um objectivo mais técnico, isto é, de
motivar as pessoas sem-abrigo para projectos de vida alternativos.
De salientar que só existe, na cidade, uma resposta (da responsabilidade
da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa) ao nível da categoria
139
“Refeitório/Cantina Social”, que funciona 365 dias/ano. O mesmo acontece
ao nível do “Atendimento”, também da responsabilidade da Santa Casa da
Misericórdia de Lisboa.
Os Centros de Alojamento Temporário só dão dormida, jantar e
pequeno-almoço, tendo, os utentes, que abandonar as instalações logo após a
primeira refeição da manhã. Dada esta situação parece-nos manifestamente
insuficiente o número de ateliês ocupacionais existentes, pois trata-se de um
tipo de resposta importante para que as pessoas possam permanecer, num
local abrigado, durante o dia.
No entanto, podemos, desde já, concluir que o tipo de respostas
existentes é destinado, essencialmente, à satisfação das necessidades básicas,
sem horizonte para a sua inclusão efectiva na sociedade.
4.3. Estratégias e Políticas de Inclusão Social
4.3.1. Na Europa
De acordo com o “Relatório Conjunto sobre a Inclusão”, a inclusão
social é um processo que garante às pessoas em situação de pobreza e
exclusão social acederem às oportunidades e aos recursos necessários para
participar, plenamente, nas esferas económica, social, e cultural, e
beneficiarem de um nível de vida e bem-estar considerado normal na
sociedade em que vivem.
A constatação oficial da urgência de lutar contra a pobreza, na Europa,
verifica-se desde há mais de 35 anos. Com o Conselho de Paris, em 1972,
existiu a necessidade da elaborar um programa de acção social. Os
“Programas Europeus de Luta Contra a Pobreza” tiveram, aqui, a sua origem.
140
O primeiro Programa Europeu data de 1975, na sequência da crise
petrolífera, em resultado da qual se agravaram os problemas socioeconómicos
da generalidade do espaço europeu, afectando, principalmente, as classes
sociais mais desfavorecidas. Esse programa foi, essencialmente, orientado para
a investigação, ou seja, para o conhecimento do fenómeno, pois as diferentes
sociedades dos países europeus estavam a ser confrontadas com o “não
desaparecimento” da pobreza e com o surgimento de novas problemáticas.
Pretendia-se, assim, clarificar os conceitos de “pobreza” e “privação”; foi a
primeira vez, em termos da Comunidade Europeia, que se admitiu um
conhecimento insuficiente sobre este problema. Em resumo, teve como
objectivos principais “(…) promover a inovação, estimular o debate público, favorecer a
estruturação de redes de agentes e desenvolver acções de informação associando reflexão e
prática (…)”48.
Assistiu-se a uma interrupção, de 1979 a 1985, ano em que emergiu o
segundo “Programa de Luta contra a Pobreza” (período de 1985 a 1989),
prevendo uma recolha de dados estatísticos sobre a pobreza nos países
membros, a troca de conhecimentos, a coordenação de acções e o
desenvolvimento de processos de investigação específica, permitindo, ainda, a
constituição de equipas transnacionais, para discussão e aplicação de novos
métodos na luta contra a pobreza49.
Em 1989 surge o “III Programa Europeu de Luta Contra a Pobreza
(1989-1994)” que tinha como principal objectivo ultrapassar a fase
exploratória que havia caracterizado os dois anteriores programas. Tinha três
grandes objectivos a atingir:
48 - Cf. REAP – Lutar Contra a Pobreza e a Exclusão na Europa – Guia de Acção e Descrição das Políticas Sociais, Instituto Piaget, Lisboa (1998:75).
49 Idem (1998:76)
141
• Contribuir para o aprofundamento do conhecimento e da
sensibilização sobre os temas da pobreza e da exclusão social;
• Promover a experimentação de novas estratégias de combate à
pobreza, dando ênfase à inovação nos métodos, nas políticas
adoptadas e nas práticas-modelo, estimulando o debate sobre as
acções e os seus resultados;
• Fundamentar as recomendações de políticas destinadas aos sem-
abrigo aos níveis local/regional, nacional e supranacional.
Os Programas Europeus de Luta Contra a Pobreza finalizaram em 1994
e, até ao ano 2000, não existiu uma estratégia europeia conjunta, tendo, como
tal, cada Estado-Membro adoptado a sua.
Desde então, aferimos, assim, que o combate à pobreza e à exclusão
social, e a promoção da inclusão social têm constituído uma prioridade
estratégica da União Europeia (UE). Em Março de 2000, o Conselho Europeu
de Lisboa definiu para a Europa um novo objectivo estratégico expresso na
fórmula do “Triângulo de Lisboa”: Crescimento económico, mais e melhor
emprego, e maior coesão social. O principal vector político deste objectivo
estratégico assenta no “Método Aberto de Coordenação (MAC)”50 no
domínio da inclusão social. O MAC baseia-se num conjunto de objectivos
comuns que devem ser transpostos pelos Estados-Membros para a política
interna, através de Planos de Acção Nacionais para a Inclusão (PNAI). O
grande objectivo da UE é promover a erradicação da pobreza e da exclusão
social no seu território até 2010. No Conselho Europeu de Lisboa, os
Estados-Membros da UE aceitaram o desafio de lutar contra a pobreza e a
50 O MAC assenta em objectivos comuns e metas: Preparação dos PNAI, nos quais os Estados-Membros apresentam as políticas que se propõem a implementar; indicadores comuns; e Relatórios Conjuntos de avaliação dos Planos, elaborados pela Comissão Europeia.
142
exclusão social, como um dos elementos centrais na modernização de uma
política social europeia.
