estado classe trabalhadora e burguesia industrial (1920-1945) - boris fausto

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ESTADO, CLASSE TRABALHADORA E BURGUESIA INDUSTRIAL (1920-1945): UMA REVISÃO Boris Fausto* (*) Agradeço a leitura e as observações de Carlos e Cynira Fausto e de Luiz Felipe de Alencastro. O tema da classe operária sob sua forma clássica saiu de moda. Quase já não há estudos com preocupações generalizantes, voltados para as ques- tões da formação do proletariado, da sua inserção no sistema sócio-político, das formas organizatórias convencionais (sindicatos e partidos), dos movi- mentos sociais ostensivos — com a greve em primeiro lugar —, das gran- des linhas ideológicas. Além disto, a classe operária foi incorporada como objeto conspí- cuo de estudo acadêmico, dando lugar a outros setores sociais como va- dios, criminosos, feiticeiras, em vias aliás de rápida nobilitação. As frontei- ras entre o público e o privado se confundiram. Pouca gente sustentaria hoje que o estudo do gesto, do traje, do "sentimento" mais do que das "mentalidades" não tem uma profunda significação social. Quando o te- ma da classe trabalhadora aparece em cena, o recorte se ajusta às novas inclinações. O feminismo incentivou os trabalhos sobre a mulher operá- ria, a antropologia apontou o caminho da análise ritual de cerimônias e manifestações, as formas de dominação e representação no nível da fábri- ca ganharam relevância, a vida do operário enquanto consumidor surgiu como a outra face da preocupação com a vida no processo específico de trabalho. A exploração destes caminhos é de inegável importância. Através dela vamos saindo de um mar de preconceitos e verdades sabidas. Apren- demos ou recuperamos constatações de que obviamente uma sociedade desigual não se nutre apenas de desigualdades de classe ou de raça, de que a análise formal de manifestações nos diz tanto ou mais acerca de seu sen- 6

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  • ESTADO, CLASSE TRABALHADORA

    E BURGUESIA INDUSTRIAL (1920-1945):

    UMA REVISO

    Boris Fausto* (*) Agradeo a leitura e as

    observaes de Carlos e Cynira Fausto e de Luiz Felipe de Alencastro.

    O tema da classe operria sob sua forma clssica saiu de moda. Quase j no h estudos com preocupaes generalizantes, voltados para as ques- tes da formao do proletariado, da sua insero no sistema scio-poltico, das formas organizatrias convencionais (sindicatos e partidos), dos movi- mentos sociais ostensivos com a greve em primeiro lugar , das gran- des linhas ideolgicas.

    Alm disto, a classe operria foi incorporada como objeto consp- cuo de estudo acadmico, dando lugar a outros setores sociais como va- dios, criminosos, feiticeiras, em vias alis de rpida nobilitao. As frontei- ras entre o pblico e o privado se confundiram. Pouca gente sustentaria hoje que o estudo do gesto, do traje, do "sentimento" mais do que das "mentalidades" no tem uma profunda significao social. Quando o te- ma da classe trabalhadora aparece em cena, o recorte se ajusta s novas inclinaes. O feminismo incentivou os trabalhos sobre a mulher oper- ria, a antropologia apontou o caminho da anlise ritual de cerimnias e manifestaes, as formas de dominao e representao no nvel da fbri- ca ganharam relevncia, a vida do operrio enquanto consumidor surgiu como a outra face da preocupao com a vida no processo especfico de trabalho.

    A explorao destes caminhos de inegvel importncia. Atravs dela vamos saindo de um mar de preconceitos e verdades sabidas. Apren- demos ou recuperamos constataes de que obviamente uma sociedade desigual no se nutre apenas de desigualdades de classe ou de raa, de que a

    anlise

    formal

    de

    manifestaes

    nos

    diz

    tanto

    ou

    mais

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    tido do que objetivos racionais expressos, de que as classes dominadas podem encontrar formas organizatrias no redutveis aos sindicatos ou aos partidos, de que as representaes simblicas e as determinaes ma- teriais advindas da "vida como ela ", no dia-a-dia do trabalho e fora dele, mostram uma classe operria bem diversa da teleologia militante. Para fi- car em um aspecto, torna-se difcil compreender e mais ainda prever mo- vimentos sociais em um pas caracterizado pela baixa representatividade de sindicatos e partidos, e por longos perodos repressivos, sem conhecer a organizao molecular no nvel das fbricas. Assim, se h ainda alguma coisa desconhecida e interessante a apreender nas greves mais importan- tes da Primeira Repblica, precisamente a forma de sua preparao e de- sencadeamento no nvel de base. Da mesma forma, no se pode entender a irrupo da classe operria na cena poltica em 1979, sem conhecer algo das redes informais que foram se gestando nos piores tempos do regime autoritrio.

    Mas a volta s questes clssicas na temtica da classe operria tem sua razo de ser. Em primeiro lugar, porque estas questes so centrais pa- ra o entendimento no s dos destinos especficos de uma classe social, como da prpria formao do Brasil contemporneo. Em segundo lugar, porque o volume de trabalho realizado, o acmulo de conhecimento e de iluses desfeitas justifica, no um, mas vrios balanos do "estado atual das questes". Sem pretender ir alm de um balano inicial, identifico neste texto os temas a meu ver mais relevantes para o entendimento da insero da classe trabalhadora no sistema scio-poltico entre a Primeira Repbli- ca e o decnio posterior Revoluo de 1930. Percorro as controvrsias centrais em torno deles, quando possvel qualifico alguns pontos e tomo posies, com a preocupao de dar s discordncias contedo estritamente intelectual.

    Comeo com o pressuposto bvio de que a questo social, para usar a velha e sedutora denominao, se encontra inscrita no processo de cons- tituio das sociedades capitalistas. Este processo variou muito de pas a pas e no se caracterizou nunca como um momento de assalto ao Estado, por mais importantes que tenham sido episdios como a Revoluo Glo- riosa na Inglaterra ou a Revoluo Francesa. A diferenciao diz respeito natureza das foras envolvidas bem como ao alcance da transformao. Em casos de industrializao tardia como o do Japo e da Alemanha, esta se deu sobretudo pela ao do Estado em aliana com um setor moderni- zador das classes possuidoras e no via mobilizao das classes populares e a ascenso de uma nova classe dominante em oposio velha ordem definida no sem controvrsias como feudal. O Brasil se aproxima do pri- meiro modelo, guardadas as diferenas decorrentes do alcance da trans- formao, da fragilidade do setor social modernizador por mais que se tenha revalorizado o peso da burguesia industrial e da inexistncia de uma sociedade feudal a ser destruda. Seja como for, tornou-se possvel falar de constituio do capitalismo como um processo no envolvendo

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    necessariamente uma revoluo burguesa em sentido estrito1. Apesar dis- to, o uso da expresso "revoluo" me parece adequado, embora tenha sentido diverso da sua significao original, reservada aos fenmenos vio- lentos e rpidos, associados ascenso ao poder de uma classe revolucio- nria. Estamos diante de uma revoluo sobretudo por seus resultados. Para usar uma frmula sinttica, eles correspondem, em maior ou menor grau, a um conjunto de transformaes econmicas, tecnolgicas, sociais, psi- coculturais e polticas que instauram um novo modo de produo e de organizao da sociedade2.

    Se a questo social est dada no processo de constituio da socie- dade capitalista, como ela se concretiza empiricamente nas condies es- pecficas da sociedade brasileira? A resposta a esta indagao, a um tempo pomposa e vital, passa pela anlise da formao social do pas e pela con- siderao mais estrita das relaes entre a classe trabalhadora, a burguesia industrial e o Estado. Assumo o ponto de vista tradicional, mais adiante discutido, de que estas relaes tm um carter na Primeira Repblica e outro diverso, no perodo posterior Revoluo de 1930. Vejo o episdio revolucionrio como um momento de inflexo no tratamento da questo social, em primeiro lugar por parte do Estado, com profundas consequn- cias na interao das classes e na construo da identidade da classe operria.

    Distinguindo para fins de anlise, o comportamento do Estado, da classe operria e da burguesia industrial no perodo da Primeira Repbli- ca, saliento alguns traos gerais conhecidos. Desde o incio da Repblica h sinais de considerao da questo operria na esfera institucional. Eles se tornam mais claros, em consequncia da presso exercida pelos movi- mentos reivindicatrios dos anos 1917-1920. Seria inadequado identificar este interesse como um propsito do Poder Executivo. As iniciativas de aprovao de uma legislao do trabalho pelo Congresso Nacional (oito horas, frias, regulamentao do trabalho das mulheres e dos menores etc.), em meio vaga grevista, embora contem s vezes com o apoio do gover- no paulista, nascem sobretudo isoladamente, de deputados como Maur- cio de Lacerda, Nicanor Nascimento, Henrique Dodsworth, sensveis s demandas dos trabalhadores. Quase nada resulta de prtico nestes anos finais da dcada de 10, a no ser a criao da Comisso de Legislao So- cial da Cmara dos Deputados (fins de 1918) e do Departamento Nacional do Trabalho (1917) que no chega a funcionar na Primeira Repblica. A lei de acidentes do trabalho aprovada em 1919, alm de muito limitada em seu alcance, vem propiciar a formao de companhias de seguros, algu- mas delas controladas por dirigentes de associaes industriais3.

    Mas a onda grevista de 1917-1920 ilumina a existncia da classe tra- balhadora urbana para bem ou para mal, ou melhor mais para mal do que para bem. A partir dela se desdobra uma ao que tem um duplo aspecto repressivo e regulatrio, ganhando destaque a ao repressiva. A repres- so intermitente do movimento operrio muda de carter, resultando em

    (1) Moore Jr., Barrington Social Origins of Dic- tatorshp and Democracy. Penguin Books, 1969; Otvio Guilherme Velho Capitalismo Autoritrio e Campesinato. So Paulo, Difel, 1976.

    (2) Fernandes, Florestan A Revoluo Burguesa no Brasil. Rio de Janeiro, Zahar, 1975.

    (3) Gomes, Angela Maria de Castro Burguesia e Legislao Social no Bra- sil. Tese de Mestrado. Rio Iuperj, 1978.

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    uma atividade em vrias frentes. Atividade mais sistemtica, visando sedes sindicais ou associaes de trabalhadores sobretudo de tendncia anarquis- ta; endurecimento da legislao especfica ou introduo de nova legisla- o que permita legalizar estas iniciativas; campanha nacionalista promo- vida no s pelo Estado como pela sociedade ilustrada, com o objetivo de isolar e expulsar do pas os militantes estrangeiros mais conhecidos, pintados como agitadores aptridas.

    A expresso mais eloquente do propsito regulatrio se encontra na competncia conferida ao Congresso para legislar sobre trabalho, na reforma constitucional de 1926. Em termos prticos, porm, as iniciativas governamentais so episdicas. Quando se concretizam, tm alcance seto- rizado. Medidas gerais acabam sendo postergadas. A atividade legislativa concentrada principalmente no perodo Bernardes mostra isto com clare- za. Apesar de regulamentado em 1921, o Departamento Nacional do Tra- balho no chega a funcionar na Primeira Repblica. O Conselho Nacional do Trabalho, institudo em abril de 1923, abre espao ao lobby industrial que influencia diretamente as condies de aplicao (ou melhor de no aplicao) da legislao aprovada pelo Congresso. A lei de frias e o Cdi- go de Menores no so cumpridos e a tentativa de aprovar um Cdigo do Trabalho fracassa. Restam umas poucas medidas setoriais, como a lei de fevereiro de 1923 instituindo as caixas de aposentadoria e penses dos fer- rovirios, uma rea estratgica para a produo agrcola.