Estes esforços da luta contra a pobreza e exclusão social têm de ser
apoiados e alargados para melhorar a posição dos que se encontram numa
situação de maior vulnerabilidade, como, por exemplo, os trabalhadores em
condição precária, os desempregados de longa-duração, as famílias
monoparentais, as crianças desfavorecidas, as minorias étnicas e as pessoas
doentes e/ou com deficiência. Uma vez que as pessoas desfavorecidas têm
mais dificuldades em entrar ou permanecer no mercado de trabalho, os
Estados-Membros devem apoiar a sua integração, a fim de prevenir e
combater a exclusão social, bem como promover a educação, encorajar a
criação de empregos e assegurar a sustentabilidade dos sistemas de protecção
social.
O “Relatório Conjunto sobre Protecção Social e Inclusão Social”,
apresentado em 2005 pela Comissão Europeia, revela que os Estados-
Membros estão a intensificar os seus esforços para combater a pobreza e
garantir que os regimes de pensões permaneçam capazes de assegurar
rendimentos adequados aos pensionistas. Estão, igualmente, a centrar-se em
questões fundamentais, tais como a eliminação da pobreza infantil, a melhoria
das condições de habitação e a promoção das qualificações daqueles que
abandonam precocemente o sistema escolar.
De salientar que a Comissão das Comunidades Europeias, já em 2003,
reconheceu o fenómeno dos sem-abrigo como uma questão complexa, que
não diz respeito, exclusivamente, a uma ausência de habitação. Muitos dos
sem-abrigo debatem-se com múltiplos problemas – doença mental e física,
desemprego, etc. – que os arrastam para uma espiral de pobreza. Por isso, diz
ainda a Comissão “é essencial não enfocar apenas as pessoas que vivem na rua, mas
considerar o fenómeno dos sem-abrigo numa perspectiva mais abrangente”.
143
O Conselho Europeu da Primavera de 2006, com o desenvolvimento
da Estratégia de Lisboa, anunciou um conjunto de novos objectivos comuns no
que diz respeito à protecção e inclusão social, que abrangem três vertentes do
MAC: inclusão social; pensões; cuidados de saúde e cuidados continuados.
Estabelecem a base do “Relatório Nacional de Estratégia para a Protecção
Social e a Inclusão Social”, do qual o Plano Nacional de Acção para a Inclusão
(PNAI) faz parte integrante. Configura uma estratégia global para a inclusão
social, onde são identificados os principais eixos de intervenção e políticas
sociais, e as medidas a implementar, num determinado horizonte temporal.
4.3.2. Em Portugal
O Governo português, atento ao fenómeno dos sem-abrigo e às
recomendações emanadas pela EU, tem legislado neste sentido. Desta forma,
têm-se sucedido as várias gerações de Planos Nacionais de Acção para a
Inclusão, com duração bianual, dos quais são exemplo os PNAI de 2001-
2003, 2006-2008 e 2008-2010.
A figura do PNAI tem-se constituído, em Portugal, como um
instrumento de coordenação estratégica e operacional das políticas de inclusão
social, congregando as acções a diferentes níveis, e utilizando um grande
conjunto de medidas. É envolvido um conjunto de Ministérios, que cooperam
no combate à pobreza e exclusão social, e deles depende a criação de planos
sectoriais que concorrem para uma mesma estratégia nacional. São disto
exemplo, entre outros, o Plano Estratégico para a Habitação, o Plano para a
Integração dos Imigrantes, Plano Nacional de Emprego, o Plano Nacional de
Saúde, o Plano Nacional para a Droga e Toxicodependência e o Plano
Nacional de Saúde Mental.
O PNAI de 2001-2003 assumiu como grandes desafios:
• “Erradicar a pobreza infantil até 2010;
144
• Reduzir a taxa de pobreza, que era de 23% em 1995, para 17% até
2005, tornando-se igual à média europeia;
• Reduzir em 50% a pobreza absoluta até 2005;
• Lançar nos próximos dois anos 50 “Contratos de Desenvolvimento Social
Urbano”, com vista à criação de cidades inclusivas, baseados na convergência
dos meios e dos instrumentos necessários em comunidades territoriais
urbanas, e geridos de forma integrada a partir dos contributos dos diversos
actores públicos e privados, nacionais, regionais e locais;
• Lançar o Programa “Espaço Rural e Desenvolvimento Social”, integrando
os diversos instrumentos e iniciativas de desenvolvimento local integrado de
comunidades rurais;
• Assegurar que todas as pessoas em situação de exclusão social serão
individualmente abordadas pelos serviços locais de acção social, numa
perspectiva de aproximação activa, com vista à assinatura no prazo de um
ano, de um contrato de inserção social adequado à sua situação concreta e
envolvendo, conforme os casos, medidas na área da educação e formação,
emprego, habitação, saúde, protecção social, rendimento e acesso a serviços;
• Reduzir para três meses o prazo referido anteriormente, no caso das crianças
e jovens em risco, envolvendo sempre medidas específicas para o regresso à
escola ou à formação inicial;
• Lançar uma linha telefónica nacional de emergência51, devidamente
articulada com centros de emergência social distritais de funcionamento
contínuo e ininterrupto, que assegurem o encaminhamento de qualquer
cidadão em situação de emergência – nomeadamente pessoas sem-abrigo,
51 144 é a Linha de Emergência Social, da Segurança Social. Destina-se a dar resposta imediata a situações de risco e de exclusão, tais como crianças, idosos abandonados, mulheres vítimas de violência doméstica e pessoas sem-abrigo. A Linha é atendida por psicólogos, juristas e técnicos de serviços sociais que, depois, accionam as equipas distritais, dando o apoio necessário, e um local onde as pessoas possam ficar.
145
pessoas vítimas de violência doméstica, crianças em risco – para serviços
prestadores de cuidados primários e acolhimento” (PNAI, 2001-2003:10).
Neste Plano, dá-se conta do despontar de “novas categorias sociais de
excluídos”, onde se incluem as crianças em risco, os reclusos e ex-reclusos, os
toxicodependentes e as pessoas sem-abrigo. Fala-se, analogamente, dos
territórios onde estas problemáticas se concentram, especialmente nas zonas
urbanas, onde a “(…) habitação degradada, a marginalidade ou clandestinidade de
alguns dos residentes, a quase ausência ou dificuldade de acesso a infra-estruturas, serviços e
equipamentos básicos, o frequente funcionamento das instituições em níveis de qualidade
mais baixos, entre outras carências, marcam a vida nestas comunidades onde a pobreza
tende a perdurar e a transmitir-se de geração em geração (…)” (PNAI 2001-2003:6).
Existiu, assim, uma preocupação em “territorializar” as intervenções e
diferenciá-las quanto ao binómio rural/urbano. Foi nesta época que surgiram
medidas e programas com esta preocupação, dos quais são exemplo, entre
outros, a criação dos Territórios Educativos de Intervenção Prioritária (TEIP)
e dos Planos Especiais de Realojamento – PER52, o qual previa a erradicação
total das barracas, nas Áreas Metropolitanas de Lisboa e Porto.
Em Lisboa, foram demolidos vários núcleos de barracas, que haviam
surgido, ao longo dos anos, por toda a cidade, e os bairros provisórios do
Estado Novo (do Relógio, da Boavista, da Quinta da Calçada, da Horta Nova,
das Furnas, do Padre Cruz), aos quais se aludiu o, então, Vereador do Pelouro
da Habitação da Câmara Municipal de Lisboa – Vasco Franco, como “ a marca
de um regime que a democracia demorou a erradicar”.
52
Foi criado através do Decreto-Lei nº 163/93, de 7 de Maio, tendo, como objectivo, a concessão de
apoios financeiros às Câmaras Municipais, para construção, aquisição, ou arrendamento de fogos
destinados ao realojamento de agregados familiares residentes em barracas e habitações similares.
146
Fig. 23 – Bairros Sociais, existentes na cidade de Lisboa (Fonte: GEBALIS)
Para termos uma noção do número de barracas existentes, com más
condições de habitabilidade, devido às quais foi necessário realojar as famílias,
foram construídos, no âmbito do PER Lisboa (Fig.23), 23.398 fogos,
distribuídos por 2.117 lotes.
Intensificou-se, assim, em Lisboa, o ritmo de crescimento do parque
habitacional municipal, que engloba 69 Bairros Municipais, com uma
população total de cerca de 81.900 moradores.
Estas políticas e programas, na área social, permitiram criar sinergias
relevantes nas diferentes acções preconizadas no Plano, privilegiando uma
lógica de Desenvolvimento Local e uma intervenção a um nível mais micro,
relevando que só desta forma se podem resolver os problemas.
O PNAI 2006-2008 apresenta uma análise da evolução da pobreza e a
identificação dos grupos que a ela se apresentam mais vulneráveis, tais como
as crianças, mulheres, famílias numerosas, pessoas idosas, entre outros. Traça,
147
também, um retrato nacional do panorama sócio-económico, do mercado de
trabalho, da educação e formação, e, também, da saúde.
De acordo com uma nova orientação da UE, foi assumido um número
limitado de prioridades políticas:
• “Combater a pobreza das crianças e dos idosos, através de medidas que
assegurem os seus direitos básicos de cidadania;
• Corrigir as desvantagens na educação e formação/qualificação;
• Ultrapassar as discriminações, reforçando a integração das pessoas com
deficiência e dos imigrantes (…)” (PNAI, 2006-2008:9).
Foi com base nestas prioridades que se organizaram as medidas
identificadas no âmbito da estratégia de inclusão, tendo como intuito garantir,
aos cidadãos, o acesso a bens e serviços, recursos e direitos. Com a finalidade
de promover a igualdade de oportunidades e garantir a participação numa
sociedade coesa socialmente, os princípios pelo qual se rege este Programa são
os seguintes:
• “A consagração de direitos básicos de cidadania, que postula o direito ao
trabalho e a apoios básicos com vista à inserção, mas também ao exercício
dos direitos cívicos, à cultura, à educação, à habitação condigna e à
participação na vida social e cultural;
• A responsabilização e a mobilização do conjunto da sociedade e de cada
pessoa no esforço de erradicação das situações de pobreza e exclusão, com
particular enfoque na contratualização das respostas de protecção social;
• A integração e multidimensionalidade entendidas como convergência das
medidas económicas, sociais e ambientais com vista ao desenvolvimento e
promoção das comunidades locais, apelando à convergência de sinergias e à
congregação dos recursos;
148
• A combinação adequada entre a universalidade e a diferenciação positiva, ou
seja, a garantia de que, no cumprimento dos objectivos de inclusão social,
todos os cidadãos e cidadãs são efectivamente tratados como iguais na base da
diversidade das suas situações e necessidades e em relação com os recursos e as
oportunidades;
• A territorialização das intervenções como aproximação e adequação às
especificidades locais, aí criando dinâmicas de potenciação dos recursos e das
competências;
• O reconhecimento da importância da igualdade de oportunidades e da
perspectiva de género, como forma de garantia do exercício dos direitos tanto
na esfera pública como na esfera privada (…)” (PNAI, 2006-2008:45-
46).
Com estes princípios orientadores, o Governo tenta envolver e
mobilizar a sociedade portuguesa para a erradicação da pobreza, promover a
discriminação positiva e dar uma especial atenção às particularidades
territoriais, actuando sobre as causas dos problemas e não somente sobre os
sinais exteriores.
No âmbito das medidas de protecção social queremos aqui salientar o
Rendimento Social de Inserção (RSI), instituído em 2003. Consiste numa
prestação pecuniária, incluída no subsistema de solidariedade, e num
programa de inserção social, que os beneficiários são obrigados a subscrever.
Visa assegurar, às pessoas e respectivos agregados familiares, recursos que
contribuam para a satisfação das suas necessidades mínimas e que favoreçam a
sua progressiva inserção social, laboral e comunitária. O seu valor/mês é de
187,18€, variando consoante a dimensão do agregado familiar, e/ou
determinadas situações, como deficiência, doença crónica, pessoas
dependentes, entre outras. Embora não se destine, exclusivamente, à
149
população sem-abrigo, este grupo de pessoas são também beneficiários desta
medida.