    No que diz respeito ao movimento operrio, no demais comear especulando sobre a sua simples existncia no perodo considerado. Um movimento social de classe pressupe lideranas e bases razoavelmente articuladas; um programa envolvendo objetivos de curto e longo prazo, uma estratgia enfim. No seriam afinal de contas as aes coletivas dos trabalhadores urbanos na Primeira Repblica exploses de contornos in- definidos, impulsionadas por condies insuportveis de sobrevivncia, quase sem liderana a no ser a formada precariamente no calor da hora? No seria a suposta vanguarda um punhado vociferante de anarquistas, so- cialistas, comunistas, cooperativistas ou o que seja, composto geralmente de figuras da classe mdia profissional, brigando entre si, tentando organi- zar quem no quer ser organizado e falando mais ou menos sozinhos?

    Aps tantas teses universitrias sobre o movimento operrio na Pri- meira Repblica, estas interrogaes continuam no ar. Elas tm o mrito de chamar a ateno para o fato de que no mais possvel analisar o mo- vimento social dos trabalhadores sem distinguir entre organizadores, or- ganizados e a massa majoritria dos que no entram nestas duas catego- rias. preciso constatar, em termos bem concretos, se os "organizadores" organizam alguma coisa ou constituem grupos sem representatividade, cada qual se autodefinindo como "vanguarda", se o rtulo de partido operrio corresponde em algum grau ao contedo (ser preciso dizer que no h "partidos operrios" sem operrios?). Se as respostas forem positivas,

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    preciso estabelecer os laos moventes que se formam entre organizado- res, organizados e a grande massa.

    Penso, como muita gente, que uma srie de fatores negativos con- dicionou o surgimento de um movimento operrio na Primeira Repbli- ca. Estes fatores vo desde as caractersticas mais gerais da formao social do pas at as percepes das correntes organizatrias, passando pelas vi- cissitudes do mercado de trabalho que tornou instvel a prpria condi- o de operrio pela diversidade das situaes de trabalho etc. No quero dizer que estes condicionantes determinem necessariamente um certo ti- po de ao coletiva ou de insero das classes trabalhadoras no sistema scio-poltico. Como diz Maria Herminia Tavares de Almeida, a partir de um quadro semelhante mas em face de outras realidades histricas ganha- ram fora, por exemplo, vanguardas polticas jacobino-blanquistas dispostas a substituir poderosos movimentos de massa inexistentes, ou partidos ope- rrios com peso institucional, compensando assim a fraqueza do movimen- to de base e dando ressonncia, por via indireta, organizao sindical4.

    Nas condies imperantes no Brasil ps-escravista, estas alternati- vas no eram viveis. Vista em grandes linhas, a organizao operria caracterizou-se pela fragilidade: os sindicatos, quando existentes, tinham pouca representatividade; as tendncias polticas que tentaram organizar partidos operrios no chegaram a ser significativas em uma escala de massa ou por sua fora institucional. O anarquismo oscilou entre fugazes mo- mentos de real influncia e perodos de ostracismo, de modo que a ex- presso "hegemonia", por mim empregada no passado, me parece hoje de- masiado forte para definir sua presena nos meios operrios, mesmo em So Paulo5.

    Se definirmos a classe trabalhadora na escala exigente de Maria Her- minia, teramos mesmo de concordar com ela quando afirma ser mais cor- reto falar neste perodo em trabalhadores fabris, trabalhadores em servi- o, subempregados de todo tipo do que em classe operria. De fato, difi- cilmente seria possvel pens-la como fora estruturada no plano sindical e de alguma forma unificada na ao poltica em direo ao Estado6. Mas, em nvel mais modesto, possvel falar na existncia de um movimento operrio na Primeira Repblica, se os parmetros para medi-lo forem me- nos ambiciosos. Com variaes de lugar, de setor e de tempo, os organiza- dores organizavam alguma coisa, tinham em certas situaes influncia di- fusa na grande massa, propunham objetivos bsicos coerentes a alcanar, buscados persistentemente ao longo dos anos. O perodo 1917-1920 no correspondeu apenas a um pipocar de greves desesperadas mas a uma rica conjuntura de ascenso de um movimento social preexistente. Se havia in- telectuais no sentido genrico da expresso empenhados na organi- zao da classe trabalhadora, a presena de operrios no era desprezvel e chegava a ser s vezes dominante na rea sindical ou no pequeno PC dos anos 20.

    (4) Almeida, Maria Hermi- nia Tavares de Estado e Classes Trabalhadoras no Brasil 1930-1945. Tese de Doutoramento. So Paulo, USP, 1978, p. 11.

    (5) Um dos primeiros au- tores a pr em dvida o alcance da influncia anarquista foi Michael M. Hall em "Immigration and the Early So Paulo Working Class". Jahrbuch fuer Geschichte von Staat. Wirtschaft und Gesells- chaft Lateinamerikas, 12, 1975, pp. 393-407. (6) Almeida, op. cit., p. 163.

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    O terceiro aspecto da abordagem da "questo operria" na Primei- ra Repblica diz respeito a seu tratamento pela burguesia industrial. A ca- racterizao desta um dos tpicos mais discutidos e controversos da his- toriografia brasileira. Em si mesmo, ele mereceria toda uma reflexo. Aqui, abordo apenas determinados pontos bsicos para a comprenso deste texto.

    Alguns dos temas mais importantes, abrangendo particularmente o perodo de nossa anlise, dizem respeito ao grau de homogeneidade e ar- ticulao da frao de classe, sua capacidade de interveno poltica, seu papel como promotora do desenvolvimento econmico. Desde logo e de passagem, convm ressalvar que a discusso se refere quase sempre aos grandes industriais, ou seja, um punhado de homens e de associaes. Pouco ou nada sabemos dos estratos mais baixos do setor, muito fragmentados e, possivelmente, destitudos de peso poltico significativo.

    A tendncia que acentua a desarticulao da burguesia industrial e, no limite, seu "apoliticismo", ressaltando ao mesmo tempo o significado do Estado como agente da industrializao, sofreu a crtica de uma srie de trabalhos nos ltimos anos. Com perspectivas e nfases s vezes bas- tante diversas, estes trabalhos tm em comum uma linha em que se ressal- ta a capacidade organizatria, a interveno ativa no mundo da poltica e mesmo o importante papel dos empresrios, sem descartar o do Estado, na formulao dos projetos desenvolvimentistas7.

    Enfrentando a questo, como ficam meus textos anteriores sobre o assunto? Minha constatao do apoio Velha Repblica por parte dos industriais no episdio de 1930 novidade h quase vinte anos, hoje evi- dncia emprica vinha associada a uma viso da burguesia industrial si- tuada a meio caminho entre dois plos. Em sntese, considerava a frao de classe suficientemente articulada para pressionar no plano poltico em defesa de seus interesses especficos, como o caso tpico da proteo tarifria. Ao mesmo tempo, no perodo anterior a 1930, sobretudo em So Paulo, via-a subordinada hegemonia da burguesia cafeeira, inclusive no plano poltico, sob o guarda-chuva do PRP. Assinalava que a formao so- cial do pas dera origem a classes dominantes regionais, no interior das quais as vrias faces em meio aos atritos acabavam por se compatibili- zar, e no a classes dominantes nacionais, caracterstica alis revelada nos limites geogrficos dos partidos polticos. No contexto do ps-30, acen- tuava o papel do Estado na promoo do desenvolvimento e negava, em uma formulao mais ampla, a capacidade da burguesia industrial dos pa- ses ento chamados de subdesenvolvidos para elevar-se alm da defesa de seus interesses particulares e formular um projeto de desenvolvimento8.

    Hoje, depois de tantos avanos no conhecimento histrico, preci- so retificar esta anlise em alguns pontos. Os estudos mais recentes de- monstram que a articulao dos empresrios, pelo menos a partir da dca- da de 20, no terreno da organizao do trabalho no interior das fbricas e na defesa de seus interesses especficos (proteo tarifria, taxa cambial etc), tinha alcance maior do que supunha. Demonstram tambm, com re-

    (7) Ver especialmente Luiz Werneck Vianna Libe- ralismo e Sindicato no Brasil. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1978; Eli Diniz Empresrio, Estado e Ca- pitalismo no Brasil (1930-1945). Rio de Janei- ro, Paz e Terra, 1978 e so- bretudo a slida tese de Maria Antonieta Leopoldi Industrial Associations and Politics in Contempo- rary Brazil. St. Antony's College, Oxford, 1984.

    (8) Fausto, Boris A Re- voluo de 1930. Histria e Historiografia. So Pau- lo, Brasiliense, 1969; Pe- quenos Ensaios de Hist- ria da Repblica: 1889-1945. Cadernos Ce- brap, no 10.

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    lao a meados dos anos 30 e dcada de 40; que a influncia da frao de classe do aparelho de Estado cresceu muito e teve peso considervel, a ponto de se chegar, a partir dos anos cinquenta, a um elevado grau de compatibilizao entre ambos.

    Diga-se de passagem que, pelo menos para anos mais recentes, vejo o processo de implantao de um projeto hegemnico sob uma tica me- nos compartimentada do que aquela que lida com os elementos classe ou frao de classe de um lado e Estado de outro. Como as anlises de Fer- nando Henrique Cardoso mostraram, um projeto hegemnico passa nas condies atuais pelo entrelaamento conflitivo entre foras sociais diversas classes ou fraes de classe dominantes na rea privada, o aparelho e a "burguesia" de Estado, os grandes centros industriais e financeiros internacionais.

    Voltando aos marcos cronolgicos deste texto, penso ser necess- rio distinguir porm entre a capacidade de interveno poltica da bur- guesia industrial por objetivos determinados ao longo das primeiras dca- das do sculo, de sua capacidade para formular um projeto de hegemonia. Evito a citao ilustre de Gramsci e lembro a formulao explcita de Leo- poldi segundo a qual o projeto de hegemonia da burguesia industrial deve ser visto em funo do desempenho desta em diversas reas da sociedade ao longo de um perodo histrico. Importa considerar no tanto o discur- so das lideranas mas, sobretudo, a ao burguesa com relao ao Estado, ao processo de "policy making", os trabalhadores, a mdia, o sistema edu- cativo, bem como a posio do setor industrial no interior do bloco dirigente9.

    A partir destas premissas, discordo da afirmao de Leopoldi de que podemos falar de um contnuo processo de formulao de um projeto he- gemnico pela burguesia industrial ao longo da primeira metade deste s- culo, quando se acompanha a execuo de muitas de suas propostas. A leitura de um progressivo processo de conquista da hegemonia, envolvendo necessariamente a deciso empresarial, tem algo de marcha inexorvel que no me parece dar conta da realidade. Para ficar nas formulaes mais ge- rais, continuo a achar que o maior conhecimento emprico no contraria o entendimento de que a burguesia industrial manteve uma posio su- bordinada aos interesses agrrios onde estes eram decisivos (caso de So Paulo) e organizou-se para fins limitados at pelo menos 1930. Afora isto, em seu ncleo economicamente mais relevante, a frao de classe s se libertou do casulo regional atravs de um processo contraditrio no curso dos anos 30. alis importante ressaltar as distines entre a burguesia industrial paulista e carioca, to bem assinaladas por Leopoldi, revelando o maior acesso das associaes industriais do Rio de Janeiro ao governo federal comparativamente a So Paulo at pelo menos o final dos anos vinte10. Afora isto, a sustentao do meu ponto de vista no nega a neces- sidade de se dar maior relevncia crescente diversificao de interesses em So Paulo naqueles anos, expressa, por exemplo, na formao do CIESP

    (9) Leopoldi, op. cit., p. 387.