Em Março de 2008, a UE lançou um guia para a preparação dos
Relatórios Nacionais de Protecção Social e Inclusão Social 2008-2011. Neste
guia é referido que o primeiro ciclo do MAC está quase a ser concluído.
Assim, o Comité de Protecção Social e a Comissão Europeia propõem que se
mantenham os Objectivos Comuns adoptados no Conselho Europeu de 2006
prosseguindo um ciclo de três anos “(…) alinhado com a Estratégia para o
Crescimento e Emprego (…)”.
O guia recomenda que os Relatórios Nacionais de Protecção Social e
Inclusão Social devem ser constituídos por quatro capítulos: o primeiro
abordará a caracterização da situação social de cada Estado-Membro, e
terminará com a apresentação da estratégia a adoptar pelo País, neste novo
ciclo. Os capítulos 2, 3, e 4 devem identificar os progressos em relação à
Estratégia Nacional para a Protecção Social e Inclusão Social (ENPSIS) e os
desafios identificados no Relatório Conjunto de 2007; o desenvolvimento das
prioridades identificadas no Relatório de 2006-2008; e os principais desafios,
objectivos prioritários, metas e recomendações de cada país.
Deste modo, os objectivos políticos delineados para a Inclusão Social,
no período 2008-2010, estão organizados em três áreas:
• “Combater a pobreza das crianças e dos idosos, através de medidas que
assegurem os seus direitos básicos de cidadania;
• Corrigir as desvantagens na educação e formação/qualificação;
• Ultrapassar as discriminações, reforçando a integração de grupos específicos,
nomeadamente: pessoas com deficiências e incapacidades, imigrantes e
minorias étnicas” (ENPSIS, 2008:30).
150
Neste documento, à semelhança dos anteriores, continuam a ser
privilegiados os idosos e as crianças, com o objectivo de combater a pobreza
verificada nestes grupos específicos. Não será demais salientar que, na senda
da Carta Social Europeia, o combate à pobreza é hoje um direito básico dos
cidadãos, e a sua não erradicação faz perigar a nossa vivência em democracia.
Portugal, de acordo com um relatório sobre a Situação Social na União
Europeia (2007), é um dos países, a par da Lituânia, onde existem e persistem
as maiores desigualdades sociais: o nosso gap entre ricos e pobres continua a
ser o maior na UE. De acordo com este relatório, em Portugal, esse fosso
situa-se nos 6,9%, enquanto a média europeia se encontra nos 4,9%.
De salientar que, em toda a geração dos PNAI, o que está, actualmente,
em curso (2008-2010) é aquele no qual aparecem, pela primeira vez, medidas e
acções concretas para a população sem-abrigo. Aliás, é referido no documento
que a “(…) crescente complexidade da exclusão social tem acentuado a visibilidade do
problema da população Sem-Abrigo, desafiando respostas que se ajustem ao perfil de défices
evidenciados (…)” (ENPSIS, 2008:29). É neste sentido que o governo entende
que se deverão concretizar medidas conducentes a uma estratégia para “(…) o
seu enquadramento e para uma intervenção reforçada (…).” (Idem:29).
Assim, o governo pretende que 80% das pessoas que sejam
identificadas como sem-abrigo estejam inseridas em Planos Individuais de
Reinserção Social até ao final de 2010, e que tenham um acompanhamento
personalizado.
De acordo com o PNAI, existe um grande desconhecimento quanto ao
número de pessoas sem-abrigo que existem em Portugal, salientando-se o
facto de que se sabe que são maioritariamente homens, em idade activa (30-49
anos), solteiros ou divorciados, de nacionalidade portuguesa, com a
escolaridade básica e concentrados, sobretudo, no Porto e em Lisboa.
151
Assim, uma das medidas a implementar até ao final de 2009 é um
“sistema de informação e monitorização do fenómeno”. A garantia dada pelo
governo é de disponibilizar esta base de dados, na Internet, e garantir a
utilização do sistema de informação e monitorização por todas as entidades
públicas e privadas, a nível nacional, até ao final de 2010.
No início deste ponto relativo às políticas e estratégias referentes à
promoção da inclusão social no caso português, referimos que, nos PNAI,
estão envolvidos um conjunto de Ministérios e que deles dependem vários
Planos Sectoriais. Teremos que falar especificamente num deles – o Plano
Nacional de Saúde Mental 2007-2016 (PNSM), aprovado através da Resolução
do Conselho de Ministros nº 49/2008.
No capítulo III foram identificadas algumas problemáticas de saúde na
população sem-abrigo nacional, ressaltando-se a “doença mental” com 11,4%
de casos. Trata-se, efectivamente, de um grupo em que a prevalência de
doenças mentais é elevada e “(…) requer programas especialmente desenhados para as
suas necessidades específicas. Além de apresentarem uma morbilidade geral muito mais alta
do que a população em geral, deparam-se, em regra, com inúmeras barreiras no acesso aos
cuidados prestados pelos serviços de saúde disponíveis (…)” (Resolução do Conselho de
Ministros nº 49/2008:11). Para o efeito, o Plano Nacional de Saúde Mental
propõe-se desenvolver “(…) um projecto piloto para tratamento de Pessoas Sem
Abrigo(…)” (PNSM, 2007-2016:53).
Neste Plano está prevista a desinstitucionalização dos doentes mentais
graves (PNSM, 2007-2016:20), de forma a estes serem “devolvidos” à
comunidade e à família. Ora, se não se criarem serviços e programas para o
efeito, poderá acontecer um processo idêntico ao que ocorreu em Itália, no
Reino Unido ou, mesmo, nos Estados Unidos da América. Nestes países, a
desinstitucionalização deu origem a um processo de transinstitucionalização, ou
seja, as pessoas que foram retiradas de instituições psiquiátricas não
152
conseguiram ser integradas pelas comunidades e acabaram por ser excluídas
da sociedade, tornando-se, por exemplo, em sem-abrigo.
4.4. Estratégias para as Pessoas Sem-Abrigo
4.4.1. Estratégia Nacional para a Integração de Pessoas Sem-Abrigo
– 2009-2015
Conforme o apresentado no ponto anterior, as estratégias e políticas de
inclusão social, não têm presentes medidas específicas para a população sem-
abrigo, à excepção das incluídas (e mencionadas acima) no PNAI 2008-2010.
Aliás, poderemos questionar se esta intenção é sequer correcta.
Alguns peritos entendem que deverão existir estratégias exclusivamente
dirigidas aos sem-abrigo, pois trata-se de uma população com algumas
especificidades.
Para Marybeth Shinn (2007), as políticas sociais, que promovem e
reduzem as desigualdades sociais e providenciam rendimentos e outros apoios
para aqueles que estão na base da pirâmide da distribuição dos rendimentos,
estão associadas, normalmente, a baixos níveis de pessoas sem-abrigo, no
mundo desenvolvido. Refere ainda que “(…) the allocation of subsidies, patterns of
social exclusion, and individual levels of economic, social, and human capital interact to
influence who becomes homeless. Interventions to reduce homelessness at one level (e.g., social
policy) can counteract vulnerabilities at a different level (e.g., individual risk factors) (…)”
(Shinn, 2007:657).
Certos autores mencionam o facto das características individuais dos
indivíduos interagirem com as políticas e padrões de exclusão social, e
153
influenciarem “quem se torna sem-abrigo”. É da máxima importância
conhecer as causas, pois só com base neste saber poderemos orientar as
políticas e as teorias de intervenção.
Existe uma distinção entre políticas sociais universais e as que são
dirigidas especificamente aos sem-abrigo. As primeiras incluem “(…) tax policy
as well as social welfare and housing programs that attempt to combat poverty and social
exclusion (…)” (Shinn, 2007:658). Em Portugal, por exemplo, as transferências
sociais, para um determinado segmento da população, são um instrumento
importante para o orçamento e para a vida das pessoas pobres. No entanto,
para Shinn “(…) social policies can shape the composition as well as the numbers of
homeless people in each country (...) and homelessness is not simply a surprising short-term
anomaly, but an entrenched modern phenomenon in developed nations, which will require
concerted efforts to alleviate (...)”. (Idem: 662-664).
Assim, é importante atentar nos seguintes aspectos de contexto:
• Na 17.ª reunião dos Ministros dos países da UE com a “pasta”
da Habitação, realizada em Novembro de 2008, foi elaborada
uma Recomendação para que as políticas associadas ao
fenómeno dos sem-abrigo sejam consideradas no âmbito do
Ano Europeu de Luta Contra a Pobreza e a Exclusão Social –
2010;
• Os objectivos definidos nos PNAI, quanto ao risco de exclusão
de alguns grupos mais vulneráveis, nomeadamente as pessoas
sem-abrigo, têm configurado uma grande preocupação do
governo português;
• Existe um insuficiente conhecimento sobre o fenómeno em
Portugal;
• É necessário envolver todos os stakeholders na identificação dos
problemas e causas, e na sua solução; e
154
• Subsiste a necessidade de rentabilizar e potenciar os recursos
existentes.
Face ao anterior cenário, o governo português entendeu criar um “(...)
Grupo Interinstitucional, cuja missão foi a de desenvolver uma Estratégia Nacional53,
(...) com vista, não só a cumprir as directrizes europeias nesta matéria, mas também a
implementar um conjunto de medidas que permita criar condições para que sejam
despistadas e acompanhadas as situações de risco prevenindo a perda de habitação, e
garantindo que ninguém tenha de permanecer sem alojamento condigno” (ENIPSA:5).
Este Grupo foi constituído em Maio de 2007 e impendeu sobre o
Instituto de Segurança Social, IP (ISS, IP) a sua coordenação. É constituído
por um conjunto de instituições da esfera pública e privada54.
A Estratégia Nacional para a Integração de Pessoas Sem Abrigo traça
um conjunto de orientações gerais e comprometimentos mais específicos das
diferentes entidades públicas e privadas, e é baseada no respeito pelos direitos
individuais e de cidadania.
Preconiza que a respectiva implementação deve ser ao nível local,
através dos Conselhos Locais de Acção Local (Rede Social55), “(…) com base em
planos específicos e adequados às necessidades locais identificadas (…)” (ENIPSA:6).
53 Estratégia Nacional para a Integração de Pessoas Sem-Abrigo – 2009-2015 (ENIPSA).
54 Entidades representadas no grupo: Públicas: ACIDI, IP; ACS; ANMP; CIG; DGS; DGSS; DGRS; DGSP; GNR; IDT; IEFP; IHRU; ISS, IP; LNEC; PSP; ENSP; Privadas: CNIS; REAPN; SCML; FNERDM; U. MISERICÓRDIAS; CESIS, correspondente do Observatório da FEANTSA.
55 A Rede Social foi criada através da Resolução do Conselho de Ministros nº 197/97, de 18 de Novembro. É um programa que promove o desenvolvimento social local e que pretende constituir redes de apoio social, envolvendo toda a comunidade, de forma a resolver, eficaz e eficientemente, os problemas sociais de cada localidade. Pretende-se criar parcerias efectivas entre várias entidades, nomeadamente, autarquias, entidades públicas e privadas sem fins lucrativos, de modo a criar novas formas de conjugação de esforços, garantindo uma maior eficácia das respostas sociais.
155
Dado que esta Estratégia é dirigida a um grupo-alvo bem definido,
existiu a necessidade de consensualizar um conceito que, após a aprovação da
Estratégia (14/03/2009), passou a vigorar, em Portugal, no âmbito da
implementação da estratégia e que é o seguinte:
“Considera-se pessoa sem-abrigo aquela que, independentemente da sua nacionalidade,
idade, sexo, condição sócio-económica e condição de saúde física e mental, se encontre:
• Sem tecto – vivendo no espaço público, alojada em abrigo de emergência ou com
paradeiro em local precário;
• Sem casa – encontrando-se em alojamento temporário destinado para o efeito.”