    (10) Leopoldi, op. cit., p. 361.

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    em 1928, em consequncia da luta dos industriais com os grupos do co- mrcio na Associao Comercial. No nega tambm a importncia de se conhecerem melhor as consequncias desta diversificao no plano partidrio11.

    Do ponto de vista estritamente poltico, nada melhor do que o epi- sdio de 1930 para revelar como a burguesia industrial no recusava a po- ltica, mas tinha dela uma viso puramente instrumental que era antes si- nal de fraqueza do que de fora. Leopoldi mostra muito bem que o apoio do CIESP e do CIB candidatura Jlio Prestes e a Washington Luiz no cur- so da revoluo se transformou rapidamente em uma atitude de simpa- tia pelo novo governo12. Mas, se certo que a ao da burguesia indus- trial se orientava por seus interesses de curto e mdio prazo, sem descartar o pragmatismo oportunista, no menos certo que o exemplo nos mostra tambm os representantes de um setor social correndo atrs dos detento- res do poder, velhos ou novos.

    Assim colocada a questo geral, como encarar o campo mais restri- to das relaes entre o empresariado e a classe operria? Em seu estudo pioneiro sobre os industriais de So Paulo, Warren Dean constatou a exis- tncia, nos anos 20, de duas tendncias bsicas: um comportamento "be- haviorista", que tratava os operrios como extenso da maquinaria, e ou- tro paternalista, convertido em forma de explorao racional de mo-de- obra a partir do momento em que se torna autoconsciente13. Sugeriu tam- bm que o propsito de controlar as aes coletivas dos trabalhadores nas- ceu no curso da vaga reivindicatria dos anos 1917-1920 como mostra o exemplo do Centro dos Industriais de Fiao e Tecelagem de So Paulo, fundado em 1919. Desde suas primeiras reunies, a associao expressou o desejo de "estudar todas as questes trabalhistas, a legislao do traba- lho e os meios prticos de solucionar as greves"14. Sem estabelecer uma relao muito clara entre o comportamento dos industriais no plano da fbrica e suas opes polticas, Dean salientou que o liberalismo no exer- ceu muita influncia entre os industriais paulistas durante as dcadas de 1920 e 1930. Pelo contrrio, a partir dos anos 20, comeou a surgir entre eles um forte interesse pelas variedades do fascismo europeu e conseqen- temente pelo corporativismo15.

    Sob o ltimo aspecto, Werneck Vianna desenvolveu a crtica mais articulada s concepes de Dean, sustentando que at o fim dos anos 20 a postura dos industriais em relao aos trabalhadores caracterizou-se pe- lo liberalismo de inspirao "fordista". Vianna localiza o que considera o equvoco de Dean na "inusitada ideologizao do liberalismo", que o tor- na incapaz de associar liberalismo com autoritarismo, omitindo toda a his- tria da formao do capital no ocidente europeu e o leva a associar libe- ralismo e democracia16.

    A anlise de Leopoldi sobre o modelo de associao adotado pelos empresrios bastante til para esclarecer a controvrsia. Ela sustenta que, desde os anos 20, embora em estado embrionrio, o modelo assumiu as

    (11) Ver Warren Dean A Industrializao de So Paulo, Difel, 1971, e espe- cialmente a tese de douto- ramento de Mauricio Font, Planters and the Sta- te: the Pursuit of Hege- mony in So Paulo, Brazil (1889-1930). Un. of Michi- gan, 1983.

    (12) Leopoldi, op. cit., p. 362 e segs.

    (13) Dean, op. cit., pp. 167-168.

    (14) Dean, op. cit., pp. 174-175.

    (15) Dean, op. cit., p. 184 e segs.

    (16) Vianna, op. cit., p. 75.

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    caractersticas do "corporativismo privado", em uma combinao de asso- ciaes privadas e de um alto nvel de cooperao com as autoridades, com nfase no primeiro aspecto17. Diga-se de passagem que, em continuidade, o modelo ganhou concreo no ps-30 no sem lutas e ajustes com o Es- tado. Em 1943, a FIESP e a FIRJ tinham se tornado rgos sindicais, en- quanto eram mantidos o CIESP e o CIRJ na qualidade de organizaes pri- vadas reconhecidas pelo Ministrio do Trabalho como "corpos tcnicos e consultivos do governo"18.

    Penso ser necessrio distinguir entre o comportamento empresa- rial com relao classe operria e a sua estruturao representativa. Sob o primeiro aspecto, considero que Vianna tem razo ao assinalar o libera- lismo dos industriais no campo das relaes de trabalho, em especial no perodo pr-30, com a ressalva de que se tratava de um liberalismo prag- mtico sem maiores preocupaes doutrinrias. Nas condies de um con- fronto de classes claramente desigual, o liberalismo significava em termos concretos conceder o menos possvel, tanto no plano dos direitos dos tra- balhadores como das normas internas da organizao do trabalho. Foi em nome do liberalismo que os industriais bloquearam nos anos 20 a aplica- o da lei de frias e do Cdigo de Menores. No terreno doutrinrio, o to propalado "fordismo" dos industriais deve ser visto com cautela. In- fluenciados pelo pensamento de Henry Ford para alm das meras citaes reverenciais, nem sempre seguiram seu receiturio. Certamente no se en- cantaram com a violao do comportamento "natural" do mercado que deveria expressar-se no pagamento de salrios altos, superiores ao preo derivado da oferta e procura do fator trabalho; nem o padro cultural do industrial brasileiro exclua um calculado paternalismo, ingrediente intei- ramente estranho ao liberalismo fordista, na expresso de Werneck Vianna.

    Sob o segundo aspecto, ainda que as leituras de Manoilescu ou a atrao de Matarazzo pelo fascismo italiano no fossem desprezveis, o mo- delo predominante de representao da burguesia industrial era e conti- nuou sendo o do "corporativismo privado", como mostrou Leopoldi. Es- te modelo se opunha claramente ao corporativismo estatal. Isto fica de- monstrado, entre outros exemplos, pelos ataques lei de sindicalizao de 1931 e pela longa resistncia tentativa de se impor a camisa-de-fora corporativa aps o Estado Novo19.

    Resumindo ao mximo e generalizando a caracterizao do Estado, da classe trabalhadora urbana e da burguesia industrial no primeiro pero- do republicano, observo o seguinte. Sem ignorar as importantes qualifica- es de Winston Fritsch sobre as relaes entre o Estado e os interesses agrrios, penso que subsiste a definio tradicional do Estado como libe- ral oligrquico, com predominncia destes interesses20. O desenvolvimen- to industrial e as relaes de trabalho urbano no so questes vitais para o Estado, o que no sinnimo de desinteresse ao menos com relao s ltimas. Se o laissez faire j constituiria em si mesmo a afirmao de uma poltica, ocorre ao longo do perodo algo diverso. O problema do

    (17) Leopoldi, op. cit., p. 48. Para a noo de cor- porativismo privado ver Guillermo O'Donnell Estado y Corporativismo: sobre Algunos Nuevos As- pectos de la Dominacin Poltica en America Lati- na, Buenos Aires, Di Tel- la, 1974.

    (18) Leopoldi, op. cit., p. 63.

    (19) Veja em Leopoldi, p. 56 a resistncia das asso- ciaes industriais ao Decreto-Lei no 1402, de 5.6.1939, regulando em li- nhas corporativistas a re- presentao sindical.

    (20) Fritsch, Winston Aspects of Brazilian Eco- nomic Policy under the First Republic. Tese de Doutoramento Cambrid- ge, Inglaterra, 1983.

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  • NOVOS ESTUDOS N 20 - MARO DE 1988

    trabalho urbano tem um tratamento pontual embora crescente. H coop- tao ou represso de determinados setores, em determinadas pocas, mas no h um projeto nacional com relao classe operria, visando a um grau maior ou menor de incorporao cidadania. Isto no ainda neces- srio seja pela fraqueza das presses de baixo, seja pela importncia se- cundria da ordem industrial, seja pela natureza do jogo poltico, levando-se em conta no plano eleitoral a inexistncia do voto obrigatrio.

    Com relao classe trabalhadora, constatamos a existncia de or- ganizaes com objetivos coerentes cuja capacidade de mobilizao era restrita, ainda que seja necessrio distinguir entre setores, regies, cida- des, momentos histricos etc. As correntes radicais aparecem como as maio- res e s vezes nicas inspiradoras das greves, mas no so apenas elas que expressam as reivindicaes operrias. Tendo em vista esta circunstncia, a existncia de uma massa de trabalhadores destitudos e desorganizados, o fracasso dos sindicatos no sentido de garantir de forma duradoura con- quistas obtidas nas greves, fcil inferir com a imensa vantagem da an- lise retrospectiva a existncia de um campo aberto cooptao da maio- ria da classe trabalhadora pelo Estado.

    Limitada na sua influncia poltica, a burguesia industrial mostra-se suficientemente capaz de bloquear as iniciativas globais de melhora das condies de vida e de trabalho da classe operria, independentemente da aceitao retrica dos estudos para se aprovar uma legislao trabalhis- ta. Revela-se tambm apta a controlar o mundo da fbrica, aps o alarme provocado pelas greves do perodo 1917-1920, combinando formas racio- nalizadoras de organizao do trabalho com uma atividade repressiva em ntima colaborao com o aparelho de Estado.

    A anlise conjuntural dos anos imediatamente anteriores a 1930 importante para definir as relaes instaladas no ps-30, no mbito de uma outra estrutura poltica no dominada pelos interesses agrrios. Afora isto, a conjuntura merece exame, sob o ngulo de uma leitura original feita por Edgar De Decca que tem tido influncia nos ltimos anos21.

    Assinala De Decca a existncia em So Paulo, a partir de 1928, de um processo revolucionrio, definido por pelo menos trs propostas de revoluo, vindas de agrupamentos diferentes: o Partido Democrtico, os "tenentes" e o Bloco Operrio Campons (BOC). Se as propostas de revo- luo eram diferentes e divergentes, produzindo um conflito de classes, o processo se definia "devido possibilidade de existncia de uma 'dire- o' dos acontecimentos cujo suporte, englobando aquilo que as propos- tas polticas tinham de mais geral, est substantivado numa categoria de revoluo a revoluo democrtico-burguesa"22. A opo revolucion-

    (21) De Decca, Edgar O Silncio dos Vencidos. So Paulo, Brasiliense, 1986, 3a ed.

    (22) De Decca, op. cit., p. 79.

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  • ESTADO, CLASSE TRABALHADORA E BURGUESIA INDUSTRIAL (1920-1945)

    ria, importando profundas transformaes sociais, parece ao autor in- teiramente vivel. Ao justificar a limitao de sua anlise ao mbito de So Paulo, diz ele que, em 1928, "existia em So Paulo uma classe operria ca- paz de carregar uma proposta poltica de revoluo democrtico-burguesa"; e que, "em So Paulo foi jogada intensamente a questo democrtica no mbito do capital e do trabalho, isto , entre o proletariado e a burguesia industrial"23. A frase grifada parece indicar que no s se jogou em So Paulo os destinos de uma revoluo democrtico-burguesa, mas de um cer- to tipo de revoluo democrtico-burguesa, sob a direo do proletariado e tendo como um de seus eixos o confronto polar de classe.