Este conceito foi baseado na tipologia (ETHOS56), proposta pela
FEANTSA, também utilizada noutros países da Europa. A Estratégia
considera que este “(…) conceito deve ser utilizado a nível nacional por todas as
entidades públicas e privadas para efeitos de contabilização e caracterização das pessoas sem-
abrigo e como base para a apresentação de medidas inseridas nos planos de desenvolvimento
social das redes sociais concelhias” (ENIPSA:16).
A Estratégia Nacional actua ao nível de três grandes áreas específicas: i)
prevenção (abrange todos os grupos de risco, ii) emergência/intervenção
(actuação sobre a população sem-abrigo), iii) intervenção/integração
(acompanhamento e integração da população sem-abrigo). Visa criar
condições para que ninguém tenha de ficar, ou voltar a estar, numa situação
de sem-abrigo, nem de permanecer mais de 24 horas na rua. Também aponta
para que ninguém tenha de permanecer em alojamento temporário
56 European Typology of Homelessness (Tipologia Europeia sobre Sem-Abrigo e Exclusão Habitacional). É entendimento da FEANTSA que a definição desta tipologia é um meio de promover a compreensão e avaliação da situação de sem-abrigo na Europa bem como de promover uma linguagem comum. Esta definição é construída em torno do conceito de uma casa. “A FEANTSA considera que existem três elementos que constituem uma casa, e na falta dos quais se esboça a situação sem-abrigo. Ter uma casa pode ser entendido como: ter uma habitação adequada sobre a qual a pessoa e família podem exercer uma posse exclusiva (elemento físico); poder manter a privacidade, conseguir relacionar-se (elemento social) e ter um estatuto legal para ocupação (elemento legal). Isto conduz a quatro principais categorias conceptuais sobre pessoas sem-abrigo: sem tecto, sem casa, em habitação insegura e habitação inadequada” (SPINNEWIJN, 2005: 22-23).
156
indefinidamente e que esteja garantido o acesso de todos os direitos sociais a
todos os cidadãos, bem como o exercício pleno de cidadania.
Está organizada em torno de dois eixos e com os seguintes objectivos
estratégicos:
• Eixo 1: Conhecimento do fenómeno, informação, sensibilização
e educação
1.1 Promover a utilização de um conceito único de “pessoa sem-
abrigo”, a nível nacional;
1.2 Garantir a monitorização do fenómeno, com vista à
adequação das respostas às reais necessidades do problema,
através de um Sistema de Informação e Monitorização (SIM);
1.3 Assegurar que os Diagnósticos e os Planos de
Desenvolvimento Social das redes sociais incluem indicadores
relativos ao fenómeno sem-abrigo;
1.4 Garantir a actualização permanente do conhecimento e a luta
contra a discriminação;
1.5 Garantir acessibilidade e disponibilização de informação
permanentemente actualizada sobre o tema e os recursos
existentes.
• Eixo 2: Qualificação da Informação
2.1 Promover a qualidade técnica da intervenção;
2.2 Garantir eficácia e eficiência na intervenção;
2.3 Garantir a qualidade das respostas, dos serviços prestados e
da logística operacional dos equipamentos fixos ou móveis
que prestam apoio às pessoas sem-abrigo;
157
2.4 Assegurar a existência de respostas que garantam que
ninguém é desinstitucionalizado sem que tenham sido
accionadas todas as medidas necessárias para lhe garantir um
lugar adequado para viver, bem como os apoios necessários,
sempre que se justifique;
2.5 Assegurar que ninguém tenha de permanecer na rua por mais
de 24 horas;
2.6 Assegurar o apoio técnico à saída de um alojamento
temporário durante o tempo necessário;
2.7 Assegurar a existência de condições que garantam a
promoção da autonomia, através da mobilização e
contratualização de todos os recursos disponíveis, de acordo
com o diagnóstico e as necessidades identificadas: a)
Habitação – criar condições de alojamento disponibilizando
habitações de propriedade pública e privada para
arrendamento directo ou mediado; b) Emprego –
disponibilizar soluções de formação profissional e de
emprego adequadas; c) Protecção Social – assegurar o acesso
a todas as medidas de protecção adequadas; d) Saúde –
assegurar a acessibilidade aos cuidados de saúde.
Como temos vindo a afirmar ao longo dos capítulos anteriores, o
fenómeno da população de rua está pouco estudado em Portugal. Assim, o
Eixo 1 preceitua um conjunto de medidas que apontam para o conhecimento
do fenómeno a diferentes níveis, com o objectivo de comparar dados,
permutar informação a nível local e nacional e, sobretudo, “conhecer para
melhor agir”, ou seja, para que se possa planificar a intervenção e fundamentar
a tomada de decisão dos políticos.
158
Outras medidas igualmente importantes estão relacionadas com a
informação e sensibilização e com a “educação da comunidade em geral para o
fenómeno sem-abrigo e outras que contribuem para a mudança das representações sociais
discriminatórias associadas a este problemas (…)” (ENIPSA:17).
O Eixo 2 preconiza um grupo de medidas dirigidas, tanto à promoção
da qualidade técnica da intervenção, através de acções de formação para os
agentes que intervêm com esta população; como a eficiência da intervenção ao
nível da qualidade/diversidade das respostas prestadas aos utentes. Surge a
figura do “gestor de caso”, na sequência de um diagnóstico, “(…) o qual ficará
responsável por acompanhar todo o processo daí em diante (…)” (ENIPSA:23).
Ainda neste Eixo, é de salientar o objectivo estratégico 2.4, onde está
prevista a “importação” do modelo Housing First, de Nova Iorque, através da
realização de um projecto-piloto, para 50 pessoas sem-abrigo com doença
mental. A grande missão desta iniciativa será apoiar as pessoas sem-abrigo
com doença mental, no processo de procura, escolha, obtenção e manutenção
de uma habitação estável e integrada na comunidade. Os participantes neste
projecto contribuem com 30% do seu rendimento mensal, para pagamento de
renda. O acompanhamento aos residentes é efectuado por uma equipa (sendo
destacado um técnico por cada 10 participantes) e realizado no contexto
residencial e comunitário, com um mínimo de seis visitas domiciliárias, por
mês e por participante. O suporte aos residentes está assegurado 24h/dia e
365 dias/ano.