    O organizador da revoluo democrtico-burguesa seria essencial- mente o BOC, definido como partido da classe operria, ou partido elei- toral da classe operria24. Suas concepes leninistas teriam levado entre- tanto a uma errnea compreenso do carter da revoluo democrtico- burguesa. Segundo tais concepes, a revoluo seria levada a cabo fun- damentalmente pelo proletariado e pelo campesinato contra o feudalismo e o capitalismo, suspendendo deste modo o conflito entre o capital e o trabalho. Esta postura teria possibilitado uma fugaz aliana do BOC com as outras tendncias revolucionrias, fugaz porque a prtica cotidiana no interior da classe operria obrigou o BOC a reconhecer a dura realidade da convivncia com o capital. A decidida transgresso do jogo poltico por parte da classe trabalhadora consistiu na mobilizao do operariado numa greve de mais de 70 dias em So Paulo e se refletiu na organizao de uma Confederao Geral do Trabalho com mais de 60 mil operrios sindicalizados25.

    A partir deste ponto, no claro o que teria levado derrota a pers- pectiva revolucionria. A concepo equivocada da revoluo democrtico- burguesa que no s era limitada em seu alcance como em termos concre- tos delegava aos tenentistas da Coluna Prestes a revolta no campo? Os pro- blemas resultantes das presses da burguesia industrial, arregimentada po- liticamente no CIESP, e da fraqueza de setores da prpria classe operria infensos arregimentao poltico-partidria? Na pgina final de seu livro, De Decca lana mesmo dvidas acerca da viabilidade da revoluo de- mocrtico-burguesa ao introduzir o que chama de tema da democracia: "o problema era, portanto, no s conter uma possibilidade de revoluo, mas principalmente impedir o avano da arregimentao operria em torno do BOC um partido de trabalhadores , questo que desmascarou pro- gressivamente as foras polticas que organizavam as classes dominantes e os setores mdios urbanos, fossem elas governistas ou oposicionistas"26.

    Seja como for, sobre os escombros da derrota do proletariado e de seu partido, as foras polticas triunfantes em 1930 constroem o fato "re- voluo de 1930", criam o "fantasma das oligarquias", o "tenentismo" e outras categorias ideolgicas. Com estes elementos, a classe dominante es- trutura uma memria histrica que varre da cena a memria dos vencidos e

    a

    verdadeira

    opo

    revolucionria

    existente

    em

    1928 e no em 1930.

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    (23) De Decca, op. cit, p. 80. Grifado no original.

    (24) De Decca, op. cit., pp. 81 e 100.

    (26) De Decca, op. cit., p. 205.

    (25) De Decca, op. cit., p. 105.

  • NOVOS ESTUDOS No 20 - MARO DE 1988

    No campo da histria scio-poltica, mesmo quando pensada em grandes linhas, hoje trivial que no se pode ignorar aquilo que se passa nos cantos obscuros de um palco iluminado. Para ficar em um pequeno e localizado exemplo, a histria da campanha eleitoral de 1930 inclui no apenas a histria da disputa entre a Aliana Liberal e a situao, mas as can- didaturas lanadas pelo PC e a represso campanha do partido, embora o peso destes dois elementos seja diverso. Tambm fundamental identi- ficar as grandes operaes de reconstruo da memria histrica como instrumento de poder. A reconstruo operada pelo getulismo no curso do Estado Novo sobre a natureza da Repblica Velha e a situao da classe trabalhadora antes de 1930 base da ideologia de outorga da legislao trabalhista constitui na histria brasileira um dos exemplos mais nti- dos deste tipo de operao. Ouvir a voz dos grupos sociais ou correntes polticas vencidas em episdios que resultam em grandes transformaes ou inflexes histricas , por sua vez, condio para entender tais epis- dios em toda sua extenso. Como fazer a histria da Revoluo Russa sem ouvir a voz dos liberais, dos mencheviques, dos trotskistas, dos anarquis- tas etc. Como abordar a histria contempornea sem ouvir a voz dos "ci- devant", dos "enrags", dos emigrados russos, dos intelectuais anticastris- tas, todos vencidos e alis muitas vezes no pertencentes s classes domi- nadas? Mas para se tentar recuperar a voz dos vencidos necessrio identific-los adequadamente. Em 1928, no h ainda vencidos e se qui- sermos fazer a histria dos vencidos em 1930 precisaremos ouvir a voz dos "carcomidos", dos que assistiram horrorizados "invaso de So Pau- lo" por uma chusma de tenentes, nordestinos, mineiros e gachos, voz es- boada em raros livros como A Aventura de Outubro e a Invaso de So Paulo, de Renato Jardim. Mesmo porque, se a revoluo de 1930 importou em uma considervel mudana de rumos no tratamento da questo social e teve assim grande influncia nos destinos da classe trabalhadora, no ocor- reu naquela poca nenhuma batalha proletria que terminasse derrotada.

    Um dos problemas mais srios da anlise de Edgar De Decca con- siste em praticamente no levar em conta a histria social do pas, o que equivale a dar as costas a determinaes objetivas como a natureza do Es- tado, o peso dos diferentes grupos e classes, a insero da classe trabalha- dora na estrutura social e, sobretudo, a forma de constituio da socieda- de capitalista. Isto se reflete na busca de conflitos polares classe a classe como chave de explicao do Brasil dos anos 30. Na poca, estes conflitos so secundrios e os atores scio-polticos decisivos tm uma configura- o marcadamente regional, como fruto de diferenas que no nascem na Repblica mas so contemporneas ao surgimento do Brasil colnia. Em consequncia, a discusso sobre o contedo da revoluo burguesa apli- cada ao Brasil soa como o eco longnquo de outras realidades. De fato, mesmo a partir de uma anlise "classista", penso que De Decca se move no mbito do mesmo quadro de referncia das verses leninistas da revo- luo burguesa por ele fortemente criticadas, as quais apontam como des-

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  • ESTADO, CLASSE TRABALHADORA E BURGUESIA INDUSTRIAL (1920-1945)

    dobramento da matriz terica na direo de uma aliana entre proletaria- do e burguesia nacional contra o feudalismo27. Estas verses estavam cal- cadas na reproduo de um esquema hoje alis cada vez mais posto em dvida que se supunha aplicvel implantao do capitalismo no oci- dente europeu. De Decca assume a viso de esquerda da revoluo democrtico-burguesa, a partir das concepes de Rosa Luxemburgo, se- gundo as quais "a problemtica e o discurso da revoluo burguesa tm um campo explcito onde so definidos. Colocam-se no mbito da luta po- ltica do proletariado, no interior de uma sociedade burguesa, num mo- mento em que o conflito fundamental ocorre entre o capital e o traba- lho"28. Ainda nas palavras do autor, "Rosa Luxemburgo alcana o mago da questo. Revoluo burguesa definida desde um programa poltico a uma direo revolucionria do proletariado que seja capaz de cumprir, formalmente, objetivos contidos naquelas revolues do passado. Revo- luo burguesa torna-se uma determinada direo poltica suficientemen- te hbil para realizar, formalmente, o programa de transformao socialista"29.

    As concepes de Rosa Luxemburgo inspiram-se na conjuntura da Rssia e em particular no exemplo da Revoluo de 1905, sendo pelo me- nos problemtico transplant-las a outros contextos histricos. Reduzin- do o mbito da discusso, penso que, se a questo da democracia e da trans- formao social est no cerne da histria brasileira de nossos dias, ela no se colocou como ncleo decisivo em um longo passado, incluindo certa- mente o final dos anos 30. Mais ainda, no creio que a concepo de revo- luo democrtico-burguesa sob a direo do proletariado, pressupondo a noo de misso histrica da classe operria, tenha validade no quadro brasileiro se que tem em algum outro , o que no corresponde a recusar a possibilidade de uma transformao socialista no pas em um fu- turo imprevisvel.

    Mas preciso datar. O ano de 1928 surge na anlise de De Decca como uma data mtica, a partir da qual se abre uma conjuntura revolucio- nria, definida pelo enfrentamento de duas classes polares: a burguesia in- dustrial e o proletariado. Como ningum ignora, ocorre no pas a partir de meados dos anos 20 uma radicalizao de movimentos e correntes de opinio, atravs de elementos diversos, como o PC, a ala tenentista que vai se definindo pela esquerda, jornais como O Combate, A Vanguarda, A Batalha. Diga-se de passagem, repetindo uma constatao trivial, que a radicalizao ultrapassa 1930 e ganha mesmo maior fora aps aquela da- ta, no contexto da crise mundial, indo desembocar na Aliana Nacional Libertadora. O fenmeno no apenas brasileiro e tem mais a ver no nos- so caso com a viso de mundo de setores intermedirios do Exrcito e da classe mdia profissional, embora no seja estranho a uma parcela da classe trabalhadora. No final dos anos 20, as correntes radicais merecem o qualificativo porque visam derrubada do sistema oligrquico pela via armada, esboando um programa revolucionrio que pode ser considera-

    (27) De Decca, op. cit., nota da p. 65.

    (28) De Decca, op. cit., p. 64. Grifado no original.

    (29) De Decca, op. cit., p. 63. Grifado no original.

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  • NOVOS ESTUDOS N 20 - MARO DE 1988

    do imprecisamente democrtico-burgus. Entretanto, as condies de rea- lizao na prtica deste programa inexistiam pois, entre outras razes, uma revoluo democrtico-burguesa no Brasil pressuporia um ncleo organi- zador fortemente articulado, massas agrrias mobilizadas, um tipo de Esta- do em desagregao, condies de todo ausentes no Brasil dos anos 20 ou 30.

    Restringindo-me ao movimento operrio por fora da controvr- sia, cabe indagar qual a sua situao nos ltimos anos da dcada de 20. Em poucas palavras, ele comea a se rearticular aps a depresso que se seguiu derrota da vaga reivindicatria dos anos 1917-1920. A tentativa de avano dos comunistas no meio operrio alcana tambm alguns xitos. Mas o BOC no era "o partido da classe operria" ou "o partido eleitoral da classe operria", a no ser que, por definio, uma frente eleitoral orga- nizada pelo PC deva ser ungida como "partido da classe". Lanado a partir das eleies para a intendncia municipal do Rio de Janeiro, em maro de 1926, o Bloco Operrio rebatizado Bloco Operrio Campons teve um re- lativo xito sobretudo no Rio de Janeiro, com a eleio de Azevedo Lima para a Cmara Federal (fevereiro de 1927) e de Otvio Brando e Minervi- no de Oliveira para a Cmara Municipal (outubro de 1928). Este relativo xito, assim como o crescimento do prprio PC, que passa presumivel- mente de 300 membros, por ocasio de seu 2 Congresso, realizado em 1925, para 800 militantes em fins de 1928, devem ser vistos com as devidas propores30. O PC e sua frente eleitoral representavam ncleos pequenos de quadros organizados, com alguma implantao no pouco que havia de movimento operrio, mas sem qualquer condio de organizar grandes massas. O BOC, em pleno declnio, foi alis liquidado por deter- minao da prpria Internacional Comunista, como conseqncia da li- nha conhecida como "Terceiro Perodo", nos primeiros meses de 1930.