Os outros serviços disponibilizados, no âmbito deste projecto-piloto,
são o emprego e a educação apoiados, a criação de um centro de empowerment e
ajuda mútua, várias actividades desportivas e de lazer e o “apoio na crise”.
De salientar que este Projecto-Piloto vai ter como consultor externo o
Prof. Doutor Sam Tsemberis, da “Pathways To Housing”. A sua avaliação e
159
monitorização estarão a cargo da Prof. Doutora Marybeth Shinn, da
Vanderbilt University.
Ao nível residencial está previsto outro tipo de soluções,
nomeadamente residências colectivas para grupos populacionais com
necessidades habitacionais específicas e temporárias.
4.4.2. Plano Cidade para a Pessoa Sem Abrigo – Lisboa
No âmbito da Rede Social de Lisboa, foi constituído um Grupo de
Trabalho, em 2007, representado por treze instituições57 que trabalham na
área dos sem-abrigo e que teve por missão delinear um modelo de intervenção
para a cidade de Lisboa, que contemple tipologias de respostas, formas de
articulação e estratégias de intervenção integrada, dirigidas à pessoa sem-
abrigo e implementar medidas e programas associados à operacionalização do
plano, ou seja, contribuir de forma articulada para que a pessoa sem-abrigo
reúna condições/competências para a sua inserção/autonomização a nível
social (PCPSA, 2009).
Para a caracterização da população de rua da cidade de Lisboa,
utilizaram-se os dados da monitorização efectuada pelas Equipas de Rua,
durante o ano de 2007. Para que este Plano fosse participado por todos os
agentes que trabalham directa ou indirectamente com esta população,
realizou-se um Fórum, onde foram recolhidas contribuições muito valiosas
para a elaboração deste Plano.
O Plano Cidade de Lisboa para a Pessoa Sem Abrigo (PCPSA),
aprovado no dia 4 de Maio do corrente ano (2009), pretende centrar e integrar
57 AMI – Fundação de Assistência Médica Internacional; Associação Ares do Pinhal; Associação Novos Rostos…Novos Desafios; CAIS – Associação de Solidariedade Social; CIC – Associação para a Cooperação, Intercâmbio e Cultura; Movimento ao Serviço da Vida/Grupo de Reflexão; Médicos do Mundo (Associação); Alto Comissariado para a Saúde Mental; Câmara Municipal de Lisboa; Comando Metropolitano da Polícia de Segurança Pública de Lisboa; Instituto de Segurança Social IP/Centro Distrital de Lisboa; Santa Casa da Misericórdia de Lisboa; e o Grupo Técnico da Rede Social de Lisboa.
160
a intervenção na pessoa sem-abrigo. Assenta em três eixos de intervenção:
Eixo 1 – Potenciar a Rede de Equipamentos e Serviços de Apoio à pessoa
sem-abrigo; Eixo 2 – Implementar um Modelo de Intervenção Integrada na
cidade de Lisboa; e Eixo 3 – Melhorar e Qualificar a Intervenção.
O Eixo 1 pretende a Gestão Integrada dos Recursos/Respostas de Intervenção
na cidade de Lisboa, resumindo um “(…) conjunto de acções que visa a articulação
intersectorial, a tipificação e orientação das respostas para o bem estar da população e a
elaboração de um Plano de respostas específicas (…)” (PCPSA:41). Convém salientar
que existiu uma grande dificuldade, por parte deste Grupo, em definir
estruturas/respostas para a cidade, pois chegou-se à conclusão que não se
conhecia, verdadeiramente, a população sem-abrigo da cidade de Lisboa e as
respectivas carências em termos de respostas. Assim, existe a necessidade de,
além de se conhecer aprofundadamente o fenómeno, também
conhecer/reorganizar as respostas existentes.
Tem como principais Acções:
1 - Avaliação das respostas existentes e proposta de desenvolvimento
de novos modelos;
2 – Construção de um Plano de respostas de emergência,
acompanhamento e inserção;
3 – Optimização das “Equipas de Rua” na sinalização e no
acompanhamento das pessoas sem-abrigo;
4 – Rentabilização das instituições que distribuem géneros alimentares;
5 – Avaliação das condições para a reabertura dos balneários públicos;
6 – Adaptação dos sistemas de georreferenciação à pessoa sem-abrigo –
incluindo a cartografia dos equipamentos da cidade de Lisboa;
7 – Identificação das zonas de maior concentração de pessoas sem-
abrigo para a localização dos Núcleos de Apoio Local;
161
8 – Implementação de um Centro de Emergência com uma estrutura de
acolhimento;
9- Criar respostas ao nível de residências de transição com
acompanhamento técnico adequado (numa lógica de Housing First).
No Eixo 2, procura-se implementar “(…) um modelo de intervenção
integrada, de carácter pró-activo e preventivo, para a pessoa sem-abrigo na cidade de Lisboa
através de um outro conjunto de acções, que visa a definição de etapas e circuitos da rede
integrada e a garantia duma intervenção coordenada e atempada, centrada na pessoa sem
abrigo, de maneira a convergir e suportar as necessidades da população.
É neste eixo que estão previstas acções no sentido de corresponder a algumas das
sugestões referidas com maior insistência no Fórum (e cuja pertinência nos parece ter sido
entretanto, confirmada nas reflexões e partilhas de opiniões entre os técnicos)”
(PCPSA:41).