    Poder-se-ia dizer que em uma conjuntura de ascenso do movimen- to operrio um grupo homogneo e sabidamente aguerrido teria condi- es para colocar-se cabea do movimento, no caminho da revoluo democrtico-burguesa ou da construo de um grande partido proletrio. Ocorre porm que em 1928 ou 1929 havia apenas sinais de retomada. Os exemplos da grande presso operria citados por De Decca no tinham este alcance. A greve dos grficos, organizada pelo PC, girava em torno de objetivos imediatos em boa parte no alcanados. No chegou a ter a am- plitude das greves ocorridas tambm em So Paulo em 1932, aps a "der- rota do proletariado". A CGT, no dizer de Kazumi Munakata, um autor ins- pirado em De Decca, nasce artificialmente, "se se levar em conta a preca- riedade da organizao sindical de um importante centro industrial como So Paulo. O Congresso Operrio Nacional, reunido no Rio de Janeiro, de 26 de abril a 1o de maio de 1929, conta apenas com cerca de 60 de- legados, representando 100 entidades, a maioria presumivelmente fantasmagrica"31.

    (30) Ver John W. F. Dulles, Anarchists and Commu- nists in Brazil, 1900-1935. Austin, Un. of Texas Press, 1973; Ronald H. Chilcote, The Brazilian Communist Party. Conflict and Inte- gration. New York, Ox- ford Un. Press, 1974.

    (31) Munakata, Kazumi A Legislao Trabalhista no Brasil. So Paulo, Bra- siliense, 1981, p. 60.

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  • ESTADO, CLASSE TRABALHADORA E BURGUESIA INDUSTRIAL (1920-1945)

    Mas uma discusso centrada apenas no BOC ou em outras corren- tes revolucionrias no d conta da conjuntura do final dos anos 30, vista do ngulo da classe trabalhadora. preciso ter presente a existncia de setores operrios organizados propensos colaborao com o Estado, so- bretudo no Rio de Janeiro, o que ocorria alis, como sabido, desde os fins do sculo XIX. No curso da campanha eleitoral de 1930, mais de 40 sindicatos e associaes de moradores, entre eles trs agrupamentos de ferrovirios, associaes de martimos e de estivadores, decidiram apoiar a candidatura Jlio Prestes. provvel que muitas destas organizaes no passassem do papel, mas nem todas. A anlise de Conniff, mesmo com a impreciso dos dados que o autor reconhece, mostra como os bairros cariocas habitados por estivadores e ferrovirios votaram em grande maioria na candidatura oficial32. Certamente, no se tratava de apoio ao sistema oligrquico. Um setor operrio minimamente atendido pelo poder reco- nhecia porm que, falta de outras alternativas, a vitria do governo po- deria trazer algumas vantagens palpveis, entre elas o cumprimento da pro- messa de aprovao de um Cdigo do Trabalho.

    No que diz respeito massa operria no organizada, convm dis- tinguir entre seu comportamento nas aes coletivas e suas opes polti- cas e eleitorais, o que alis uma caracterstica persistente na histria bra- sileira, vindo at nossos dias. Sugiro que, com variaes de setor a setor, de regio a regio, a massa de trabalhadores tendia a seguir os grupos radi- cais por ocasio das greves, quando estas davam expresso s aspiraes da base. At porque estes grupos eram os nicos com experincia e dispo- sio de desfechar aes coletivas. Mas as correntes radicais no logravam grande adeso no plano poltico (PC diminuto, anarquismo em franco de- clnio) e a sua ressonncia em termos eleitorais era restrita. Nas eleies de 1930, por exemplo, a candidatura de Minervino de Oliveira pelo BOC recebeu nfima votao ainda que se tenha em conta a distoro dos n- meros pela fraude33. A votao provavelmente foi mais reduzida do que seria em outras circunstncias, ou seja, se no houvesse uma candidatura de oposio que gozava de muita simpatia entre os trabalhadores. No fal- tam indcios a este respeito. A candidatura Getlio Vargas tinha a marca atraente da mudana, por mais cautelosos que fossem os pronunciamen- tos dos polticos da Aliana Liberal e do prprio candidato em primeiro lugar. curioso observar, de passagem, como a rejeio do nome de Ge- tlio sofreu resistncias no interior do prprio PC34. Quanto aos trabalha- dores desorganizados, Conniff mostra como os bairros operrios do Rio de Janeiro habitados tipicamente por setores caracterizados pela baixa or- ganizao e baixos salrios caso dos txteis votaram preferentemen- te em Getlio35. Com relao a So Paulo, a indicao impressionista mais interessante o conhecido relato entre maravilhado e temeroso de Paulo Nogueira Filho, descrevendo a marcha de alm porteiras do Brs, onde se misturavam no seu dizer burgueses e proletrios, rumo ao comcio da Alian- a Liberal na praa da S36. Nem possvel esquecer, saindo da rea de

    (32) Conniff, Michael L. Urban Politics in Bra- zil. The Rise of Populism, 1925-1945. Pittsburgh, Un. of Pittsburgh Press, 1981, p. 83.

    (33) Oficialmente, Miner- vino obteve 534 votos de um total de 59.478 votan- tes no Distrito Federal. Dulles, op. cit., p. 415.

    (34) Dias, Everaldo His- tria das Lutas Sociais no Brasil. So Paulo, Edaglit, 1962, pp. 161 e segs.

    (35) Conniff, op. cit., p. 83.

    (36) Nogueira Filho. Pau- lo Ideais e Lutas de um Burgus Progressista. So Paulo. Jos Olympio. p. 405, 2a ed.

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  • NOVOS ESTUDOS N 20 - MARO DE 1988

    So Paulo a que praticamente se restringe este texto, a participao dos trabalhadores do Recife em apoio ao armada de Juarez Tvora em Per- nambuco (outubro de 1930).

    Em sntese, o confronto do final dos anos 30 um confronto intra- elites, tradicional na histria brasileira. O jogo se decide no mbito das foras dominantes envolvidas e a vitria dos novos grupos no corresponde pura e simples liquidao dos derrotados e de suas fontes de poder. Mas ao mesmo tempo h algo de novo no horizonte cujo sinal mais claro a ampliao da mobilizao social, apontando para a alterao das bases da poltica de elite. Nesta mobilizao incluem-se tendncias dispostas a mudanas mais profundas do sistema scio-econmico, formadas por se- tores diversos e no mais das vezes divergentes entre si (tenentes, Partido Comunista com uma base operria, porta-vozes da classe mdia profissio- nal etc.), cuja aproximao se daria em 1934/1935. Mas nem em 1934/1935 e menos ainda no final dos anos 30 estavam dadas as condies para a eclo- so de uma "revoluo democrtico-burguesa" para no se falar em uma "revoluo proletria". As alternativas em jogo em 1928/1930 eram alter- nativas de elite, mas de elites ampliadas. A diferena consistia no apenas nesta ampliao mas no fato de que os novos detentores do poder elabo- rariam uma poltica com relao aos "radicais", ao movimento operrio organizado e classe trabalhadora em geral.

    Uma das formas bastante fecundas de se abordar o movimento de 1930 o de discuti-lo a partir do tema clssico da continuidade e da rup- tura, que habitou as preocupaes dos contemporneos e habita as de ns prprios, no fssemos testemunhas e participantes do longo e duvidoso parto da transio. Velho e novo se contrapem como imagens e recursos polticos s vezes infelizes em nossa histria. Pois qualquer regime que pro- cura apresentar-se como renovador em oposio a um passado corrupto ou em decadncia, manipulando os termos "velho" e "novo" corre o ris- co de enfrentar uma crtica, passando tambm pela temporalidade. Con- forme a poca ou a tendncia crtica, ou se reconhece a mudana mas pa- ra se demonstrar como os velhos tempos eram melhores, ou se busca neg- la, acentuando-se o contraste entre o discurso enganoso da abertura de uma nova poca e a continuidade dos nossos males sociais, polticos e administrativos.

    Nem por isso "velho" e "novo" so expresses que habitam apenas o imaginrio poltico. Como nunca houve no Brasil revolues que derru- bassem do poder poltico uma classe social e nele instalasse outra, trans- formando radicalmente a estrutura da sociedade e das instituies trans- parncia alis muito rara na histria mundial , a tendncia a desqualific-

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  • ESTADO, CLASSE TRABALHADORA E BURGUESIA INDUSTRIAL (1920-1945)

    las inevitvel. Para ficar em um exemplo, a arqui-repetida constatao de Aristides Lobo sobre o 15 de novembro de 1889 ("o povo assistiu quilo bestializado"), importante no sentido de marcar a excludncia popular, pa- rece estar subjacente ao pensamento de que entre Imprio e Repblica no houve diferena essencial.

    No penso, de modo algum, que os limites dos episdios revolu- cionrios no Brasil sejam de pouca significao. A permanncia de estru- turas scio-econmicas geradoras de profundas desigualdades, a intocabi- lidade de determinados privilgios, o carter clientelista do Estado so exem- plos suficientes do alcance relativo de tais episdios. Mas, se as nossas re- volues e contra-revolues se caracterizam como disputas interdites (eli- tes que se ampliam porm cada vez mais a ponto de abranger, por exem- plo, a elite sindical em 1964), nem por isso representam simples mudan- as de forma no mbito de eternas estruturas de dominao. Em vez de pens-las sob o ngulo enganoso da forma e do contedo, convm abord- las como "momentos" de um processo histrico caracterizado por mu- danas que s vezes representam avanos e s vezes retrocessos. Neste sen- tido, poucos autores deixariam de considerar a Revoluo de 1930 sob o signo da descontinuidade, independentemente de discordncias interpre- tativas em aspectos cronolgicos ou em reas especficas sobretudo no cam- po econmico. No terreno social, a profunda mudana hoje bastante co- nhecida em suas linhas mais abrangentes, sobretudo no que diz respeito ao do Estado. A legislao tpica dos anos 20, por mais indicativa que fosse, pouco tinha a ver com uma poltica nacional como a instituda ao longo do perodo 1930-1945. Ela abrangeu de um lado e sobretudo o en- quadramento e a atrao da massa operria urbana atravs de recursos de natureza diversa como os sindicatos controlados, a legislao trabalhista, a mensagem simblica corporificada na "ideologia de outorga", passando pela recriao de um passado histrico. Mas incluiu, de outro lado, o en- durecimento da represso, a especializao dos rgos repressivos, a utili- zao de recursos de alta eficcia do imaginrio poltico, no quadro incer- to dos anos 30, exemplificada pelo tema da conspirao internacional.

    A ao governamental no foi avassaladora, chegou a ser tateante e incluiu marchas e contramarchas. Porm notvel o interesse imediato do governo Vargas no tratamento da questo social urbana e a permanente preocupao com o tema. certo, por exemplo, que a lei de sindicaliza- o de 1931 teve pouca eficcia. Mas a simples aprovao de um decreto legalizando explicitamente os sindicatos operrios e ao mesmo tempo submetendo-os ao rgido controle do Estado representa a introduo de um modelo institucional de longo curso. Conhecemos bem, inclusive pe- la experincia corrente, o enraizamento do sindicalismo dependente do Estado e a dificuldade de cortar suas razes, por presses que vm a esta altura menos da classe dominante e mais de parcelas no desprezveis do movimento operrio.

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  • NOVOS ESTUDOS N 20 - MARO DE 1988

    A anlise da questo social no perodo 1930-1945 passa em primei- ro lugar pela considerao geral da natureza da revoluo de 1930 e da subseqente definio do Estado assim como das relaes Estado-classes e interclasses. Avanou-se muito na caracterizao do episdio revolucio- nrio, desde os tempos em que se mostrou como eram inadequadas as vi- ses que o encaravam sob a forma do assalto de uma frao de classe ao poder. Pretender em poucas palavras discutir as diferentes linhas de inter- pretao mais recentes ou mesmo reformular concepes foge ao alcance e aos limites deste trabalho. Mas alguma coisa deve ser dita, com o risco de se repetir o conhecido.

    No estava escrito que haveria uma revoluo no ano de 1930. Po- rm, certamente, eram muitos e de difcil soluo os problemas que o sis- tema oligrquico tinha de encarar, no fim dos anos 20. No terreno econ- mico, a concentrao de atividades no setor agroexportador cafeeiro re- sultara na superproduo, enfrentada com medidas paliativas, como vinham anunciando os "profetas da crise" do Partido Democrtico. Socialmente, a dinmica do crescimento dera origem a uma sociedade mais complexa, destacando-se a expanso dos quadros mdios profissionais, com limita- das oportunidades de acesso a cargos pblicos e a funes polticas. Por sua vez, o regime no conseguira compatibilizar duas vises de mundo no interior do prprio aparelho de Estado: a dos polticos profissionais e a dos militares ainda que as patentes mais altas fossem cooptadas pelo regime aps os atritos de fins do sculo XIX e primeiros anos deste scu- lo. Mais ainda, as novas geraes de elite, tranqilas sucessoras, em outras condies, dos pais fundadores ou velhos aderentes da Repblica, assu- miam a crtica do sistema oligrquico seja sob a forma minoritria do libe- ralismo (os jovens dos PD) seja sob a forma dominante das ideologias au- toritrias prximas em maior ou menor grau ao fascismo que iro ganhar forma nas Legies revolucionrias.

    O fato de que a revoluo tenha ocorrido em 1930 dependeu das circunstncias de peso varivel a influenciar o jogo poltico: a intransign- cia da oligarquia perrepista de So Paulo com Washington Luiz frente na questo sucessria, a derrota eleitoral da Aliana Liberal, a morte de Joo Pessoa, a existncia de setores das Foras Armadas disponveis para a re- volta. Coisas aparentemente triviais, acidentes histricos cuja importncia vamos aos poucos redimensionando, no fssemos contemporneos da morte de um presidente que apenas simbolicamente chegou a subir a rampa do Palcio do Planalto. Tudo isto ocorreu integrando e tendo como refe- rncia a crise interna em gestao de espectro mais amplo, a que veio se juntar a crise internacional iniciada em outubro de 1929. Se a crise mun- dial acelerou ou no o episdio revolucionrio uma questo aberta a con- trovrsias. certo porm que o Governo Vargas logo de sada teve de fazer face a uma situao complexa, no s porque existiam velhos problemas espera de resposta, como tambm porque a crise tornara estes proble- mas prementes, criara novos, por mais que o impacto da crise no fosse.

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    imediato e nos primeiros meses o governo provisrio pensasse enfrent-la com remdios ortodoxos.

    No barco da conspirao, entrou um pouco de tudo, o que no novidade. Ao alcanar o poder, o alto comando do barco ficou nas mos de um pequeno crculo formado pelo Presidente e seus homens de con- fiana, por personagens das Foras Armadas (com progressivo deslocamen- to de "tenentes" para figuras de maior hierarquia), por representantes se- lecionados de fraes da classe dominante. Com a enorme vantagem da anlise a posteriori, podemos afirmar que este grupo estava bem talhado para as tarefas impostas pela conjuntura do ps-30. Isto no quer dizer _ diga-se de passagem que no tenha atravessado perodos de grande ins- tabilidade e de dissenses internas, nem que as formas polticas por ele impostas fossem as nicas possveis. Mesmo o misterioso salto de Getlio Vargas, de quadro da velha poltica oligrquica a dirigente da nova ordem, deixou de ser to misterioso aps a sugestiva anlise de Pedro Dutra Fon- seca, indicando como a proteo ao mercado interno e a diminuio da "excessiva dependncia" do capital estrangeiro, implicando a interveno do Estado no campo econmico, eram temas familiares chamada "gera- o de 1907" que acabou por predominar no Partido Republicano Riograndense37. Da mesma forma, a viso unitria dos tenentes e das For- as Armadas em geral era extremamente compatvel com uma conjuntura de crise social e de problemas econmicos e financeiros os quais impu- nham decises centralizadas.

    Hesito em repetir verdades muito gerais, assinalando que a revolu- o de 1930 representou um momento importante no processo de desen- volvimento capitalista do pas e que, no curso dos anos, a frao industrial da classe dominante se tornou hegemnica. A questo maior consiste em entender como se deu este processo, questo que passa pelo ponto ne- vrlgico das relaes entre Estado e classes sociais. Ou seja, com o apoio de que bases sociais, com que tipo de ajuste entre aparelho estatal e fra- es de classe, pde o Estado realizar, como disse Snia Draibe, uma pol- tica resultando em uma transformao capitalista que ia alm dos horizon- tes estreitos dos vrios setores dominantes e em particular da burguesia industrial38? Para responder a esta questo central, ao lado de outros mo- delos explicativos todos em contraposio s concepes de assalto ao Estado pelas classes, nas suas diferentes verses , constituiu-se a noo de Estado de compromisso, cuja formulao mais elaborada se deve a Fran- cisco Weffort. Em um texto tantas vezes citado, Weffort sustenta, em resu- mo, que depois de 1930 estabeleceu-se um acordo de novo tipo, em que nenhum dos grupos participantes do poder podia oferecer as bases de le- gitimidade do Estado: as classes mdias porque no possuam autonomia poltica frente aos interesses tradicionais; os grupos cafeeiros porque ti- nham sido deslocados do poder poltico sob o peso da crise econmica; os setores menos vinculados exportao porque no se encontravam li- gados

    aos

    centros

    bsicos

    da

    economia.

    Nestas

    condies,

    aparece

    na

    his-

    (37) Fonseca, Pedro Cezar Dutra Vargas: o Discur- so em Perspectiva e o Ca- pitalismo em Construo. Tese de Doutoramento. So Paulo, FEA, 1987, p. 83 e segs.

    (38) Draibe, Snia Ru- mos e Metamorfoses; um Estudo sobre a Constitui- o do Estado e as Alter- nativas da Industrializao no Brasil, 1930 1960. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1985, p. 20.

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    tria brasileira um novo personagem: as massas populares urbanas, nica fonte de legitimidade possvel ao novo Estado brasileiro. O Estado encon- trar assim condies de abrir-se a todos os tipos de presso sem se subor- dinar, exclusivamente, aos objetivos imediatos de qualquer delas. J no uma oligarquia, no tambm o Estado tal como se forma na tradio ocidental. um certo tipo de Estado de massas, expresso da crise agrria, da dependncia dos setores mdios urbanos e da presso popular39.

    A noo de Estado de compromisso, tambm por mim assumida, estabeleceu um parmetro importante para a compreenso de que o Esta- do no o comit executivo de uma classe por maior que seja a significa- o econmico-social desta; mas que tambm no dispe de autonomia ilimitada, sendo levado a atender aos interesses de classe, seja no sentido da mudana seja no sentido das barreiras opostas sua inteno de mu- dar. No creio alis que em sociedades diversificadas, a no ser em mo- mentos circunstanciais, possa o Estado tomar a configurao de comit exe- cutivo da classe dominante. Como mostram sobretudo os trabalhos de Winston Fritsch, esta relao unvoca no verdadeira nem mesmo no pe- rodo da Repblica Velha, quanto mais com respeito ao Estado que nasce com a Revoluo de 1930.

    At que ponto a noo de Estado de compromisso se sustenta ho- je? A crtica mais significativa me parece ser a de Snia Draibe, procuran- do mostrar os avanos representados pela noo e as suas insuficincias. Interessada sobretudo na anlise do processo de industrializao, sustenta que a noo de compromisso supe implicitamente um certo "equilbrio" ou "empate social" entre setores agrrios e urbano-industriais ou, por ou- tro lado, tende a ser utilizada concretamente como sinnimo de aliana poltica, introduzindo dilemas para a compreenso de um perodo marca- do sobretudo pela instabilidade de coalizes polticas. O que permanece como problema exatamente a identificao das diferentes "modalidades de compromisso" entre foras sociais no estticas e em transformao em face das questes da industrializao, elas mesmas em processo contnuo de "reatualizao"40.

    No certo que Weffort tenha associado a noo ao pressuposto da estabilidade das alianas polticas. Pelo contrrio, o Estado de compro- misso antes de tudo "um Estado em crise, que se forma e se reforma na busca de respostas nova situao criada pela crise da economia agrria, pela crise local (e mundial) das instituies liberais, pelos esforos de in- dustrializao autnoma de uma sociedade tradicionalmente agrria e de- pendente, pela dependncia social dos setores mdios e pela crescente pres- so popular"41. A crtica de Draibe tem entretanto o mrito de nos levar a confrontar a noo de compromisso com a realidade histrica do pero- do. difcil sustentar que o regime Vargas, nos anos entre 1930 e a revolu- o de 1932, tenha conseguido forjar uma coalizo poltica estvel e a in- corporao de fraes da classe dominante. A marca deste breve perodo foi exatamente a grande instabilidade. As incertezas da poltica governa-

    (39) Weffort, Francisco Classes Populares e Polti- ca (Contribuio ao Estu- do do Populismo). Tese de Doutoramento. So Paulo, USP, 1968.

    (40) Draibe, op. cit., pp. 23-24.

    (41) Weffort, op. cit., p. 71.

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    mental, a entrega do poder em So Paulo aos "tenentes" favoreceram a criao de uma ampla frente regional paulista dos interesses rurais gran- de indstria, dos "carcomidos" aos democrticos , que chegou ao pon- to extremo da ruptura, ou seja, a Revoluo de 1932. S aps a derrota comeou a tomar forma a aproximao entre o governo federal e os v- rios setores da classe dominante de So Paulo, com a presena crescente da burguesia industrial. Ainda no rescaldo da "guerra paulista", a bancada classista dos empregadores, eleita por So Paulo Assemblia Nacional Constituinte em 1933, praticamente se confundiu em suas iniciativas com a Chapa nica por So Paulo Unido, formada pelos partidos e associaes tradicionais, caso nico nos vrios Estados da Federao. Isto no quer di- zer que ela no fizesse a defesa da indstria mas que os interesses regio- nais diversos continuavam a ter um ponto de encontro na defesa da auto- nomia estadual. Assim, a bancada paulista com o apoio explcito de Ro- berto Simonsen props que, estabelecidos na Constituio os princ- pios gerais do direito do trabalho, sua regulamentao fosse deferida a ca- da Estado42.

    Por outro lado, no obstante a imediata preocupao do Governo Provisrio com a questo social, no se poderia falar concretamente de um setor organizado da classe operria participante da aliana de classes sob o guarda-chuva do Estado, pelo menos at os ltimos anos do Estado Novo. Curiosamente, foi no perodo estadonovista que a legitimidade do governo Vargas alcanou seu ponto mais alto, com o apoio concreto ou difuso de um amplo arco social atravessando setores dominantes e dominados.