Em seguida, enunciam-se algumas Acções previstas neste Eixo:
1 – Definição de um Modelo de Intervenção integrado para a cidade;
2 – Criação de um manual de procedimentos de estratégias de intervenção face aos factores e situações de risco;
3 – Definição do modelo/papel funcional do gestor de processo/caso;
4 – Guião de princípios e definição de critérios para se poder ser gestor de processo;
5 – Criação de uma plataforma digital sobre a questão, contendo um registo partilhado das entidades por níveis de intervenção com a variável “gestão de vagas on-line”;
6 – Operacionalização do modelo, visando a reintegração e capacitação social e profissional da pessoa sem-abrigo;
162
7 – Criação de um website que disponibilize informação on-line sobre os recursos e respostas existentes na cidade de Lisboa, para a pessoa sem-abrigo.
O Eixo 3 – “Melhorar e Qualificar a Intervenção” prevê “(…) a
Formação/qualificação dos agentes, dirigentes e organizações, como um dos pilares
fundamentais para qualquer mudança profunda ao nível da intervenção. Essa mudança é
consensualmente referida, como sendo necessariamente estrutural e não simplesmente em
termos de reorganização superficial de procedimentos. A introdução de elementos e
mecanismos de articulação; a clarificação de boas práticas, o envolvimento dos parceiros –
quer ao nível técnico, quer ao nível dos dirigentes – e o envolvimento das instituições num
modelo integrado de funcionamento são algumas das preocupações centrais do Plano (…)”
(PCPSA:42).
Algumas Acções previstas neste âmbito são:
1 – Constituição de um programa de formação/acção para os agentes interventores (p.ex. relativo ao modelo de gestão/supervisão e de capacitação do Terceiro Sector);
2 – Capacitação dos técnicos para a formação na vertente do atendimento integrado;
3 – Avaliação das boas práticas de referência;
4 – Formação, aos dirigentes, na vertente dos processos de qualificação;
5 – Sensibilização dos profissionais de saúde.
Para concluir queremos referir que este Plano de Cidade está em
consonância com a Estratégia Nacional, uma vez que foram construídos em
simultâneo, e que um dos elementos deste Grupo (Alto Comissariado da
Saúde) esteve presente nos dois grupos de trabalho, permitindo um
conhecimento mútuo do trabalho desenvolvido. Aliás, o próprio conceito de
“pessoa sem-abrigo” resultou, exactamente, de uma sintonia entre os dois
grupos de trabalho.
163
Conclusões
Pelo que foi dado a conhecer ao longo do presente relatório, na cidade
de Lisboa existem 494 camas (que estão sempre lotadas) e (foram contactadas,
em 2007, pelas Equipas de Rua), 1.187 pessoas sem-abrigo. Logo à partida,
existe um problema quanto ao número exacto de pessoas que “habitam” as
ruas da capital do País. Os 1.187 indivíduos correspondem àqueles que foram
contactados pelas Equipas de Rua, restando saber os valores daqueles que não
foram “tocados” pelos técnicos. Urge conhecer, monitorizar e avaliar melhor
o fenómeno.
Poderemos afirmar que são necessárias novas opções de alojamento,
de modo a aumentar a capacidade de resposta e proporcionar uma oferta
diversificada a este nível. Hoje em dia, apenas existem Centros de Abrigo, face
aos quais as pessoas têm que abandonar as instalações logo após o pequeno-
almoço. Existe uma forte carência de casas para sem-abrigo, de residências
assistidas, de apartamentos de reinserção, etc.
Quanto à alimentação, verifica-se a existência de um número de equipas
de voluntários, pertencentes a várias instituições/associações, que fazem a
distribuição alimentar, sem qualquer dignificação. Apesar de alguns esforços
do Município de Lisboa no sentido de gerir rotas e horários, e de encontrar
espaços para o efeito, tal tem sido infrutífero. Atrevemo-nos a afirmar que,
neste momento, a distribuição é caótica (inclusivamente, existem alguns
particulares que também distribuem as “sobras” das “festas”) e que existe uma
verdadeira overdose de comida nas ruas da cidade de Lisboa. Assim, torna-se
necessário providenciar locais onde estas instituições possam distribuir a
comida com decência, tanto para a instituição, como para o utente; e que
possam acumular outras funções, designadamente o tratamento de roupas e a
higiene pessoal.
Os ateliês ocupacionais descritos no Plano de Cidade também são em
número insuficiente, apesar de se revelarem, no entanto, como espaços
164
fundamentais, tanto para o “estar”, como para a aquisição de determinadas
competências pessoais e sociais dos indivíduos sem-abrigo.
Quanto às respostas de apoio à inserção socioprofissional das pessoas
sem-abrigo, verifica-se que essas são em número insignificante.
Afinal do que falamos? Que tipo de respostas/estruturas são estas?
São respostas/estruturas que satisfazem, apenas, as necessidades básicas
dos indivíduos! E a promoção da autonomia? Está “vazia”! Torna-se, pois,
necessário mobilizar conjuntamente vários sectores da sociedade, tais como a
educação, a formação, o emprego, a saúde, e a habitação, entre outros.
Tudo isto faz-nos pensar! Será que “alguém” está interessado na
manutenção do fenómeno? Existirão interesses instalados?
No momento em que, em Portugal, e em Lisboa, em particular, se está
a “importar” um modelo – Housing First – que tem demonstrado resultados
surpreendentes na diminuição do número de sem-abrigo (e na redução dos
custos socioeconómicos a eles associados) nas ruas de Nova Iorque, e em
outros locais onde foi implementado, eis que algumas vozes portuguesas se
têm elevado e dito que são estratégias que partem de uma perspectiva inversa
à nossa (portuguesa). Para estas “vozes”, a pessoa sem-abrigo, antes de ir para
uma casa, terá de adquirir competências pessoais e sociais para poder gerir e
manter uma habitação, num processo de reeducação social, passando,
obrigatoriamente, por diferentes patamares até que atinja a “perfeição”,
patamar essencial para poder aceder a uma casa.
Se não formos open-minded para aceitar novas soluções e novos desafios
(até, já testados e avaliados!), os técnicos das Equipas de Rua, sem nada para
oferecer de novo, continuarão a “encaixar” o silêncio, estratégico, de
impotência, e/ou desistência, das pessoas sem-abrigo, da cidade de Lisboa.
165
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