    Na anlise especfica da ao do Estado com relao s classes tra- balhadoras no ps-30, possvel distinguir cronologicamente pelo menos trs fases. A primeira vai da instalao do Governo Provisrio at 1935, tendo como referncia final a criao e dissoluo da Aliana Nacional Li- bertadora e a insurreio de novembro. Ela marcada por uma ampla ati- vidade legislativa e pela reformulao de pontos vitais desta legislao. A partir da posse de Salgado Filho no Ministrio do Trabalho (abril de 1932) h um esforo no sentido de se pr em prtica a legislao que muitas ve- zes ficara no papel. A poltica governamental se caracteriza concomitante- mente pela represso esquerda e ao setor operrio por ela organizado, embora o nvel de represso no seja sempre o mesmo. Intenso nos pri- meiros anos e sobretudo nos primeiros meses de governo, atenua-se com a abertura poltica e a mobilizao eleitoral. Volta a ganhar impulso a par- tir da posse de Agamenon Magalhes no Ministrio do Trabalho em julho de 1934.

    A segunda fase vai de 1935 a 1942, quando as organizaes inde- pendentes de trabalhadores desaparecem golpeadas pela intensa repres- so e se consolida o aparelho burocrtico sindical, esvaziado porm de contedo. Uma importante inflexo ocorre a partir de 1942 at a queda do regime, associada figura por muitos aspectos fascinante de Marcon-

    (42) Gomes, op. cit., pp. 451 e 466.

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    des Filho, antigo poltico perrepista que assume o Ministrio do Trabalho em dezembro de 1941. Este o perodo em que o projeto de atrao da massa de trabalhadores e da transformao dos sindicatos em organismos ativos como suporte do Estado ganha clara configurao. S ento se po- de falar de uma sria tentativa de estabelecer uma estrutura corporativista, envolvendo um amplo espectro de classes, embora o corporativismo fos- se um tema caro ao discurso governamental desde os primeiros tempos. Tal projeto, muito bem analisado por ngela Castro Gomes, passa pela ela- borao de uma mitologia poltica via releitura da Repblica Velha, indis- pensvel emergncia da viso do acesso dos trabalhadores cidadania no ps-30. Caracteriza-se pela construo da ideologia da outorga de di- reitos, envolvendo uma expectativa de reciprocidade dos trabalhadores, diante dos "favores" que lhes so concedidos pelo Estado. A mobilizao popular em apoio a Vargas marca o limite extremo desta poltica comple- xa, cortada provisoriamente com a queda de Getlio em 1945.

    Como se verifica por este breve relato, a ao governamental teve um alcance amplo, com balizas claramente fixadas. De um lado, represso s tendncias polticas ou organizaes de trabalhadores que fogem a es- tas balizas; de outro, institucionalizao de relaes, subordinao e coop- tao da classe trabalhadora em geral.

    Quais as razes deste comportamento? Embora a atribuio de de- terminada nfase a concepes diversas corra o risco de interpret-las equi- vocadamente, penso que neste caso as explicaes tm-se dividido entre as predominantemente polticas e as predominantemente econmicas. De um lado, esto autores como Robert Rowland e Maria Herminia; de outro, Werneck Vianna e Francisco de Oliveira.

    Na verso de Rowland, a adoo de uma viso corporativista das instituies polticas deve-se principalmente exigncia de acabar com o Estado oligrquico e de encontrar uma forma de organizao poltica que tomasse seu lugar sem que ocorresse uma revoluo social. A ao gover- namental comea pela tutela assistencial, dedica-se em um segundo mo- mento subordinao poltica dos trabalhadores, acabando por ocorrer por fim a integrao destes dois momentos. Ela deve ser entendida como instrumento destinado a manter a "paz do trabalho", em face da importn- cia crescente das cidades e da necessidade de lidar com conflitos entre as diferentes faces dominantes. Embora Rowland afirme de passagem que a "paz do trabalho" era importante no s no mbito restrito das rela- es capital-trabalho e no setor urbano-industrial, como tambm dentro do contexto da poltica econmica do governo, sua interpretao nitida- mente poltica: "podemos concluir que qualquer tentativa de analisar a le- gislao trabalhista e sindical no primeiro perodo Vargas simplesmente em termos das relaes entre o capital e o trabalho unilateral e, de certa for- ma, a-histrica. A interveno do Estado no mercado de fora de trabalho obedeceu a uma srie de exigncias, principalmente polticas, s quais a burguesia industrial foi durante muito tempo alheia"43.

    (43) Rowland, Robert "Classe Operria e Estado de Compromisso", em Es- tudos Cebrap no 8, abril a junho de 1974, p. 37.

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  • ESTADO, CLASSE TRABALHADORA E BURGUESIA INDUSTRIAL (1920-1945)

    Werneck Vianna fez a crtica mais ampla s formulaes de Row- land. Ele acentua que o autor tem como referncia terica a categoria Esta- do autonomizado politicamente que alarga e afasta da concepo clssica. Concordando com a constatao de que o Estado chama a si o jogo polti- co, discorda da interpretao de Rowland sobre este fato. O "politicismo", partindo de uma perspectiva empirista, evitar reconhecer que esta avoca- o pressupunha o prvio controle da economia. A necessidade de regu- lar o trabalho estava voltada essencialmente para as necessidades da acu- mulao capitalista, tanto sob a forma de depresso dos salrios como do controle poltico dos trabalhadores44.

    No creio, inicialmente, que a mobilizao da classe operria fosse uma ameaa ordem instaurada em 1930, a ponto da poltica repressiva e de cooptao constituir uma resposta a um srio risco deste tipo. certo que a constituio da ANL em abril de 1935 representou uma ameaa po- tencial de aglutinao de foras em busca de um caminho alternativo. Em- bora a classe operria no fosse a base social mais importante desta agluti- nao, a questo de seu controle tornou-se um tema primacial. Mas a re- presso esquerda e aos sindicatos controlados pelo PC vinha j dos pri- meiros tempos e no de meados da dcada de 30, com a interdio de passeatas, a priso de figuras polticas, a proibio do comcio de 1 de maio de 1931 no Rio de Janeiro etc. Ela teve o propsito de liquidar o mais cedo possvel os comunistas e de cortar pois seus laos com a clas- se trabalhadora, em uma poca marcada pelas incertezas quanto ao futuro do capitalismo no plano mundial e pela instabilidade interna, expressa nas greves e no desemprego. Ao mesmo tempo, a insistncia na denncia do "perigo comunista" no tinha relao, nos primeiros tempos, com a ex- panso do partido. Cumpria o papel de demonstrar s vrias faces em luta, s foras conservadoras em geral e s potncias estrangeiras que o governo tinha capacidade de manter a ordem e de esmagar qualquer ten- tativa de ruptura dos grandes marcos de dominao imperantes na socie- dade. Na medida em que o PC entrara em um perodo "obreirista", de ver- balizao revolucionria inflamada, o inimigo no precisava sequer ser cons- trudo pois estava vista, de corpo inteiro.

    A questo da subordinao e da cooptao da classe trabalhadora mais complexa e, segundo penso, as respostas continuaro variando ao longo do tempo por decorrerem, em muitos aspectos, menos dos dados empricos e mais das concepes de cada um.

    Inicialmente, fundamental assinalar que a legislao trabalhista e a consequente implantao, alis bastante incompleta, da estrutura corpo- rativista representaram apenas parte deste processo. Sobretudo a partir do Estado Novo, outros ingredientes foram tambm utilizados com os mes- mos objetivos, apelando para as carncias, as emoes e os sentimentos mais profundos das massas. Refiro-me a todo o instrumental do imagin- rio poltico utilizado pelo governo. A reconstruo do passado histrico, a elaborao da figura mtica de Getlio Vargas como pai da grande fam-

    (44) Vianna, op. cit., pp. 12 e segs.

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    lia nacional, as falas presidenciais e do ministro Marcondes Filho dirigidas aos humildes, a criao de um tempo festivo de congraamento e come- moraes so exemplos aqui apenas enumerados do arsenal posto em pr- tica. Um dos elementos de explicao da eficcia deste programa consis- tiu no fato de que ele se dirigia a uma classe operria de formao recente, composta sobretudo de migrantes deslocados para as grandes cidades, ainda que se tenha dado excessiva nfase a este aspecto no passado45.

    No plano da legislao trabalhista, considero pelo menos mais fcil perceber as razes polticas das iniciativas governamentais e creio que sua importncia maior se concentra neste nvel. A insero da classe trabalha- dora urbana em uma ordem nacional uma preocupao imediata do n- cleo que assume o poder em 1930. Ela se nutre de uma viso poltica inte- gradora das classes e da experincia histrica da Velha Repblica, caracte- rizada pela fragmentao regional e, especificamente, pela presena e ao mesmo tempo limitada expresso da classe operria.

    Se a inteno de estabelecer parmetros institucionais para a ques- to social constitutiva da formao do novo governo, sua definio de- corre do contexto dos anos 30. Desde logo, preciso lembrar que, embo- ra a legislao trabalhista no fosse uma resposta mobilizao macia dos trabalhadores, nem por isso pode ser esquecido o fato de que no fim da dcada de 20 e no incio dos anos 30 as greves ganharam intensidade aps um longo perodo de declnio. tambm bastante claro que, a partir de 1930, no s a classe operria como a populao urbana em geral tornaram- se elementos a serem levados em conta no jogo poltico, pelas vrias fac- es. As tentativas de aproximao de Miguel Costa especialmente com o setor txtil organizado de So Paulo, a tentativa de criao do Partido Po- pular Progressista, a experincia da administrao Pedro Ernesto no Rio de Janeiro, so exemplos das virtualidades e dos limites de uma poltica populista, qual faltou naqueles anos a base do Estado Nacional.

    Muito mais cauteloso, o governo central comeou a instituir um pro- grama trabalhista sem ter porm a inteno e as condies de mobilizar, a princpio, as massas trabalhadoras. Considero, em resumo, que h um claro sentido poltico na legislao do trabalho, embora no veja uma re- lao direta de causa e efeito entre o conjunto de medidas e as mobiliza- es operrias. Nem me parece que a carta do suporte de massas foi ime- diatamente lanada pelo governo Vargas, no jogo das faces. O propsito de reprimir radicais e de cooptar os grandes contingentes de trabalhado- res duas faces de uma mesma moeda concretizou-se em tempos dis- tintos. A face repressiva surgiu desde logo, tanto para limpar o terreno de modo a permitir a cooptao, como porque trazia dividendos polticos imediatos diante da classe dominante. A outra se desenhou mais lentamente, em ritmo compatvel com o conservadorismo bsico do governo e a exis- tncia real de um setor social cuja atrao seria inteiramente desejvel mas deveria ser ao mesmo tempo realizada sem atropelos inquietadores.

    (45) A anlise da "poltica simblica" do getulismo foi objeto da excelente te- se de doutoramento de ngela Maria de Castro Gomes, A Inveno do Ttabalhismo. Rio de Janei- ro, Iuperj, 1987, utilizada em vrios pontos deste texto. Para a correlao entre a rentabilidade do uso de recursos do imagi- nrio poltico, como a fi- gura do salvador, o tema da unidade e populaes deslocadas, ver Raoul Gi- rardet. Mitos e Mitologias Polticas. So Paulo, Cia. das Letras, 1987.

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    A nfase posta no sentido poltico da legislao trabalhista no incompatvel em princpio com seu significado econmico. Em especial, se considerarmos que este significado pode ter-se concentrado no plano dos resultados e no propriamente das intenes. Alm disto, a aceitao da premissa de que a burguesia industrial no promoveu o estabelecimen- to da legislao trabalhista no implica necessariamente negar as relaes entre a implantao das medidas e a acumulao industrial. Como diz Wer- neck Vianna, o corporativismo pedra de toque da acumulao no corresponde a um constructo (sic) da burguesia industrial brasileira. Sua concepo do mundo se instala por fora dos postulados individualistas pr- prios a essa classe, com a subordinao da sociedade civil ao Estado e a represso ao menos no nvel ideolgico do nimo irrefreado ao lu- cro, em nome de um comunitarismo entre o capital e o trabalho46.

    O argumento de que a burguesia industrial promoveu a legislao trabalhista pode ser descartado. No essencial, a frao de classe manteve sua ttica anterior a 1930, buscando conceder o menor nmero possvel de direitos em carter geral aos operrios, mesmo sem falar de questes mais sensveis como o caso da greve. Estvamos porm diante de novos tempos aos quais era preciso adaptar-se. Isto favoreceu, como mostra Leo- poldi, a emergncia de figuras da nova gerao de industriais, com a capa- cidade formuladora de um Simonsen que foi alm da simples adapta- o , a flexibilidade de um Euvaldo Lodi, em substituio aos velhos in- dustriais cariocas e aos "condes italianos"47.

    Os exemplos de oposio por parte dos representantes da burgue- sia industrial legislao trabalhista so abundantes. Pupo Nogueira, um dos principais lderes patronais do setor txtil paulista, apesar de suas sim- patias por Manoilescu, criticou duramente a fraseologia dos vencedores, assinalando como desabaram sobre os industriais as calamidades que a Re- voluo trouxe em seu bojo, depois que a indstria em particular a pau- lista foi pintada como uma sementeira de plutocratas. Assinalou tam- bm a oposio dos industriais de So Paulo no tocante legislao "em jato contnuo" promovida pelo Ministrio do Trabalho48. Os sindicatos pa- tronais de So Paulo e do Rio de Janeiro opuseram-se aos contratos coleti- vos, s oito horas de trabalho, lei de frias, lei de sindicalizao etc. Parece-me porm equivocado afirmar que as medidas tendentes a regular as relaes de trabalho e a introduzir o corporativismo tenham sido toma- das contra a burguesia industrial ou que, como afirma Rowland, a inter- veno do Estado no mercado da fora de trabalho obedeceu a uma srie de exigncias, principalmente polticas, s quais a burguesia industrial foi durante muito tempo alheia49.

    Pelo contrrio, os exemplos acima indicam que a frao industrial procurou influir com todas as suas foras na ao do Estado, seguindo a linha geral j delineada no pr-30 de evitar uma legislao global em bene- fcio dos trabalhadores, de adiar a implementao de decretos ou reduzir seu alcance. O prprio Estado teve o cuidado de estabelecer uma rede de

    (46) Vianna, op. cit., p. 124.

    (47) Leopoldi, op. cit., p. 381.

    (48) A citao de Pupo Nogueira se encontra em Almeida, op. cit., p. 174.

    (49) Rowland, op. cit., p. 37.

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    contatos com empregadores e empregados, ou seja, no ltimo caso, com os representantes dos sindicatos reconhecidos pelo Ministrio do Traba- lho e seria difcil acreditar que os "porta-vozes dos empregados" tivessem maior influncia do que os dos industriais. A maior parte das discusses deu-se nas Comisses Mistas compostas por delegados do ministrio, por representantes de empregadores e empregados e tambm por elementos do Instituto dos Advogados50. Em alguns casos, os industriais atingiram seus objetivos, ao reduzir o alcance da lei das oito horas, da regulamenta- o do trabalho dos menores e das mulheres; em outros, foram vencidos, como o caso da lei de frias que pretendiam simplesmente revogar, substituindo-a pelo seguro social de amparo velhice, s doenas e inva- lidez. Embora discorde de Werneck Vianna quanto ao alcance da interven- o da burguesia industrial neste processo, bastante adequada sua obser- vao de que ela, pragmaticamente, atenuou e corrigiu o projeto em cur- so, contra a burocracia dos idelogos totalitrios, centrada em temas gran- diloqentes como grandeza nacional, vontade nacional e ordem corporativa51.

    Os atritos entre a burocracia estatal e os empresrios percorreram todo o regime Vargas. Mas cada vez mais tornou-se claro para eles, a partir de 1935-1937, que a orientao governamental lhes era bastante conveniente. As leis de sindicalizao, afinal de contas, no reconheciam a luta de clas- ses mas, pelo contrrio, punham um freio nela. O fato de que os indus- triais consideravam-nas uma camisa-de-fora fica evidente na resistncia oposta por eles sua aplicao em seu prprio campo, inclusive em pleno Estado Novo. Isto no obstante os efeitos diversos que tinha a legislao quando aplicada aos trabalhadores ou aos empresrios. A "paz social" in- troduzida pelo Estado Novo recebeu as bnos da frao de classe que, em sua imensa maioria, permaneceu fiel a Getlio mesmo quando come- ou a mobilizar os trabalhadores, antes de sua provisria queda.

    Mas at que ponto a introduo da legislao trabalhista pelo Esta- do e o ensaio corporativista foram especificamente um instrumento da acu- mulao industrial, quaisquer que fossem as percepes do setor social beneficiado? A tentativa de Werneck Vianna no sentido de demonstrar, com base nos censos de 1920 e 1940, que o valor agregado correspondente renda da comunidade em sua relao com os salrios pagos cresceu entre 1920 e 1940 no nos garante admitida a hiptese que isto tenha ocor- rido graas legislao trabalhista. Enfatizando seu argumento, Werneck Vianna ressalta "que os dados de 1940 incluem a valorizao dos salrios ocorrida de 1921 a 1930, quando os sindicatos dispunham de autonomia e livre movimentao no mercado"52. Ora, a compresso salarial pode ter ocorrido precisamente no perodo 1921/1930 e nos primeiros anos da d- cada de 30, neste caso como consequncia dos efeitos da crise mundial. A afirmao no demonstrada de que houve valorizao salarial entre 1921/1930 pois pelo menos muito duvidosa, quando se tem em conta o limitado grau de presso dos sindicatos, em particular nos anos 20.

    (50) Gomes, Burguesia e Legislao... p.352.

    (51) Vianna, op. cit., p. 149.

    (52) Vianna, op. cit., p. 150.

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  • ESTADO, CLASSE TRABALHADORA E BURGUESIA INDUSTRIAL (1920-1945)

    Em um artigo justamente clebre, Francisco de Oliveira critica a te- se do carter redistributivista dos regimes populistas entre 1930 e 1964, a qual entre outros minimizaria o papel da legislao trabalhista no pro- cesso de acumulao que se instaura ou se acelera a partir de 193053. Pa- ra nossa discusso, interessa em especial sua anlise sobre o significado da introduo do salrio mnimo. Ele discorda da tese da artificialidade da medida, contraditando o argumento de Igncio Rangel, para quem os nveis do salrio mnimo seriam nveis institucionais, acima daquilo que se obteria com a pura barganha entre trabalhadores e capitalistas no mer- cado. Este "mercado livre", abstrato, em que o Estado no interfere, toma- do de emprstimo da ideologia do liberalismo econmico, no , diz Oli- veira, um mercado capitalista, pois precisamente o papel do Estado insti- tucionalizar as regras do jogo. Alm disto, uma hiptese nunca provada que os nveis do salrio mnimo tenham sido fixados acima do custo de reproduo da fora de trabalho. Pelo contrrio, a legislao interpretou o salrio mnimo rigorosamente como "salrio de subsistncia", ou seja, de reproduo. No h nenhum outro parmetro para o clculo das ne- cessidades do trabalhador; no existe na legislao, nem nos critrios, ne- nhuma incorporao dos ganhos de produtividade do trabalho.

    Mas tais aspectos no seriam ainda decisivos. Quais seriam eles? A populao em geral, e especialmente a populao que aflua s cidades, precisava ser transformada em "exrcito de reserva". Esta converso era im- portante por duas razes principais. De um lado, propiciava o horizonte mdio para o clculo econmico empresarial, liberto de um mercado de concorrncia perfeita; de outro, a legislao trabalhista igualava reduzindo antes que incrementando o preo da fora de trabalho. Tal operao reconvertia inclusive trabalhadores especializados situao de no quali- ficados e impedia a formao precoce de um mercado dual de fora de trabalho.

    A partir da, Oliveira enfrenta eventuais crticas. Uma primeira ob- jeo consistiria em dizer que no existem provas de que a legislao tra- balhista tenha tido o efeito de rebaixar salrios. Ele responde afirmando que, para os efeitos da acumulao, no era necessrio que houvesse re- baixamento de salrios anteriormente pagos, mas apenas equalizao dos salrios dos contingentes obreiros incrementais, isto , da mdia de sal- rios. A segunda objeo retira seu argumento do fato de que comparado ao rendimento auferido no campo o salrio mnimo das cidades era supe- rior. Sem negar o significado social e poltico do fenmeno, afirma que, do ponto de vista da acumulao, no teve nenhuma importncia pois a relao significativa a que se estabelece entre salrios urbanos e produti- vidade das atividades urbanas, no caso a indstria.

    A principal crtica aos pontos de vista de Oliveira se encontra na tese da Maria Herminia. Em primeiro lugar, ela nega a relao entre salrio mnimo e acumulao no plano das intenes. Quanto aos resultados, concentra-se na observao de Oliveira de que, se fosse verdade que os

    (53) Oliveira, Francisco de "A Economia Brasilei- ra: Crtica Razo Dualis- ta", em Estudos Cebrap no 2, out. 1972.

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  • NOVOS ESTUDOS No 20 - MARO DE 1988

    nveis do salrio mnimo estivessem "por cima" de nveis de pura barga- nha, em um "mercado livre", o sistema entraria em crise por impossibili- dade de acumular, exatamente o contrrio do que aconteceu. Observa que isto seria verdadeiro se fosse constante a produtividade do trabalho e hou- vesse uma situao de livre concorrncia, o que no era o caso da inds- tria brasileira, no incio da dcada de 40. Afora isto, para que a tese de Oli- veira se sustentasse, seria necessrio demonstrar a existncia de uma pro- penso subida das remuneraes no mercado "livre", poca da pro- mulgao da lei do salrio mnimo. Os escassos dados disponveis no pa- recem indicar que as condies do mercado de trabalho favorecessem os interesses materiais dos trabalhadores pois, pelo menos entre 1936 e 1940, foi abundante o fluxo migratrio para o Estado de So Paulo54.

    Da minha parte observo inicialmente que Oliveira utiliza muitas ve- zes "legislao trabalhista" e "decretao do salrio mnimo" como expres- ses sinnimas. Sua argumentao deveria levar em conta a legislao em toda sua abrangncia e o salrio mnimo como um de seus aspectos. Mas inegvel que esta medida de central relevncia para a tese por ele sus- tentada. At porque, como lembra Rowland, ao contrrio do sucedido com a maior parte da legislao estadonovista, o salrio mnimo no foi copia- do do modelo fascista italiano 55.

    Penso que, com sua conhecida intuio, Oliveira estabeleceu os mar- cos do debate e descartou antecipadamente algumas crticas improceden- tes, mostrando por exemplo como irrelevante comparar a renda do cam- po e salrios industriais urbanos para os fins de uma anlise da acumula- o industrial. H, a meu ver, dois aspectos relevantes na discusso do sa- lrio mnimo: as caractersticas de sua implantao a 1 de maio de 1940 e seu sentido bsico ao lo